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Teatro nos trilhos: a encenação de
Boca de Ouro
dentro
de um trem na região suburbana de Salvador
Marcos Uzel
Para citar este artigo:
UZEL, Marcos. Teatro nos trilhos: a encenação de
Boca de
Ouro
dentro de um trem na região suburbana de Salvador.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0302
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Boca de Ouro
dentro de um trem na região suburbana de Salvador
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Florianópolis, v.3, n.45, p.1-16, dez. 2022
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Teatro nos trilhos: a encenação de
Boca de Ouro
dentro de um trem
na região suburbana de Salvador
1
Marcos Uzel
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Resumo
O diretor teatral Fernando Guerreiro, um dos encenadores mais importantes
da história do teatro na Bahia, redimensionou a relação entre o artista e a
cidade ao montar o espetáculo
Boca de Ouro
, de Nelson Rodrigues, dentro
de um trem em movimento pelo Subúrbio Ferroviário de Salvador. Com
características do
site-specific
, a peça itinerante se tornou um marco na
memória recente das artes cênicas na capital baiana. Além de ser exibida
num espaço insólito e de deslocar o fazer teatral do centro para a periferia,
também ganhou um caráter formativo e de mobilização social, através do
diálogo do encenador e do elenco com líderes comunitários e da realização
de oficinas de arte para os moradores da região suburbana.
Palavras-chave
:
Site-specific
.
Boca de Ouro
. Nelson Rodrigues. Teatro na
Bahia.
Theater on the Tracks: the performance of
Boca de Ouro
within a
train in the suburban region of Salvador
Abstract
Theater director Fernando Guerreiro, one of the most important directors in
the history of theater in Bahia, resized the relationship between the artist and
the city by putting together the show
Boca de Ouro
, by Nelson Rodrigues,
inside a moving train in the Subúrbio Ferroviário de Salvador. With
site-
specific
characteristics, the traveling piece became a landmark in the recent
memory of the performing arts in the Bahian capital. In addition to being
shown in an unusual space and moving theater from the center to the
periphery, it also gained a formative and social mobilization character,
through the dialogue between the director and the cast with community
leaders and the holding of art workshops for the residents of the suburban
region.
K
eywords
:
Site-specific
.
Boca de Ouro
. Nelson Rodrigues. Theater in Bahia.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Evelina Hoisel, professora titular da Universidade
Federal da Bahia com doutorado em Letras pela Universidade de São Paulo.
2
Doutor em Cultura e Sociedade pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos,
pela Universidade Federal da Bahia (IHAC/UFBA). Doutorando em Artes Cênicas pelo PPGAC/UFBA. Mestre
pela IHAC/UFBA. Graduado em Comunicação com habilitação em Jornalismo pela UFBA. Docente nos cursos
de Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Cinema e Audiovisual do Centro Universitário Jorge Amado
(UNIJORGE). marcosuzel@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/3215625761766623 https://orcid.org/0000-0002-6249-8516
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Teatro en los Rieles: la puesta en escena de
Boca de Ouro
dentro
de un tren en la periferia de Salvador
Resumen
El director de teatro Fernando Guerreiro, uno de los directores más
importantes de la historia del teatro bahiano, redimensionado la relación
entre el artista y la ciudad al montar el espectáculo
Boca de Ouro
, de Nelson
Rodrigues, dentro de un tren en movimiento en el Subúrbio Ferroviário de
Salvador. Con características
site-specific
, la pieza itinerante se convirtió en
un hito en la memoria reciente de las artes escénicas en la capital bahiana.
Además de mostrarse en un espacio insólito y trasladar el teatro del centro
a la periferia, también adquirió un carácter formativo y de movilización social,
a través del diálogo del director y el elenco con líderes comunitarios y la
realización de talleres de arte para los pobladores de la región suburbana.
Palabras clave
:
Site-specific
.
Boca de Ouro
. Nelson Rodrigues. Teatro en Bahia.
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Boca de Ouro é um contraventor de poder e prestígio, principalmente na
região suburbana do Rio de Janeiro, onde se destaca no universo do jogo do bicho.
