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Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca do
espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
José Alencar de Melo
Natassia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Para citar este artigo:
MELO, José Alencar de; OLIVEIRA, Natassia Duarte Garcia
Leite de. Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca
do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0110
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Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
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José Alencar de Melo
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Natassia Duarte Garcia Leite de Oliveira
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Resumo
No presente artigo, discorreu-se sobre a montagem do espetáculo de rua
Das
saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho
Pança - um capítulo que poderia ter sido
(2006), uma livre adaptação do
clássico
Dom Quixote de la Mancha
(1605), de Miguel de Cervantes, dirigida
por André Carreira. O objetivo é compreender a ocupação do espaço urbano
enquanto espaço cênico, investigando a rua como possibilidade
dramatúrgica. Para a análise, elencou-se o conceito de teatro de invasão,
proposto por André Carreira, e inaugurou-se a categoria de ‘organiCidade’.
Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o diretor do
espetáculo e os integrantes do grupo Teatro que Roda, as quais puderam
elucidar o processo de criação do coletivo e de composição cênica proposta
para a montagem. Compreende-se que a ocupação deste espaço social
produz múltiplas camadas de significação da, para, com e pela rua e exige
ampliar a noção de espacialidade no campo das Artes da Cena.
Palavras-chave
: Direção de Arte. Espacialidade. OrganiCidade. Teatro de
Invasão. Teatro que Roda.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada
por Ana Paula Ribeiro de Carvalho, graduada
em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em Revisão de Texto e mestra em
Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-GO).
2
Bacharel em Direção de Arte pela Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Diretor de Arte atuante na cidade de Goiânia e no Brasil. kethybelo@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8217280369277167 https://orcid.org/0000-0002-9200-4580
3
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (PPGE/ FE UFG - 2013). Mestra em Arte pela
Universidade de Brasília(PPGA/ IdA/ UnB - 2009). Bacharel em Artes Cênicas, Interpretação Teatral (IdA/ UnB,
2006). Docente efetiva da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac/ UFG),
atuando nos cursos de graduação Teatro’ e ‘Direção de Arte’ e no Programa de Pós-Graduação em Artes da
Cena (PPGAC). natassiagarcia@ufg.br
http://lattes.cnpq.br/2673206479757870 https://orcid.org/0000-0003-1744-2035
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Theater that wheels’ invades the city: Essay about the show Of the
tasty adventures of Dom Quixote…
Abstract
In this article, the staging of the street show “Of the tasty adventures of Dom Quixote
de La Mancha and his squire Sancho Pança a chapter that could have been” (2006)
(
Das saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho
Pança um capítulo que poderia ter sido
) was discoursed, a free adaptation of the
classic
Dom Quixote de la Mancha
(1605), by Miguel de Cervantes, directed by André
Carreira. The objective is to understand the occupation of urban space as a scenic
space, investigating the street as a dramaturgical possibility. For the analysis, the
concept of Invasion Theater, proposed by André Carreira, was listed and the category
of ‘organiCity’ was inaugurated. Therefore, semi-structured interviews were carried
out with the director of the show and the members of the Teatro que Roda group,
which were able to elucidate the process of creating the collective and the scenic
composition proposed for the montage. It is understood that the occupation of this
social space produces multiple layers of meaning of, for, with and through the street
and demands expanding the notion of spatiality in the field of Performing Arts.
Keywords: Art Direction. Spatiality. OrganiCity. Invasion Theater. Theater that Rotates.
Teatro que rueda invade la ciudad: Ensayo acerca del espectáculo
De las Sabrosas Aventuras de Don Quijote...
Resumen
En el siguiente artículo, se discutió sobre el montaje del espectáculo de calle
De las
sabrosas aventuras de Don Quijote de La Mancha y su escudero Sancho Panza
(2006) un capítulo que podría ser
una libre adaptación del clásico Don Quijote de la
Mancha (1605), de Miguel de Cervantes, dirigida por André Carreira. El objetivo es
comprender la ocupación del espacio urbano como espacio escénico, investigando
la calle como posibilidad dramatúrgica. Para el análisis, se expuso el concepto de
teatro de invasión, propuesto por André Carreira, y se introdujo la categoría de
‘OrganiCiudad’. Para esto, fueron realizadas entrevistas semiestructuradas con el
director del espectáculo y los integrantes del grupo Teatro que Rueda, las cuales
permitieron ilustrar el proceso de creación del colectivo y de composición escénica
propuesta para el montaje. Se comprende que la ocupación de este espacio social
produce múltiples camadas de significado de, para, con y por la calle y exige ampliar
la noción de Espacialidad en el campo de las Artes Escénicas.
