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Conversas com Maurice Durozier
Entrevista com Maurice Durozier
Concedida à Juliana de Lima Birchal
Para citar este artigo:
DUROZIER, Maurice; BIRCHAL, Juliana de Lima.
Conversas com Maurice Durozier. [Entrevista
concedida à Juliana de Lima Birchal
Urdimento
-
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis,
v.3, n.45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0503
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Conversas com Maurice Durozier
Entrevista com Maurice Durozier - Concedida a Juliana de Lima Birchal
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-24, dez. 2022
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Conversas com Maurice
1
Durozier
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Entrevista com Maurice Durozier
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Concedida à Juliana de Lima Birchal
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Resumo
Entrevista com Maurice Durozier, um dos atores mais antigos do Théâtre du
Soleil, no qual ingressou em 1980 para o espetáculo
Richard II
. O encontro foi
realizado entre outubro e dezembro de 2014, em um café próximo à
Cartoucherie, sede do grupo em Paris. De forma despretensiosa, a conversa
passou por temas como a transmissão no Théâtre du Soleil, a preparação e
treinamento do ator, o trabalho com o texto e a vida em trupe.
Palavras-chave
: Théâtre du Soleil. Maurice Durozier. Ator.
Conversations with Maurice Durozier
Abstract
Interview with Maurice Durozier, one of the oldest actors of Théâtre du Soleil,
having joined it in 1980 for the show
Richard II
. The meeting took place
between October and December 2014, in a café near Cartoucherie, the group’s
headquarters in Paris. In an unpretentious way, the conversation went through
topics such as the transmission at Théâtre du Soleil, the preparation and
training of the actor, working with the text and the life in a troupe.
Keywords
: Théâtre du Soleil. Maurice Durozier. Actor.
1
Maurice Durozier é um dos atores mais antigos do
Théâtre du Soleil
. Ele passa a integrar a trupe em 1980,
participando de vários espetáculos, e sai durante o ciclo
Les Atrides
. Nesse meio tempo, ele funda a sua
própria companhia e realiza trabalhos premiados como diretor e dramaturgo. Em 2003, Maurice retorna ao
Soleil
com
Le dernier Caravansérail
.
2
Revisão ortográfica e gramatical da entrevista realizada por Ana Ribeiro Grossi Araújo, mestre e bacharel em
Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), licenciada em Letras pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC).
3
Esta entrevista foi conduzida entre outubro e dezembro de 2014, durante residência artística realizada no
Théâtre du Soleil
que contou com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte. Dentre
as atividades desenvolvidas está a criação de um diário de bordo com registros textuais e visuais da
residência, disponível no link de acesso: http://projetotheatredusoleil.blogspot.com.
4
Mestranda em Artes Cênicas pela Universidade deo Paulo (USP), licenciada em Teatro pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). julianabirchal@usp.br
http://lattes.cnpq.br/9579886173590962 https://orcid.org/0000-0001-5071-5301
Conversas com Maurice Durozier
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Florianópolis, v.3, n.45, p.1-24, dez. 2022
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Conversaciones con Maurice Durozier
Resumen
Entrevista con Maurice Durozier, uno de los actores más antiguos del Théâtre
du Soleil, a que se incorporó en 1980 para el espectáculo
Richard II
. La reunión
tuvo lugar entre octubre y diciembre de 2014, en un café cercano a la
Cartoucherie, la sede del grupo en París. De una manera no pretenciosa, la
conversación pasó por temas como la transmisión en el Théâtre du Soleil, la
preparación y el entrenamiento del actor, el trabajo con el texto y la vida en
compañía.
Palabras-claves
: Théâtre du Soleil. Maurice Durozier. Actor.
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Introdução
Maurice Durozier no espetáculo
Palavra de Ator
. Foto de divulgação
Maurice Durozier e Aline Borsari em
Palavra de Ator
. Foto de divulgação
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Maurice Durozier no espetáculo
Palavra de Ator
. Foto de divulgação
Entre outubro e dezembro de 2014
5
, eu era artista residente no
Théâtre du
Soleil
que, naquele período, estava em cartaz com o espetáculo
Macbeth
na
Cartoucherie. No dia a dia, eu acompanhava o máximo de atividades que eu podia
e ajudava onde era necessário, fosse na cozinha, na contrarregragem, na técnica
ou na administração. Na conversa com Maurice Durozier menções a algumas
das atividades que eu realizei na época, como observar o aquecimento dos atores;
observar os atores nos camarins durante o espetáculo; ajudar na limpeza do salão
antes da entrada do público; participar das reuniões da trupe ou ainda das visitas
de jovens estudantes ao Soleil. Pela própria natureza da residência, era comum
acompanhar de perto os atores, em particular Maurice Durozier, um dos mais
antigos da trupe. Eu o havia conhecido no Brasil, durante uma oficina ministrada
por ele
6
, também citada durante a conversa.
Um dia, Maurice se propôs a ser entrevistado por mim. Eu aceitei o convite
5
A residência foi dividida em três partes: outubro a dezembro de 2014 em Paris (França); dezembro de 2015
e janeiro de 2016 em Pondicherry (Índia); e fevereiro e março de 2016 em Paris (França). A entrevista foi
realizada na primeira parte da residência.
6
A oficina
O Teatro é o outro
aconteceu na Oficina Oswald de Andrade em São Paulo (4 a 9 de agosto de
2013) e foi ministrada por Maurice Durozier e Aline Borsari.
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de imediato, sem saber muito bem o que eu faria com aquele presente. O encontro
se deu em um café próximo da Cartoucherie e durou cerca de duas horas. Apesar
de pouco movimentado, o local não era exatamente silencioso. Havia música ao
fundo e pessoas falando, o que dificultou um pouco a minha compreensão do que
era dito em francês. Em determinado momento, Maurice percebeu a minha
dificuldade e decidiu, então, prosseguir em português. Apesar de não ser a sua
língua materna, o ator domina bem o idioma, seja pelas suas recorrentes visitas
ao Brasil ministrando oficinas de teatro, seja pela convivência cotidiana com
brasileiros na trupe. Assim, grande parte da conversa foi conduzida neste idioma,
contendo apenas dois trechos pequenos em francês, indicados no corpo do texto.
