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Presença e ausência da representação na
performance
Renato Ferracini
Para citar este artigo:
FERRACINI, Renato. Presença e ausência da
representação na performance.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis,
v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0207
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Presença e ausência da representação na performance
Renato Ferracini
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-12, dez. 2022
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Presença e ausência da representação na performance
1
Renato Ferracini
2
R
esumo
A performatividade, a partir da materialidade da cena, tem a pretensão para furar o
semblante do dito “teatral” e promulga uma fuga do signo, do semântico, da ficção;
mas nessa busca não restauraria a teatralidade e a representação em possibilidades
outras? Na busca da oscilação e do desmascaramento da representação enquanto
semblante, o performativo enquanto materialidade da cena não geraria outra
representação, outro semblante na sensação e na percepção, mas sempre uma
representação de um infinito irrepresentável em sua totalidade? Essa comunicação
busca problematizar essas questões a partir da afirmação da impossibilidade da
ausência da representação na materialidade da performance e para isso,
problematiza o próprio conceito de materialidade e do real na cena contemporânea.
Palavras-chaves
: Performatividade. Materialidade. Representação. Real. Ficcional.
Presence and absence of representation in performance
Abstract
Performativity, based on the materiality of the scene, intends to pierce the face of
the so-called “theatrical” and promulgates an escape from the sign, from the
semantics, from fiction; but in this search, wouldn't you restore theatricality and
representation in other possibilities? In the search for the oscillation and unmasking
of representation as a semblance, wouldn't the performative as materiality of the
scene generate another representation, another semblance in sensation and
perception, but always a representation of an unrepresentable infinite in its entirety?
This communication seeks to problematize these questions from the affirmation of
the impossibility of the absence of representation in the materiality of the
performance and for that, it problematizes the concept of materiality and the real
in the contemporary scene.
Keywords
: Performativity. Materiality. Representation. Real. Fictional.
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Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Giselle Moraes Bastos. Formada em Ciências
Contábeis UNIABEU - Centro universitário e MBA em Controladoria na mesma instituição. Parceira do LUME
desde 2010, realiza as revisões dos meus textos e dos textos do LUME desde então.
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Doutorado em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestrado em Multimeios na
UNICAMP. Graduação em Artes Cênicas pela UNICAMP. Professor doutor com credenciamento permanente
e orientador no Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (UNICAMP). rflume@unicamp.br
http://lattes.cnpq.br/0044553371898324 https://orcid.org/0000-0002-8862-420X
Presença e ausência da representação na performance
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Presencia y ausencia de representación en la ejecución
Resumen
La performatividad, a partir de la materialidad de la escena, pretende traspasar el
rostro de lo llamado “teatral” y promulga una huida del signo, de la semántica, de la
ficción; pero en esta búsqueda, ¿no restauraría la teatralidad y la representación en
otras posibilidades? En la búsqueda de la oscilación y desenmascaramiento de la
representación como semblante, ¿no generaría lo performativo como materialidad
de la escena otra representación, otra semblanza en la sensación y la percepción,
pero siempre una representación de un infinito irrepresentable en su totalidad? Esta
comunicación busca problematizar estas cuestiones a partir de la afirmación de la
imposibilidad de la ausencia de representación en la materialidad de la performance
y para ello problematiza el concepto mismo de materialidad y lo real en la escena
contemporánea.
Palabras clave
: Performatividad. Materialidad. Representación. Real. Ficcional.
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A performatividade, a partir da materialidade da cena, tem a pretensão para
furar o semblante do dito “teatral” e promulga uma fuga do signo, do semântico,
da ficção; mas nessa busca não restauraria a teatralidade e a representação em
possibilidades outras? Na busca da oscilação e do desmascaramento da
representação enquanto semblante
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, o performativo enquanto materialidade da
cena não geraria outra representação, outro semblante na sensação e na
percepção, mas sempre uma representação de um infinito irrepresentável em sua
totalidade? Esse artigo busca problematizar essas questões a partir da afirmação
da impossibilidade da ausência da representação na materialidade da
performance e para isso, problematiza o próprio conceito de materialidade e do
real na cena contemporânea.