Palabras claves
: Dirección de arte. Espacialidad. OrganiCiudad. Teatro de invasión.
Teatro que Rueda.
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Devaneios sobre o espaço
Pode-se dizer que o diretor de arte é uma figura advinda do cinema e que,
posteriormente, sua função também foi pensada na televisão, no
design
, no
marketing
e na propaganda. Atualmente, a direção de arte também vem sendo
assimilada pelas áreas das artes cênicas e se constituindo como um campo
específico. Mas, afinal, do que trata a direção de arte? Para Vera Hamburger (2014,
p.18),
[...] quando falamos em Direção de Arte, estamos referindo-nos à
concepção do ambiente plástico de um filme [neste caso, o teatro],
compreendendo que este é composto tanto pelas características formais
o espaço e objetos quanto pela caracterização das figuras em cena. A
partir do roteiro, o diretor de arte baliza as escolhas sobre a arquitetura
e os demais objetos cênicos, delineando e orientando os trabalhos de
cenografia, figurino, maquiagem e efeitos especiais, colabora assim, em
conjunto com o diretor e o diretor de fotografia, na criação de atmosferas
particulares a cada momento do filme e na impressão de significados
visuais que exploram a narrativa.
O diretor de arte, portanto, trabalha com as diversas dimensões da obra,
articulando o espaço da cena, a caracterização, a iluminação, a sonoplastia, entre
outros elementos. Ele também define sua equipe, que pode ser composta por
sonoplastas, fotógrafos, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, de acordo com as
necessidades do projeto.
Neste artigo em formato ensaístico, optou-se, pois, por trabalhar com um
dos elementos que compõe os aspectos da linguagem da encenação teatral e que
permeia a direção de arte: o espaço cênico. Para tanto, foi escolhido um grupo
goiano, Teatro que Roda
4
, para se fazer um estudo de caso acerca da utilização da
espacialidade da/na rua, no ambiente urbano. Perpassando pelo fazer teatral de
rua, faz-se necessário compreender o processo de formação desta, como espaço
cênico, e as implicações socioculturais próprias desse espaço.
4
O grupo Teatro que Roda trabalha, desde 2003, na rua ou em espaços abertos, com temática da cultua
popular de Goiás. O grupo vem investindo em pesquisa e experimentação de linguagens cênicas. Para ver
mais: http://teatroqueroda.blogspot.com
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A relação do teatro com o espaço público é bastante antiga. Desde sua
gênese até nossos dias é corriqueiro presenciar manifestações e apresentações
cênicas individuais ou em grupos, nos mais variados espaços públicos,
predominantemente, no espaço urbano. Em sua origem ocidental, a partir da
história grega, observou-se que o teatro está intrinsecamente atado a dois fatores
determinantes: instrumento de reverência aos deuses e a novas formas de
participação urbana (Moreira, 2011). Cotidianamente, as ações do homem se
ligavam diretamente à vontade divina, individual ou coletivamente. Ao mesmo
tempo, a atmosfera criada pela democracia e a formação da pólis são propícias
ao nascimento do teatro, um teatro ritualista, ora festejando, ora implorando à
vontade divina. As festividades eram uma parcela significativa da vida, fossem os
bons presságios ou uma forma de gratidão e culto. A tragédia e a comédia
evoluíram a partir deste ambiente, e foi na cidade grega que o espaço público
surgiu como local de manifestação dos cidadãos. O teatro grego passou de ritual
a ato público, no mesmo instante em que passou de itinerante, sem um local
preestabelecido, para um ato com lugar determinado na nova ordenação urbana.
Também o teatro medieval não possuía um lugar fixo, definido, para suas
montagens. O desenvolvimento urbano das cidades ocidentais, desde a Idade
Média até os dias atuais, deu às ruas diferentes funções, a partir da necessidade
dos seus moradores e de acordo com o crescimento urbano, por meio do qual o
uso desse espaço gerava uma complexa rede de ligações e relações sociais. Nesse
período, as ruas tinham traçados e tamanhos que privilegiavam o homem como o
principal ocupante desse espaço e estavam organizadas para o pedestre, em seu
caminhar cotidiano. O labiríntico desenho das ruas estava tão integrado à vida das
pessoas de cada comunidade que era totalmente funcional e favorável a esse uso.