A tradução desses trechos, assim como a transcrição da conversa, foram feitas
por mim.
De maneira despretensiosa, a conversa abordou temas relacionados ao ofício
do ator e ao Théâtre du Soleil, como a transmissão
7
, a preparação e o treinamento
do ator, o trabalho com o texto e a vida na trupe. Maurice Durozier foi
extremamente generoso, respondendo com paciência a todas as minhas
perguntas.
A entrevista foi gravada em áudio e o arquivo permaneceu guardado no meu
computador, sem destino certo. Após tanto tempo, redescubro o registro e tomo
coragem para finalmente compartilhar.
Oito anos separam aquele encontro desta publicação. Hoje, formularia as
perguntas de outra maneira, tentaria abordar outros assuntos, mas esta seria
uma conversa totalmente diferente. Não seria mais aquela jovem de vinte e
poucos anos, em êxtase por estar vivendo uma aventura com o Théâtre du Soleil,
privilégio de poucos. E, possivelmente, Maurice Durozier falaria de outra forma,
escolheria outras palavras ou apresentaria uma perspectiva diferente. Tenho, no
entanto, a convicção de que as palavras transmitidas para mim naquele dia foram
muito importantes e merecem ser compartilhadas com outros artistas,
pesquisadores e amantes do teatro.
7
A transmissão é a prática de transferência de técnicas, procedimentos criativos e compartilhamento de
experiências, seja entre integrantes do Théâtre du Soleil, seja para pessoas de fora da companhia.
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Maurice Durozier em
Les Naufragés du Fol Espoir
. Foto do Théâtre du Soleil.
Juliana de Lima Birchal Minha primeira pergunta é sobre o seu convite para estar
aqui. Eu vi, com o grupo de jovens no outro dia
8
, que você ama transmitir sobre o
trabalho do ator. E, no Soleil, há sempre jovens atores que chegam para aprender
e que entram na trupe. Como se dá, para você, essa relação de transmissão com
os novos que chegam?
Maurice Durozier
Se você quiser, a transmissão é algo natural. Eu aprendi
8
Naquela semana, o Théâtre du Soleil tinha recebido um grupo de jovens estudantes que vinham conhecer o
grupo e o espaço. Maurice Durozier acompanhou esta visita e se encarregou de responder às perguntas dos
jovens.
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8
isso na Índia: "tudo o que lhe é transmitido, você deve transmitir"
9
.
Você fez um curso lá?
Sim, eu fiquei um tempo trabalhando um pouco de Kathakali na Índia. Mas a
primeira vez que eu senti assim, tão concretamente, essa noção de transmissão
foi lá. "Tudo o que lhe é transmitido, você deve transmitir". Certamente, isso
também vem da minha história pessoal, que é particular. Sabe, a minha família
fazia teatro ambulante. Então, de uma certa maneira, eu nasci dentro do teatro.
Quando eles pararam, eu tinha dois anos, mas morava no
trailer
. Meu avô e minha
avó me criaram. Eles fizeram teatro a vida toda. Eram atores. Então, sem querer,
eles me transmitiram muitas coisas do teatro, deste ofício, da devoção que eles
tinham pelo teatro. Eram pessoas que haviam feito teatro durante toda uma vida,
eles nasceram dentro dele. Meu avô era chefe de um clã, de uma grande trupe.
Ele era o irmão mais velho de uma família de 14 filhos. Todos faziam teatro. Depois,
com o passar do tempo e dos acontecimentos, eles se separaram. Mas meu avô
era o cimento, a referência. Ele fazia melodrama, comédia… era teatro popular
mas era, à sua maneira, um homem de teatro. Então, das coisas que ele me
transmitiu sobre a vida, tinha sempre o teatro, porque para ele o teatro e a vida
estavam misturados. E minha avó era igual. Era uma grande atriz e ela vivia coisas.
Quando ela parou com o teatro, ela continuou a viver as coisas. Não como os seus
personagens, mas numa dimensão sempre muito extrema. Eu penso que eu tinha
isso naturalmente em mim. Depois, quando eu entrei no Théâtre du Soleil, acabei
me beneficiando de todas as pesquisas, de tudo o que fora o Soleil antes da minha
entrada. Foi uma forma de transmissão. Mesmo sendo ator no Théâtre du Soleil,
eu sempre me senti próximo de Ariane [Mnouchkine] e sempre me interessei pela
sua maneira de ser nas criações. Ela era diretora, criadora, pesquisadora, mas
também transmitia coisas do teatro. Então, no fundo de mim mesmo, sobretudo
na minha idade, tendo em vista o meu percurso, a minha história, a minha
experiência, o tempo que eu passei em cena e particularmente nesta trupe, eu
também tenho coisas a transmitir. Eu devo fazê-lo. Tem uma frase que diz assim
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Tout ce qu'on te transmet, tu dois le transmettre. (Tradução nossa)
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"tudo que não é dado, é perdido"
10
. É bonito. Era de um personagem de uma peça
que fizemos
11
. Um homem santo, um padre que trabalhava com refugiados nos
campos. Ele trabalhava na Índia e depois no Camboja e dizia "tudo que não é dado,
é perdido". Eu penso que devemos transmitir, além do nosso trabalho, do que
fazemos no palco, do trabalho do ator com os personagens. Chega um momento
em que você deve encontrar uma forma de transmitir. Então, para isso, temos
várias possibilidades: tem a transmissão por meio de ateliês, como eu faço de
tempos em tempos; tem os grupos de jovens que vêm, e eu estou para
responder às suas perguntas, simples assim. Porque é verdade que um grupo
como o Théâtre du Soleil, um lugar como o Théâtre du Soleil, uma aventura como
o Théâtre du Soleil - que infelizmente se tornou única uma vez que não grandes
trupes independentes como a nossa -, suscita sempre a curiosidade. Eles querem
saber, querem compreender. Porque o mundo hoje é o contrário disso. O que é
ensinado aos jovens hoje é que o mundo é baseado na vilania. Ou seja, fazer
dinheiro, fazer
business
. Se você faz
business
, você o faz sobre as costas dos
outros, sempre. Quando você faz
business
, você explora alguém. Quando você faz
teatro, quando você faz alguma coisa como o teatro, é pelo outro. Então, os jovens
são atraídos e muitas vezes fazem perguntas e devemos estar para respondê-
las. Eu amo fazer isso.