Ainda guarda traços da juventude e uma personalidade sensual e temida.
Obsessivo, delirante e com pinta de lorde ostentador, ele decide trocar seus 32
dentes em perfeito estado por uma dentadura de ouro, tornando-se uma figura
mitificada nos subúrbios cariocas. É um anti-herói trágico, repleto de contradições,
capaz de proteger e perverter, de matar com uma mão e dar esmola com a outra.
Um sujeito que “se debate entre a comunhão e a oposição ao mundo” (Motta, 2011,
p. 201).
Três dias antes da véspera do Natal de 2001, o personagem criado pelo
dramaturgo Nelson Rodrigues no final da década de 1950 deixa o cenário do Rio
de Janeiro para se deslocar dentro de um trem em movimento pelas noites
suburbanas de outra cidade brasileira. Ele está em Salvador, onde o espetáculo
Boca de Ouro torna-se um acontecimento peculiar, um marco na memória recente
das artes cênicas na Bahia. À frente da ideia, o diretor Fernando Guerreiro
transforma um vagão em espaço dramático, adaptando-o para servir de palco
itinerante pelos trilhos que ligam a Estação da Leste ao bairro de Escada, no
Subúrbio Ferroviário da capital baiana. A versão em ambiente insólito para a
tragédia rodrigueana é o projeto mais desafiador da carreira de Guerreiro, uma das
figuras icônicas do teatro soteropolitano
3
.
Ao fazer o vagão virar tablado, sempre com lotações esgotadas, o diretor
diversifica a cena baiana com características do
site-specific
, tendência do teatro
contemporâneo de ocupar ambientes alternativos que dão à obra uma identidade
afetada de maneira intensa pelo espaço em que se insere. Em
Boca de Ouro
, o
trem que se movimenta é assimilado tanto na particularidade física quanto nos
aspectos socioculturais do lugar que a peça contextualiza e dimensiona. Resulta,
assim, da escolha estética e técnica do encenador, a partir de reflexões sobre
como deseja que o público absorva a encenação (Roubine, 1998). Uma experiência,
3
A peça estreou em 21 de dezembro de 2001 e seguiu em cartaz até 28 de abril de 2002, retornando de
setembro a dezembro do mesmo ano no espaço disponibilizado pela Companhia Brasileira de Trens Urbanos
(CBTU). Fez nova temporada em junho de 2003. Foi contemplada com o Prêmio Braskem de Teatro nas
categorias melhor espetáculo adulto e melhor ator (Marcelo Praddo). O elenco original é formado por
Agnaldo Lopes (Agenor), Andréa Elia (Dona Guigui), Edmilson Barros (Leleco), Evelin Buchegger (Maria Luiza),
Fafá Menezes (Celeste), Marcelo Praddo (Boca de Ouro) e Widoto Áquila (Caveirinha).
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portanto, capaz de lançar “a linguagem teatral contemporânea num campo
semântico que, longe de ser reducionista, expande as fronteiras da teatralidade e
das relações entre atores e público” (Silva; Torres Neto, 2020, p.3).
As artes cênicas têm dado mostras expressivas de
site-specific
no Brasil,
através das produções de companhias como Teatro da Vertigem (São Paulo),
Teatro do Concreto (Brasília), Teatro Geográfico (Porto Alegre) e A Outra
Companhia de Teatro (Salvador), que investigam novas formas de compor a cena
teatral dissociada dos sítios convencionais. Um dos resultados mais
representativos desse modelo é a peça
BR3
, do Teatro da Vertigem, lançada em
2006, nas águas sujas e fétidas do rio Tietê, em São Paulo. Para contar a história
de três gerações de uma família, num enredo situado entre os anos 1950 e 1990,
o diretor de
BR3
, Antonio Araújo, conduz o elenco e os espectadores ao espaço do
rio, onde a peça ganha vida dentro da embarcação que se desloca de forma itinerante
pelo Tietê.