Essa relação era alterada quando eventos religiosos transformavam as ruas em
cenário de evocação do sagrado, congregando a atividade cênica às atividades
doutrinárias, pois a igreja católica era a instituição de maior importância nas
atividades da rua e centralizava o poder sobre a realização dos eventos
cerimoniais. Mas, era na vida pagã dos mercados, que o homem comum podia
ingressar nos espetáculos sem hierarquias. Ali, além de atividades comerciais, se
concentravam várias atividades marginais, com regulares apresentações de
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artistas ambulantes. Essas ações eram um contraponto ao espetáculo religioso.
Foi nessa época que surgiram os primeiros grupos de pessoas que se
especializaram nas artes cênicas e passaram a depender, exclusivamente, dessa
atividade para se sustentarem (Moreira, 2011).
A idade moderna viu o nascimento do edifício teatral em suas mais diferentes
formas (currais, elisabetano, italiano). Entre os séculos XV e XVI, iniciou-se o
processo que difundiu o palco italiano como modelo padrão a ser seguido. E,
naquele momento, com a proibição do teatro religioso na rua e da consolidação
dos espaços teatrais fechados, o espetáculo de rua se limitou ao teatro, originado
na tradição de atores mambembes medievais. A modernidade trouxe consigo a
burguesia ao poder, e, por ela, surgiu uma nova conformação social concernente
aos modos de produção capitalista. As cidades mantiveram a estrutura herdada
da Idade Média, mas, ao mesmo tempo, iniciava-se uma nova maneira de se
ocupar o espaço urbano. As ruas, que antes eram uma extensão do espaço
religioso, foram se transformando num ambiente de várias manifestações sociais.
Com o Renascimento, o desenho urbano mudou. O trânsito de veículos
necessitava de ruas mais largas. Surgiram, então, as calçadas e, logo depois, as
grandes avenidas. O homem perdeu o predomínio sobre a rua. A cidade passou a
ser o lugar ideal para que a produção industrial e o comércio em grande escala se
desenvolvessem. Concomitantemente ao desenvolvimento da cidade
renascentista, o fenômeno teatral migrou, da rua, espaço aberto, para o ambiente
enclausurado da sala teatral (Carreira, 2007, p. 203).
Como consequência da afirmação e hierarquização dos âmbitos teatrais
fechados, as diversas formas marginais de teatro de rua começaram a
ocupar a totalidade dos espaços do espetáculo ao ar livre existentes nas
cidades, consolidando a separação entre o teatro culto, que ocupou
exclusivamente as salas, e o teatro popular, que se fez dono das ruas.
De acordo com o autor supracitado, a rua na cidade capitalista
contemporânea é um espaço urbano fragmentado, que se encontra
profundamente articulado, com grandes avenidas e edifícios gigantes, onde seus
diferentes setores estão permanentemente se relacionando. Para ele, o contraste
entre o desenvolvimento tecnológico e as precárias condições de vida de parte da
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população definem uma diversidade cultural típica das grandes urbes, onde o
indivíduo perdeu o direito de ocupar a rua. Esta passou a pertencer ao trânsito de
veículos e teve sua dimensão reordenada, conforme esta nova configuração. Disse,
ainda, que a cidade contemporânea tem suas regras de funcionalidade orientadas
para proporcionar um melhor fluxo dos processos econômicos que geram lucros,
e que as ruas dessa cidade passam a ser um espaço de convivência fugidia e
não têm o mesmo caráter espetacular e religioso.
Em seu livro
Teatro de rua: Brasil e Argentina nos anos 80 - Uma Paixão no
asfalto
, Carreira (2007) articula que o processo de hierarquização espacial pelo
qual passam as cidades dita normas e define alguns espaços como nobres e
outros como marginais, e que, ao enclausurar o espetáculo teatral nas salas,
[...] a cultura capitalista determinou que o espetáculo aceitaria perder seu
caráter de festa e ganharia o valor de mercadoria. Tal mercadoria tem
mais valor nos espaços fechados onde o pagamento de entrada não
somente gera lucro, mas também outorga hierarquia. Neste marco, a
manifestação teatral na rua, ocupa, cada vez mais, um espaço de
marginalidade. A expressão desta marginalidade denuncia a cara
segregacionista do sistema e portanto o questiona, transgredindo assim
as regras do uso espacial da cidade (Carreira, 2007, p.41).
Na observância desse contexto histórico, optamos por conhecer o fazer
teatral do grupo Teatro que Roda, especificamente a partir da observação e
análises bibliográfica, fotográfica e videográfica da montagem do espetáculo
Das
Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança
- um capítulo que poderia ter sido
, dirigido por André Carreira, que estreou em
2006. Uma produção artística encenada em mais de 200 cidades, incluindo duas
apresentações fora do Brasil.