Você falou sobre o que você pensa a respeito do aprendizado, da transmissão.
Mas se pode dizer que o Théâtre du Soleil acredita que ele tem o dever de fazer
isso, por meio dos
stages
, recebendo estagiários como eu, ou com o grande fluxo
de pessoas que chegam a cada criação? Pode-se dizer que o Théâtre du Soleil se
sente na obrigação de transmitir o que ele construiu durante cinquenta anos?
Escuta, você fala de obrigação, de dever, pode-se dizer
duty
em inglês. Não,
a função do Théâtre du Soleil é criar. Fazer teatro. Isso é o essencial. Depois, é
verdade que o Théâtre du Soleil é um lugar aberto, não é fechado. Ariane faz
questão que seja assim. É um lugar aberto ao mundo. Você veio! A porta está
sempre aberta. A hospitalidade é um valor também. Não recusa
a priori
. Se
10
Tout ce qui n'est pas donné, est perdu. (Tradução nossa)
11
Imagino que seja do espetáculo
Le dernier caravansérail (odyssées
) de 2003.
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alguém quer vir até nós, temos que abrir a porta! É claro que somos limitados por
questões materiais, não podemos aceitar todo mundo. Mas, normalmente, as
pessoas que insistem sempre conseguem vir passar um tempo conosco. E eu
acredito que se o Théâtre du Soleil existe cinquenta anos, é porque passa por
renovações o tempo todo. É uma necessidade. O teatro precisa da energia da
juventude. Quando eu cheguei na trupe, éramos uma trupe de jovens. Mesmo com
a mudança de gerações, havia um equilíbrio, mas as peças que fazíamos eram
extremamente físicas, como sempre. Ainda mais, até. Como diz Artaud, e eu o cito
em
Palavra de ator
12
, "o ator é um atleta do coração"
13
. Um atleta! Então temos a
palavra coração no interior, mas temos a palavra atleta! É preciso essa força da
juventude e também a sua inocência! Ariane sempre leva isso em conta nos
projetos. Tem pessoas que entraram e que não pegaram papéis importantes no
início, mas que pouco a pouco se tornaram pilares do Théâtre du Soleil. Porque,
para nós, a aprendizagem se faz, como se diz em francês, "com a mão na massa".
Eu acabei dizendo em português (
risos
). Ou seja, se faz no tempo, fazendo. Tem
um provérbio que diz forjando que se torna ferreiro"
14
. Um outro provérbio que
eu gosto muito, de Antonio Machado, um poeta espanhol que está enterrado perto
da minha cidade, ao lado de Perpignan, diz "
caminante, no hay camino, el camino
se hace al andar
". O caminho se faz caminhando. E a aprendizagem é assim. Então
essa renovação, esse aporte de novos atores e atrizes é essencial para um grupo.
Senão, a gente se esclerosa, se fecha, vira um buraco dentro de si. Então é ao
mesmo tempo
a
duty
mas também uma necessidade. Temos várias iniciativas que
foram tomadas nesse sentido. Tem um festival com jovens companhias, uns
dez anos, que se chama
Premiers Pas
, e de lá saíram equipes, diretores, inclusive
um que se tornou um verdadeiro diretor. Além do mais, as centenas de atores que
passaram pelo Théâtre du Soleil, que quando saem vivem outras experiências
como atores, mas também como autores, diretores, atuam, transmitem… É um
12
Concebido por Maurice Durozier, o espetáculo retrata uma conversa entre pai e filha. Em cena, Maurice
conta a sua biografia e trajetória pelo teatro. Algumas apresentações do espetáculo foram realizadas no
Brasil, contando com a atriz Aline Borsari, também do
Théâtre du Soleil
, no papel de filha. Além do
espetáculo, a dramaturgia de
Palavra de ator
teve uma publicação bilíngue francês-português lançada em
2015 na Aliança Francesa de São Paulo.
13
L'acteur est un athlète du cœur. (Tradução nossa)
14
C'est en forgeant qu'on devient forgeron. (Tradução nossa)
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movimento em fluxo particular, porque a nossa concepção de teatro é particular.
Sobre a questão da transmissão, é como eu dizia: eu aprendi isso na Índia. É assim
na Índia: tem a relação mestre-discípulo, guru-adepto. E, na verdade, aquele que
estuda, tradicionalmente estuda na casa do mestre e cumpre com algumas
tarefas materiais. É através disso que a aprendizagem se faz. Então, eu penso que
isso é muito indiano, muito asiático também. Isso corresponde, no fundo, às
grandes formas de teatro nas quais o Théâtre du Soleil se inspira. Esse espírito.
Não são somente técnicas, modos de fazer como receitas que tentamos
encontrar, mas também esse espírito que é importante.
E nesse tipo de teatro que o Théâtre du Soleil acredita e tenta proliferar, como
você mesmo diz, com a grande quantidade de pessoas que por passaram, como
se preparar para ser um atleta do coração? Quais são os meios que podemos
buscar para ser um atleta do coração?
Você quer dizer no Théâtre du Soleil mesmo, ou de uma forma geral?
15
Você pode dizer dos dois (
risos
).
Não sei se tenho uma resposta para a sua pergunta realmente. O que eu sei
é que o trabalho não tem fim para nós. Não tem fim porque, precisamente, para
cada nova criação ou projeto, você tem que esquecer tudo o que você sabe.
Primeira lei: esquecer o que você sabe para tentar chegar o mais virgem possível
nesse novo mundo que você tem que descobrir. Isso é uma forma de trabalho
interior bem particular. A partir disso, a ferramenta do ator é o seu corpo. Você
tem que ter o corpo preparado para fazer o impossível. Sobretudo com o trabalho
que a gente tem no Théâtre du Soleil, que são improvisações. Não sabemos o que
vai acontecer. Então, o corpo tem que estar preparado. Para isso, você tem que
praticar formas bem diferentes: dança, esportes, artes marciais... Todas as coisas
possíveis para que o corpo seja o mais livre possível... sem se machucar! Outra
coisa que eu acredito é ver outros atores, outras atrizes. Pra mim, uma fonte
incrível de aprendizado para o trabalho do ator são os filmes mudos do começo
15
A partir deste momento, Maurice começa a falar em português.
