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Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca do
espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
José Alencar de Melo
Natassia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Para citar este artigo:
MELO, José Alencar de; OLIVEIRA, Natassia Duarte Garcia
Leite de. Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca
do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0110
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Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
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José Alencar de Melo
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Natassia Duarte Garcia Leite de Oliveira
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Resumo
No presente artigo, discorreu-se sobre a montagem do espetáculo de rua
Das
saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho
Pança - um capítulo que poderia ter sido
(2006), uma livre adaptação do
clássico
Dom Quixote de la Mancha
(1605), de Miguel de Cervantes, dirigida
por André Carreira. O objetivo é compreender a ocupação do espaço urbano
enquanto espaço cênico, investigando a rua como possibilidade
dramatúrgica. Para a análise, elencou-se o conceito de teatro de invasão,
proposto por André Carreira, e inaugurou-se a categoria de ‘organiCidade’.
Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com o diretor do
espetáculo e os integrantes do grupo Teatro que Roda, as quais puderam
elucidar o processo de criação do coletivo e de composição cênica proposta
para a montagem. Compreende-se que a ocupação deste espaço social
produz múltiplas camadas de significação da, para, com e pela rua e exige
ampliar a noção de espacialidade no campo das Artes da Cena.
Palavras-chave
: Direção de Arte. Espacialidade. OrganiCidade. Teatro de
Invasão. Teatro que Roda.
1
Revisão ortográfica, gramatical e contextual do artigo realizada
por Ana Paula Ribeiro de Carvalho, graduada
em Letras pela Universidade Federal de Goiás (UFG), especialista em Revisão de Texto e mestra em
Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica (PUC-GO).
2
Bacharel em Direção de Arte pela Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (UFG).
Diretor de Arte atuante na cidade de Goiânia e no Brasil. kethybelo@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/8217280369277167 https://orcid.org/0000-0002-9200-4580
3
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás (PPGE/ FE UFG - 2013). Mestra em Arte pela
Universidade de Brasília(PPGA/ IdA/ UnB - 2009). Bacharel em Artes Cênicas, Interpretação Teatral (IdA/ UnB,
2006). Docente efetiva da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás (Emac/ UFG),
atuando nos cursos de graduação Teatro’ e ‘Direção de Arte’ e no Programa de Pós-Graduação em Artes da
Cena (PPGAC). natassiagarcia@ufg.br
http://lattes.cnpq.br/2673206479757870 https://orcid.org/0000-0003-1744-2035
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Theater that wheels’ invades the city: Essay about the show Of the
tasty adventures of Dom Quixote…
Abstract
In this article, the staging of the street show “Of the tasty adventures of Dom Quixote
de La Mancha and his squire Sancho Pança a chapter that could have been” (2006)
(
Das saborosas aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho
Pança um capítulo que poderia ter sido
) was discoursed, a free adaptation of the
classic
Dom Quixote de la Mancha
(1605), by Miguel de Cervantes, directed by André
Carreira. The objective is to understand the occupation of urban space as a scenic
space, investigating the street as a dramaturgical possibility. For the analysis, the
concept of Invasion Theater, proposed by André Carreira, was listed and the category
of ‘organiCity’ was inaugurated. Therefore, semi-structured interviews were carried
out with the director of the show and the members of the Teatro que Roda group,
which were able to elucidate the process of creating the collective and the scenic
composition proposed for the montage. It is understood that the occupation of this
social space produces multiple layers of meaning of, for, with and through the street
and demands expanding the notion of spatiality in the field of Performing Arts.
Keywords: Art Direction. Spatiality. OrganiCity. Invasion Theater. Theater that Rotates.
Teatro que rueda invade la ciudad: Ensayo acerca del espectáculo
De las Sabrosas Aventuras de Don Quijote...
