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O teatro nas cidades do século XIX e a dependência da trajetória
nas políticas culturais contemporâneas
Márcio Rogério Olivato Pozzer
Para citar este artigo:
POZZER, Márcio Rogério Olivato. O teatro nas cidades do
século XIX e a dependência da trajetória nas políticas
culturais contemporâneas.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45, dez.
2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0102
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políticas culturais contemporâneas
Márcio Rogério Olivato Pozzer
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-31, dez. 2022
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O teatro nas cidades do século XIX
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e a dependência da trajetória
nas políticas culturais contemporâneas
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Márcio Rogério Olivato Pozzer
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Resumo
Este artigo apresenta uma reflexão sobre os motivos pelos quais cidades que
possuíam teatros no passado manifestam, atualmente, maior grau de
institucionalidade de suas políticas culturais em relação às demais cidades.
Para tanto, mediante estudo de caso do estado do Rio Grande do Sul,
realizou-se um levantamento de dados históricos quanto à presença do
teatro nas cidades e à institucionalidade das políticas culturais. A análise dos
resultados se deu a partir de duas abordagens teórico-metodológicas: o
conceito de
path dependence
e a concepção de comunidade cívica. Assim,
confrontou-se a existência de certas institucionalidades centrais para as
políticas culturais da atualidade com a existência de edifícios teatrais no
século XIX. Verificou-se que, no século XIX, as cidades que possuíam
movimentos teatrais a ponto de viabilizarem a construção desses edifícios
deixaram um legado político e social; em média, tais cidades apresentam
políticas culturais com maior grau de institucionalidade do que as demais.
Palavras-chave
: Edifício teatral. Política cultural. Dependência da trajetória.
Comunidade cívica.
1
Este trabalho foi realizado com o apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande
do Sul (IFRS).
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Letícia Santos Rodrigues, mestra em Letras pelo
Programa de Pós-Graduação em Filologia e ngua Portuguesa da Universidade de São Paulo. E também
revisto por Janete Gheller, graduada em Letras-Português pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(Caxias do Sul). ghellerjanete@hotmail.com
3
Doutor pelo Programa de Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (USP), com estágio
pela Universidade de Salamanca (Espanha). Mestre pelo mesmo Programa da USP. Especialista em Gestão
Pública pela Universidade Técnica Federal do Paraná (UTFPR). Bacharel em Gestão de Políticas Públicas
(USP). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).
marcio.pozzer@osorio.ifrs.edu.br
http://lattes.cnpq.br/4375101455468564 https://orcid.org/0000-0003-1163-5100
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Theaters in 19th Century cities and path dependence on
contemporary cultural policies
Abstract
This article presents a reflection on the reasons why cities that had theater
in the past show a greater degree of institutionality of their cultural policies
in relation to other cities. Therefore, through a case study of the state of Rio
Grande do Sul, a survey of historical data was carried out on the presence of
theater in cities and on the institutionality of cultural policies. The analysis of
the results was based on two theoretical-methodological approaches: the
concept of path dependence and the concept of civic community. Thus, the
existence of certain central institutions for current cultural policies was
confronted with the existence of theatrical buildings in the 19th century. It
was found that the cities that in the 19th century had theatrical movements
to the point of enabling the construction of these buildings, left a political and
social legacy. On average, these cities have cultural policies with a higher
degree of institutionality than the others.
Keywords
: Theater building. Cultural policy. Path dependence. Civic
community.
Los teatros en las ciudades del siglo XIX y la dependencia del
camino de las políticas culturales contemporáneas
Resumen
Este artículo presenta una reflexión sobre las razones por las cuales ciudades
que contaron con teatro en el pasado muestran un mayor grado de
institucionalidad de sus políticas culturales en relación a otras ciudades. Por
lo tanto, a través de un estudio de caso del estado de Rio Grande do Sul, se
realizó un levantamiento de datos históricos sobre la presencia del teatro en
las ciudades y sobre la institucionalidad de las políticas culturales. El análisis
de los resultados se basó en dos enfoques teórico-metodológicos: el
concepto de dependencia de trayectoria y el concepto de comunidad cívica.
Así, la existencia de ciertas instituciones centrales de las políticas culturales
actuales se confrontaba con la existencia de edificios teatrales en el siglo XIX.
Se encontró que las ciudades que en el siglo XIX tuvieron movimientos
teatrales al punto de posibilitar la construcción de estos edificios, dejaron un
legado político y social. En promedio, estas ciudades tienen políticas
culturales con mayor grado de institucionalidad que las demás.
Palabras clave
: Edificio de teatro. Política cultural. Dependencia de la
trayectoria. Comunidad cívica.
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Introdução
Despertam o interesse de setores políticos e acadêmicos os motivos pelos
quais cidades de uma mesma região, com semelhanças em relação aos seus
processos de ocupação, ao acesso a políticas públicas e às dinâmicas políticas e
econômicas, apresentam resultados diferentes quanto aos seus processos de
desenvolvimento.
Quais são os fatores que levam políticas públicas a se tornarem perenes,
transformando-se em políticas de Estado, perpassando governos e ganhando
institucionalidade? Em geral, esse processo tende a ser mais difícil no segmento
cultural do que em outros, uma vez que a área não costuma figurar entre as
principais prioridades políticas governamentais (Chedid, Capella, 2018), dispondo,
via de regra, de estruturas administrativas precárias, com orçamentos reduzidos,
carência de pessoal, além de problemas de infraestrutura.
Avança-se, aqui, na reflexão a respeito dos processos de desenvolvimento
das políticas culturais contemporâneas, a partir da constatação de indícios
históricos que dão destaque aos movimentos teatrais. Para tanto, apesar das
linhas teóricas que abordam a temática serem amplas e multifacetadas, enfatiza-
se os legados institucionais, tendo duas vertentes da literatura como
determinantes para os resultados: de um lado, os elementos de dependência da
trajetória e, de outro, o engajamento cívico, teoria que se apoia na dinâmica política
e social das sociedades.
Assim, desde extenso levantamento de dados e informações sobre as
cidades do Rio Grande do Sul e a existência de movimentos culturais que atuaram
nelas, em especial os teatrais, confrontou-se a existência de edifícios teatrais, ao
longo do século XIX, tendo a existência de certas institucionalidades essenciais às
políticas culturais da atualidade.
Para interpretar tais indícios e buscar eventuais relações de causalidade,
traçaram-se pontos de convergência entre as teorias, enunciando a experiência do
estado do Rio Grande do Sul, por meio da identificação de elementos analíticos
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úteis à compreensão da trajetória política e social a partir da constituição de uma
matriz institucional das políticas culturais municipais.
Do exposto, uma questão-chave emerge: as cidades que no século XIX
possuíam movimentos teatrais a ponto de “viabilizarem” a construção de edifícios
teatrais deixaram uma espécie de “legado” político e social que, em alguma
medida, impacta nas ações, projetos e programas desenvolvidos na atualidade e,
principalmente, na institucionalidade das políticas culturais? A análise que deriva
dessa constatação é a principal contribuição do artigo, não apenas ao campo
teatral e cultural, mas também à administração pública e aos estudos urbanos e
regionais.