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do cinema, porque os atores atuavam como no teatro. Não era daquela maneira
porque eram filmes mudos, mas porque eles atuavam assim. Tem toda uma série
de atores e atrizes. Eu penso na Lillian Gish, que trabalhou muito nos Estados
Unidos com David Wark Griffith
16
. Você tem que ver esses filmes!
…E o vento levou
.
Uma forma de atuação muito expressiva. E outros! E também Chaplin, Keaton:
excepcionais! São arquétipos, modelos universais para nós. Esses são os exemplos
que a gente pode ter de uma forma de atuação física e gestual no cinema, mas se
você for na Ásia Índia, Japão, Bali você tem isso ainda vivo no teatro. Mas essas
formas desapareceram aqui no Ocidente, porque tem uma forma de totalitarismo
da palavra, do texto, da psicologia. Também tem atores incríveis em outros filmes.
Você tem que ver esses atores como uma forma de inspiração, que fizeram uma
parte do caminho. Evidentemente, ler! Fazer leituras de qualquer texto que pode
enriquecer a imaginação. Em algum momento, tudo o que você tiver dentro vai
servir, você não sabe quando. Vou contar para você uma pequena anedota. Eu
sempre tive problemas com Proust. Eu não podia entrar nessa forma de escrita.
As frases tão longas, tudo isso… Eu me perdia. Então, a gente fez um espetáculo
chamado
Les Éphémères
. Era um espetáculo incrível, muito íntimo, totalmente
diferente. Quase contrário a tudo que a gente fez antes no Soleil. Era um
trabalho sobre o nosso íntimo, nossa memória individual, pessoal, de forma
teatralizada. Depois desse espetáculo, eu peguei o livro de Proust e notei que eu
podia entrar pela primeira vez nesse texto. Porque eu entendi que não eram frases
literárias, mas um pensamento, depois outro pensamento, e outro pensamento,
pensamento, pensamento… Uma série de pensamentos assim. Então, eu decidi
fazer o trabalho de ler Proust de pensamento em pensamento. Eu me forçava a
fazer exercício mental de pensar o que eu teria escrito. E como a gente tinha vários
meses livres, eu fiz isso com o livro todo. Eu inventei para mim um tipo de
exercício, mas eu fazia isso cotidianamente. Todo dia, meia hora, quarenta
minutos, acordando… fazendo isso. E, assim, eu me familiarizei com um tipo de
trabalho com o texto que eu nunca tinha feito antes. Depois, na criação seguinte,
Les Naufragés du Fol Espoir
, caiu nas minhas mãos o personagem do diretor de
cinema que tinha todo o texto da peça. Os outros personagens quase não falavam.
16
Diretor de cinema dos Estados Unidos do começo do século XX.
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13
Isso foi o resultado do trabalho que eu fiz com os colegas e com Ariane sobre o
personagem. Mas também porque eu tinha essa experiência, esse treinamento de
trabalho com o texto. E eu fazia isso sem pensar. Então, você também pode
inventar exercícios específicos em relação ao que você pensa que tem que
melhorar em você. É quase o contrário da personalidade e das possibilidades que
você já tem. É bom.
Você me fez lembrar de um espetáculo da Roberta Carreri
17
do Odin Teatret em
que ela diz que, para se preparar, ela deve inventar exercícios para trabalhar as
suas dificuldades. É exatamente isso que você fez com o livro de Proust. Quando
eu comecei aqui no mês de outubro, Ariane um dia disse aos atores que o
aquecimento era importante, que eles deveriam fazer exercícios de treinamento.
Depois, num outro dia, ela fez uma separação entre o treinamento e o
aquecimento, que depende de cada espetáculo, como você acabou de dizer. Como
você se prepara para o espetáculo
Macbeth
, uma vez que os dias são tão curtos?
Eu estou fazendo corrida, porque eu preciso disso para o espetáculo e para
mim também. Eu preciso trabalhar o meu corpo inteiro. E correr nesse bosque,
ver as diferentes estações, os aromas, respirar, tudo isso é uma coisa bem legal.
Também é uma forma de meditação bem particular. Os outros fazem outras
coisas, não tem regra. A verdade é que somos cheios de contradições. Nosso
tempo é limitado e, quando atuamos, a finalidade é a apresentação. A gente
também precisa de momentos para nos encontrar e falar de várias coisas do
espetáculo ou de fora, da vida, da política. Coisas que a gente tem que falar, porque
não é bom estar totalmente fora dos eventos do mundo. Então, às vezes, se a
gente tem uma reunião, a gente fala… e somos muitos! E depois, com o trabalho
de preparação do espetáculo que você conhece, esse tempo de trabalho antes da
peça fica limitado. Nesses momentos, não sabemos como viver essa contradição.
Eu tento três vezes por semana fazer a minha corrida. Por isso que eu peço para
você me ajudar com o aspirador. Agora você sabe o porquê
(risos)
. Mas, mais
jovem, eu fazia outras coisas diferentes. É uma disciplina, uma exigência que a
gente tem que manter sempre, esse trabalho pessoal do ator. Eu sempre achei os
atores mais preguiçosos, a gente tem essa tendência. A gente não precisa,
realmente. Não em comparação com o músico que tem que fazer seis ou sete
17
Na realidade, faço referência à demonstração de trabalho
Traces in the snow
.
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horas de escalas todos os dias para poder continuar a tocar um instrumento. Nós
podemos esquecer e, com algumas ressalvas, fazer uma apresentação. Mas, com
o tempo, não é bom deixar o corpo sem trabalhar. A gente precisa estar bem
consciente disso.
Ainda sobre o
Macbeth
, você disse que vocês já trabalharam com outros clássicos
e outros textos de Shakespeare antes. Mas vocês fizeram um trabalho um pouco
diferente dessa vez. O que há de particular agora?