Assim como
BR3
, a montagem baiana
Boca de Ouro
também ressignifica o
diálogo entre o artista e a cidade. Distancia-se dos espaços tradicionais de atuação
e oportuniza a imersão do público em novas sensações da experiência teatral,
incluindo a espacial (Pavis, 2008). Estabelece-se, assim, o que Cartaxo define como
relação dialógica e dialética com o espaço, que ganha ênfase ao ser incorporado:
Como realidade tangível, a arte site-specific considera os elementos
constitutivos do lugar: as suas dimensões e condições físicas. Estas obras
referem-se ao contexto ao qual se inserem oferecendo uma experiência
fundada no ‘aqui-e-agora’, tendo em vista a participação do público
(responsável pela conclusão das obras). O imediatismo sensorial
(extensão espacial e duração temporal) revela a impossibilidade de
separação entre a obra e o seu site de instalação (Cartaxo, 2009, p.4).
Muitos riscos entram em cena nesta aventura inusitada pelos trilhos
suburbanos de Salvador. O maior deles é a própria ideia de aventura. Era
fundamental que o trem fizesse realmente sentido como lugar de ocupação do
ato criativo. Seria desastroso transformá-lo numa mera atração pitoresca para
entreter espectadores distanciados das vivências periféricas em bairros pobres da
metrópole baiana. Isso limitaria a proposta ao caráter meramente especulador de
um contexto sociocultural ignorado pelas elites. A ideia da encenação, no entanto,
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mostra-se artisticamente coerente pela própria dramaturgia de
Boca de Ouro
.
É na geografia da trama, situada por Nelson Rodrigues num subúrbio do Rio
de Janeiro, que o diretor Fernando Guerreiro encontra motivos para ocupar o trem.
Tal similaridade justifica a inserção da montagem no sítio que conduz o público ao
habitat natural do personagem Boca de Ouro. Tal ocupação assinala um interesse
pelo que Ferrer (2020, p.8) chama de “dramaturgia do espaço, ou seja, com escritas
cênicas nas quais as relações espaciais são organizadoras da ação e indutoras de
sentido”.
Figura 1 Encenado no trem, o espetáculo
Boca de Ouro
ressignifica
a relação entre o teatro e a cidade. Foto de Sora Maia. Acervo Sibele Américo
A peça ganha ainda um caráter formativo ao dialogar com líderes
comunitários e criar estratégias de aproximação entre o elenco e moradores da
região suburbana, para que eles não apenas contemplem a obra, mas também a
recebam com um nível de adesão capaz de dilatar os limites do projeto e interferir
ativamente na sua consolidação. Isso inclui o acordo que leva a comunidade a
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participar das oficinas de teatro ministradas por atores e atrizes vestidos com o
figurino dos seus personagens.
Para ganhar intimidade com o lugar e assimilar o trabalho de forma mais
orgânica, diretor e elenco também fazem um ensaio especial, dentro do vagão,
tendo na plateia os líderes comunitários. Envolvida na condução deste processo
formativo, a atriz Andréa Elia atribui a Fernando Guerreiro o papel de regente com
grande capacidade de comunicação ao se apresentar dentro desse ambiente
social: “Ele nos dizia que era preciso conhecer as pessoas, antes de passar pela
porta da casa delas com o espetáculo. Nós não podíamos entrar sem pedir uma
autorização, sem pedir licença” (Elia, 2022). A atriz lembra como a equipe se situou
e se aprofundou convivendo nesse cenário:
Nós estávamos de verdade, nos relacionando com os deres das
comunidades, ensaiando lá de tarde, parando nas estações, trocando de
roupa num vagão anexo, tendo que fazer do vagão um camarim com todo
mundo dentro... É muita memória! Lembro que tinham as roupas
penduradas e Agnaldo Lopes, um dos atores, ficava dentro das roupas
passando o texto. Teve um dia que abri os cabides e Agnaldo estava
sentado, se concentrando, porque não tinha espaço. Isso deu suor, deu
liga, deu química, deu amor, deu junção carnal entre aqueles
personagens, deu cumplicidade. Quando a gente via pela janelinha o
público entrando pra sentar no vagão, quando o vagão saia da estação,
aquele movimento nos dizia: Foi! Agora foi! É como se você entrasse em
cena com alguém te dando um empurrão. Aquele puxar de dentro de
você, uma coisa que ia até o estômago. Tinha essa organicidade. Eu
guardo essa memória corporal, as sensações (Elia, 2022).
