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Teatro e memória urbana: a cidade do Rio de
Janeiro como mutação de mágica
Ana Paula Brasil
Para citar este artigo:
BRASIL, Ana Paula. Teatro e memória urbana: a
cidade do Rio de Janeiro como mutação de mágica.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0104
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Ana Paula Brasil
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-33, dez. 2022
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Teatro e memória urbana: a cidade do Rio de Janeiro como
mutação de mágica
1
Ana Paula Brasil
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Resumo
O artigo tem por objetivo refletir acerca da memória teatral da cidade do Rio
de Janeiro, relacionando os truques cenográficos das mágicas e
féeries
às
transformações urbanísticas em fins do século XIX e início do século XX. Para
a análise, foi abordado o conceito de alegoria teatral, fundamentado na obra
de Walter Benjamin e em pesquisas emergentes sobre a historiografia dos
gêneros híbridos de teatro. Ilustrou-se o enfoque com exemplos de
espetáculos encenados e por meio da sensibilidade de cronistas da época.
Dessa maneira, levanta-se a discussão sobre o apagamento da memória
urbana e teatral.
Palavras-chave
: Alegoria teatral. Cidade do Rio de Janeiro. História e
historiografia do teatro. Mágica. Memória urbana.
Theater and urban memory: the city of Rio de Janeiro as a mutation
of magic
Abstract
The article aims to reflect on the theatrical memory of the city of Rio de
Janeiro, relating the scenographic tricks of
mágicas
e
féerie
s to urban
transformations in the late 19th and early 20th centuries. For the analysis, the
concept of theatrical allegory was approached, based on the work of Walter
Benjamin and on emerging research on the historiography of hybrid theater
genres. The focus was illustrated with examples of staged shows and through
the sensibility of chroniclers of the time. In this way, the discussion about the
erasure of urban and theatrical memory arises.
Keywords
: Theatrical allegory. City of Rio de Janeiro. History and
historiography of theater.
Féerie
. Urban memory.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Christiano Marques Ferreira. Doutor em Letras
(PPLCC), PUC-Rio. Mestre em Letras (Literatura Portuguesa), PUC-Rio.
2
Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestrado em
Teatro (Unirio). Bacharel em Artes Cênicas, com habilitação em Cenografia (Unirio). Graduada em
Licenciatura Plena em Educação Artística, com Habilitação em Artes Cênicas (Unirio). Professora efetiva no
Curso Técnico de Artes Dramáticas, da Escola cnica Estadual de Teatro Martins Penna (ETETMP-RJ) e
orientadora de iluminação cênica, cenografia, figurino, caracterização e formas animadas nas montagens de
formatura da instituição. anapaulabrsl@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/4732789208143114 https://orcid.org/0000-0002-5998-1347
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Teatro y memoria urbana: la ciudad de Río de Janeiro como
mutación de la mágica
Resumen
El artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la memoria teatral de la
ciudad de Río de Janeiro, relacionando los trucos escenográficos de
las
mágicas
e
fééries
con las transformaciones urbanas de finales del siglo
XIX y principios del XX. Para el análisis se abordó el concepto de alegoría
teatral, a partir de la obra de Walter Benjamin y de investigaciones
emergentes sobre la historiografía de los géneros teatrales híbridos. El
enfoque se ilustró con ejemplos de espectáculos escenificados ya través de
la sensibilidad de cronistas de la época. Surge así la discusión sobre el
borrador de la memoria urbana y teatral.
Palabras clave
: Alegoría teatral. Ciudad de Río de Janeiro. Historia e
historiografía del teatro.
Mágica
. Memoria urbana.
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Introdução
A memória das mágicas no Rio de Janeiro sumiu da historiografia do teatro
como um diabinho pelo alçapão do palco – assim como o Morro do Castelo, sítio
inaugural da cidade, desapareceu da paisagem urbana. Este ensaio busca
relacionar o truque de mutação cenográfica da mágica teatral às transformações
urbanísticas no centro histórico da cidade do Rio de Janeiro em fins do século XIX
e início do século XX, durante a Primeira República. Utiliza-se o conceito de alegoria
teatral, fundamentado no pensamento de Walter Benjamin, para refletir sobre o
apagamento das memórias da cidade e do teatro, além de relatos de cronistas
daquele tempo.
Dessa lacuna historiográfica surgiu a pesquisa sobre esse gênero híbrido de
espetáculo. Em via negativa, sob a metodologia indiciária, os dados para a pesquisa
sobre as mágicas, ora negligenciados, porque marginais e indecifráveis à
historiografia da cultura dominante, foram recolhidos considerando o campo de
estudos como uma zona opaca a ser decifrada. A ausência da mágica na
historiografia foi tratada, portanto, como um sintoma a ser esclarecido (Ginzburg,
1986).
A análise foi fundamentada no conceito de alegoria teatral, o qual trata a
narrativa cênica imagética. A
mutação
consistia na mudança total de um cenário
por outro. O imaginário alegórico da cidade do Rio de Janeiro, entre o desejo de
modernidade e o enterro do passado, como conjunto simbólico, mimetizava a
mutação de mágica.
Por ser a mágica um gênero híbrido dramático-musical– de temática
fantástica, sem encadeamento lógico, guiado por libreto, dividido em atos e
quadros, encenado com orquestra, coro, corpo de baile e grande elenco, com
muitos efeitos e truques cenográficos –, a alegoria teatral permitiu a análise das
visualidades da cena como dramaturgia. A comunicabilidade visual, repleta de
alegorias, contribuiu para o sucesso junto ao público que lotava os teatros da
cidade na época. De tão populares, a palavra mutação (de mágica) foi usada como
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figura de linguagem. Vários autores se referiam às reformas urbanísticas, que
culminaram com o arrasamento total do Morro do Castelo, como mutação
cenográfica.
Inicialmente, será apresentada a premissa que embasa essa reflexão, o
conceito de alegoria teatral de Walter Benjamin, sob uma nova perspectiva: a
questão das imagens dialéticas das cenas de
féerie
, gênero similar às mágicas.
Dessa forma, relaciona-se a cena teatral com a atmosfera da cidade. Serão
apresentadas algumas pesquisas que abordam esse conceito de alegoria na
historiografia do teatro para inserir as mágicas na categoria dos gêneros híbridos.
Em seguida, demonstra-se aspectos da cena de mágica por meio de
exemplos de espetáculos do final do século XIX, bem como a relação entre teatro
e cidade na percepção dos cronistas. Assim, o estudo das visualidades da cena
das mágicas será observado em sua potência metafórica; enquanto seu
apagamento na historiografia do teatro será entendido como sintoma de regimes
dominantes.
Memória urbana e teatral do Rio de Janeiro: a cidade feérica
como cena de mágica
A iluminação artificial modificou profundamente a sociedade. A chama
bruxuleante dos candeeiros e velas, substituída pela iluminação à gás e elétrica
nas vias públicas, nos teatros e residências, alterou o olhar do sujeito da época.
Essa sociedade foi considerada, por muitos, uma sociedade feérica.
Entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX,
ocorreram alterações urbanísticas decisivas para a cidade do Rio de Janeiro, como
a implantação da rede elétrica de iluminação pública. A rede foi instalada nos
percursos diretamente relacionados ao entretenimento, no circuito da
sociabilidade noturna (Dunlop, 1957). Esse fato permitiu a observação da vida
boêmia no centro da cidade, quando alguns espaços foram privilegiados em
função dos caminhos iluminados. Esses locais transformaram-se em pontos de
efervescência cultural.