Como eu dizia antes: a cada novo espetáculo, a gente tem que esquecer. Mas,
com cada novo espetáculo, a gente aprende. É normal, é assim. Os primeiros
Shakespeare
18
que eu fiz com o Soleil, trinta e três anos atrás
19
, foram uma
iniciação, uma pré-história do trabalho com o texto no Soleil, essa descoberta do
teatro épico. Então, a forma de trabalhar era bem primitiva, era mais cantado
[aqui
ele recita o texto cantando e reproduz as pontuações que o músico fazia no final
de cada frase]
. Na verdade, o que se tem de som em
Macbeth
, apesar de ser
totalmente poético, escrito num inglês perfeito e traduzido num francês perfeito,
é bem mais complexo e moderno que os seus textos mais primitivos, como
Richard II
e
Henry IV
, do começo da carreira de Shakespeare. Ele aprendeu
também. E aprendeu a complexidade do homem, dos personagens e da
linguagem. Então, nós trabalhamos descobrindo esse texto. A gente fez um
trabalho duplo sobre os sentidos: o sentido do texto, que você não pode separar
do sentido das emoções. Muito importante. Porque o que o espectador percebe
não é o texto, mas as emoções do personagem. E porque essas palavras estão
divididas como tal ou tal emoção que o público pode entender. Este é o trabalho
essencial do ator: a busca da emoção do personagem neste ou naquele momento.
Mas, paralelamente, como Ariane queria restituir para o público um texto
perfeitamento puro, a gente fez um trabalho especial com a língua francesa. Não
sei, por exemplo, se o português tem essa distinção, mas o francês moderno
contrai tudo. A forma do francês antigo, poético, tem um ritmo com as sílabas
longas e breves. A gente tem essa música no francês, quase a única música. Vocês
têm outra música, com o acento tônico, nas línguas da América Latina. Os atores
18
O ciclo de Shakespeare reúne três espetáculos:
Richard II
(1981), La Nuit des rois (1982) e
Henry IV
(1984).
19
Em 2022, seriam 41 anos.
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15
fizeram esse trabalho para respeitar o ritmo da frase, porque Ariane tentou
respeitar o ritmo poético da língua de Shakespeare. Foi um trabalho bem bacana,
forte e interessante. Acredito que é por isso que o público segue e entende
totalmente a história. Porque tem essa dicotomia, uma contradição entre a
imagem moderna dos personagens nossa versão de
Macbeth
é hoje e a forma
de falar, que é mais clássica. Esse choque provoca algo na cabeça do público que
faz com que ele fique atento e siga. Ele pode ouvir e entender tudo. Sobre esse
tema da língua, isso também é para nós um trabalho constante. Particularmente
para mim: eu venho do Sul da França; tenho um sotaque que continuo a ter na
vida, mas que eu não posso me permitir ter em cena. Então, eu tenho que fazer
esse trabalho cotidianamente antes de entrar em cena, sobre o texto, para não
falar com meu sotaque do Sul, mas com um sotaque mais normativo.
Sobre essa evolução que houve com os trabalhos anteriores de Shakespeare, eu
percebi que esse espetáculo tem um trabalho sobre a musicalidade muito
complexo. Tanto na fala, quanto na trilha, na relação entre o trabalho do ator e a
música, ao vivo ou gravada. Será que a gente pode dizer que o espetáculo anterior,
Les Naufragés du Fol Espoir
, por trazer essa linguagem do cinema mudo,
funcionou como um aprendizado nesse sentido da relação do ator com a música,
o som e o ritmo? Ou você acha que são dois trabalhos diferentes? Eu percebi isso
que você falou em relação ao sotaque, mas também em relação a um tipo de
musicalidade da fala que está ligada com a ação.
Não, não é isso. A escritura do Shakespeare é poética. A poesia tem ritmo.
Nesse espetáculo,
Macbeth
, quando os personagens falam, não tem música. Tem
música para as entradas, as saídas e, em alguns momentos, para pontuar ou
ilustrar o ambiente. Mas Shakespeare não precisa de música. A música está no
texto mesmo. Quando eu não estava no grupo
20
, eu montei
Tartufo
, de Molière,
que é uma peça mais alexandrina: é música! Então não precisa, porque qualquer
música fica em contradição. Essa é a diferença com um espetáculo como
Les
Naufragés
, que é um espetáculo de improvisações, em que os personagens
falavam [tal] como era na vida dessa época. Mas a maioria dos personagens não
falava, porque eram personagens de cinema mudo. Então, a música tinha mais
espaço. Como nos filmes mudos, a música é muito importante. Era música de
20
Maurice Durozier sai do Théâtre du Soleil durante o ciclo
Les Atrides
e retorna em 2003, no espetáculo
Le
dernier caravansérail
.
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Entrevista com Maurice Durozier - Concedida a Juliana de Lima Birchal
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filme; de teatro, mas de filme. Em cada espetáculo, a gente descobre uma nova
relação com o músico Jean-Jacques [Lemêtre] e com a música. Como nós, ele
deve descobrir outra coisa. É uma dimensão sempre em movimento, nossa
relação com a música. Às vezes, a música é o tempo que passa, o ambiente, o
clima, sonoridades, pontuações, e também a música interna do personagem. Essa
noção de música interior do personagem vem de nosso trabalho com a máscara.
Cada máscara tem uma música interior quando entra. Muitas vezes não é
perceptível, mas o personagem tem essa música. O personagem não está em
cena, mas como o público já tem o tema desse personagem no ouvido, o músico
toca e, imediatamente, o público pensa nesse personagem que está chegando. Eu
acredito que é uma relação sem limite. Para nós, o teatro é musical, não tem
separação entre o teatro e a música. Para mim, o monopólio da psicologia é uma
degeneração do teatro no Ocidente. O teatro que faz de conta que o personagem
se comporta como na vida. Isso é um tipo de teatro. Para mim, um mestre desse
tipo de teatro é Tchekhov. Os personagens de Tchekhov estão na vida, no
cotidiano. É um teatro muito importante. Tchekhov abriu portas. Mas o Théâtre du
Soleil nunca fez Tchekhov e não é por nada. Porque nós fazemos um teatro épico.
É uma outra forma de contar o homem, outra dimensão, outro planeta. É assim.