Na ocasião da pesquisa, realizada entre 2014 e 2015, realizou-se: etapa de
levantamento de referências bibliográficas, filmográficas, fotográficas, além de
análises documentais a exemplo, o programa do espetáculo e matérias
publicadas pela imprensa; etapa de investigação empírica, na qual o instrumento
de pesquisa foi a proposta de entrevistas semiestruturadas com alguns dos
integrantes do grupo em questão e com o diretor do espetáculo; e etapa de análise
de dados, cujos resultados se encontram em parte neste trabalho. O objetivo foi
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compreender, por meio de um estudo de caso, aspectos da práxis teatral realizada
em espaços urbanos em nossa contemporaneidade, bem como elucidar alguns de
seus procedimentos metodológicos e resultados estéticos. Para tanto, saímos da
sala fechada e fizemos um giro de retorno à rua.
De volta pra rua
O teatro de rua ou o teatro na rua, ocupando o espaço público, onde
acontecem eventos espetaculares e se desenvolve um fazer teatral provocador e
questionador, opõe-se ao modelo dito teatro convencional, que, dentro de uma
sala, tem seus rituais e mecanismos que podem condicionar o espectador
5
.
Desde a decisão de sair de casa para se dirigir a uma apresentação, o
espectador recebe estímulos que o levam a uma ação: comprar o ingresso, passar
pela catraca, se dirigir a um assento previamente demarcado e ouvir os sinais
sonoros os quais indicam o início do espetáculo, além da abertura das cortinas.
Ao contrário dessa ideia, o teatro com acontecimento na rua, sem essa prévia
interferência, está exposto a várias e diferentes intervenções fortuitas,
características inerentes à dinâmica da rua. Tal dinamismo condicionam o tempo
teatral e provocam um uso próprio das linguagens do espetáculo (Carreira, 2007),
originando uma ruptura na convenção do espaço do espectador e do espaço
cênico (Pasmadjian, 1998). A rua é espaço o qual fomenta a dispersão tanto do
público quanto dos atores por meio de ruídos e de acontecimentos múltiplos.
Enquanto na sala teatral o espectador tem uma melhor e mais detalhada recepção
do espetáculo, isso não acontece na rua, pois esta é um espaço de profusão de
sons e de agitação imprevista, que perpassa vigorosamente pela elaboração da
cena, interferindo na articulação das linguagens do espetáculo e nos
procedimentos técnicos do ator (Carreira, 2007). Neste sentido, para Carreira, “o
teatro de rua é uma forma espetacular que nasce do assalto à silhueta urbana. A
silhueta urbana diz respeito aos aspectos físicos da cidade, mas também, e
principalmente ao complexo de relações sociais que nascem do uso desse
5
Para Ulisses Pasmadjian (1998), o palco à italiana é exemplo de espaço convencional, pois separa o espaço
cênico do espaço do espectador e “pode” levar o espectador a um condicionamento.
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espaço” (Carreira, 2001, p.144).
Diante disso, propôs-se discutir a ocupação desses espaços urbanos onde as
pessoas transitam cotidianamente, transformando e ressignificando esses
espaços públicos, provocando uma quebra no uso diário da rua. Essa ocupação
tem a capacidade de reinventar uma outra percepção desse espaço,
transformando meros passantes em espectadores. Para isso, analisou-se o
trabalho desenvolvido pelo grupo Teatro que Roda
, Das Saborosas Aventuras de
Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança - um capítulo que
poderia ter sido
, uma adaptação livre do clássico de Miguel de Cervantes que
estreou em julho de 2006, com o objetivo de se compreender e analisar a
ocupação desses espaços fora das salas teatrais ditas convencionais.
Ao traçar uma possível gênese do grupo Teatro que Roda, descobriu-se que
o coletivo se originou no ano 2001, mas esse nome foi adotado dois anos depois.