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Além disso, os grandes inventos científicos do século XIX foram considerados
bens culturais e marcaram presença nas Exposições Nacionais e Internacionais, as
quais incentivaram o gosto pela novidade e ajudaram a criar uma sociedade
voltada à espetacularização da cultura. As Exposições impulsionavam o uso de
fontes de luz diversificadas.
Em
Dialética do olhar
, Susan Buck-Morss esquadrinha a estrutura conceitual
dos fragmentos reunidos em Passagens, obra póstuma de Walter Benjamin. Ela
analisa as fontes de pesquisa do autor para demonstrar que sua fundamentação
filosófica reside sobre os escombros da cultura de massa. Para a autora, Passagens
é uma "’ur-história’, uma história das origens do momento histórico presente, que,
ao permanecer vastamente invisível, torna-se a motivação determinante para o
interesse de Benjamin no passado" (Buck-Morss, 2002, p.75). Benjamin estudou
reminiscências do passado no tecido urbano e elegeu as Passagens parisienses
como símbolo de suas reflexões.
O autor foi inspirado pelo romance surrealista de Louis Aragon,
Le Paysan de
Paris
, em que descreve a
Passage de l'Opéra
, pouco antes de ser demolida para a
construção do Boulevar Haussmannn. As primeiras notas para o projeto das
Passagens
vieram daí, bem como o subtítulo provisório: "uma cena de conto de
fadas dialética"( Buck-Morss, 2002, p.59 apud Benjamin, 1983).
Buck-Morss observa também, as impressões de infância de Julius Lessing
(1900), citadas por Benjamin, a respeito das imagens do famoso Palácio de Cristal
da Exposição Mundial de Londres, em 1851. Para Lessing, essas imagens,
emolduradas nas paredes das salas burguesas das cidades mais remotas da
Alemanha, causavam a impressão de que os habitantes das grandes cidades
viviam em palácios de cristal, como em um conto de fadas. Essa ideia teria
animado muitas gerações e perpetuado essa impressão em suas memórias (Buck-
Morss, 2002, p.116). Desde as últimas décadas do século XIX, cartões postais com
fotografias e gravuras das Exposições Universais circulavam entre cidades e países.
Para Benjamin, as Passagens, reminiscências do passado, evocavam imagens
dialéticas, anunciavam mudanças repentinas e catástrofes, ao mesmo tempo em
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que traziam a imagem do despertar do conto de fadas e da utopia enquanto
fantasmagoria, como se fossem cenários de
féerie
. O autor as considera como
templo do capitalismo inicial. Olhar para suas vitrines seria como olhar para um
teatro de
vaudeville
, para uma féerie: os manequins seriam anjos e as Arcadas
(Passagens) seriam, para a Paris do Segundo Império, grutas de fadas (Benjamin,
2006). As grutas de fadas eram cenários recorrentes dos espetáculos de
féerie
e
de mágica.
Segundo Buck-Morss, Benjamin se preocupa com as organizações da classe
trabalhadora e com o encontro dos trabalhadores nas Exposições Universais. O
que as Exposições proporcionaram aos trabalhadores foi considerado por ele
como uma fantasmagoria da política, porque os avanços tecnológicos e industriais
eram promovidos e apresentados como se tivessem poderes míticos, como
festivais de abundância que assegurariam a paz mundial e a harmonia entre as
classes trabalhadoras. A mensagem que era passada nas Exposições foi vista por
Benjamin como a de um conto de fadas, uma promessa de progresso que, na
verdade, divulgava a revolução industrial. As Exposições Universais no final do
século XIX teriam assumido um lugar de utopia: a maravilha das massas diante da
máquina. A divulgação do sucesso da industrialização, promovida nessas feiras,
provocava uma ilusão de que as classes trabalhadoras se uniriam com um objetivo
comum, industrial, mundial. Benjamin denuncia que “todos os antagonismos
sociais se dissolveriam no conto de fadas e que o progresso seria a perspectiva de
um futuro catastrófico muito próximo” (Buck-Morss, 2002, p.118-125).
Niuxa Dias Drago reflete sobre a criação da imagem da cidade do Rio de
Janeiro como capital moderna, para discutir os espaços de entretenimento da
cidade, a partir da montagem da Exposição Internacional de 1922, durante a
reformulação do prefeito Carlos Sampaio. Ela considera a demolição do Morro do
Castelo como um acontecimento espetacular: “O preço para a modernização da
cidade, era a perda de sua colina fundadora, com suas edificações coloniais, e de
todo um bairro tradicional da cidade, com sua população, suas dinâmicas sociais,
suas histórias, sua memória.” (Drago, 2021, p. 22). No Rio de Janeiro das primeiras
décadas do século XX, o
flâneur
, diante da imagem catastrófica da cidade mirava
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o passado como algo suplantado, o presente como canteiro de obras e o futuro
como uma promessa de progresso.
A cidade era como um truque de mutação de uma cena de mágica. Nesse
sentido, a mutação cênica e a cena feérica emergem como figura de pensamento
da época, metaforicamente, como a cidade, no limiar da transformação.
Figura 1 Centenário da Independência do Brasil: Exposição. Rio de Janeiro, RJ: Photo Bippus,
[entre 1922 e 1923]
Fonte: Biblioteca Nacional Digital
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.
3
Disponível em: <http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=94002.> Acesso em: 10 ago.
2022.
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Figura 2 – Centenário da Independência do Brasil: Exposição. Rio de Janeiro, RJ: Photo Bippus,
[entre 1922 e 1923]
Fonte: Biblioteca Nacional Digital
4
.
Walter Benjamin observou a cena feérica como chave de pensamento dessa
época. No tempo de exílio, em carta a Gershom Scholem, o autor conta que
“planejava escrever um ensaio com o título “Pariser Passagen: Eine dialektische
Féerie”, traduzido para o português como “Passagens Parisienses: Uma Feérica
Dialética” (Benjamin, 2006, p.1001). Outras traduções possíveis seriam: Passagens
Parisienses: Uma
Féerie
Dialética, ou "uma cena de conto de fadas dialética"( Buck-
Morss, 2002, p.59 apud Benjamin, 1983). Embora tenha abandonado o título
original, Benjamin nunca abdicou por completo da ideia; ao contrário, percebe-se
que ela permeou sua obra, incluindo a póstuma
Passagens, Das Passagen-Werk
.
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Disponível em: <http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=64232.> Acesso em: 10 ago.
2022.
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Na obra do autor, a féerie estaria ligada à fixidez de um contexto mítico. A
alegoria teatral, expressão de múltiplas ideias através da cena imagética, posta em
quadros, era a retórica metafórica da sociedade. Desde a
Origem do drama barroco
alemão
, o autor reflete sobre a imagem cênica enquanto enigma, chave de leitura
de uma época. Segundo ele, “com todas as suas forças, a vontade alegórica traz
de volta, através das ‘representações mudas’, a palavra evanescente, a fim de
torná-la acessível a uma faculdade visual incapaz de imaginação” (Benjamin, 1984,
p. 216).
Ainda que Benjamin tenha abandonado o primeiro título
Pariser Passagen:
Eine dialektische Féerie
, existe em sua obra um retorno constante à ideia do
despertar. Quando se traduz a cena de
féerie
por “conto de fadas”, desconsidera-
se a cena de mutação do espetáculo e a alegoria teatral. A tradução de
féerie
seria:
uma visão magnífica, um espetáculo maravilhoso (já que a palavra está associada
a uma imagem). É uma palavra de difícil tradução, pois se converte em expressão.
As traduções da palavra
féerie
não permitem entender amplamente seu sentido.
Conto de fadas em alemão é
Märchen
; em francês é
conte de fée
. Ou seja, a
palavra féerie não deve ser traduzida como conto de fadas, porque o autor faz
referência tanto aos espetáculos de
féerie
, à metáfora
féerie
, à sociedade feérica,
quanto ao conto de fadas. O uso desse termo está no cerne da questão
benjaminiana.
