Presença e ausência da representação na performance
Renato Ferracini
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-12, dez. 2022
preciso guardar, nesse processo contínuo de criação de um CsO, pequenas
provisões de organismo, subjetividade e significância para “opô-las ao seu próprio
sistema quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas,
inclusive as situações no obrigam” (Deleuze, Guattari, 1996, p. 23). O CsO é o real
infinito cindido, divisional do semblante da subjetividade, da significância e do
organismo. O CsO, portanto, não pode jamais ser representado, mas na busca de
furar e desmascarar a representação do semblante de um
Corpo-com-Órgãos
, se
poderia criar outras formas de vida possíveis, e assim, em processo contínuo, fazer
emergir representações de semblantes outros.
A materialidade como mostra do real, tal como professa a cena performativa,
seria, portanto, no mínimo, uma questão problemática. A materialidade, enquanto
semblante formal simbólico-discursivo e investida pelas malhas de poder, só
proporcionaria processo de CsO e dividiria o real ao seu infinito de intensidade se
formalizasse, e por isso, representasse, em sua rede receptiva e tensional da cena,
um recorte possível de semblante outro, crítico e político, que pusesse à mostra
as exclusões históricas de sua própria formação enquanto materialidade. A
corporeidade, em sua materialidade, já é discurso, já é excludente e, portanto,
gritaria na cena, a priori, um real simbólico, um real semblante, mesmo numa
suposta não-mediação espetacular de um teatro normatizado. Mas acredito que
quando se diz opsis pura, materialidade pura, presentificação de uma corporeidade
sem mediação, para além da óbvia problemática que essa palavra “pura” possa
trazer em seu bojo, se quer entender a materialidade mostrada em seu avesso,
em seu real infinito de exclusões, justamente na mostra da cisão do real
semblante com seu infinito subjacente e imanente. A performatividade, assim
pensada seria uma política da própria materialidade, de seu avesso material à
mostra. O performativo, ao cantar a materialidade como construção privilegiada
de uma real presentificado, sempre necessitará da formalização de seu avesso, de
sua divisão em real semblante e infinito subjacente. Mas se esse avesso é infinito
e não formalizável, a performance deverá lançar mão de formalizações possíveis
(e, portanto, não escapa da representação) para furar o semblante da
materialidade e expor suas contradições, discursos e exclusões.