Em uma pergunta, no mínimo instigadora, Butler questiona se a materialidade
do corpo não seria também um
lócus
“fora” da possibilidade de construção. Seria
a materialidade do corpo um lugar ou uma superfície que seria excluída do
processo de construção? Seria o corpo um plano em que a construção não
consegue operar? Seria a materialidade corpórea irredutível a construção? (Butler,
2019, p.57). Claro que Butler promove esses questionamentos a partir de uma
materialidade do corpo que cliva um estigma de gênero. Mas podemos facilmente
verificar que as problematizações a essas perguntas fazem oscilar uma certa
materialidade irredutível pensada no campo das artes. Butler afirma que está claro
que a matéria sempre foi historicizada. A história da matéria é a história de sua
modulação e organização por forças de poder e nisso Butler concorda com
Foucault -, e, portanto, não poderia ser desvinculada de uma instância de discurso.
Mas a materialidade não pode ser nem negada em função dessa construtividade
discursiva, nem afirmada em sua irredutibilidade pura. Diz Butler que postular o
corpo como anterior ao signo é postulá-lo como signo prévio, como uma
anterioridade significativa, e assim, ele nunca escapa ao signo. Esse enlaçamento
materialidade-significação seria a base de entendimento da própria materialidade.
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A palavra “semblante” pode ser pensada como semelhante, similitude, simulacro, é aquilo que se assemelha
a algo. Porém, nesse artigo é utilizada no sentido Lacaniano que o transformou “num conceito que indica
aparência, representação e parecer, porém não se opõe ao verdadeiro” (Quinet, 2018, p. 392).
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Se o corpo entendido como anterior a significação é um efeito de
significação, então o status mimético e representacional da linguagem,
que afirma que os signos seguem os corpos como seus espelhos
necessários, não é nada mimético. Pelo contrário, é produtiva,
constitutiva, poderíamos afirmar que é até performativa na medida em
que tal ato delimita e concede contorno ao corpo que se afirma encontrar
antes de toda e qualquer significação. Isto não quer dizer que a
materialidade dos corpos seja única e simplesmente um efeito linguístico
redutível a um conjunto de significantes. Tal distinção negligencia a
materialidade do próprio significante. Essa consideração também falha
ao explicar a materialidade como algo que está atado a significação desde
o princípio. Não é uma tarefa simples refletir sobre a indissolubilidade
entre a materialidade e a significação (Butler, 2019, p.60).
Butler recorre a Foucault dizendo que as forças de poder operam na
constituição da materialidade do próprio sujeito. O corpo não seria uma
materialidade independente e autônoma investida pelas forças de um poder
externo a essa própria materialidade, mas a própria materialidade e investimento
são coextensivos. Isso quer dizer que a materialidade é investida de, no e pelo
poder em um mesmo sistema ritornelo. A “materialidade designa certo efeito de
poder, ou melhor, é o poder em seus efeitos formativos ou constituintes” (Butler,
2019, p.68). Dessa forma, assim que o poder opera com sucesso nessa constituição
ontológica dos corpos, sua materialidade passa a ser dada como base ou como
primária e, dessa forma, aparecem como um possível “fora” do discurso. Em
realidade, a materialidade emerge como efeito dissimulado do próprio poder. E
continua dizendo que, apesar do esforço de Foucault em possibilitar uma
inteligibilidade na formação da materialidade e de sua relação irredutível às forças
de poder e discurso que o constituem, ele não menciona que, para que essa
inteligibilidade formativa aconteça, seria necessária a exclusão de materialidades
que não tomam parte nessa formação. Essa exclusão, em realidade, não é um
“fora” da materialidade formada, mas é constituinte à sua própria materialização.
Butler diz aqui que a materialidade dos corpos é formada a partir de uma lógica
falocêntrica que exclui, forclui a mulher, por exemplo, em seu próprio
investimento. Portanto, retornar e apelar à materialidade dos corpos seria retornar
a uma instância de significação que invoca a história de uma hierarquia e
apagamentos sexuais. Para além das relações de gênero, as ponderações de Butler
revelam que a materialidade dos corpos invoca, em si mesma, todo um conjunto
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social de hierarquias e relações de exclusão que são a própria base da
materialidade pensada, não como um “fora” metafísico absoluto do discurso, mas
que promove o próprio discurso hegemônico de exclusão em seu próprio sistema
formativo. A materialidade, portanto, é histórica, política e organizada a partir de
um sistema de hierarquias e exclusões que são sua base de existência.