Sobre a dialética de Benjamin, Buck-Morss observa que o autor encara o
truque cênico da féerie como o despertar de um sonho. A analogia é interessante
porque faz referência ao inconsciente coletivo, à cidade e à história. Em nota, a
autora admite:
Irving Wohlfarth me assinalou que a escolha de Benjamin da palavra
"féerie", em vez de contos de fadas, é significativa. Isso sugere uma "cena
de fadas", indicando que um conto de fadas, uma forma narrativa, "o
narrador", cresceu precariamente nos tempos modernos. Mas protraí-lo,
transformando imagens de sonhos em imagens dialéticas através de uma
montagem de representações históricas. No entanto, acredito que a
"cena de fadas" de Benjamin tenha tido o mesmo efeito que um conto de
fadas como uma forma de instrução, e, portanto, usei o termo
indiferentemente (Buck-Morss, 2002, p.461).
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Em certa medida a análise de Buck-Morss não estabelece relações com a
imagem espetacular a mutação de cena –; a autora trata a "cena de fadas" como
efeito do conto de fadas. A imagem sugerida por Benjamin é cênica, imagem
narrativa. Ela pode ter a mesma gênese, ou a gênese no conto, mas a imagem
dialética é proposta pelo autor, desde a
Origem do drama barroco alemão,
como
alegoria teatral. As analogias se completam, como funções distintas no campo da
fantasia.
Desta forma, pretende-se apontar caminhos para a discussão sobre a
emergência do conceito de alegoria teatral na historiografia do teatro, por meio do
estudo das visualidades da cena, observando a sua potência metafórica. As cenas
de mutação, como alegorias teatrais, representavam as transformações daquele
tempo e suas potências críticas.
Novos estudos sobre a
féerie
consideram esses espetáculos, similares às
mágicas, sob uma nova perspectiva.
Estudioso das féeries francesas, Paul Ginisty (1855 1932) julga que elas
pertenciam ao domínio da imaginação. O autor argumenta que os jovens
espectadores do começo do século XX não estariam propensos, como no século
anterior, a entender as
féeries
, pois não possuíam fé nem docilidade para adentrar
no "país das quimeras", culpa de um juízo estético realista que tendia à
racionalização. As invenções tecnológicas do oitocentos estavam absorvidas
pelo cotidiano das sociedades urbanas, não eram mais "espetáculos de novidades
para as vistas”. Os efeitos de magia poderiam provocar sorrisos indiferentes em
mentes impressionadas pelas invenções e descobertas modernas que limitavam
a imaginação do novo público: “Argumentar com a
féerie
é matá-la” (Ginisty, 1910,
p. 218).
Ginisty observa a decadência dos espetáculos de féerie no começo do século
XX, na França, alegando que apenas a poesia poderia salvá-las (Ginisty, 1910, p.130).
Contrariando os argumentos do pesquisador a respeito da pureza do gênero e de
sua decadência, novas pesquisas retomam esses espetáculos na sua
ambivalência, na apropriação de suas técnicas, no seu potencial inovado, na
transferência da prática teatral para outros campos culturais, como o cinema, a
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ciência e a literatura.
O pesquisador Jörg Dünne compôs o dossiê
Féerie autour de 1900 - une figure
de la modernité?
, no qual reuniu autores que discordam de que não se poderia
argumentar a partir das cenas de féeries (Dünne, 2013). Ao contrário, os
pesquisadores tentam aproximar a cena feérica da modernidade. Concebem,
desse modo, a modernidade como uma cena de féerie, ou como um conto de
fadas. Para tal fim, os estudos assinalam como ponto de ancoragem o conceito
de modernidade em Benjamin em especial a premissa provisória “Dialética
féerie
”, do seu projeto das
Passagens
. A modernidade, permeada pela cena feérica
e pela questão espetacular, é melodramática. A cena feérica pode ser
compreendida, então, como uma figura de pensamento da modernidade, um
dispositivo do espetacular, possuidora de múltiplos propósitos, como algo que
oscila entre a ilusão mágica e a consciência técnica.
Os espetáculos, que anteriormente poderiam parecer pitorescos, agora nos
fazem refletir sob uma nova ótica, arejados pelas recentes pesquisas. Estes
diagnósticos trouxeram contribuições importantes e levantaram a hipótese do
vigor da cena feérica: suas dinâmica transmidiática vista como capacidade de
transferência de know-how para outros contextos técnicos e estéticos. O vigor
feérico como alegoria da metamorfose pela qual o mundo moderno passou – das
catástrofes às revoluções científicas.
O dossiê de Dünne contém apontamentos em que a
féerie
é descrita como
um "espetáculo paradoxal", no qual a produção técnica do “maravilhoso” deve
permanecer escondida. Traçando um questionamento crítico da história da magia
científica na virada do século, como um campo de experimentação, a cena feérica
é ressaltada como uma figura de pensamento.
A pesquisa sobre os aspectos teatrais das mágicas na cidade do Rio de
Janeiro revelou dados preciosos sobre a música erudita e popular, sobre a cultura
negra, sobre os autores que transpuseram textos estrangeiros para o ambiente
nacional, as inovações dos cenógrafos, além de ter apontado para indícios do
aproveitamento das técnicas da mágica pelos desfiles das agremiações de
carnaval. A investigação dos aspectos inovadores do teatro visual da época, isto
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é, dos traços de modernidade nos espetáculos de mágica, permitiu repensar o
movimento teatral brasileiro sob um novo prisma, capaz de revelar continuidades
e rupturas entre o passado e a contemporaneidade e suas relações com a cidade
(Guedes, 2019).
Patrice Pavis observa que a féerie exige do espectador uma suspensão.
Avesso às limitações formais e temáticas, o gênero assemelha-se à fábula:
O maravilhoso assume todas as formas cênicas possíveis: aparição de
personagens sobre-humanas, de
fantasmas
' ou de mortos, ações
cênicas sobrenaturais (efeitos de magia), objetos que povoam a cena etc.
Não é necessário que o público, hoje muitas vezes cético, acredite nos
efeitos do maravilhoso; basta-lhe apreciá-los como outros tantos
momentos altamente teatrais e poéticos, como símbolos a serem
decifrados (como no teatro do absurdo) (Pavis, 1999, p. 135).
O efeito de suspensão causado pelas imagens das mutações cênicas permitia
ao espectador da cena feérica a participação ativa na recepção teatral, na
produção de múltiplos sentidos evocados pela cena imagética, ao decifrar os
símbolos da cena. O olhar do espectador finissecular frente à cena teatral das
mágicas garantia a construção de uma retórica metafórica da sociedade.
A alegoria teatral performática, dramática, lírica e coreográfica, reconhecida
como um gênero menor, ocupa lugar de destaque na prática das experiências
teatrais, atravessando as temporalidades não necessariamente de forma linear. A
alegoria teatral apresenta-se de forma híbrida e descontínua, em zonas
fronteiriças, como mobilizadora dos gêneros híbridos e populares (Poirson, 2015,
p.5-21).
No dossiê
L’allégorie au théâtre
, editado por Martial Poirson para a
Revue
d'Histoire du Théâtre
, importantes estudos que trazem à tona, criticamente, a
ideia de descontinuidade da alegoria teatral no período classicista, como
superação do teatro barroco. Segundo esses estudos, o retorno da alegoria no
teatro contemporâneo leva a crer que os gêneros considerados menores foram
responsáveis por sua sobrevivência. A alegoria teria escapado do declínio na
configuração teológica-política-medieval devido aos espetáculos de
féeries
e aos
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gêneros híbridos. As paródias e as sátiras também representaram pontualmente
esse lugar da exacerbação da alegoria (Poirson, 2015, p.5-21).