Notas metodológicas
Partindo de uma pesquisa a respeito da economia da cultura em festivais de
teatro amador em pequenos municípios brasileiros, entrou-se em contato com
teorias e hipóteses que levaram à investigação da presença de teatros nas cidades
brasileiras ao longo do século XIX.; deu-se início a um estudo de caso sobre o
estado do Rio Grande do Sul. Tal escolha foi realizada pela disponibilidade farta de
documentação histórica e material bibliográfico sobre a existência de edifícios
teatrais e grupos de teatros em seu território ao longo da história.
O objetivo era comprovar a veracidade da hipótese de que as localidades que
contaram com a existência de movimentos culturais no século XIX com vitalidade
política, econômica e social, a ponto de conseguirem erigir edifícios teatrais,
dispõem de maior institucionalidade de suas políticas culturais no início do século
XXI, se comparadas às demais localidades que não contaram com movimentos
que resultassem em tal feito. E, ao se confirmar, uma reflexão teórica acerca desse
fator foi efetuada.
No levantamento feito, buscou-se a identificação de quais cidades do estado
chegaram a ter o edifício teatral construído entre os anos de 1801 e 1900, além de
dados sobre seus processos constitutivos como a participação do poder público,
empreendedores privados e associações com fins artísticos e culturais.
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Embora, as artes da cena não se realizem exclusivamente em edifícios
teatrais, sendo cada vez mais comum a utilização de espaços não convencionais
para a
performance
dos encenadores (Lima, 2020), tal materialidade, sobretudo
no século XIX, expressa um elevado grau de organização política, econômica e
social, capaz de viabilizar montantes financeiros substanciais que se somam a
outras questões artísticas e culturais, apontando a relevância do teatro para tais
localidades.
Embora Lothar Hessel (1999, p.9) aponte a existência de manifestações
cênicas documentadas desde 1773, demonstrando que a vida artística e cultural
apresentava certa relevância, havendo diversos grupos organizados por todo o Rio
Grande do Sul, optou-se por fazer um recorte metodológico temporal das cidades
que construíram o edifício teatral no século XIX, por se identificar que parte
considerável dos municípios ou núcleos urbanos do estado não haviam sido
criados até o século XIX.
Assim, entre os anos de 2020 e 2021 foi efetuado um vasto levantamento
bibliográfico e documental em diferentes bases de dados: produções acadêmicas,
periódicos locais, acervos históricos municipais e sítios eletrônicos das prefeituras,
com o objetivo de verificar a existência do edifício teatral nas cidades do Rio
Grande do Sul. Dessa pesquisa, chegou-se a 20 cidades gaúchas que possuíam
edifício teatral no século XIX.
Com isso, pode estabelecer-se uma análise comparada entre tais cidades,
com uma média das demais cidades gaúchas e das cidades brasileiras sobre
algumas características das políticas culturais contemporâneas. Deste modo, fez-
se uso do banco de dados da pesquisa de informações básicas municipais do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Brasil, 2014), tendo como
parâmetros uma matriz analítica definida para esse propósito.
Tal matriz foi elaborada com vistas à reflexão do cenário de precariedades e
descontinuidades das políticas públicas culturais, estabelecendo a
institucionalidade das políticas culturais como atributos de qualidade dos
governos locais, mais especificamente das políticas culturais. Havendo esse
propósito, utilizou-se de um dos marcos legais mais significativos para o segmento
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artístico e cultural brasileiro, que é a Lei nº 12.343 de 2 de dezembro de 2010, pela
qual foi instituído o Plano Nacional de Cultura e criando o Sistema Nacional de
Informações e Indicadores Culturais.
Para se definir parâmetros de institucionalização das políticas culturais que
passaram a compor uma matriz analítica objetiva, utilizou-se a primeira meta do
Plano Nacional de Cultura que trata desse quesito. Essa meta define quais seriam
os elementos constitutivos de tal institucionalização: a) possuir secretaria de
cultura ou órgão equivalente; b) possuir conselho de política cultural; c) realizar
conferência de cultura; d) possuir plano de cultura; e) possuir fundo de cultura
(Brasil, 2013).
Ou seja, a existência desses elementos, segundo essa meta do Plano Nacional
de Cultura, comprovaria uma maior institucionalização das políticas culturais nas
localidades abordadas, tornando a gestão pública de cultura mais eficaz,
planejada, participativa e fazendo melhor uso dos recursos públicos. (Brasil, 2013).
Quadro 1 - Matriz institucional analisada
O referencial teórico utilizado para avançar na compreensão dessas
causalidades buscou nos aspectos históricos, a respeito das decisões políticas,
econômicas e sociais, o vínculo entre as institucionalidades do presente e as
decisões anteriores ou experiências realizadas no passado; lançou-se mão do
conceito de
path dependence
(Baláz, Williams, 2007; North, 2005; Pierson, 2000).
Além disso, fez-se uso da ideia de comunidade cívica (Putnam, 2006) para
estabelecer a relação entre a qualidade institucional das políticas públicas
I. Existência de estrutura administrativa exclusiva para as políticas culturais
II. Existência de fundo municipal para a cultura
III. Ter realizado conferência municipal de cultura
IV. Ter ou estar desenvolvendo plano municipal de cultura
V. Existência de conselho municipal de cultura
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culturais e a existência de participação social e uma cultura democrática. Dessa
maneira, empenhamo-nos na interpretação dos possíveis fatores que levaram
cidades a erigir edifícios teatrais enquanto outras não.
O desenvolvimento da cena cultural do Rio Grande do Sul no
século XIX
As entrevistas que culminaram nesta pesquisa ora relatada, tendo gestores
públicos, artistas, produtores culturais e lideranças comunitárias, via de regra,
fizeram emergir o discurso de que as práticas culturais “bem-sucedidas”,
sobretudo aquelas que resultaram em algum grau de institucionalização das
políticas culturais, estavam relacionadas diretamente ao processo de colonização
europeia do Rio Grande do Sul, principalmente aqueles vivenciados por
comunidades de origens alemãs e que, segundo parcela significativa dos
entrevistados, gozavam de grande capital cultural e de uma cultura associativista
consolidada.
É fato que as transformações políticas e econômicas protagonizadas pelo Rio
Grande do Sul ao longo do século XVIII, especialmente, durante o século XIX,
modificaram sensivelmente o perfil social de sua população, impactando,
portanto, em suas dinâmicas culturais e, em alguma medida, nas fisionomias das
cidades. Nessa perspectiva, é inegável a importância do papel desempenhado
pelas iniciativas do governo brasileiro de promover processos de colonização
(Pérez, 2014).
Durante o século XVIII, ainda no período colonial, o Rio Grande do Sul recebeu
colonos açorianos que se concentraram em regiões próximas a Porto Alegre e no
istmo da Lagoa dos Patos sem, contudo, conseguir se firmar economicamente,
principalmente devido às requisições de guerra efetuadas pelo governo e
raramente pagas, além da incidência recorrente de um tipo de fungo nas lavouras,
chamado popularmente de “ferrugem” e que chegava a acarretar na perda de 90%
das produções (Machado, 1999, p.17-18).