No começo da trama ficcional, o autor Nelson Rodrigues nos informa que o
personagem Boca de Ouro foi assassinado. A notícia chega à redação do jornal O
Sol e o repórter Caveirinha é escalado para tentar obter um furo jornalístico sobre
o crime. A fonte que deslancha a apuração do homicídio é Dona Guigui, a ex-
amante do bicheiro morto. O encontro dela com o jornalista é a chave para o
desenvolvimento do enredo policial, apresentado em dois tempos, com cenas no
presente e em
flashback
(Rodrigues, 2012).
Caveirinha quer se projetar contando uma história sensacional a qualquer
preço. Uma das facetas do enredo é justamente essa crítica ao sensacionalismo
da imprensa. É o que Marcondes Filho (apud Angrimani, 1995, p.15) caracteriza
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como “o grau mais radical da mercantilização da informação: tudo o que se vende
é aparência e, na verdade, vende-se aquilo que a informação interna não irá
desenvolver melhor do que a manchete”.
Figura 2 Dona Guigui (Andréa Elia) e Caveirinha (Widoto Áquila)
deflagram o enredo policial rodrigueano. Foto de Sora Maia. Acervo Sibele Américo
A mente leviana de Dona Guigui fervilha entre o ódio e a veneração por Boca
de Ouro, cuja história ganha vida através do imaginário da personagem. Em sua
conduta ambivalente, a mulher passional, exagerada e com um toque de
vulgaridade conta para o repórter três versões prosaicas que se alteram de acordo
com seu estado emocional. Na primeira, enquanto ainda não sabe que o ex-
amante se transformou num cadáver, mostra-se rancorosa e vingativa por ele tê-
la abandonado: traça o perfil do bicheiro como um bandido atroz, responsável por
um assassinato que tem a ver com a história do humilde casal Celeste e Leleco,
atraído pelo terrível marginal até sua mansão.
Ao saber que Boca de Ouro está morto, Dona Guigui muda radicalmente sua
versão. Ele passa a ser um sujeito sensível e caridoso com os pobres, vítima da
extorsão de dois pilantras, Celeste e Leleco, agora apresentados como um casal
desonesto. A amante rejeitada pelo bicheiro ainda vai mostrar sua terceira versão
dos fatos, após fazer as pazes com o marido Agenor. Desta vez, Boca de Ouro vira
um violento matador de mulheres. Ao final, o desvendar do mistério: o repórter
Caveirinha descobre na redação do jornal quem assassinou o homem dos dentes
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dourados. Ele é morto a facadas pela grã-fina Maria Luiza, que ainda lhe rouba a
dentadura depois de matá-lo.
Figura 3 Celeste (Fafá Menezes), um dos alvos da mente delirante
de Dona Guigui, a ex-amante do bicheiro. Foto de Sora Maia. Acervo Sibele Américo
Com esse material dramático em mãos, Fernando Guerreiro leva
Boca de
Ouro
para dentro do trem
4
. No espaço incomum ofertado à plateia, o espetáculo
recria cenicamente a atmosfera do texto, preservando a sua cronologia original
situada nos anos 1950. Com verdade estética, a montagem baiana sustenta de
forma crua as tensões contidas na peça e a riqueza de seus personagens
suburbanos.
Econômico nos efeitos, o diretor privilegia um dos aspectos mais relevantes
da obra: o choque entre a objetividade do mundo real (simbolizado pelo repórter
Caveirinha) e a subjetividade dos sentimentos (realçada no comportamento de
Dona Guigui). Cada versão que a ex-amante de Boca de Ouro relata corresponde
a uma velocidade específica do trem, aproveitado nas marcações de cena não
apenas como o lugar onde as ações se desenrolam, mas também como
ferramenta dramática determinante para o espetáculo. Tanto que a iluminação e
4
A ideia inicial era apresentar a peça em um ônibus, mas o encenador muda os rumos do projeto ao visitar
uma das mostras de arquitetura, design de interiores e paisagismo da Casa Cor, que usava um vagão como
elemento decorativo. O espaço e o entorno do lugar inspiram a troca.