Nessa época, Marcelo Carneiro
6
, proprietário da agência Arte Brasil (Goiânia/ GO),
estava iniciando o agenciamento de projetos culturais e recebeu um convite para
apresentar espetáculos sob encomenda para empresas e instituições. Por esse
motivo, convidou também para o trabalho alguns artistas, dentre eles o ator
Dionísio Bombinha e a atriz Liz Eliodoraz, que já tinham trabalhado com o diretor
Marcos Fayad
7
e apresentavam certa sintonia. Segundo Dionísio Bombinha, o
processo foi bastante interessante, pois o projeto se ampliou e, com isso,
conseguiram montar cerca de cinco espetáculos encomendados. Até então, a rua
ainda não era vista como forma de expressão, nem como espaço possível de se
criar o jogo
8
relacional num espaço inóspito, de ser usado dramaturgicamente. Mas
a semente estava plantada, porque o coletivo tinha feito um trabalho
experimental, o
Telegrama Animado
(2001), onde um personagem fazia uma
surpresa em festas de qualquer tipo e tinha que criar algo em cima de uma
encomenda. Tratava-se de um esquete, em que um garçom servia numa festa e
6
Marcelo Carneiro é graduado em Economia, pela UCG, e tem, em sua formação, diversos cursos empresariais
e culturais. Trabalha com as leis de incentivo cultural, na elaboração de projetos, consultoria e captação de
recursos.
7
Marcos Fayad (Catalão/GO) é ator e diretor.
8
O jogo foi definido por Duvignaud (1982, p. 41 e 35 apud Carreira, 2001, p.146) “como uma atividade sem
objetivos conscientes, um estado de disponibilidade que foge a toda intenção utilitária [...] livre e sem regras
“neste estado de ruptura do ser individual ou social, no qual a única coisa que não se questiona é a arte”.
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de repente se transformava em um homossexual que, supostamente, tinha tido
um caso com o aniversariante. Isso criava uma surpresa, um clima tenso, mas era
um momento de muito improviso. Posteriormente, surgiu a ideia de se montar um
espetáculo de rua, a partir desse núcleo de investigação.
O grupo se firmou como tal em fevereiro de 2003, após a montagem do
espetáculo de rua
A Formiga da Roça
(2002). O espetáculo contava a história de
uma formiga arteira, cuja mãe a deixou de castigo num local onde quem entrava
estava condenado a viver para sempre e a não crescer mais, uma experimentação
de criação e direção coletiva baseada na cultura popular. Era um espetáculo para
a rua, que contava com um palco onde as pessoas ficavam em volta, em círculo,
e tinha a cantiga de roda como principal elemento. Contava com a participação do
público em vários momentos do espetáculo, com abertura para quem quisesse
participar ou não. Essa foi a primeira experiência do grupo com a rua e, somente
a partir de outubro do mesmo ano, o grupo adotou o nome de Teatro que Roda. O
nome surgiu da mistura do estilo adotado no primeiro espetáculo de rua, em
formato de roda, com o firme propósito de pesquisar e realizar um teatro
multifacetado, com base nas tradições e narrativas populares. O primeiro trabalho,
juntamente com a intenção de rodar o país, fez com que o nome adotado, além
do sentido lúdico, assumisse seu sentido dinâmico e se colocasse em movimento.
Em novembro 2003, mantendo sua linha de pesquisa, o grupo Teatro que Roda
criou seu segundo trabalho, Foliando (2003), um show caipira, baseado na cultura
popular goiana, que explorava elementos da Folia de Reis, das congadas, da catira,
dos textos de humor, além de resgatar músicas caipiras de raiz.
Em 2004, somente Dionísio Bombinha e a atriz Liz Eliodoraz permaneceram
no grupo e, por algum tempo, fizeram esse espetáculo com atores convidados.
Entretanto, a vontade de experimentar a rua de maneira mais decisiva continuava,
pois os dois atores sempre gostaram do contato direto com o público e do
improviso como impulso para seus trabalhos. Durante esse período, montaram
outros pequenos espetáculos que ainda tinham a cultura popular como base do
seu trabalho. Ainda durante o ano de 2004, o grupo passou por uma mudança que
marcou de forma decisiva o trabalho do Teatro que Roda. Em uma oficina teórica
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sobre teatro de rua, conheceram o diretor Carreira
9
que, na oportunidade,
participava do festival “Goiânia em Cena”
10
e fazia uma palestra cujo tema era o
tipo de teatro que ocupava a cidade, a rua, mas que não era relacionado ao
popular. Segundo Liz Eliodoraz (2015, s/p), foi um momento de encantamento, de
profundas mudanças no grupo, pois, até então, o conhecimento e o uso da rua
como espaço de representação eram quase nada.
A relação dos dois atores com Carreira, que surgiu a partir da discussão se o
teatro na cidade era necessariamente um teatro popular ou não, evoluiu para uma
oficina, que posteriormente deu origem a um projeto de encenação na cidade. O
desejo de experimentar a pesquisa do diretor sobre ‘teatro de invasão’ levou o
grupo a convidá-lo para dirigir o espetáculo
Das saborosas aventuras de Dom
Quixote de La Mancha e seu fiel Escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia
ter sido
(2006)
11
.