Mas foi no século XIX, a partir de 1824, que o governo, agora brasileiro, buscou,
por meio da colonização europeia, adensar demograficamente o sul do país,
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ressignificando o trabalho manual. Formou-se uma classe de produtores rurais
independente dos latifundiários “tradicionais” presentes na região, dinamizando o
abastecimento das cidades locais e fortalecendo, assim, as forças de defesa do
território, sem deixar de citar a pretensão de se “branquear” a população brasileira
majoritariamente negra ou mestiça (Bueno, 2003, p.267). Segundo Machado (1999,
p. 20), entre 1824 e 1830 ingressaram 5.350 alemães no local que era chamado, à
época, de “Província do Rio Grande”.
Tal política foi temporariamente interrompida em 1830 por conta das disputas
políticas estabelecidas no país e que levariam à abdicação de Dom Pedro em 1831.
Ainda assim, em 1832 era promulgada a lei de naturalização, que visava assimilar
os imigrantes assentados, cumprindo outro papel importante na região: a garantia
do fornecimento de soldados para a Guarda Nacional, estabelecida um ano antes
(Pérez, 2014). A retomada da política de colonização se deu entre 1848 e 1874, sob
a direção do governo provincial do Rio Grande do Sul, período no qual ingressaram
22.407 imigrantes, sendo 19.607 cidadãos alemães (Machado, 1999, p.20-24).
Ora, mas efetivamente a presença desses colonos alterou de maneira
significativa a cena cultural da região, impactando no processo de
desenvolvimento artístico e cultural do Rio Grande do Sul, mais especificamente
nas manifestações teatrais? A presença alemã levou, como poderá ser visto, ao
estabelecimento de novas associações culturais locais que contribuíram para as
dinâmicas políticas e sociais da região. Nessas organizações se praticavam música
e dança e se encenavam peças de teatro. Todavia, elas se somavam a outras
tantas organizações que ocupavam a arena pública e a vida cotidiana das
pessoas.
Segundo Bittencourt (1999), o jornal
Diário do Rio Grande
, de 15 de maio de
1864, faz referência a uma associação alemã que realizou uma apresentação
teatral em um sarau privado na própria cidade de Rio Grande:
À noite teve lugar na chácara do Sr. Michaelis, à rua da Alfândega a
primeira representação de uma sociedade dramática particular alemã
que ali estabeleceu o seu teatrinho. O espetáculo foi muito concorrido,
comparecendo mais de 150 convidados, todos do comércio estrangeiro
com suas famílias. Depois do drama houve cantoria e um pequeno
concerto acompanhado ao piano pelo nosso hábil comprovinciano,
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Joaquim S. Santos Paiva com sua rabeca. Este belo e mui particular
divertimento, repetir-se-á uma vez por mês durante o inverno (apud
Bittencourt, 1999, p.66).
Mas, para além do capital cultural não evidências comprovatórias que,
nesse período, as comunidades alemãs desfrutavam de um capital social tal
que pudesse auxiliar na viabilização financeira da construção de equipamentos tão
dispendiosos como um teatro. Ou seja, as dinâmicas políticas, econômicas e
sociais que, em alguns casos, constituíram tal viabilidade estavam instituídas
durante o período de colonização, podendo ter sido impulsionadas por ela, mas
não constituídas por essas pessoas.
Isso fica evidente quando se verifica que o “movimento” de construção
desses teatros teve início na década de 1830, período em que apenas 5.350
alemães haviam chegado ao estado do Rio Grande do Sul. Em Cachoeira do Sul, o
teatro foi inaugurado em 1830, mesmo ano da inauguração do Teatro Sete de
Setembro em Piratini. Em 1832, foi inaugurado outro Teatro Sete de Setembro, mas
dessa vez no município de Rio Grande. Em 1833, foi a vez do Teatro Sete de Abril
em Pelotas. E, em 1833, deu-se início ao processo de edificação do Teatro São
Pedro em Porto Alegre, que foi paralisado momentaneamente por causa da
Revolução Farroupilha (1835-1845) e inaugurado 25 anos depois.
O século XIX foi marcado por uma série de conflitos bélicos que causaram
imensas perdas de vidas humanas e também materiais, mas que, em certa
medida, abriram espaço para novos arranjos políticos, econômicos e sociais,
propiciando que a recuperação do estado se desse de maneira rápida,
modernizando-o. Então, o sistema de transportes, marcado historicamente por
tropas de mulas cargueiras, começou a ser abandonado a partir de 1832 com a
primeira barca a vapor que fazia a linha “Rio Grande-Pelotas-Porto Alegre” e,
principalmente, a partir do fim da Revolução Farroupilha, com a ligação do Rio
Grande do Sul às demais províncias brasileiras. Soma-se a isso a implementação
de um sistema bancário, iniciado em 1858, havendo a criação do Banco da
Província e dinamizado pela instalação da Caixa Econômica na cidade de Porto
Alegre em 1875. Além disso, um pequeno, mas importante sistema ferroviário
passou a ser construído em 1871, mesmo ano em que as cidades de Porto Alegre,
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Rio Grande e Pelotas passaram a adotar iluminação a gás em suas vias principais
(Flores, 2013, p.137-138).
Tal ímpeto modernizante foi catalisado por ambições políticas de uma elite
agrária local que não era constituída por colonos e repercutiu culturalmente,
potencializando a produção artística da região. Na maior parte das vezes,
começando de iniciativas privadas, grupos culturais ou associações políticas, uma
série de equipamentos culturais, voltados prioritariamente ao teatro, passaram a
ser construídos no território gaúcho.
O Teatro São Pedro, em Porto Alegre, foi concluído e inaugurado em 1858. Em
Rio Pardo, o Teatro foi inaugurado alguns anos antes, em 1845, no mesmo ano em
que foi erguido um pequeno Teatro em Bagé, assim como o Teatro União em
Triunfo, que foi construído e estreado em 1848.
A partir dos anos 1860, as edificações teatrais se intensificaram. No município
de Santana do Livramento, o Teatro Sete de Setembro debutou em 1860. Em
Alegrete, a inauguração do Teatro Independência se deu em 1862 e teve seu nome
alterado, alguns anos mais tarde, para Teatro São Luís. Em Bagé, foram três
iniciativas importantes: a primeira, como citada, em 1845, que deu origem em
1863 ao Teatro Sete de Setembro, além do Teatro 28 de Setembro, que teve sua
construção iniciada em 1872 e inauguração em 1883. Em Osório, o Teatro foi
inaugurado em 1875. No caso de Uruguaiana, o Teatro Carlos Gomes abriu as portas
em 1884, dois anos antes do Teatro de Itaqui, que estreou em 1886. O Teatro
Esperança, em Jaguarão, passou por percalços, tendo suas obras iniciadas em
1887, mas inaugurado apenas em 1898. Em Taquari, a fundação do Teatro se deu
em 1893. Já, em Dom Pedrito, foi em 1896 e, em Cruz Alta, no ano de 1899.