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a cenografia apenas reforçam o que o ambiente do vagão oferece naturalmente,
sem maiores efeitos.
Cada movimento pelos trilhos, na ida e na volta do percurso pela noite
suburbana, serve de referência simbólica da mente de Dona Guigui. As versões
que ela conta vão desenhando o universo obscuro das relações de poder, da
banalização da morte e das disparidades sociais. Assim, o trem-palco vai atuando
como o mais potente aliado cênico do diretor da peça, interferindo de forma ativa
na dramaticidade do espetáculo. Quando se movimenta entre as estações, a
adrenalina se eleva. A encenação fica mais pulsante, dinâmica. A velocidade nos
trilhos acentua as tensões assimiladas pelo público e exacerba o clima policial do
enredo. O trem torna-se, portanto, um personagem a mais.
Quatro elementos são trabalhados para viabilizar essa condução: a parte
frontal da locomotiva, puxando toda a estrutura do veículo; o vagão onde o
espetáculo está sendo encenado; outro vagão para servir de camarim; e mais um
terceiro que abriga os equipamentos técnicos. Tudo só funcionaria bem, dentro e
fora de cena, se o conjunto da obra mantivesse a precisão. Para dar conta das
velocidades que mudavam de acordo com os conflitos da peça, seis maquinistas
passam por um treinamento.
Esses condutores literalmente atuam em
Boca de Ouro
. Um roteiro é
colocado na cabine para servir de guia, enquanto eles se revezam de acordo com
suas escalas. Guerreiro (2022) lembra a dificuldade do processo: “Um trabalho
alucinante! Cada um tinha a sua própria percepção do espetáculo, então havia os
craques e aqueles que erravam. Às vezes, eu tinha que sair correndo pra falar com
o maquinista no meio da apresentação”.
O trem precisa, ainda, parar em algumas estações. Nesses momentos
específicos, as portas se abrem e Dona Guigi entra em ação. Suas versões para a
morte de Boca de Ouro dividem a peça em três atos. A precisão exigida é tanta
que se algum ator estende o tempo da cena ou o trem atrasa numa estação, tudo
o que está por vir até o final da apresentação fica desajustado. Um desafio
complexo para o elenco, o diretor e a equipe técnica.
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Nos ensaios, a direção começa a testar o efeito de velocidade possível para
a ação do trem em determinada cena. Até alcançar esse tom, os atores e atrizes
enfrentam a insólita bateria de preparação dentro do vagão em movimento,
desafiados a se situar – e a se equilibrar – nas marcas propostas pelo encenador.
A sensação de instabilidade, de estar sem chão, sambando no ar, é mais uma
estratégia de Guerreiro para aproximar o elenco do contexto social retratado na
peça: personagens na corda bamba que vivem sob o risco de descarrilar.
Figura 4O ator Marcelo Praddo, no papel de Boca de Ouro, durante
os ensaios na Estação Ferroviária de Salvador. Foto de Sora Maia. Acervo Sibele Américo
Intérprete da personagem Dona Guigi, a atriz Andrea Elia rememora o
processo. Sua primeira lembrança é a da arrancada inicial dada pelo maquinista
do trem. Para conseguir se equilibrar naquele chão que se movimentava, o elenco
acostumado às salas de ensaio tradicionais abre um pouco as pernas, impulsiona
o tronco à frente e deixa os joelhos levemente flexionados. Já Elia conta que teve
um enfrentamento a mais: equilibrar-se no salto alto. Ela faz questão de enfatizar
os superlativos ao recordar do salto “finíssimo e altíssimo” usado para compor a
caracterização de Dona Guigui. Resta ainda o esforço da projeção vocal em meio
ao barulho inevitável do itinerário em cima dos trilhos:
A gente tinha que impor nossa presença além da atmosfera. Isso nos
provocou camadas e camadas, porque nos deu estímulos diversos
simultaneamente. Um deles foi o da base corporal na circunstância
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proposta. O outro foi impor a voz, o rasgo da voz em meio àquele barulho.