O teatro épico precisa de música. O amor também (
risos
). Estou dizendo isso
porque Shakespeare escreveu muitas comédias com o tema do amor, a
dificuldade de amar, o que é amar… Eu me lembro de uma frase de um grande
músico francês, Hector Berlioz. Ele dizia em suas memórias, no final da sua vida:
"dessas nossas potências do amor e da música, não sei qual é a mais forte. Mas
acredito em uma coisa: se o amor não pode dar uma ideia da música, a música,
ela pode dar uma ideia do amor". Por isso que o Brasil é um país musical, mais
que teatral (
risos
).
Uma curiosidade: eu não sei se isso chegou a acontecer outras vezes nos
espetáculos do Soleil, mas a personagem da Lady Macduff é diferente todos os
dias. São duas atrizes diferentes que se revezam. Como é isso para você que
contracena com elas?
Para mim, é tudo de bom! Eu tenho duas versões do mundo, duas versões
da mulher, duas versões da vida. Para mim é incrível. As duas, Astrid [Grant] e
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Shasha
21
, eu posso dizer que com Juliana [Carneiro da Cunha] são as minhas
parceiras favoritas da companhia. Eu fiz outras peças com outros parceiros…
Para mim, é uma novidade todo dia. É uma riqueza incrível poder viver isso como
ator. Astrid é totalmente uma aristocrata da Escócia Britânica, com essa
fragilidade; e Shasha é outro tipo de aristocrata, mais oriental, como se MacDuff
tivesse se casado com uma mulher da Índia ou de uma antiga colônia britânica,
com outras fragilidades, mas forte. Como eu tenho dois espelhos diferentes, eu
também tenho que atuar a cada noite de outra forma em relação a elas. Estou
adorando essa alternância (chamamos de alternância). Acredito que seja a
primeira vez que funciona.
Vocês já tentaram outras vezes?
No final, não deu certo. Você já observou o que acontece nos camarins? Tem
rituais que são evidentes, que aparecem. Você não sabe o porquê, mas no dia da
estreia, você faz uma coisa e tem que manter durante as apresentações, porque
é um ritual essencial para o personagem. Não sei com qual atriz comecei a fazer
essa cena, mas a gente tem um momento, um encontro entre Ross (o meu
personagem) e a Lady Macduff. A atriz, quando acaba de se preparar, vem e a
gente troca um olhar bem particular. Não podemos atuar sem fazer isso a cada
noite. Eu sei que esse olhar não é Astrid, Maurice ou Shasha: é Lady Macduff e
Ross. E depois entramos em cena. Eu não sei porquê. A gente nunca conversou
sobre isso, mas toda noite, no mesmo lugar, seja com uma ou com outra, isso
acontece. São os mistérios. Às vezes, o teatro diz coisas para você. Os personagens
têm uma forma de encantamento, de possessão, um certo transe. Então, eu sei
que o Ross é totalmente diferente, mas ele depende da Lady Macduff.
Eu cheguei a ver um outro ritual nos camarins entre o Vincent Mangado, que faz
o personagem do Banquo, e Fléance
22
, antes da cena em que ele [Banquo] se
encontra com Macbeth no jardim. Não sei se isso acontece todos os dias com
todas as crianças, mas eles fazem um pequeno trajeto nos camarins. Como é esse
trabalho com as crianças, que são diferentes todos os dias?
21
Shaghayegh Beheshti.
22
No espetáculo, o personagem Fléance, filho de Banquo, era realizado em sistema de alternância por Victor
Bombaglia, Lucien Bradier, Blas Durozier, Joshua Halévi, Eraj Kohi, Dionisio Mangado, Timothée Barrot e
Nathan Coré.
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Acredito que seja o mesmo processo. É uma necessidade. O Vincent precisa
disso e ele pensa que o menino também precisa, porque neste momento ele não
é um menino qualquer: é Fléance. Porque fazer teatro nesse nível não é "nada".
Você precisa do que chamo de rituais. Você precisa de ajuda. Você não pode entrar
assim de qualquer jeito, mesmo se você é um ator ou uma atriz experiente. O
teatro não acontece assim para nós. Quando você entra, você tem que entrar com
uma coisa que vai surpreender, emocionar ou aterrorizar o público. Você tem que
entrar com um estado extremo e justo. Não existe estado gradativo. Você não
pode entrar em cena e dizer "eu vou entrar depois!". Não, não! Então, para fazer
esse trabalho, nós precisamos disso. Mas isso não vem da Ariane, ela não traz isso.
São manias, coisas nossas, dos atores. E depende! Tem atores que precisam mais
que outros. E tem momentos na peça em que você pode fazer piadas, ficar
tranquilo, ficar de fora com os colegas, e tem momentos em que não! Porque é
um momento em que o personagem não pode sair de você totalmente, você
precisa mantê-lo para passar por uma etapa. Eu tenho isso com este personagem,
o Ross. Quando entramos na segunda parte do espetáculo, eu preciso me cortar
totalmente de tudo o que acontece perto de mim. Em outros momentos, não.
Quando eu estou fazendo o Duncan, fico muito tranquilo, posso fazer várias
coisas… mas, nesse momento preciso, não. Tem uma progressão trágica no
personagem e, para fazer essa escalada, eu preciso desse tipo de ritual. No espaço
de um instante, eu me encontro com outro colega atrás da cortina e sabemos que
vamos nos encontrar em cena. Mas são os dois primos, os personagens. Eles
fazem um reconhecimento necessário, físico, um gesto necessário para se
confrontar com essa coisa particular da cena.
Naquele dia com os estudantes, e Ariane também falou isso no
stage
no Rio de
Janeiro
23
, você disse que nem todas as pessoas que trabalham para o teatro são
necessariamente atores. E que, às vezes, a pessoa começa a trabalhar como ator
e depois que tem um talento para ser diretor. Você falou isso sobre a Virginie
Le Coënt, que é iluminadora do espetáculo. Ela entrou, trabalhou como atriz em
dois espetáculos diferentes e depois fez uma formação para ser iluminadora; e
hoje é iluminadora do Soleil. Como é que uma pessoa sabe se é ator ou se deve
seguir um outro caminho dentro do teatro? Como é que ela encontra esse dom?
Ou ela não encontra, e isso é um trabalho?
23
Faço referência ao
stage
ministrado por Ariane Mnouchkine, Juliana Carneiro da Cunha, Paula Giusti e
Sébatien Brottet-Michel no Espaço Sérgio Porto (22 a 24 de novembro de 2011).