Outra questão importante a ser abordada é justamente o suposto
enlaçamento da materialidade a um real. Podemos verificar em Ramos (2015) a
ênfase na
opsis
que supõe, na performance, um furo na representação, propondo
a presentificação de um real na cena em contraposição à ficção. Da mesma forma
que a materialidade dos corpos, apesar de se manterem enquanto materialidade,
são também investidas por e no sistema de poder que organiza todo um
regulamento de exclusões e hierarquias políticas e históricas, devemos repensar o
que seria esse real buscado na cena contemporânea. No livro
Em busca do Real
Perdido
de Alain Badiou (2017) o real é pensado como um duplo. Para pensar o
real, Badiou nos diz que não podemos pensá-lo nem como uma definição rígida
filosófica, nem como um encontro com o sensível como exceção ou extraordinário
que nos abriria as portas para um certo real metafísico ou escondido. O real não
é um espaço “fora” ideal e maculado por representações de mundo, como nos
conta Platão em sua famosa fábula da caverna, cuja percepção pode ser dada pela
vontade ou experiência singulares de uma “fuga” das representações ou sombras
projetadas. Se algo que está impregnada e totalmente dominado pelo “real” é,
justamente, nossa experiência de mundo.
Sobre essa questão, Badiou (2017) nos fala do escândalo não como exceção,
mas como “o desvelamento de um cantinho do real”, ou seja, em uma sociedade
cuja organização simbólica é dominada pela corrupção, que tem a corrupção
como base de sustentação simbólica, o escândalo de corrupção singular não seria
exceção, mas um pequeno desvelamento dessa mesma hegemonização
simbólica. Para Badiou, a hegemonização simbólica social seria, portanto, uma
camada real, mas o que ele denomina de um real semblante. Mas esse real possui
outra camada, não somente essa do semblante, mas também de um fundo
imanente, mas invisível e infinito. Para isso nos dá como exemplo a realidade dos
números na matemática. A representação da realidade dos números inteiros só é
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possível a partir de um não representável numericamente que seria o infinito dos
números. O que possibilita a representação real dos números é justamente um
não representável do infinito desses mesmos números.
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Outro exemplo seria a
morte de Moliére em cena representando sua peça
O Doente Imaginário
. A
realidade da morte “real” investe e fura a representação de Moliére no momento
exato de um real semblante, sempre, também, real. A doença real de Moliére o
acomete e o mata, justamente quando ele representa o real semblante de um
personagem com doenças imaginárias. Por isso Badiou nos diz que “o real é
justamente aquilo que “frustra a representação” (2017, p. 21) ou ainda “o que vem
assombrar o semblante [..] e se revela na ruína de um semblante” (2017, p.22) e
que devemos desmascarar esse semblante “ao mesmo tempo que se leva em
conta o real da própria máscara” (2017, p. 23). E arremata:
Todo acesso ao real é também sua divisão. o existe o real que se
trataria de depurar o que ele não é, que todo acesso ao real é
imediatamente e de maneira necessária, uma divisão não apenas do real
e do semblante, mas também do próprio real, visto que um real do
semblante. É o ato dessa divisão, por meio do qual o semblante é
arrancado e ao mesmo tempo identificado que podemos descrever como
sendo o processo de acesso ao real (Badiou 2017, p.24).
Além desse duplo real, semblante e transbordamento, no qual o semblante
é ao mesmo tempo arrancado e identificado, uma outra definição para o real seria
uma impossibilidade de formalização, o real como o próprio “impasse da
formalização”
5
, já que sua possibilidade de existência se encontra justamente em
um infinito subjacente a realidade dos números, como no exemplo matemático
acima citado. “O número infinito como impossível é o real da aritmética” (Badiou,
2017, p. 31). Podemos pensar, portanto, que o acesso ao real é uma divisão dupla:
uma cisão entre um além de um semblante real desmascarado e identificado; e
uma percepção finita-infinita que contém, ao mesmo tempo, a forma finita do
semblante real, possibilitada por um adjacente e imanente infinito que é sempre
4
É nesse sentido que se pode dizer que o real dos números finitos da aritmética elementar é um infinito
subjacente, inacessível a essa formalização. Que é realmente seu impasse (Badiou, 2017, p.30).