O que podemos observar nas últimas décadas é, de certa forma, a revisão da
historiografia teatral a partir dos gêneros considerados menores que ficaram no
esquecimento. Está em franca expansão o estudo de certa política da alegoria
dramática que permaneceu fora dos cânones oficiais e idealizados.
Os autores do dossiê
L’allégorie au théâtre
atestam que o repertório alegórico
é descontínuo, está sempre inserido em formas artísticas híbridas, e segue a
estética das correntes ideológicas de cada época. Escapa de doutrinas e se
compõe de formas mistas como dança, canto ou efeito especial, de maneira
harmoniosa ou discordante, em geral como performances musicais. Como afirma
Poirson, a alegoria teatral reintegrada em um contexto cultural e social aparece
como forma privilegiada de controvérsias. À margem dos cânones do tempo,
inserida no sistema semiótico e semântico que lhe é próprio, a alegoria denuncia
as desordens historiográficas. A alegoria teatral demanda certa liberdade e
descontração. Porém, gêneros próprios, como o vaudeville, aparentemente
descomprometido, carregam "o objetivo da legitimação poética e da restauração
política, baseada na reivindicação estratégica dos gostos públicos" (Poirson, 2015,
p.5-21). A apreensão de novas ideias e pontos de reflexão sobre as realidades da
época foram transpostos para a cena híbrida no século XIX.
A estética e a ideologia da cena alegórica, fundada no repertório de princípios
poéticos, são abordadas de forma a destacar "as lógicas de circulação no tempo
e no espaço, a partir dos modelos do Auto Sacramental Espanhol ou
do
Trauerspiel Alemão
" (Poirson, 2015, p.19), e ensejam uma perspectiva
comparativa com o teatro pós-dramático. Os autores pretendem conciliar o
campo da história das ideias com o da historiografia teatral, que até então
tomavam direções opostas.
A investigação sobre as mágicas no Rio de Janeiro possibilitou uma reflexão
crítica sobre a alegoria no teatro brasileiro. Combatida pelos intelectuais na
passagem do século XIX para o século XX, posteriormente desprezada pela
historiografia, a alegoria esteve presente, na prática, nas visualidades da cena da
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época. A imagem alegórica dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro
pode ser observada como fenômeno transmidiático que atravessa
temporalidades. O uso de alegorias presente desde o teatro jesuítico como
pedagogia de formação gerou uma certa didática escópica
5
na população. O
desfile das escolas de samba, pode ser considerado teatral: um tipo de procissão
crítica, transformado em expressão cultural do Brasil, herdeiro de técnicas de
longa duração.
Para o estudo do gênero da mágica buscou-se referenciais nos gêneros
europeus similares, sobretudo nas
féeries
. A estrutura dramatúrgica da mágica
obedece a uma divisão em atos, subdivididos em quadros, traduzidos em imagens
cenográficas e metafóricas. Tanto o termo mágica quanto o termo
féerie
indicam,
para além da matéria fantástica, a participação de uma imagem narrativa em cena.
A presença das cenas de mutação nas
féeries
e nas mágicas indica que essa
imagem narrativa metamorfoseia-se. A justaposição dos significantes destas
imagens atribui força metonímica aos espetáculos.
Toda a pesquisa sobre os aspectos teatrais da mágica no Rio de Janeiro foi
empreendida a partir de uma lacuna historiográfica. O conceito de alegoria teatral
permitiu localizar o fenômeno na zona fronteiriça dos espetáculos híbridos e,
dessa forma, refletir sobre seus apagamentos como sintoma de regimes
dominantes.
Em conjunto, as novas tecnologias foram apropriadas nos espetáculos de
mágica; o palco refletia a atmosfera da cidade. A tecnologia de ponta foi conjugada
com as técnicas rudimentares. O espectador finissecular estava ambientado para
uma cena feérica; tal cena metaforizava a modernidade, segundo Walter Benjamin.
No entanto, a historiografia do teatro não evidenciava esse aspecto alegórico da
cena feérica. E os gêneros mais populares, híbridos e fronteiriços, passaram à
margem da história dominante; foram, pouco a pouco, apagados das memórias da
cidade. Propõe-se discutir o papel do teatro na história da cidade a partir do
5
A relação entre o desejo escópico e a fantasia foi explorada pelas artes espetaculares, criando um campo
instrutivo por meio da fruição estética. A pulsão escópica foi tratada por Sigmund Freud e aprofundada por
Jacques Lacan.
Teatro e memória urbana: a cidade do Rio de Janeiro como mutação de mágica
Ana Paula Brasil
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-33, dez. 2022
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conceito de alegoria teatral, para refletir sobre o apagamento das mágicas na
historiografia do teatro brasileiro.
Nas últimas décadas do século XIX, as féeries, as extravagâncias, as comédias
de magia e as mágicas atingiram o apogeu das experimentações técnicas nesse
espaço propício ao ilusionismo. Esses espetáculos tinham nomenclaturas
variadas: comedia mágica, peça fantástica, obra de magia, comédia de magia,
drama phantastico, drama marítimo, drama marítimo fantástico, entre outros,
anunciados nos periódicos da cidade. Seus personagens eram fadas, diabos, reis,
princesas e toda sorte de seres míticos e ordinários. Eram repletos de imagens
espetaculares, muito representativas do gosto popular pelo teatro de visualidades
e da sociedade que se transformava como em um piscar de olhos.
A cena alegórica no Rio de Janeiro: entre apoteoses e
desmoronamentos
As transformações cênicas, metamorfoses e mutações eram truques
cenográficos recorrentes nas mágicas. Para a produção dos efeitos visuais eram
utilizados alçapões, plataformas, trilhos, elevadores e conjuntos com dispositivos
de iluminação estes últimos, experimentos originados a partir dos estudos de
perspectiva e da câmara escura.
A análise em questão evidenciou as relações entre as transformações
socioeconômicas urbanas, o desenvolvimento da rede de iluminação pública, os
circuitos culturais noturnos da cidade, as inovações tecnológicas e o uso da luz
elétrica no teatro. Observou-se as visualidades da cena como dramaturgia. A cena
de
mutação
das mágicas foi analisada como metáfora do mundo em
transformação.
A seguir, será ilustrado o uso dos recursos tecnológicos na caixa cênica e
alguns truques cenográficos recorrentes, exemplificados em espetáculos de
mágica encenados na cidade. Mais adiante, alguns relatos de cronistas, cuja
sensibilidade captou as transformações urbanísticas como se fossem mutações
cenográficas de mágica teatral, serão objeto de discussão.
Teatro e memória urbana: a cidade do Rio de Janeiro como mutação de mágica
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A caixa cênica dos teatros sempre foi um lugar de experimentação dos
avanços científicos, tendo sido os estudos de perspectiva, os experimentos sobre
a pregnância, a refração e a propagação da luz, os motivadores para a construção
do edifício teatral. Configurada como o lugar do ilusionismo, a caixa cênica foi
também o espaço de experimentação da imagem em movimento projetada o
cinema original. Aponta-se a recorrência de efeitos como incêndios, dilúvios,
desmoronamentos e mutações.
Esses efeitos eram obtidos por truques de iluminação e maquinaria cênica,
os quais podiam ser combinados das mais variadas formas: as famosas apoteoses,
inúmeras espécies de explosões, voos e içamentos, objetos que se
transformavam, intervenções fantasmagóricas, paredes que se moviam, retratos
que ganhavam vida, que roubavam bebidas ou morriam, janelas que se abriam,
personagens ou dispositivos desmembrados, e muitos outros, eram obtidos por
esses sistemas.