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Experimentando. Ninguém pode saber isso. Ninguém pode dizer. Nem Ariane
diz isso. Ela nunca diz para alguém "você não é ator". Porque não se sabe. Alguém
pode não ser ator em um momento, mas pode ser depois. Depende de tantas
coisas… Acredito que fazendo teatro. Se você tem esse desejo, você tem que
experimentar, viver o teatro para saber. Realmente, essas coisas de dom, não
sabemos muito sobre isso. Eu estou formulando essas coisas dessa forma agora…
O ator talvez seja aquele que tem o dom de se deixar encarnar no corpo. Mas
estou pensando enquanto estou dizendo… No Brasil, no candomblé, você tem
também aqueles que incorporam e outros que não. Não é porque você não
incorpora que você não acredita nas entidades. Mas tem algumas pessoas que
têm essas estruturas, sensibilidades, porque as entidades entram nelas e nos
outros não. É do mesmo tipo, os atores: incorporamos. Eu falei disso com um
amigo psicanalista e ele dizia mais ou menos que o ator era aquele que pode
mudar de identidade sem perder seu ser profundo. Bonito, não? O espectador tem
o dom de se identificar, porque não existimos um sem o outro, o ator e o público.
Quando Ariane dirige, ela é o nosso público. Precisamos sempre dessa relação com
o público. O público é o nosso olhar e somos o espelho dele também. Tem uma
expressão na França, quando um espectador gosta muito de um ator, que diz "este
ator tem presença". Eu penso que, na verdade, o que o espectador quer dizer nesse
momento é que ele sentiu uma presença no ator. A presença é o personagem, é
isso a presença do ator. Eu estou dizendo especialmente isso porque, como eu
dizia, eu venho de uma família de teatro ambulante e nela havia atores que tinham
o dom e outros que não tinham! Para eles, essa vida de teatro era um sofrimento,
porque eles tinham que estar em cena. Eu tenho o exemplo de um tio, irmão da
minha mãe, que era também meu padrinho: se chamava Henry. Ele era um
homem de uma generosidade incrível. Mas ele não gostava, não era ator. Então,
quando o grupo chegava numa cidadezinha, ele ia embora para o mecânico, para
a padaria, procurar trabalho. Fazia todos os trabalhos, porque ele precisava disso.
E à noite, ele tinha que estar em cena e ele não gostava. Era assim. A questão de
como saber… no meu texto
Palavra de ator
, essa também é uma pergunta da
minha filha: "como sabemos se somos atores?". Para mim, é quando você se
transforma realmente em um personagem pela primeira vez. Antes, você está
procurando, buscando, e nesse momento: pá! Aconteceu! Depois, a dificuldade, o
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problema é exercitar esse dom. Encontrar histórias, aventuras onde você pode ser
realmente ator. Atuar! Não somente ensaiar e atuar três ou quatro vezes, como
infelizmente acontece com a maioria das pessoas de teatro no mundo. Mas,
quando você atua, atua e atua… esse dom pode florescer. É nesse sentido que os
atores no Théâtre du Soleil têm muita sorte.
Eu vou puxar um gancho: a oficina que você deu no Brasil se chamava
O Teatro é
o outro
. Isso é uma coisa que Ariane diz muito nos livros e que você falou muito
aqui: que o teatro é o outro, que a gente sempre precisa do outro. Até mesmo na
questão da escuta, de receber a música, de ter generosidade em cena… Isso tem
alguma relação com o fato do Théâtre du Soleil ser uma companhia tão numerosa,
com cerca de quarenta atores? Você acha que essa questão, do teatro ser o outro,
que vocês têm a necessidade de tantos atores em cena, ou isso foi uma coisa que
foi acontecendo com o tempo?
Essa noção do outro é uma coisa que, pra mim, voltou a ser uma das coisas
mais essenciais na minha prática e na minha reflexão sobre o teatro. Se tem uma
coisa que eu posso transmitir agora, é esse tipo de valor. O outro, a abertura para
o outro, porque, evidentemente, tem relação com a nossa experiência de trabalho
coletivo. Eu aprendi o teatro nessas condições. posso falar e transmitir as
coisas que eu recebi trabalhando com o grupo. Mas acredito que também é uma
necessidade para todos nós, atores. Naturalmente, essa noção do outro, você pode
encontrar tudo isso escrito de forma mais precisa no texto
Palavras de Ator
. O
problema do ator é o ego. Não quero dizer que todos os atores são narcisistas.
Sim, é verdade. Mas o problema é sair do seu ego para encontrar o outro. Essa
noção do outro é também o personagem, que não é o ator. Tem vários níveis: o
outro que é o personagem, "para o outro", isto é, [para] o público… Não fazemos
teatro para nós, fazemos sempre para o outro. Não podemos nos esquecer nunca
disso. Muitas vezes, em experiências como as que eu tive com teatro experimental,
a gente se esquece que a finalidade é o outro. Mesmo se é um choque ou uma
provocação, o outro tem que receber naquele momento. O teatro é para o outro,
entende? O outro é também a relação com o colega, de onde tudo vem. Você sabe
como o nosso trabalho com essa noção do personagem é forte no Théâtre du
Soleil. Mas a gente se deu conta de que essa noção de personagem, como uma
coisa pessoal e individual do ator, podia ser um pouco racista, um pouco limitada…
o que eu quero dizer com isso é que realmente uma corrente que existe no
Conversas com Maurice Durozier
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teatro entre atores. É porque um ator acredita e olha o outro como sendo o
personagem que o personagem existe! Eu estou vivendo isso todas as noites com
uma grande alegria representando o Duncan, que é o rei. O que eu posso fazer
para ser um rei? Um rei não é nada! Um rei é um rei… Mas, quando eu percebo,
em cena, o olhar dos outros os servidores, os militares, os meus filhos, os
jornalistas sobre mim, que me olham como o rei… então, eu me torno rei! Eu
sou o rei, porque os outros me dão isso. [É] esse tipo de coisa que tento provocar
quando trabalho com atores jovens. Pra mim é essencial. É uma coisa que eu
entendi tarde, mas acredito que quanto mais rápido se entende, mais rápido vai
se esquecendo de falsos obstáculos que podemos criar, muitas vezes de boa
vontade, querendo fazer bem. Todo ator quer ser bom, todo ator quer trabalhar.