5
Aqui Badiou refere-se a Lacan: “quanto a sentença, vou tomá-la emprestada de um de meus mestres,
Jacques Lacan que indo direto ao assunto, propôs uma definição do real, por certo um pouco insidiosa que
é a seguinte: o real é o impasse da formalização”. (Badiou, 2017, p.28)
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escape, impasse e fracasso de uma formalização. Assim como a materialidade é
potência material que contém em si o discurso de uma circunscrição modulada
por forças de poder de um campo infinito de exclusão, o real semblante, com sua
realidade de economia simbólica social, possui um duplo infinito impossível de se
formalizar. Ao desmascarar o semblante real, ao abrir e dividir o campo do real
para seu duplo infinito - seja ele o infinito excluído da materialidade, seja ele o
infinito subjacente ao qualquer real semblante - a formalização nos escapa, ela é
impasse. O acesso à divisão do real infinito é sempre o impasse impossível da
forma. Restaria, portanto, criar outras formalizações possíveis desse real infinito,
o que seria, no limite, criar outras realidades semblantes. Voltamos, portanto, à
representação. Sim, outras formas possíveis de representação da materialidade e
do real, mas sempre outras formalizações representativas de um infinito
impossível de se formalizar como totalidade.
Talvez seja por isso que Féral (2015) afirme que a tensão, na performatividade,
entre o simbólico, a significância estruturada e uma materialidade em resistência
- que pretende fazer oscilar ou destruir essas estruturas, buscando, assim, uma
ação de potências e intensidades outras enquanto escape do signo e da
representação -, sempre retorne, invariavelmente, à representação e a
teatralidade. A performatividade, dessa forma, restaura em seu limite a própria
teatralidade. É na busca dessa ação infinitamente potente, sem significação, de
uma ação que se presentifica, na busca de uma energética da cena baseada em
uma suposta materialidade pura, é que o performativo retorna para a
representação desse infinitamente potente; pois o infinito do real sempre nos
escapa formalmente. A performatividade, ao furar o semblante do teatro e mostrar
sua potência infinita da não-forma, do não-signo, do não-semântico, da não-ficção
terá que, necessariamente, restaurar a teatralidade e a representação em
possibilidades outras. O performativo - na busca de formalizar essa potência
infinita de um teatro puro sem mediação ou semântica - faz emergir outras formas
de representação, mas sempre uma outra representação possível baseada no
desmascaramento do real semblante do teatro. Em outras palavras: na busca da
oscilação e do desmascaramento da representação enquanto semblante, o
performativo gera outra representação, outro semblante.
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É nesse sentido que a desconstrução radical proposta por Artaud para o
teatro, em sua busca de uma fuga completa à representação é utópica. O caminho
de uma construção de um teatro de sonhos, de seu objetivo na construção de
uma presença real sem mediação para a cena; de buscar uma formação
hieroglífica não significante do texto teatral; de procurar o apagamento completo
da repetição; de fomentar a infidelidade radical aos cânones do teatro ocidental;
de suprimir de forma pungente os órgãos de um corpo enquanto desorganização
simbólica e de procurar, ao mesmo tempo, uma formalização radical desse teatro
da crueldade, que Derrida nos diz que, ao promover este fechamento fatal da
representação, Artaud retorne, inexoravelmente, a continuidade da própria
representação (Derrida, 2002, p.177).
Interessante observar que em um dos textos mais lidos de Deleuze e Guattari
no campo das artes cênicas, “Como Criar para si um Corpo-sem-Órgãos” – CsO -
usado para corroborar muitas produções ditas artaudianos e performativas, os
autores nos digam o mesmo quanto a impossibilidade de se chegar a um CsO
puro! Os autores nos colocam logo na primeira página do estudo: “ao corpo sem
órgão não se chega, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (Deleuze, Guattari,
1996, p.9). A criação de um CsO é um conjunto de práticas, um processo que jamais
termina. O CsO é dessubjetivação e desorganização em um limite radical, energia
pura, por isso mesmo, impossível de se chegar a ele. Criar um CsO é gerar um
processo de reformalização, pois jamais se chega a uma forma final possível. É no
processo que essa criação de CsO se dá, ou melhor, a própria busca de criação
desse corpo limite se territorializa um processo de organização e reorganização
em ritornelo. E para isso é preciso prudência, pois se desestruturarmos
grotescamente, morremos e/ou matamos
6
. E CsO não é morte, mas processo de
afirmação de vida em constante reestruturação de si e do outro nos corpos
relacionais formados. O CsO é o real infinito de Badiou, sempre não formalizável,
no qual a forma sempre escapa, está sempre em impasse de formalização. E é
justamente porque a forma escapa no CsO que a possibilidade de “re-forma” é
sempre possível, infinitamente. E mais: nos dizem Deleuze e Guattari que seria
6
Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõe todo um agenciamento,
circuitos, conjunções, superposições e limiares, passagens e distribuições de intensidade, território e
desterritorializações medidas a maneira de um agrimensor (Deleuze, Guattari, 1996, p.22).