Não era um processo ordinário dentro da nossa gramática, do nosso
vocabulário. Era algo extraordinário. A vida nos contemplando com uma
grande oportunidade (Elia, 2022).
A capacidade em torno de 70 lugares no vagão limita o número de
espectadores e aumenta a proximidade entre a plateia e os personagens. Se
houvesse alguma falha ou artificialidade, o risco do flagrante era alto. Por estarem
tão próximos, os atores e atrizes têm que reforçar a capacidade de concentração,
ainda mais num espetáculo sem nenhum diálogo direto com o público. O diretor
dá ênfase ao recurso do olho no olho:
O elenco foi muito preparado para essa proximidade, principalmente em
relação à questão física. O trem tremia muito e os atores precisavam ter
uma base muito grande para não caírem. Também trabalhei pra que
representassem olhando um para o outro. Eles estavam em cima,
enquanto a plateia ficava embaixo, por estar sentada. Então a interação
era mais de energia, porque os atores não olhavam para o público. Eles
se entreolhavam e ainda estavam num plano diferente da plateia. Isso
facilitava a concentração. Se o público estivesse em pé, no mesmo nível
deles, podia dar um colapso qualquer (Guerreiro, 2022).
Ziembinski, Milton Moraes, Jece Valadão, Malvino Salvador... Boca de Ouro
esteve na pele de vários atores em adaptações para teatro e cinema. Na
encenação de Fernando Guerreiro, o bicheiro rodrigueano é interpretado por
Marcelo Praddo, que investe na potência da voz, na ação física visceral e usa a
habilidade do próprio corpo para estabelecer uma ligação do personagem com
cultos afro-brasileiros. Ele atravessa o trem como se estivesse em transe,
impulsionado pelos efeitos sensoriais de uma trilha sonora com acento percussivo.
O preto e o vermelho, presentes no figurino do protagonista, fazem alusão a
Exu, aquele que anda nas ruas, exala sensualidade, atiça o fogo e não é diabo nem
santo. Aos 38 anos, Praddo raspa a cabeça, deixa o cavanhaque crescer e vai
buscar referências em imagens marcantes como a dos olhos de Anthony Hopkins
no filme
O Silêncio dos Inocentes
, de 1991. Chama-lhe atenção o olhar estranho
do ator no papel do psiquiatra Hannibal Lecter, um serial
killer
canibal condenado
à prisão perpétua. Isolado numa cela, Dr. Lecter mostra-se, ao mesmo tempo,
tranquilo e amedrontador.
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Figura 5 - Marcelo Praddo vive o personagem Boca de Ouro
dentro de um trem em movimento. Foto de Sora Maia. Acervo Marcelo Praddo
Do lado de fora do vagão, no entorno da cena, outras plateias aguardam
euforicamente o espetáculo itinerante parar nas estações. Em especial, as
crianças, que vibram e se divertem com a experiência lúdica de ver chegar aqueles
seres encantados, vindos do desconhecido. Dona Guigui é a mais esperada. “Dona
Didi, cadê você? Eu vim aqui só pra te ver!”, grita a legião de admiradores perto da
linha do trem, trocando a letra G pelo D e dando novo apelido para a personagem
de Andréa Elia, que vira um fenômeno, uma celebridade no subúrbio.