A atividade teatral estava interligada à infraestrutura urbana. A nota de 4 de
dezembro de 1876, na
Gazeta de Notícias
, na noite de estreia da mágica a
Lâmpada
Maravilhosa
, indica o uso da rede instalada: “parece que um engraçado de mau
gosto se divertiu em inutilizar os fios elétricos que fazem pôr em movimento as
transformações
e maquinismos; felizmente a boa organização do serviço, naquele
palco, evitou que a graça se transformasse num desastre para a empresa" (
Gazeta
de Noticias
, Segunda-feira, 4 dez. 1876, p.2, grifos nossos). O fato comprova o uso
da energia elétrica no teatro São Pedro de Alcântara, em 1876, na ativação dos
mecanismos cenográficos para a realização das transformações. A luz elétrica e
as projeções de imagens em movimento foram utilizadas nos palcos das mágicas
desde as últimas décadas do Oitocentos.
As imagens das Exposições Universais circulavam entre os países e também
marcaram presença nos palcos das mágicas. A
Gazeta de Noticias
de 14 de julho
de 1890 anunciou o espetáculo
Gato Preto
no teatro São Pedro de Alcântara, com
direção de Guilherme da Silveira. Nesta data foi realizada a 99ª representação da
"esplendorosa" mágica, em 3 atos e 16 quadros. O espetáculo, descrito como
surpreendente, homenageou a Primeira República Francesa, por ocasião dos
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festejos de 14 de julho, queda da Bastilha, com inserção de quadros da Exposição
de Paris:
Com a maior das novidades, a importantíssima e assombrosa apoteose
da Exposição de Paris. A célebre torre Eiffel iluminada. O grandioso
Pavilhão Central / o notável Palácio das Máquinas. Os pavilhões brasileiro,
português, italiano, espanhol e tudo iluminado deslumbrantemente à
cores diversas e de um efeito prodigioso e quase fantástico (
Gazeta de
Noticias
, segunda-feira, 14 jul. 1890, p.5).
Em negrito está escrito "Paris à noite". O anúncio justificou que, sendo o
Gato
Preto
uma peça popular por excelência, foi a escolhida para apresentar a grandiosa
festa da humanidade a Exposição de Paris de 1889. Entre parênteses está escrito
"agora com Exposição de Paris – de Eduardo Garrido", indicando que a cena é um
acréscimo ao espetáculo. O quadro foi apresentado no ato; a orquestra
executou a
Marselhesa
, seguida de bailados, evoluções, maquinismos e apoteose:
"tudo no gato preto - esta noite - gato preto na pontíssima da pontíssima !!!"
(
Gazeta de Noticias
, segunda-feira, 14 jul. 1890, p.5).
Toda a demonstração dos pavilhões e da Torre Eiffel eram, muito
provavelmente, feitas com projeções de imagens com aparelhos de lanterna
mágica, ou com a técnica especial de pintura em telão para uso de efeitos de luz:
"tudo iluminado deslumbrantemente a cores diversas e de um efeito prodigioso e
quase fantástico." Fica quase evidente que era comum a introdução de um novo
quadro no meio de um espetáculo de mágica. O público possivelmente não se
sentia incomodado pela história interrompida; pelo contrário, ia ao teatro para ser
surpreendido e para assistir às novidades.
Nas últimas décadas do século XIX, novos equipamentos de iluminação com
fonte elétrica contribuíram para a realização dos efeitos de cena. A mágica
A
Princeza Branca Flor
, por exemplo, foi apresentada no Rio de Janeiro, em 1890,
anunciada com grandes aparatos, três "brilhantes apoteoses", além de
transformações e desmoronamentos:
Hoje, sábado, 16 e amanhã, domingo 17 de agosto, 2 grandes espetáculos
8as. e 9as. representações da mágica de grande aparato em 10 quadros
e 3 brilhantes apoteoses, ornada de música, marchas,
transformações
,
desmoronamentos
e etc. (
Gazeta de Noticias
,
sábado, 16 ago. 1890, p. 6, grifos nossos).
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Em 1890, Dias Braga remontou o "espetaculoso"
Conde de Monte Christo
, no
Recreio Dramatico, com "iluminação a
giorno
e a copinhos, flores e fogos
cambiantes" (
Gazeta de Noticias
, domingo, 4 mai. 1890, p.6). O drama, repleto de
visualidades, completou duzentas apresentações. A iluminação a
giorno
era
brilhante, resplandecente, feérica.
Na quinta feira, 15 de maio de 1890, a reprise da “aparatosa mágica sacra de
grande espetáculo”,
Os Milagres de Santo Antonio
, foi apresentada no Theatro
Recreio Dramatico, em quatro atos e apoteose intitulada
A Ascenção
:
“Brilhantissimos cenários do afamado cenógrafo G. Carrancini. Importantes
maquinismos do Gaetano Carrancini e M. Arruda. 17 numeros de música. Vestuarios
novos e feitos nas oficinas do teatro”. No segundo ato, ocorrem os milagres do
santo: “A parreira seca, reverdesce e uvas. Os peixes vem à superfície das águas
ao chamado do Santo. E finalmente, a transformação da barraca do general
Ezelino em altar, onde aparece o anjo Gabriel” (
Gazeta de Noticias
, quinta-feira, 15
mai. 1890, p.4, grifos nossos). A
mise-en-scène
era de Dias Braga.
A mágica teve nova reprise no Recreio Dramatico, em 17 de fevereiro de 1891:
“ornada de música, côros, canções,
transformações, marchas, aparições do diabo,
etc. Apoteose montada com todo luxo e o explendor da primitiva” (
Gazeta de
Noticias,
terça-feira, 17 fev. 1891, p.10, grifos nossos).
No mesmo ano, a
Gazeta de Noticias
informou o atraso na construção dos
maquinismos no Theatro de Variedades, para a apresentação da mágica
Frei
Satanaz
. A Empresa Ismênia dos Santos prometeu o espetáculo para o dia
seguinte: "Não estando de todo pronto os extraordinários maquinismos desta
grande mágica, não pode ter lugar a primeira hoje, ficando transferida para
amanhã. Leiam os anúncios amanhã!" (
Gazeta de Noticias
, terça-feira, 13 jan. 1891,
p.7)
Na seção
Rabiscos Theatraes
do jornal
O Mequetrefe
, encontra-se o seguinte
relato irônico sobre a peça: “A conhecida empresária mostrou que ainda tem calor,
calor diabólico, calor de Pedro Malazarte ou
Frei Satanaz
.” O articulista segue: “Não
trepidou em arrostar todos os perigos que podem resultar do contato com um
indivíduo chifrudo, e que, além disso, tem gás ali da anonyme nas pontas do
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tridente” (
O Mequetrefe
, Janeiro, 1891. "Rabiscos theatraes", p.6).
Anonyme
era o
nome da companhia de gás. Nesta época, os gasistas eram os responsáveis pela
iluminação dos teatros. As fontes de iluminação a óleo, gás e eletricidade eram
conjugadas na cena.
Muitas vezes, a cena teatral carioca foi retratada em artigos espirituosos,
como este que satiriza a encenação. Por meio dessas crônicas é possível perceber
a sensibilidade da época aos espetáculos: “A gente então desperta-se da letargia
que se transportou, e caindo no meio de si, que aquilo tudo não passa da perícia
do cenógrafo” (
O Mequetrefe
, Janeiro, 1891. "Rabiscos theatraes", p.7). A impressão
do cronista descreve um estado de letargia e maravilhamento diante dos efeitos
visuais da cena.