A sistematização das 20 cidades gaúchas que possuíam edifício teatral no
século XIX, com seus nomes e ano de fundação, pode ser observada no Quadro 2:
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Quadro 2 - Cidades gaúchas com a presença de edifícios teatrais no século XIX
Cidades
Nome do teatro
Alegrete
Independência/São Luís
Bagé
Sete de Setembro
Cachoeira do Sul
----
Cruz Alta
Carlos Gomes
Dom Pedrito
Provisório
Itaqui
Prezewodowski
Jaguarão
Esperança
Osório
Harmonia Arroiense
Pelotas
Sete de Abril
Piratini
Sete de Abril
Porto Alegre
São Pedro
Quaraí
João Caetano
Rio Grande
Sete de Setembro
Rio Pardo
Sete de Setembro
Santa Maria
Treze de Maio
Santana do Livramento
Sete de Setembro
São Gabriel
Teatro Harmonia
Taquari
São João
Triunfo
União
Uruguaiana
Carlos Gomes
Fonte: Elaboração própria (2022).
O papel desempenhado pelo Estado no século XIX estava muito distante de
se aproximar do que se convencionou chamar, mais tarde, de “Estado de bem-
estar social” ou, simplesmente, “Estado social”. Assim, as políticas públicas
desenvolvidas eram escassas e raramente contemplavam as necessidades
artísticas e culturais. É preciso apontar que isso não chegava nem a se constituir
como uma demanda organizada de algum setor da população.
Nesse sentido, parcela significativa das iniciativas identificadas no Rio Grande
do Sul de se construir teatros, deram-se por meio de iniciativas privadas. Parte
delas, a partir de empresas com fins lucrativos, como em Alegrete que se viabilizou
por meio da constituição de uma Sociedade Anônima, com comercialização de
ações da empresa ou por intermédio de pequenos empreendedores, como em
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Bagé, em que um comerciante local passou quase uma década construindo o
Teatro Sete de Setembro.
A outra parte se deu por meio da organização de instituições privadas sem
fins lucrativos, com finalidades estritamente teatrais como em Cruz Alta, Santa
Maria, Osório e Uruguaiana, nomeadas de sociedades dramáticas e associações
teatrais ou de associações recreativas, como em Dom Pedrito, com a Sociedade
Recreio Familiar Pedritense, São Gabriel, com a Sociedade Harmonia Gabrielense
e, Triunfo, com a Sociedade União. Houve ainda iniciativas como a de Santana do
Livramento, por meio de associações informais, sem estatutos e, portanto, sem
personalidade jurídica legalmente constituída.
Ainda que as iniciativas tenham se dado de maneira privada, uma parcela
contou com o apoio do poder público local, mesmo iniciativas com fins lucrativos.
Havendo a doação de terrenos ou, até mesmo apoio para a construção dos
prédios, demonstrando um importante grau de colaboração entre o setor público
e o setor privado. Se, de um lado, não é possível atestar nesse momento a
repercussão dessa mobilização perante a qualidade governamental, de outro
ficam evidentes os padrões e sistemas dinâmicos de engajamento cívico, em que
seus cidadãos atuavam imbuídos de espírito público, buscando construir um
equipamento cultural de uso comunitário por meio de estruturas associativas,
firmadas em relações de confiança e colaboração, sendo a maioria delas sem fins
lucrativos e sem indícios de relações políticas não igualitárias.
A presença do teatro e do edifício teatral no século XXI
Ainda que os papéis desempenhados pelo teatro dentro das dinâmicas
sociais tenham sofrido profundas alterações desde o século XIX, a existência do
edifício teatral ainda serve de indício importante dos valores culturais e sociais
presentes em determinada comunidade. A existência e o funcionamento do
edifício teatral asseguram às comunidades certo acesso à fruição cultural, bem
como espaço adequado para que os grupos cênicos da cidade, em especial os de
teatro, quando existirem, façam pesquisa, realizem seus ensaios e se apresentem
em condições minimamente adequadas; além de servirem, via de regra, para
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apresentações de outras naturezas artísticas. Ou seja, a existência desse
equipamento sugere que a população de tal cidade tende a vivenciar mais
apresentações teatrais do que aquelas que não possuem tal equipamento.
A existência de grupos de teatro atuantes, nesse sentido, representa um
importante indicador cultural. E, como pode notar-se, ele é expressivo nas cidades
que possuíam edifício teatral no século XIX e destoa da média dos demais
municípios. Dos 5.570 municípios brasileiros, 2.151 (38,61%) possuíam grupos de
teatro em 2014. Desse total, 212 eram do Rio Grande do Sul, representando 42,65%
dos 497 municípios gaúchos. Em se tratando das 20 cidades gaúchas destacadas,
observou-se que 18 delas contavam com grupos de teatro: 90% do total.
Gráfico 1 - Percentual de cidades que possuíam grupo de teatro atuantes, em 2014, no
Brasil, Rio Grande do Sul e cidades gaúchas com teatros no século XIX
Fonte: Autor (2022) a partir de Brasil (2014).
Com relação à presença de edifícios teatrais em 2014, o IBGE (Brasil, 2014)
realizou o levantamento e verificou que, no Brasil, 1.303 cidades possuíam o
equipamento, de um total de 5.570 cidades, ou seja, 23,4% dos municípios
brasileiros, sendo que destes municípios 1.170 tinham seus edifícios teatrais
mantidos pelo poder público municipal (21% do total dos municípios do Brasil). No
Rio Grande do Sul, estado com 497 municípios, 111 contavam com a presença de
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edifício teatral, 22,33% do total das cidades gaúchas, sendo que 95 destas
localidades apresentavam seus equipamentos mantidos pelas prefeituras (19,11%).
Ao se observar apenas os 20 municípios gaúchos que possuíam edifício
teatral no século XIX, pôde verificar-se que 70% deles, um total de 14, possuíam
edifício teatral em 2014, sendo que 13 destas localidades continham tal
equipamento mantidos pelo poder público local (65%).
Esses números, quando comparados com os cenários brasileiro e gaúcho,
são impressionantes, representando uma presença três vezes maior do edifício
teatral nas localidades que já possuíam um edifício dessa natureza no século XIX.
Vale dizer que em alguns casos não se tratam dos mesmos edifícios teatrais que,
por vezes, foram demolidos ao longo do século XX ou destinados a outras
finalidades devido às dinâmicas econômicas, urbanas e, até mesmo, culturais, uma
vez que os espaços erigidos 200 anos podem não atender mais as necessidades
do presente.
Gráfico 2 - Percentual de cidades que apresentavam edifício teatral em 2014 e o percentual
de edifícios mantidos pelo poder público local no Brasil, no Rio Grande do Sul e nas cidades
gaúchas que já possuíam edifício teatral no século XIX
Fonte: Autor (2022) a partir de Brasil (2014).