Um abaixo-assinado chega a ser articulado pelos fãs mirins, endereçado à
empresa patrocinadora do projeto com o pedido para que a peça não saia de
cartaz. São reflexos da ressonância social de
Boca de Ouro
no contexto periférico
da metrópole baiana. Em reportagem de capa publicada em Salvador pelo jornal
A Tarde
, o jornalista Carlos Ribeiro a dimensão desse fascínio pela musa do
trem:
Uma mostra da extrema popularidade de Dona Guigui (que apesar dos
esforços dos atores, nunca é chamada dessa forma pelas crianças) é a
grande quantidade de cartas recebidas por Andrea: cartas amorosas,
enfeitadas com corações coloridos e reproduções de fotografias, quase
todas contendo uma frase que se tornou um slogan e que reproduzimos,
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aqui, na grafia dos seus autores: “Dona Didi: suba e desça. Mas nunca me
esqueça” (Ribeiro, 2002, p.1).
A atriz não entra em cena de imediato. Aguarda no vagão-camarim até o trem
diminuir a velocidade e frear na Estação Santa Luzia, a primeira parada, entre as
estações da Calçada e do Lobato. Nesse momento, sua personagem caminha para
o palco como se estivesse saindo de casa. Usa um chamativo vestido verde de
renda e o indefectível sapato de salto alto, reluzindo com bijuterias douradas, entre
brincos e pulseiras de falso ouro. Uma verdadeira aparição.
Na primeira noite, ao se deslocar de um vagão para o outro, de relance
parte do rosto de um menino que lhe acena. Ela responde mandando um beijo.
Na noite seguinte, umas cinco crianças aparecem para dar um tchau e receber de
longe o beijinho de Dona Guigui. A cada semana, o número se multiplica e o aceno
se junta ao coro de vozes infantis que, assiduamente, fazem barulho na estação
para recepcionar a passagem da personagem. Um aquecimento e tanto para ela
adentrar o palco já com a temperatura esquentada pelo calor das crianças.
Até que, numa noite, a atriz tem o
insight
de interferir na ação dramática de
Boca de Ouro e conectar o que acontecia dentro do vagão com a espontaneidade
daquela audiência tão fiel do lado de fora. Enquanto ela deixa o camarim em
direção ao palco, concentrada para não cair do salto, um menino passa correndo
pela sua frente. Andrea não hesita. Agarra o garoto pelo braço e joga ele dentro da
peça de mãos dadas com Dona Guigui.
Ao ver a imagem inusitada, o ator Widoto Áquila (Caveirinha) adere de
imediato à improvisação: “Posso fazer uma foto?”, pergunta o intérprete do
repórter às voltas com a apuração da morte de Boca de Ouro. Andréa Elia aproveita
a deixa do colega de cena e devolve: “Claro! Vem, meu filho, vamos sair no diário
O Sol”, enquanto o garoto, personagem involuntário, empresta à sequência a
reação natural da criança de cara assombrada que, pela primeira vez na vida, está
sendo fotografada pela imprensa. Santos sublinha a força criativa desse tipo de
experimentação relacional:
De fato, desde os anos de 1960 é possível verificar a existência (e o
crescimento na produção) de espetáculos cênicos que nos convidam a
perceber que o espectador não é meramente um
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observador/contemplador de um objeto artístico acabado, encerrado em
si, a espera de ser decifrado ou lido pelo visitante. espetáculos que
exigem um espectador consciente do seu potencial criativo, da sua
capacidade de tecer relações interpessoais a partir de uma experiência
poética realizada no aqui e no agora do acontecimento cênico (Santos,
2020, p. 28).
Em
Boca de Ouro
, essa experimentação parece tão real que faz o diretor
vibrar com a autonomia da atriz em seu improviso. Vários espectadores passam a
elogiar o resultado exitoso da presença das crianças no palco, como se a estratégia
tivesse sido pensada no embrião do projeto e treinada nos ensaios. E não foi. “A
gente não programava se ia ter menino. Mas todo dia tinha. Começou a entrar um,
dois, três... Acho que eu cativei e Guerreiro abriu para essa participação, abriu o
campo social da peça” (Elia, 2022.) Com essa poética, o espetáculo reinventa as
possibilidades de expressão criativa em espaços não convencionais, conquista o
público e se eterniza na memória do teatro na Bahia.
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Acesso em: 19 de agosto de 2022.
Recebido em: 27/08/2022
Aprovado em: 16/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
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