Não é difícil imaginar porque a mágica tornou-se figura de pensamento e de
linguagem para os sujeitos daquele tempo. A engenhosidade da cenografia teatral
tramava a cena. Os cenógrafos eram, de fato, as grandes estrelas dos espetáculos.
Seus nomes figuravam nos anúncios publicitários e nas críticas. Eles contavam
com numerosa equipe de trabalhadores anônimos.
Na sexta-feira, 13 de fevereiro, a assombrosa mágica continuava em cartaz
no Theatro Variedades, da Empresa Ismenia dos Santos, seguindo até terça-feira:
Desempenho irrepreensível da parte dos destintos artistas [...] cenários
de Carrancini, Coliva, Frederico de Barros e Camões. Adereços de Anysio
Fernandes. Maquinismos de Veloso Braga. Vestuários de luxo e calçados
caprichosamente feitos.
Luz elétrica da casa telefone de ouro.
A mais assombrosa de todas as mágicas!!!
(
Gazeta de Noticias
, terça-feira,
17 fev. 1891, p.10, grifos nossos)
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Figura 3 – Detalhe de página de jornal: Anúncio da mágica
Frei Satanaz
Gazeta de Noticias
, 17 fev. 1891, p.10
Fonte: Biblioteca Nacional Digital
6
.
Em 1894, a mágica foi reencenada: “No Variedades voltou à cena
Frei Satanaz
com novo chamariz: o fantasma Iris executando a dança chamada serpentina, com
a sala às escuras e o palco iluminado a luz elétrica.” (A. A. “O Theatro”.
A Notícia
,
Rio de Janeiro, 13 dez. 1894. p.5). Na mesma data, a mágica A Cornucópia do Amor
acontecia no Theatro Sant'Anna.
João Roberto Faria analisa, brevemente, o enredo da mágica
A Cornucópia do
Amor
. No artigo ele apresenta a mágica como gênero dramático, informando suas
características e sua inserção no contexto teatral do século XIX, ponderando as
críticas de então sobre esse gênero: “Como se nota, a mágica é um tipo de peça
que seduzia o espectador pelos efeitos especiais, pela surpresa das mutações,
pela riqueza dos cenários e figurinos.” O autor corrobora a ideia de que o “avanço
do conhecimento científico foi acompanhado de perto pelos profissionais do
teatro. E se já eram notáveis os truques cênicos da primeira metade do século XIX,
Na segunda tornaram-se ainda mais impressionantes” (Faria, 2017, p.99). Ele
descreve partes do enredo e aponta a seguinte rubrica de mutação:
Os truques abundam, como é regra nas mágicas. Além disso, a certa
altura, as personagens estão no Bosque Morto, em que todas as árvores
estão secas. Com um pedaço do fio de cabelo de ouro, Olho de Lince
exprime o desejo de dar vida ao bosque e a rubrica indica o que deve
ocorrer no palco:
Forte na Orquestra. A floresta cobre-se de folhas. As
águas despenham-se pelo leito do rio. Cantam as aves. Vegetação
luxuosa e explêndida’
(Faria, 2017, p.114, grifos nossos).
6
Disponível em: <http://memoria.bn.br/DocReader/103730_03/2762>. Acesso em: 8 jun. 2017.
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Faria ressalta a exaltação dos críticos aos cenógrafos e a reivindicação a
respeito dos textos, que deveriam ser mais inovadores: “Como era comum nos
comentários críticos sobre as mágicas, veem-se aqui também os elogios dirigidos
à encenação, não ao texto, que serviu apenas como pretexto para os artistas da
cena mostrarem suas habilidades” (Faria, 2017, p.118). Para além da visão dos
críticos da época, o entendimento do enredo como pretexto para a encenação
pode ser relacionado com a análise da alegoria teatral maquinada. A maquinaria
funcionava como arsenal para o encadeamento do enredo, portanto como
elemento pré-textual. As visualidades e o espaço sonoro do espetáculo atuavam
como narrativas e, de fato, o enredo também servia de pré-texto para o
funcionamento das máquinas.
No jornal
Dom Quixote
, no ano de 1895, há uma nota que diz que a mágica
A
Loteria do Diabo
não poderia ser ignorada, pois vinha sendo representada centenas
de vezes "nesta terra", e que "o seu único mérito consiste na série bem encadeada
de
transformações
e de acidentes cômicos com que Eduardo Garrido soube de
diversas peças fazer uma peça" (
Don Quixote
, Nº11, 1895. "Theatros", p.7, grifos
nossos). A nota insinua que Eduardo Garrido teria aproveitado o arsenal de truques,
recorrentes desse gênero teatral, para encadeá-los em um único espetáculo.
A aparente inalterabilidade dos truques, considerados "regulares", sugere que
os aparatos de cena foram reaproveitados. A percepção de que os truques serviam
de pretexto para a encenação era comum aos articulistas desse tempo. Os truques
das mágicas serviam de alternativa dramatúrgica; o enredo, portanto, era tramado
e modificado a partir das alegorias sugeridas pelo maquinário.
No texto da mágica
A Loteria do Diabo
, as rubricas revelam antigos truques
de maquinaria. No segundo quadro ocorre uma mutação de cena, "
a mesa e
cadeiras somem-se entre os arbustos que imediatamente se abrem deixando vér
a entrada de uma profunda caverna
" (Oliveira e Palha, 1858). A mutação consiste
na mudança do cenário da "entrada de uma profunda caverna" para o cenário do
"subterrâneo escuro". O efeito com a chama de fogo saindo da entrada da caverna
inicia o truque. Abdalah resolve entrar na caverna e, no primeiro passo, tropeça
para dentro, aos gritos. A sonoplastia dos "trambolhões" contribui com o efeito.
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Abdalah some na fumaça da chama, enquanto os arbustos, que anteriormente se
abriram escondendo a mesa e as cadeiras, fecham-se e desaparecem pelo chão
do palco, revelando a longa escada pela qual ele desce rolando. A iluminação da
cena, o efeito da chama, a sonoplastia e a trilha musical são parte fundamental
dessas mutações (estas também estão presentes na antiga
féerie Les Pilules du
Diable
, na qual os encadeamentos dos truques fizeram sucesso junto ao público,
elevando esta mágica à condição de exemplar do gênero).
Esses truques de transformação são, relativamente, rudimentares. A
combinação de efeitos, o ritmo, a iluminação, a musica incidental e tantos outros
aspectos, inovam, a cada encenação, para a execução das mutações de cena.
A seção “Diversões” do jornal
O Paiz
noticiou a reprise do drama fantástico
O
Castello do Diabo,
com tramoias e desmoronamentos:
A empresa Dias Braga, do theatro Recreio Dramatico, faz hoje uma
surpresa ao publico. Em 'reprise' sobe ali hoje à cena o grandioso drama
fantastico
O Castello do Diabo
.
Cinco Atos e sete quadros, ornados de musica, canções, côros, combates,
marchas, incêndios,
tramoias, desmoronamentos
,
tutti quanti
, hão de por
força atrair ali hoje o Rio de Janeiro em peso (
O Paiz
, sábado, 24 fev.
1894. "Artes e Artistas", p. 2, grifos nossos).
A recorrência dos desmoronamentos cenográficos, no final do século XIX,
coincide com o "desmoronamento" do Império e com o início das reformas
urbanísticas na cidade. Presume-se que eram obtidos com o desprendimento de
partes recortadas dos telões cenográficos, conjugados com efeitos de iluminação
e a abertura de alçapões no piso do palco. Estes efeitos eram apresentados
também em dramas, revistas e dramas marítimos.