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Sendo assim, a partir do estudo de caso do Rio Grande do Sul, no Brasil,
avança-se na compreensão da importância da organização política, da mobilização
social e das políticas públicas, dirimindo as disputas ideológicas que colonizam o
cotidiano, verificando, por meio de análises comparativas, indiretamente, aspectos
da qualidade governamental contemporânea. Esses aspectos decorrem da
capacidade com que as administrações públicas municipais conseguiram
implementar a agenda de políticas estruturantes para a cultura, que foram
pactuadas nos processos participativos que culminaram na aprovação do Plano
Nacional de Cultura (PNC) em 2010. O PNC resultou de uma série de conferências
municipais, conferências estaduais, conferência nacional e inúmeros seminários e
debates públicos, além dos mecanismos de consulta e participação característicos
do legislativo brasileiro (Carvalho, Silva, Guimarães, 2009).
As institucionalidades das políticas culturais brasileiras no
século XXI
As políticas públicas podem ser, exclusivamente, parte da ação de um
governo específico ou compor ações mais perenes que perpassam diferentes
governos, caracterizando-se por serem políticas de Estado. As políticas de governo
estão relacionadas aos projetos desenvolvidos pelo Poder Executivo e refletem a
agenda política que foi eleita, em geral, de curto prazo – o que não assegura a sua
continuidade. “Já, as políticas de Estado tendem a ter maior institucionalidade,
com estruturas administrativas, orçamentárias e amparo legal, desenvolvidos por
meio da discussão e aprovação do Poder Legislativo” (Souza, 2020), assegurando
maior sustentabilidade política e, dessa maneira, comprometendo-a com
questões de médio e longo prazo.
A institucionalização das políticas públicas visa impulsionar um determinado
conjunto de ações, com a finalidade de articular práticas que catalisem processos
de mudanças a partir da alocação de recursos públicos, definição de direitos e
deveres das partes envolvidas, além de normativas, regulamentações e
responsabilidades. Dessa maneira, vale reconhecer que tal estatuto espelha
consensos possíveis de serem alcançados em certos momentos históricos, mas
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que são representativos de valores que tendem a ser reproduzidos.
A noção de instituições diz respeito a ideias, valores e normas que
pautam a vida social. O Estado tem posição privilegiada, embora não
exclusiva, na mudança ou reprodução dessas instituições. E as políticas
públicas, na medida em que definem orientações governamentais que
sedimentam ou alteram a posição estatal em relação aos problemas da
coletividade, contribuem para esse processo. Políticas públicas são,
assim, parte importante da institucionalização de valores e regras da vida
coletiva. Elas orientam concepções, definem estratégias, alocam recursos
e distribuem valores para a sociedade que podem contribuir para
consolidar uma nova institucionalidade em relação a temas distintos
(Lobato, 2009, p.722).
Assim, os processos políticos que resultaram na aprovação da Lei 12.343,
que instituiu o PNC em 2010, e a tentativa de se avançar na constituição de um
Sistema Nacional de Cultura podem ser considerados um marco na perspectiva
da institucionalização das políticas culturais, na medida em que envolveram não
apenas atores políticos, sociais e culturais importantes no cenário político
nacional, mas, também, segmentos artísticos e culturais dos mais variados e
diversos, por meio de estratégias de participação descentralizadas nos estados e
municípios brasileiros.
Todavia, vale destacar que a institucionalização das políticas culturais
brasileiras é um processo que vem de longa data, possuindo alguns marcos
históricos importantes. Dois momentos podem ser citados como fundantes de tal
institucionalidade: o primeiro é a criação, em 1937, do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), futuro Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional (IPHAN), que foi o primeiro órgão responsável por formular e
implementar políticas culturais em âmbito nacional; e, ainda, mantém forte
influência sobre as políticas públicas de cultura de todo o país; o segundo e mais
importante é a criação do Ministério da Cultura
4
em 1985, sendo a primeira vez que
as políticas culturais passaram a gozar de uma estrutura administrativa exclusiva
no âmbito federal para atuar perante a produção, circulação e fruição artística e
cultural de todo o país.
4
O Ministério da Cultura foi extinto em 2019 pelo presidente da República Jair Messias Bolsonaro e
transformado em uma secretaria do Ministério da Cidadania.
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No entanto, foi a partir de 2003 que a discussão do Sistema Nacional de
Cultura e, portanto, do papel dos entes federativos nas políticas culturais
ingressaram na agenda política nacional com certa centralidade. A construção e a
instauração do Sistema, pela sua própria lógica, se efetivaram a partir da
mobilização nacional dos dirigentes estaduais e municipais da cultura, dos
fazedores de cultura e da sociedade civil organizada. Ele envolve sistemas
organizativos e institucionalizados nos três âmbitos federativos, numa articulação
institucional regulada por normativas, instrumentos, aparatos e negociações
(Carvalho, Silva, Guimarães, 2009).
Sendo assim, uma vez que o PNC foi aprovado em 2010, a pesquisa realizada
com os municípios brasileiros em 2014 pelo IBGE (Brasil, 2014) capta, em alguma
medida, as prioridades nele contidas. Dentre elas são encontrados os cinco tópicos
presentes na matriz institucional analisada: a) ter estrutura administrativa
exclusiva para as políticas culturais; b) possuir fundo municipal para a cultura; c)
ter realizado conferência municipal de cultura; d) ter ou estar desenvolvendo plano
municipal de cultura; e) ter conselho municipal de cultura.
Dentre os tópicos analisados comparativamente, um dos mais significativos
à gestão das políticas culturais é a existência de estruturas administrativas
capazes de formular, implementar e avaliar as políticas culturais. A criação desses
órgãos é reivindicada por amplos setores artísticos e culturais, uma vez que
assegurariam, minimamente, a existência de orçamento público anual, alguma
presença de recursos humanos e, principalmente, a ocupação de um lugar na
agenda política local. Por conseguinte, a existência de órgãos dessa natureza,
exclusivos para tais finalidades, demonstram certo grau de comprometimento
com as pautas da cultura e, sobretudo, alguma capacidade política, técnica e
financeira de prover soluções para essas pautas. Tal importância é expressa no
PNC, ao apresentar como uma de suas diretrizes de ação “assegurar apoio técnico
federal e estimular a instalação de secretarias municipais e estaduais de cultura
em todo o território do País, estabelecendo canais de comunicação desses órgãos
com os cidadãos” (Brasil, 2010).
O segundo tópico analisado comparativamente foi a existência de fundos
municipais de cultura para financiar atividades artísticas e culturais locais. A
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constituição desses mecanismos foi uma forma buscada para garantir a existência
de financiamento perene à produção artística e cultural e, ainda, minimizar o
caráter discricionário dos processos de seleção dos bens e serviços culturais, tal
como os artistas que são selecionados para acessar os recursos públicos,
tornando os gastos públicos com cultura mais republicanos. Ou seja, representam
um avanço institucional importante à gestão cultural local.
Outro tópico presente na matriz institucional analisada foi a realização de
conferências municipais de cultura, as quais representam importantes
instrumentos de institucionalização da participação social na gestão das políticas
públicas culturais. Por meio delas, ampliam-se os olhares para os problemas e às
potencialidades dos setores culturais, configurando-se como espaços de controle
social e podendo se constituírem como ferramentas de planejamento. Mais que
isso, indicam a existência de certo engajamento cívico contemporâneo, à medida
que demandam a participação da sociedade.