Mas, às vezes, nós podemos estar errados. Eu tenho a sorte de poder trabalhar
com Ariane, que é uma verdadeira diretora de atores. Porque ela ama os atores,
porque para ela o ator é a matéria. Um pintor tem as cores e ela tem as atrizes e
os atores dela para pintar. Ela adora! Como eu tenho essa experiência de direção,
eu posso falar sobre isso. Mas acredito que, infelizmente, se existem atores no
mundo todo, não existem muitos diretores, e isso é um problema.
Bom, uma última pergunta? Eu não quero esgotar todas as perguntas, porque eu
ainda vou voltar para três meses de criação e tudo vai ser completamente
diferente
24
. Cinquenta anos
25
de Théâtre du Soleil; o que você diria que marcou?
Pode ser pessoalmente para você, ou para o público que acompanha.
Isso é uma prova?
(risos
) Afirmação. Um fato. Que um sonho é possível.
Cinquenta anos não é nada. Um grupo assim, um espaço como o Théâtre du Soleil,
o público que chega… Esse grupo de loucos sonhando um sonho vivo. Uma utopia
viva que não é uma utopia, porque normalmente uma utopia não pode vir a ser. O
público vem para ver espetáculos, mas também para ver e sentir que esse fogo
está vivo, ardente. Mesmo os espectadores que vêm pela primeira vez sentem isso
e a importância deste lugar. Este espaço onde o espírito, a poesia, a humanidade
estão presentes. Cinquenta anos é muito e também não é nada. Mas, quando você
24
Nesta época, o Théâtre du Soleil estava se preparando para começar um novo processo criativo. A esta
altura, já estava acordado que eu realizaria a segunda parte da residência durante os ensaios do que seria
Une chambre en Inde
.
25
Em 2022, o Théâtre du Soleil completa 58 anos.
Conversas com Maurice Durozier
Entrevista com Maurice Durozier - Concedida a Juliana de Lima Birchal
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tem três ou quatro gerações de uma mesma família que estão aqui, presentes… é
lindo, não? O Théâtre du Soleil é um teatro total, um teatro popular, um teatro
para todos, tem essa dimensão. Mas, cinquenta anos… é por isso que eu dizia que
não era nada. Eu entrei no Soleil nos anos 1980, quase trinta e cinco anos da minha
vida, mesmo se deixei o grupo por um breve período de tempo. Quando se vive
essa experiência, ela nunca vai embora de você, está sempre dentro de você. Não
vemos o tempo passar. O espaço de tempo hoje, a noção de tempo é outra.
Estamos tanto na ação, na implicação do presente. Essa noção de viver o teatro
como a arte do presente, como cada segundo que buscamos, é tão importante de
estar neste presente, neste momento… Tem esta vantagem também (não sei se é
uma vantagem), de que o tempo passa e a gente não que ele passa. É bom
quando você tem filhos, porque você pode ver essa criança crescer e perceber
que o tempo está passando. Senão, o Théâtre du Soleil… estou pensando numa
coisa, mas não está claro, sobretudo quando penso em português.
Você pode dizer em francês, se quiser
26
.
Eu dizia que o Théâtre du Soleil aquece, é uma necessidade. Não é à toa que
ele tem esse nome. Se você comparar o planeta teatral com o planeta Terra, o
Théâtre du Soleil é uma necessidade que apareceu, em parte, graças à
personalidade de Ariane, que é o núcleo do Soleil, é o coração. Mas houve
circunstâncias que fizeram com que isso fosse possível aqui na França, neste país.
Coisas que precederam, eventos artísticos, históricos e políticos, outras
experiências… isso não veio imediatamente, como na formação de um planeta,
como no Soleil
27
. Sabemos que um dia o Soleil vai parar de brilhar, mas ele ainda
há de brilhar por muito tempo. Nós passamos. O teatro fica.
Eu apenas estou passando pelo Soleil, mas tenho a impressão de que com a
comemoração dos cinquenta anos, esta questão do futuro está mais forte no
grupo. Vocês pensam mais sobre isso, ou sempre foi uma questão? Desculpa, eu
havia dito que seria a minha última pergunta.
26
A partir deste momento da entrevista, voltamos a nos falar em francês.
27
A palavra
soleil
em francês significa Sol, dando um significado dúbio à frase.
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Entrevista com Maurice Durozier - Concedida a Juliana de Lima Birchal
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23
Não, não é uma questão dos cinquenta anos. A questão do futuro é presente
em cada um de nós, não somente em relação ao Théâtre du Soleil. É uma questão
existencial. Mas ninguém sabe do que será feito o futuro, entende? Ninguém sabe.
Então, o que vai acontecer com o Théâtre du Soleil, sobretudo quando Ariane
estiver menos presente por conta da idade? Ela vai naturalmente se distanciar?
Eu não sei. Ninguém sabe. Eu penso que o lugar vai ficar, o lugar deve continuar
como uma ferramenta dedicada à criação. Não existem muitos encenadores como
Ariane no mundo, hein! Além disso, artistas como Ariane, não existem muitos.
Quero dizer, artistas que ao fazer uma obra como ela fez, com diferentes gerações,
companheiros, companheiras que ficaram com ela no Théâtre du Soleil… Eu
comparo um pouco com a história do rei Arthur e a távola redonda. Ela conseguiu
fazer uma obra, prosseguir com a sua missão sem renegar os valores e os ideais
do início. Infelizmente, muitas vezes o artista, ao se confrontar com a dificuldade
ou, pior, com o sucesso, esquece de seus valores. Ariane é o exemplo de alguém
que, um pouco como Victor Hugo, nunca se desviou de seus valores. É por isso
que o Soleil é tão importante! No fundo, as pessoas vêm se aquecer nesta chama.
Mesmo com as dificuldades financeiras?
Sim! As dificuldades financeiras tivemos e teremos sempre, não somente no
Théâtre du Soleil, mas para todos os artistas. É normal.
Muito obrigada!
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24
Maurice Durozier e Nirupama Nityanandan em
Macbeth
.
Foto do Théâtre du Soleil
Recebido em: 20/08/2022
Aprovado em: 15/09/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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