O Naufrágio do 'Colombo'
, drama marítimo em cinco atos e sete quadros,
escrito pela autora portuguesa Guiomar Torrezão, encenado em 1897, no Theatro
Sant'Anna, com a direção de Accássio Antunes, foi anunciado como “extraordinária
novidade, assombroso sucesso” (
Jornal do Brasil
, sábado, 30 out. 1897, p. 4). O
episódio atesta o clima de catástrofe aludido pelo naufrágio, com indicação da
unidade de tempo localizada na "época [da] atualidade", com diversões ao clima
"fim de século." O anúncio publicitário informa a localização dos quadros em
Buenos Aires, no alto mar, em Lisboa, e assim por diante, além de intitulá-los:
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24
quadro, A fallência; quadro, Casamento fim de século; quadro, A
cova da onça; quadro, O naufrágio do 'Colombo'; scena de grande
effeito; quadro, A mistificadora; quadro, A envenenadora; quadro,
A justiça de Deus.
Mise-em-scene
do actor G. Sepúlveda (
Jornal do
Brasil
, sábado, 30 out. 1897, p. 4, grifos nossos).
A definição do segundo quadro como "casamento fim de século" dá margem
a interpretações diversas. A sociedade da época foi profundamente afetada pela
industrialização e pelas mudanças no regime de governo e na configuração da
cidade, representada no clima “fim-de-século” quatrocentista da cena teatral,
transposto para a atualidade do final do século XIX. Embora fosse um drama, a
paródia era muito utilizada em cenas de improviso entremeadas às cenas de
mágica. O expediente da comédia, de levar o público das mágicas "ao riso", foi
amplamente adotado. O recurso dramático das mágicas de situar a cena em outro
espaço e tempo para comentar situações de sua contemporaneidade pode sugerir
alguma reflexão.
Em 1897, o
Jornal do Brasil
divulgou a mágica
A Coroa de Fogo
, com a
empresa teatral Companhia Pepa e Brandão, no Theatro Recreio Dramatico:
"grandiosa mágica, em 1 prólogo, 3 atos e 15 quadros." A propaganda anunciou com
exclamação, "5 apoteoses 5!!”, e fez referência ao prólogo pintado pelo cenógrafo
Carrancini:
Fantástica nebulosa que pouco a pouco se dissipa deixando por fim
aparecer deslumbrante e fulgente o Reino do Fogo. Em frente do Palácio
da Rainha - as águas invadem o Reino do Fogo. Maravilhosa luta dos dois
elementos inimigos. O
non plus ultra
dos efeitos de cenografia, a obra
prima do inspirado cenógrafo (
Jornal do Brasil
, sábado, 30 out. 1887, p. 4).
Provavelmente, a transformação do cenário era realizada a partir da
combinação de truques. A pintura do telão continha partes nas quais se aplicava
uma substância que permitia que o material se tornasse translúcido em algumas
cenas. Utilizando um jogo de iluminação, a mesma tela se transformava em outro
cenário. O autor do anúncio concedeu ao pincel do cenógrafo todo o mérito da
realização dos efeitos. Logo, é provável que não fosse uma técnica de maquinismo,
mas sim de pintura e iluminação, incluindo a projeção dos efeitos de água e fogo
sobre o cenário. A música, animadora dos movimentos, completava a cena
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imagética composta pela tríade inseparável das mágicas: enredo, música e
imagem.
As invenções modernas do século XIX o fantascope, a lanterna mágica, os
panoramas e a luz elétrica – modificaram as relações sociais e o olhar do sujeito
de seu tempo. As tramoias cenográficas, maquinarias de palco e dispositivos de
cena utilizadas proporcionaram uma infinidade de efeitos possíveis devido a
arquiteturas teatrais específicas e à combinação das maquinarias para execução
dos truques.
Os espetáculos notadamente visuais, além de contribuírem para aprimorar a
maquinaria cênica e o olhar do espectador para a cena, tiveram papel importante
na relação de transmidialidade entre o cinema, o teatro, o circo e, especificamente,
na cidade do Rio de Janeiro, no carnaval. Estes aspectos foram observados
considerando as relações entre o teatro e a cidade no período e, assim, foi possível
perceber a mutação de mágica como figura de linguagem na percepção dos
cronistas.
Nos períodos adjacentes à virada do século XIX para o século XX, quando a
cidade do Rio de Janeiro e a sociedade podiam ser traduzidas, metaforicamente,
como uma cena de mutação de mágica, em consequência das intensas
transformações ocorridas (mudança de regime político, abolição da escravidão no
país e a transformação urbanística na capital), as alegorias teatrais também foram
traduzidas em imagens dialéticas e metafóricas pelos truques cênicos da mágica.
Justifica-se a análise através da sensibilidade da época, captada pelos textos de
cronistas importantes como Lima Barreto e João do Rio, os quais relataram a
reformas como se fossem mutações cenográficas. Além disso, a pesquisa de
dados nos periódicos revelou o uso generalizado da palavra mágica como figura
de linguagem.
O termo mágica foi usado como figura de linguagem para situações que
envolviam rápidas transformações, como mudanças políticas, esquemas de desvio
de verbas e estratagemas, ou qualquer desaparecimento. Em artigo sobre o verão
e o hábito dos cariocas de exclamarem, a todo momento, “que calor, hein?”, o
crônista tenta fugir da impertinência dos habitantes da cidade: “dá-me gana de
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correr, pedir socorro, desaparecer pelo chão, como um
diabinho de mágica
(R. de
C.
Illustração Brasileira
. nov. 1911, p.146, grifos nossos). Não somente a palavra
mágica, mas todo aparato cenográfico, incluindo a figura do diabo que subia e
descia pelos alçapões dos palcos teatrais, eram utilizados como figura de
linguagem.
Na cidade do Rio de Janeiro, as transformações urbanísticas que vieram com
a implantação da República suscitaram a comparação com as cenas de mutação:
"Desse escombro surgiu a
urbs
conforme a civilização, como ao carioca bem
carioca, surgia da cabeça aos pés o reflexo cinematográfico do homem das outras
cidades.
Foi como nas mágicas, quando mutação para a apoteose
" (João do
Rio, 2009, p. 154, grifos nossos) A cidade se transformava e com ela o cotidiano
dos cidadãos. A promessa de transformação social estava amparada, como nos
espetáculos fantásticos, nas esferas dos sonhos, dos desejos e da ilusão.
Como no sonho e nos contos de fadas, as imagens da cidade em
transformação continham a metáfora, às vezes catastrófica, do despertar. Se o
embelezamento da cidade trazia para os mais abastados a imagem do progresso,
os críticos do novo projeto republicano, assim como a população de baixa renda
expulsa da área central da cidade, viam as mudanças com ressalvas.
Sob a semântica alegórica, a cidade do Rio de Janeiro, tal qual um
personagem, tornava-se agente e foco de transformações, como nas mutações
de mágica. As constantes mudanças que a cidade sofreu foram ressaltadas
alegoricamente por Lima Barreto em
Os Bruzundangas
, obra crítica aos costumes
da elite brasileira e à política republicana. Sobre os falsos heróis da elite o autor
denuncia, na figura do Visconde de Pancome
7
, o endividamento público para
transformar o aspecto da capital federal, rapidamente:
Convenceu-o que devia modificar radicalmente o aspecto da capital. Era
preciso, mas devia ser feito lentamente. Ele não quis assim e eis a
Bruzundanga, tomando dinheiro emprestado, para pôr as velhas casas de
sua capital abaixo. De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu
e outra surgiu como se fosse obtida por uma
mutação de teatro
. Havia
mesmo na coisa muito de cenografia (Barreto, 2009, p. 38, grifos nossos).
7
O Visconde de Pancome seria o Barão do Rio Branco.