O próximo tópico presente na matriz institucional analisada
comparativamente foi a existência de planos municipais de cultura, que são
instrumentos de planejamento e representam que a cultura faz parte da agenda
política da municipalidade e, acima de tudo, que o poder público conta, em alguma
medida, com planejamento de curto, médio e longo prazo. Evidentemente, a
qualidade desses instrumentos varia muito de localidade para localidade, de
acordo com os esforços que são depositados em suas elaborações. Conta a favor
a existência de dados, informações e estatísticas sobre as práticas artísticas e
culturais desenvolvidas no município, a existência de pessoal qualificado para
auxiliar no processo de discussão e elaboração do plano, assim como a
participação efetiva da população ao longo de suas etapas de confecção.
Por fim, os conselhos municipais, também nomeados de “conselhos de
políticas públicas”, são espaços formados por representantes do poder público e
da sociedade civil, com sua composição variando de caso a caso. Eles se
constituem como ferramentas que possibilitam uma participação ativa por parte
dos cidadãos, podendo incidir sobre os processos de formulação, implementação
e avaliação de políticas públicas. Ou seja, constituem-se como um espaço
privilegiado para o contato dos cidadãos com a esfera pública em todos os seus
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âmbitos, aproximando-os dos processos, ações e políticas públicas que dizem
respeito às suas vidas e, de alguma maneira, impactarão no seu dia a dia.
A análise comparada da institucionalidade das políticas
culturais
A partir do levantamento dos dados referentes à matriz institucional definida,
pode efetuar-se uma análise comparada entre as cidades gaúchas que possuíam
edifício teatral no século XIX e a média das cidades gaúchas e brasileiras (Gráfico
3).
Gráfico 3 - Percentual das cidades brasileiras, cidades gaúchas e cidades gaúchas que
possuíam edifício teatral no século XIX com os elementos definidos na
matriz institucional analisada
Fonte: Autor (2022) a partir de Brasil (2014).
Segundo levantamento realizado pelo IBGE, em 2014, dos 5.570 municípios
brasileiros, 1.073 (19,26%) apresentavam secretaria exclusiva de cultura. Já, no Rio
Grande do Sul, dos 497 municípios, apenas 28 dispunham de secretaria de cultura
destinada exclusivamente para essa finalidade.
Ao se destacar apenas os municípios gaúchos que possuíam edifício teatral
no século XIX, pode observar-se que das 20 cidades, sete delas apresentavam
secretarias exclusivas para as políticas culturais, ou seja, 35%, número
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significativamente mais alto do que o encontrado no restante do país, sobretudo
no próprio estado do Rio Grande do Sul.
Ao se comparar os dados referentes à existência de fundos municipais de
cultura, pode observar-se que, dentre os 5.570 municípios brasileiros,1.111 (19,94%)
possuíam fundos municipais de cultura em 2014, sendo que 99 eram no estado
do Rio Grande do Sul, representando 19,91% das 497 cidades gaúchas.
Quando analisamos a existência de fundos municipais de cultura apenas nas
localidades destacadas com a presença de teatros no século XIX, verifica-se que
30% delas possuíam fundos municipais em 2014 e que todos eram exclusivos para
a cultura. Ainda que esse número não seja elevado, estando muito distante da
totalidade dos municípios, ele representa mais do que 50% do encontrado em
média no Brasil e no Rio Grande do Sul; 189 eram do Rio Grande do Sul e
representavam 38,03% do total das cidades gaúchas.
Quando se observa apenas os dados referentes às 20 cidades que possuíam
edifício teatral no século XIX, verifica-se que 15 delas tinham realizado, ao menos
uma vez, a conferência municipal de cultura, representando significativos 75%
destas localidades. Tal percentual era praticamente o dobro do verificado no
estado do Rio Grande do Sul.
Com relação aos planos municipais de cultura, embora possa haver diferença
qualitativa entre os elaborados pelas cidades, esse aspecto não pode ser verificado
pelos dados disponibilizados pelo IBGE. Então, optou-se por reconhecer,
exclusivamente, a existência dele como comprovação da institucionalização das
políticas culturais. E, nesse sentido, pôde verificar-se que dos 5.570 municípios
brasileiros, 468 (8,4%) possuíam planos municipais de cultura, sendo que 33 destas
localidades estavam no Rio Grande do Sul. Logo, 6,64% dos municípios gaúchos
apresentavam planos municipais, número ligeiramente mais baixo do que o
observado nacionalmente. Dentre os municípios com edifícios teatrais no século
XIX, nenhum deles apresentava plano municipal de cultura, segundo o IBGE.
Contudo, foi possível observar as cidades que, em 2014, estavam em
processo de elaboração de seus planos municipais de cultura. E, nesse quesito, 8
dos 20 municípios que possuíam edifício teatral no século XIX estavam
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desenvolvendo seus instrumentos de planejamento. Ou seja, 40% destas cidades,
enquanto 1.317 (23,64%) das cidades brasileiras estavam passando pelo mesmo
processo e apenas 16,50% das cidades gaúchas estavam se dedicando a isso,
representando um total de 82 municípios dos 497 existentes no Rio Grande do
Sul.
Por fim, ao se comparar a existência de conselhos municipais de cultura,
pode certificar-se que 2.151 das 5.570 cidades brasileiras possuíam tal órgão
(38,61%). Desse total, 212 estavam localizadas no estado gaúcho, representando
42,65% das cidades do estado. Ainda assim, percentual consideravelmente menor
do que os 75%, representado pelas 15 cidades gaúchas que possuíam edifício
teatral no século XIX.
A construção dos edifícios teatrais no século XIX e a
dependência da trajetória
Os adeptos do institucionalismo histórico compreendem que as escolhas
realizadas no momento de formação das instituições e das políticas exercem um
efeito de constrangimento sobre o seu futuro desenvolvimento, em razão de uma
tendência inercial que impõe dificuldades às transformações subsequentes por
atuação dessas mesmas instituições. (Peters, 1999, p.63 apud Gains, John, Stoker,
2005, p.25). Nesse sentido, os institucionalistas históricos estão associados a uma
perspectiva particular de desenvolvimento histórico, defendendo um modelo de
causalidade social que é a trajetória da dependência. Ou seja, desconsidera-se “o
postulado tradicional de que as mesmas forças operativas gerarão os mesmos
resultados em todos os lugares em favor da visão de que o efeito de tais forças
será mediado por características contextuais de uma dada situação
frequentemente herdadas do passado” (Hall, Taylor, 1996, p.941).
Assim, considerando a premissa de que os processos históricos produzem
consequências, o conceito de dependência da trajetória surge como ferramenta
analítica que auxilia na compreensão da relevância de determinados
acontecimentos e processos sociais no desenvolvimento de certas sequências
temporais, como observa Adrian Kay (2005) ao refletir sobre
path dependence
:
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Os legados do passado condicionam o futuro, o institucionalismo
histórico defende a ideia de que os indivíduos agem dentro de arranjos
institucionais cuja estrutura atual e funcionamento podem ser
entendidos parcialmente se a análise não estiver integrada a uma
perspectiva histórica (Kay, 2005, p.555).