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preciso guardar, nesse processo contínuo de criação de um CsO, pequenas
provisões de organismo, subjetividade e significância para “opô-las ao seu próprio
sistema quando as circunstâncias o exigem, quando as coisas, as pessoas,
inclusive as situações no obrigam” (Deleuze, Guattari, 1996, p. 23). O CsO é o real
infinito cindido, divisional do semblante da subjetividade, da significância e do
organismo. O CsO, portanto, não pode jamais ser representado, mas na busca de
furar e desmascarar a representação do semblante de um
Corpo-comrgãos
, se
poderia criar outras formas de vida possíveis, e assim, em processo contínuo, fazer
emergir representações de semblantes outros.
A materialidade como mostra do real, tal como professa a cena performativa,
seria, portanto, no mínimo, uma questão problemática. A materialidade, enquanto
semblante formal simbólico-discursivo e investida pelas malhas de poder,
proporcionaria processo de CsO e dividiria o real ao seu infinito de intensidade se
formalizasse, e por isso, representasse, em sua rede receptiva e tensional da cena,
um recorte possível de semblante outro, crítico e político, que pusesse à mostra
as exclusões históricas de sua própria formação enquanto materialidade. A
corporeidade, em sua materialidade, é discurso, é excludente e, portanto,
gritaria na cena, a priori, um real simbólico, um real semblante, mesmo numa
suposta não-mediação espetacular de um teatro normatizado. Mas acredito que
quando se diz opsis pura, materialidade pura, presentificação de uma corporeidade
sem mediação, para além da óbvia problemática que essa palavra “pura” possa
trazer em seu bojo, se quer entender a materialidade mostrada em seu avesso,
em seu real infinito de exclusões, justamente na mostra da cisão do real
semblante com seu infinito subjacente e imanente. A performatividade, assim
pensada seria uma política da própria materialidade, de seu avesso material à
mostra. O performativo, ao cantar a materialidade como construção privilegiada
de uma real presentificado, sempre necessitará da formalização de seu avesso, de
sua divisão em real semblante e infinito subjacente. Mas se esse avesso é infinito
e não formalizável, a performance deverá lançar mão de formalizações possíveis
(e, portanto, não escapa da representação) para furar o semblante da
materialidade e expor suas contradições, discursos e exclusões.
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E aqui está o ponto fulcral da tensão entre Ramos (2015) e Baumgärtel (2021),
dois pensadores e professores de universidades brasileiras que se debruçam sobre
essa questão de forma crítica. Ramos aposta na formalização dessa opsis pura,
entendida por nós, enquanto mostra tensionada de um avesso da materialidade,
para dizer que a performatividade, ou a mimesis performativa, faz emergir e
oscilar o plano simbólico estruturado que hegemoniza as relações afetivas e
políticas do campo empírico, buscando gerar um sentido que é também não-
senso, como afirma Deleuze em “Lógica do Sentido” (2000). Baumgärtel propõe
que na ação de tensão apoiada pela materialidade posta em articulação cênica,
uma camada hermenêutica de sentido crítico possa vir afirmar e mesmo sublinhar
a mostra dessa tensão em um campo híbrido e de fronteira. Os dois apostam na
materialidade do ato performativo como uma ferramenta cênica singular que faz
oscilar e cindir o real semblante / real infinito, pondo à mostra a economia
simbólica e significativa que hegemoniza o campo afetivo e de sentido. Mas
enquanto Baumgartel propõe uma hibridização hermenêutica com a materialidade
- uma possível materialidade hermenêutica -, Ramos recorre a opsis “pura”, que
entendemos aqui ser uma materialidade as avessas, promovendo a emergência
de sentido crítico a partir da própria materialidade invertida, ou seja, pondo à
mostra suas contradições e exclusões formativas.
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Recebido em: 22/07/2022
Aprovado em: 20/10/2022
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