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A comparação com os truques e o uso da nomenclatura teatral para
exemplificar situações e acontecimentos da realidade cotidiana era frequente. A
mágica, considerada pitoresca, apelativa e ingênua pela historiografia, trazia no
âmago de suas encenações a possibilidade da crítica contumaz. A mágica e o
cotidiano se retroalimentavam e o termo
mágica
atingiu a força metafórica da
figura retórica.
Na segunda década do século XX, as reformas urbanísticas culminaram na
derrubada total do Morro do Castelo. As inúmeras intervenções produziram
fissuras na circulação urbana e nas relações político-sociais.
A historiografia do teatro no Brasil valeu-se das narrativas jornalísticas,
críticas ao gênero, o que gerou fissuras e descontinuidades na memória teatral da
cidade – soterrada sob os escombros, como a própria cidade. O resgate histórico
da cena teatral também pode ser encarado como o despertar dos contos de fadas.
Benjamin faz uma analogia entre o conto de fadas a
Bela Adormecida
e o despertar
da história, que também estaria adormecida.
As antigas Passagens, denominadas por Benjamin como
Grutas de Fadas
,
aludiam às fantasmagorias e entraram em eclipse por ter a estreiteza que
sufocava as perspectivas. Esse foi o declínio das Passagens: elas se tornariam uma
constelação subalterna de uma tipologia mitológica, de um conto de fadas original,
fadadas a uma existência fantasmagórica no início do século XX. A iluminação a
gás das passagens, muito fraca, era contrária ao projeto ambicionado por Georges-
Eugène Haussmann, prefeito de Paris entre 1853 e 1870, responsável pela
reformulação urbana da cidade. Ele pretendeu que aquela fosse a capital do
mundo, com grandes dimensões, perspectivas panorâmicas e luzes brilhantes.
Na cidade do Rio de Janeiro, Pereira Passos, inspirado pelas reformas de
Haussmann em Paris, previu e executou um Plano de Melhoramentos que
abarcava a criação da malha viária, o alargamento de ruas, a canalização de rios,
o ajardinamento de praças, a construção de mercados, a iluminação elétrica e,
finalmente, a concretização do antigo desejo de construção de um verdadeiro
teatro nacional, o Theatro Municipal (Benchimol, 1991). Toda essa reformulação
gerou expectativa, desejo, frustação e revolta nos habitantes da cidade.
Teatro e memória urbana: a cidade do Rio de Janeiro como mutação de mágica
Ana Paula Brasil
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-33, dez. 2022
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Niuxa Drago finaliza seu texto recuperando a história de Bitú, personagem
homenageado pelo arquiteto Morales de Los Rios, em uma das máscaras que
figuravam no pórtico da Exposição de 1922:
A lembrança de Bitú evocada pelo arquiteto, o andarilho pobre que
morreu na lama do Morro do Castelo, não deixa de ser uma triste e irônica
constatação do apagamento de tantos outros personagens do Morro do
Castelo que, como o próprio morro, seriam enterrados na lama das obras
do centenário, desabitando um pouco a cidade de suas lembranças
coletivas. A modernidade era, afinal, uma efeméride devoradora das
memórias do Rio (Drago, 2021, p.23).
De modo geral, as transformações que ocorreram na cidade, como
desmoronamentos e explosões, assim como as da cena, tornaram-se metáforas
do mundo. A narratividade dessas imagens cênicas era dialética, anunciava tanto
a catástrofe quanto a utopia, ao mesmo tempo em que estimulava o desejo pelo
despertar do sonho.
A Exposição Internacional de 1922, realizada na explanada contígua ao Morro
do Castelo, na fase final de seu arrasamento, tinha como objetivo suplantar certas
memórias do passado e exaltar uma promessa de futuro. No carnaval daquele
ano, um carro de crítica carregou sobre um barco cenográfio, a alegoria do Morro
do Castelo, com casas caindo e placas com os dizeres "Favela!", “Fico!". O morro
pedia socorro, mesmo estando em decurso o seu naufrágio. O carnaval botava
em cena quadros de um enredo crítico à realidade daquele momento. Aos poucos,
assim como o Morro do Castelo, os espetáculos teatrais de mágica
desapareceram da cena teatral da cidade.
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Figura 4 Página de revista. O préstito dos três grandes
Clubs
na terça-feira gorda
O Malho
, 4 mar. 1922."Carnaval de 1922", p.26)
Fonte: As figuras 1 e 2 - Biblioteca Nacional Digital
8
.
Figura 5 – Detalhe: carro de crítica do Club dos Fenianos para o carnaval de 1922.
O Malho
, 4 mar. 1922."Carnaval de 1922", p.26.
8
Disponível em: < http://memoria.bn.br/DocReader/116300/46417 > Acesso em: 13 out. 2017.
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Na pesquisa documental foram recolhidos dados significativos que atestam
que as mágicas tiveram grande importância nos modos de produção teatral. O
estudo apontou o gênero como lugar de transmidialidade, guardião de técnicas
teatrais de uma tradição de longa duração e de experimentalismo. Ficou
demonstrada, ainda, a aglutinação do erudito e do popular, através do
aproveitamento da cultura popular urbana e da musicalidade nacional. Foi
indicado, também pela pesquisa, o volume de aportes tecnológicos, a interseção
entre o cinema e o teatro, e a permuta de técnicas. Finalmente, estes aspectos
também foram observados fora dos teatros, ou seja, em suas relações com a
cidade, o que permitiu considerar os desfiles do carnaval carioca e notar que os
mesmos cenógrafos que produziam os carros alegóricos do carnaval criavam as
mutações, apoteoses e outras alegorias nas mágicas.
Considerações finais
Os gêneros híbridos tiveram um papel fundamental na produção teatral
carioca, convertendo-se em um espaço de encenação experimental, virtuosismo,
interseção e simbiose primordial entre o cinema e o teatro, o erudito e o popular.
Examinou-se as implicações técnicas, artísticas e simbólicas nas mutações de
cena, a partir do conjunto de truques utilizados nos espaços teatrais, incluindo as
projeções luminosas e o uso da luz elétrica. De fato, o gênero tendeu ao
desaparecimento no começo do século XX; no entanto, percebe-se o trânsito dos
artistas e técnicos do espetáculo, bem como de seus modos de produção, para
os campos do cinema, do circo e do carnaval. Além disso, apresentou-se a mágica
como lugar de síntese cultural da cidade e de suas contradições.
A comunicabilidade do discurso sonoro-visual da mágica e dos espetáculos
híbridos era a garantia de seu sucesso. Justamente isso seria objeto da crítica da
elite intelectual, posteriormente reproduzida no discurso da crônica historiográfica,
esta última descontente com suas raízes e com os pendores teatrais para
iletrados. Desta forma, sustenta-se o reconhecimento da importância das
alegorias teatrais, bem como das visualidades e do desenho sonoro na cena
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teatral, para o exame das narrativas historiográficas, inseridas nos gêneros híbridos
espetaculares.
A mágica como figura de linguagem poderia ser aproximada à ideia de féerie
dialética, de Benjamin. Espaço de experimentalismos, seu palco mimetizou a
cidade do Rio de Janeiro sob uma atmosfera dialética – entre a paisagem colonial
e a vida noturna feérica.
Diante disso, levanta-se a reflexão sobre o apagamento das mágicas e do
passado da cidade na história. Embora tenha alcançado força metafórica, o gênero
sempre ocupou um espaço marginal nas narrativas sobre o teatro. Assim, a história
das mágicas surge como um diabinho que se ergue pelo alçapão do piso do palco,
a fim de recuperar a memória teatral da cidade.
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Recebido em: 29/08/2022
Aprovado em: 14/10/2022
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