A definição por parte das forças políticas e sociais de certa comunidade em
fazer um investimento vultoso em uma determinada infraestrutura pode ativar o
mecanismo de retornos crescentes em que os incrementos realizados às
atividades vinculadas a essa “melhoria” tendem a produzir maiores benefícios.
Com isso, os atores políticos e sociais são “incentivados” a se concentrarem, de
maneira crescente, na área em que houve o investimento, trilhando e
aprofundando uma trajetória específica (Pierson, 2004, p.22-23).
Nessa perspectiva, os investimentos realizados por determinadas
comunidades durante o século XIX, para erigir edifícios teatrais em suas cidades,
podem ser apontados como exemplos de tomada de decisões que criaram
infraestruturas com potencial para ativar tais mecanismos de retornos crescentes.
Isto é, ao se construir um edifício teatral, dinamiza-se a economia da cultura das
artes da cena, incentivando a criação e a manutenção de grupos de teatro e dança,
a montagem de espetáculos e o incremento de toda a cadeia produtiva envolvida
na produção, circulação e fruição das artes cênicas e da teatral, em especial.
Evidentemente, a prática teatral não se restringe a localidades que dispõem
de equipamentos culturais, no caso o edifício teatral. No entanto, a construção
desse equipamento, que representa a tomada de decisão política, social e, até
mesmo, econômica, de se realizar um investimento de valores substanciais, indica
a existência de uma prioridade que, naquele momento histórico, deu-se em torno
da cultura.
Dessa maneira, após a realização de altos investimentos na construção dos
edifícios teatrais, públicos ou privados, a cadeia produtiva do teatro ganha
centralidade na dinâmica local, com seus “insumos” tendendo a ser demandados
com maior frequência e em crescentes quantidades, incentivando a
retroalimentação desse ciclo em que se cria uma tendência de seguir investindo
na mesma opção artística. Nesse sentido, o custo marginal de produção é
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decrescente com cada peça teatral, com cada apresentação artística produzida,
sendo relativamente mais barata do que as anteriores, isto é, produzindo “mais”
com menos recursos financeiros e ampliando a viabilidade econômica dos
empreendimentos teatrais.
Além disso, duas resultantes de aprendizagem, havendo implicações no
capital cultural da população local. A primeira, de curto prazo, refere-se à
constituição de um efeito de aprendizagem, à medida que as pessoas que fruem
a apresentação teatral - o “público” - passam a desenvolver a habilidade e os
enquadramentos cognitivos particulares para lidar com tal manifestação artística,
de maneira que os “ganhos obtidos” com a vivência de tais experiências tendem a
gerar incentivos para a demanda recorrente da mesma experiência. Em outras
palavras, desenvolve-se um processo de formação de público, que passará a
demandar peças teatrais, fomentando, portanto, tal “cadeia produtiva”. E a
segunda, de médio e longo prazo, é explicada por North (2005), segundo o qual a
aprendizagem de qualquer geração está fortemente condicionada pelas
percepções derivadas da aprendizagem coletiva secular. Desse modo, a
aprendizagem é um processo cumulativo filtrado pela cultura de uma sociedade.
Com isso, os “empreendedores” culturais, públicos ou privados, pessoas
físicas ou jurídicas que promovem apresentações artísticas com as mais diversas
finalidades, também geram um mecanismo de retornos crescentes, uma vez que
adotam métodos indutivos de definições baseados nas experiências passadas,
desenvolvendo o que os economistas chamam de “expectativas adaptativas”. Ao
se ofertar “mais do mesmo”, diminuem-se os riscos, maximizando as chances
de satisfazer as expectativas do público.
Esses processos tendem a organizar o setor, criando demandas em menor
ou maior grau ao poder público local, consequentemente criando algumas
institucionalidades. Essa organização tende a reverberar em um primeiro
momento em outras linguagens artísticas, incrementando a produção, circulação
e fruição de outros bens e serviços artísticos e culturais. E, posteriormente, em
outras dimensões da vida política e social do território.
Assim, a
performance
econômica e política de determinadas sociedades no
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decorrer do tempo, em última instância, dependem da trajetória realizada ao longo
da história (North, 2005), “na medida em que os indivíduos ao fazerem as suas
escolhas o fazem sob influência de suas crenças, formadas por meio de um
processo de aprendizagem cumulativo que é transmitido culturalmente de uma
geração para outra” (Costa, 2019, p.1375).
Comunidades cívicas, associativismo e o desenvolvimento
institucional da sociedade
Se a definição política, social e econômica de construir um equipamento
como um edifício teatral gera reflexos no desenvolvimento com o passar dos anos,
cabe a reflexão dos motivos pelos quais algumas localidades, a partir de alguns
governos ou organizações privadas, conseguiram desenvolver suas dinâmicas
artísticas e culturais a ponto de resolverem investir em determinada construção,
enquanto outras localidades, outras comunidades não chegaram à mesma
condição, à mesma decisão, sendo que a presença das manifestações teatrais
estavam difundidas por todo o estado do Rio Grande do Sul, não se
circunscrevendo apenas aos “grandes centros” da época como Rio Grande, Pelotas
e Porto Alegre, marcando presença em diversas cidades do interior (Hessel, 1999,
p.8).
Robert Putnam (2006), ao buscar responder o porquê de alguns governos
democráticos possuírem bom desempenho e outros não, concluiu que as
instituições são moldadas em processos históricos, trazendo à tona a necessidade
de se estudar as origens de cada localidade e estabelecendo uma relação causal
entre o desempenho institucional e a natureza cívica da população local. Para ele,
o sucesso governamental estaria associado, primordialmente, a padrões e
sistemas dinâmicos de engajamento cívico, em que seus cidadãos são atuantes e
imbuídos de espírito público, com relações políticas igualitárias e estruturas sociais
firmadas em relações de confiança e colaboração. Por outro lado, relações
políticas verticalmente estruturadas, dinâmicas sociais fragmentadas,
caracterizadas pelo isolamento e por práticas culturais dominadas pela
desconfiança, tendem a formar governos com desempenhos aquém dos demais.
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Ou seja, tais diferenças na vida cívica são fundamentais para explicar o
desempenho diferenciado das instituições e dos governos locais, assim como seus
desempenhos econômicos.
Nesse sentido, o conceito de capital social passa a ter centralidade para
compreender as diferenças de desempenho econômico e institucional dos
governos locais, uma vez que impacta diretamente no grau de participação cívica
da população. Isto é, o grau de interesse dos cidadãos pelas questões públicas e
suas capacidades de se mobilizarem em organizações civis - que Putnam chamou
de “associações” - está diretamente relacionado ao capital social. E, segundo ele,
contribuem para a eficácia e a estabilidade dos governos democráticos:
As associações incutem em seus membros hábitos de cooperação,
solidariedade e espírito público. [...] Isso é corroborado por dados
extraídos de pesquisas sobre cultura cívica realizadas com cidadãos de
cinco países [...] mostrando que os membros das associações têm mais
consciência política, confiança social, participação política e ‘competência
cívica subjetiva’. A participação em organizações cívicas desenvolve o
espírito de cooperação e o senso de responsabilidade comum para com
os empreendimentos coletivos (Putnam, 2006, p.103-104).