O espetáculo é uma adaptação da obra
El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de
La Mancha
ou
Dom Quixote de La Manch
a, do escritor espanhol Miguel de
Cervantes (1547-1616). Publicado em Madri, no ano de 1605, durante a Renascença
Espanhola, período no qual se destacaram as mudanças produzidas nos aspetos
econômico, político e social, o livro surgiu em um período de grande inovação e
diversidade por parte dos escritores ficcionistas espanhóis. Parodiou os romances
de cavalaria que gozavam de imensa popularidade no período e, na altura, se
encontravam em declínio. Nesta obra, o protagonista é um ingênuo senhor rural
que tem, como passatempo preferido, a leitura de textos sobre cavalaria e, em
sua obsessão, acreditava firmemente nas aventuras escritas e decidiu tornar-se
um cavaleiro andante. Em sua alucinação, tinha a certeza de que vivia na era das
cavalarias, que as pessoas que encontrava pelo caminho eram cavaleiros com
armas em punho, damas em apuros, gigantes, monstros, e muitas vezes não via a
9
André Luiz Antunes Netto Carreira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais (1960). É graduado em Artes
Plásticas pela Universidade de Brasília (1983), doutor em teatro pela Universidad de Buenos Aires (1994), com
a tese
Teatro de Rua na Argentina e no Brasil democráticos dos anos 80: uma paixão no asfalto, estudioso
do teatro de rua e de grupo na América Latina
. Professor na graduação em Teatro e na Pós-graduação em
Artes cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
10
GOIÂNIA EM CENA Festival Internacional de Artes Cênicas que acontece regularmente em Goiânia 12
anos.
11
Este espetáculo estreou em 2006 e participou de diversos festivais em vários estados. Aconteceram cerca
de 200 apresentações em diversas cidades brasileiras.
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realidade, senão o que inventava sua fantasia. Tal imaginação o fazia crer que
moinhos de vento eram seres vivos contra os quais era necessário lutar. Como
todo cavaleiro que se preza, era preciso ter um fiel escudeiro. Sancho Pança, que
nada sabia de cavalaria, pois era um rude lavrador, concordou em seguir o seu
alucinado vizinho, o qual o prometera lhe tornar dono de uma ilha. Assim, por
interesse, e não por idealismo, levado por seu amo, se entregou à aventura,
preferindo o sonho à trivialidade do real. Dom Quixote e Sancho encarnaram o
choque entre as duas formas de ver o mundo: a fantasia e a realidade.
Essa obra surgiu em nossa mente, em função da estátua do Bandeirante
12
,
que durante o processo da oficina do André a gente escolheu aquele
ambiente e, como ele diz você esse vão depois disso a gente vai pensar
um texto para ele. Então, aquela figura gigantesca, lembrou esses
gigantes malucos como personagem Dom Quixote vê. Foi um trabalho
intenso, porque é um texto literário e nós tivemos que adaptá-lo e
roteirizá-lo para o teatro, pensar como seriam os diálogos, pois a ideia
era que o espetáculo não fosse um espetáculo da época em que foi
escrito, mas um espetáculo trazido para a modernidade da cidade de
agora (Bombinha, 2014, s/p).
Durante essa pesquisa, nos foi fornecida a
Gazeta Cervantina
(Teatro que
Roda, 2006), um informativo produzido pelo grupo para a divulgação do
espetáculo. A partir desses dados de pesquisa, pode-se entender que foram
escolhidos cinco episódios fundamentais da obra de Miguel de Cervantes, e a
adaptação foi pensada com o entendimento de que Dom Quixote representava
algo mais que o arquétipo da loucura, pois o personagem carregava em si a
determinação de enfrentar um mundo linear, que pedia atos grandiosos. “Foi um
processo de pensar qual tipo de personagem seria, ao invés de ser um fazendeiro
como era Dom Quixote, ao invés de ser um agregado da fazenda, ia ser uma
personagem da rua” (Bombinha, 2014, s/p).
12
O Monumento ao Bandeirante, símbolo da praça, é uma escultura em bronze, com três metros e meio de
altura, e retrata o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, em corpo inteiro, tendo nas mãos uma bateia e
armado de bacamarte. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_At%C3%ADlio_Correia_Lima. Acesso em: 22 fev. 2016.