Segundo Putnam (2006), a participação e a decorrente confiança interna em
associações, além de provocar um intenso engajamento cívico, auxiliam na
normalização dos espaços públicos, reproduzindo e intensificando a promoção
das iniciativas coletivas. Com isso, constitui-se um ambiente democrático,
habitado pelas instâncias públicas e privadas que ampliam o potencial
transformador das ações, projetos e programas, valorizando o bem-estar geral da
sociedade. Para ilustrar o perfil dessas organizações, Robert Putnam (2006, p. 105-
106) apresentou os percentuais de associações locais segundo as suas finalidades,
que mobilizavam os cidadãos italianos das regiões chamadas por ele de
“desenvolvidas”, no ano de 1985, excluindo-se os sindicatos. A maioria absoluta,
73% do total eram clubes desportivos; 11,3% associações recreativas; 5,7%
associações de atividades culturais e científicas e outras 5,1% era de associações
voltadas à música e ao teatro.
Ou seja, representativos 10,8% das organizações presentes na Itália
“desenvolvidas”, analisada por Putnam, possuíam finalidades artísticas e culturais,
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aproximando-as, em alguma medida, das iniciativas organizacionais que levaram
à construção dos teatros no Rio Grande do Sul ao longo do século XIX, ainda que
não se tenha os valores percentuais que essas organizações representavam
perante a totalidade no caso brasileiro.
Com isso, a maior participação e a constituição de organizações tendem a
contribuir para o estabelecimento de comunidades cívicas, nas quais os
compromissos programáticos tenderiam a se impor diante das questões públicas
em detrimento de práticas clientelistas (Putnam, 2006, p.113), que são bastante
difundidas no meio cultural, dada a discricionariedade com que são escolhidas as
ações e projetos artísticos e culturais que contam com aportes de recursos por
parte dos poderes públicos de todas as esferas. No caso brasileiro: municipal,
estadual e federal.
Considerações Finais
Ainda que a importância das artes e da cultura, em geral, na vida dos seres
humanos seja deveras reconhecida, o impacto desses processos é de difícil
mensuração. No entanto, pelo estudo correlacional realizado, conseguiu-se
demonstrar a importância do teatro para o desenvolvimento das cidades,
explorando a diferença que a sua existência ao longo da história exerceu na
institucionalização das políticas culturais dessas localidades.
A análise das políticas públicas, assim como de qualquer processo social, é
complexa, imbuída de múltiplas variáveis. Portanto, os resultados e as diferenças
observadas entre a gestão das políticas públicas, a qualidade dos serviços públicos
e a efetividade das ações, projetos e programas públicos nas cidades possuem
complexas e múltiplas razões políticas, econômicas e sociais. A despeito das
dificuldades, a aproximação teórica e metodológica dos conceitos de comunidade
cívica e
path dependence
forneceu um marco teórico contundente para auxiliar
na compreensão das disparidades institucionais encontradas nas políticas
culturais das cidades brasileiras, a partir da matriz analisada comparativamente.
A tabulação dos dados realizada por meio da pesquisa feita pelo IBGE, com
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o cruzamento do levantamento feito nas cidades do Rio Grande do Sul sobre a
presença de movimentos políticos, sociais e culturais que levaram à construção
de edifícios teatrais durante o século XIX, corroboraram com a hipótese de que as
cidades que dispunham dessas organizações e que viabilizaram a existência
desses equipamentos deixaram um legado que se reverteu na maior
institucionalidade de suas políticas culturais.
É preciso apontar, contudo, que o fato de não terem sido construídos edifícios
teatrais em outras localidades não implica, necessariamente, a inexistência de
movimentos artísticos, teatrais, associativos nessas localidades. Entretanto, a
existência do equipamento representa o alcance de um grau de organização e
mobilização de capital humano e financeiro que aponta para um maior
engajamento cívico que, em média, deixou um legado mais virtuoso do que nas
demais localidades, como pôde ser verificado nas análises comparativas.
As participações políticas e sociais percebidas no século XIX, além de levarem
à construção dos edifícios teatrais que impactaram a vida cultural, social e,
portanto, política das comunidades, por um lado, contribuíram para o avanço do
estabelecimento de comunidades cívicas, uma vez que são marcadas, como
apontado, pela tendência de sobreposição dos compromissos programáticos nas
questões públicas em relação às práticas clientelistas, difundidas no Brasil e, em
especial, nas políticas culturais que gozam, historicamente, de baixa
institucionalidade. Por outro lado, ativaram o mecanismo de retornos crescentes,
apontando para a constituição de um efeito de aprendizagem que ficou evidente,
à medida que 90% das cidades com edifícios teatrais no século XIX possuírem
grupos de teatro atuantes em 2014, mais que o dobro da média brasileira e do
estado do Rio Grande do Sul. Além de 65% destas cidades apresentarem, ainda
hoje, a existência de um edifício teatral, número três vezes maior do que as médias
do Brasil e do estado analisado.
A relação entre a trajetória trilhada desde o século XIX e a constituição de
comunidades cívicas no início do século XXI pode ser estabelecida pelas diferenças
significativas encontradas em todos os levantamentos efetuados, a partir da
matriz analítica adotada, demonstrando que a institucionalidade se tornou maior
nas localidades que contavam com edifícios teatrais no século XIX, tendendo a
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representar: a) melhores condições para a gestão cultural, por meio de órgãos
administrativos exclusivos às políticas culturais; b) critérios mais republicanos e
democráticos com relação à alocação dos recursos públicos por meio dos fundos
de cultura, que tendem a minimizar o caráter discricionário dos financiamentos
públicos às iniciativas artísticas e culturais; c) maior participação social, com a
tendência de maior controle social, institucionalizados por meio das conferências
de cultura e dos conselhos municipais de cultura; d) maior planejamento das
ações dos governos, havendo a propensão de tornar as políticas públicas mais
eficazes e eficientes.
Desse modo, o que se demonstrou com esta pesquisa foi o protagonismo do
teatro para o desenvolvimento das cidades, por meio das políticas públicas de
cultura e da centralidade ocupada pela participação cívica. Desde então, ampliam-
se as possibilidades de uma administração pública melhorada, representada nesta
pesquisa pela maior institucionalidade de uma matriz vinculada às políticas
culturais. Ela tende a criar um círculo virtuoso, deixando legados que serão
percebidos futuramente no desenvolvimento do território. Em outras palavras, à
medida que os processos históricos vão se dando, imersos na percepção e atuação
de grupos e indivíduos, partindo de seus sistemas de crenças, que dão
conformação às instituições, tende-se a lograr maior êxito quando esses
processos são efetuados por meio de participação cívica. Por fim, é preciso
ressaltar que as cidades e suas comunidades continuam se transformando
permanentemente. Quer dizer, a história segue acontecendo, as decisões
permanecem sendo tomadas e a trajetória para o futuro continua sendo trilhada.
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Recebido em: 27/08/2022
Aprovado em: 15/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
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