Resumen
En el siguiente artículo, se discutió sobre el montaje del espectáculo de calle
De las
sabrosas aventuras de Don Quijote de La Mancha y su escudero Sancho Panza
(2006) un capítulo que podría ser
una libre adaptación del clásico Don Quijote de la
Mancha (1605), de Miguel de Cervantes, dirigida por André Carreira. El objetivo es
comprender la ocupación del espacio urbano como espacio escénico, investigando
la calle como posibilidad dramatúrgica. Para el análisis, se expuso el concepto de
teatro de invasión, propuesto por André Carreira, y se introdujo la categoría de
‘OrganiCiudad’. Para esto, fueron realizadas entrevistas semiestructuradas con el
director del espectáculo y los integrantes del grupo Teatro que Rueda, las cuales
permitieron ilustrar el proceso de creación del colectivo y de composición escénica
propuesta para el montaje. Se comprende que la ocupación de este espacio social
produce múltiples camadas de significado de, para, con y por la calle y exige ampliar
la noción de Espacialidad en el campo de las Artes Escénicas.
Palabras claves
: Dirección de arte. Espacialidad. OrganiCiudad. Teatro de invasión.
Teatro que Rueda.
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Devaneios sobre o espaço
Pode-se dizer que o diretor de arte é uma figura advinda do cinema e que,
posteriormente, sua função também foi pensada na televisão, no
design
, no
marketing
e na propaganda. Atualmente, a direção de arte também vem sendo
assimilada pelas áreas das artes cênicas e se constituindo como um campo
específico. Mas, afinal, do que trata a direção de arte? Para Vera Hamburger (2014,
p.18),
[...] quando falamos em Direção de Arte, estamos referindo-nos à
concepção do ambiente plástico de um filme [neste caso, o teatro],
compreendendo que este é composto tanto pelas características formais
o espaço e objetos quanto pela caracterização das figuras em cena. A
partir do roteiro, o diretor de arte baliza as escolhas sobre a arquitetura
e os demais objetos cênicos, delineando e orientando os trabalhos de
cenografia, figurino, maquiagem e efeitos especiais, colabora assim, em
conjunto com o diretor e o diretor de fotografia, na criação de atmosferas
particulares a cada momento do filme e na impressão de significados
visuais que exploram a narrativa.
O diretor de arte, portanto, trabalha com as diversas dimensões da obra,
articulando o espaço da cena, a caracterização, a iluminação, a sonoplastia, entre
outros elementos. Ele também define sua equipe, que pode ser composta por
sonoplastas, fotógrafos, cenógrafos, figurinistas, maquiadores, de acordo com as
necessidades do projeto.
Neste artigo em formato ensaístico, optou-se, pois, por trabalhar com um
dos elementos que compõe os aspectos da linguagem da encenação teatral e que
permeia a direção de arte: o espaço cênico. Para tanto, foi escolhido um grupo
goiano, Teatro que Roda
4
, para se fazer um estudo de caso acerca da utilização da
espacialidade da/na rua, no ambiente urbano. Perpassando pelo fazer teatral de
rua, faz-se necessário compreender o processo de formação desta, como espaço
cênico, e as implicações socioculturais próprias desse espaço.
4
O grupo Teatro que Roda trabalha, desde 2003, na rua ou em espaços abertos, com temática da cultua
popular de Goiás. O grupo vem investindo em pesquisa e experimentação de linguagens cênicas. Para ver
mais: http://teatroqueroda.blogspot.com
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A relação do teatro com o espaço público é bastante antiga. Desde sua
gênese até nossos dias é corriqueiro presenciar manifestações e apresentações
cênicas individuais ou em grupos, nos mais variados espaços públicos,
predominantemente, no espaço urbano. Em sua origem ocidental, a partir da
história grega, observou-se que o teatro está intrinsecamente atado a dois fatores
determinantes: instrumento de reverência aos deuses e a novas formas de
participação urbana (Moreira, 2011). Cotidianamente, as ações do homem se
ligavam diretamente à vontade divina, individual ou coletivamente. Ao mesmo
tempo, a atmosfera criada pela democracia e a formação da pólis são propícias
ao nascimento do teatro, um teatro ritualista, ora festejando, ora implorando à
vontade divina. As festividades eram uma parcela significativa da vida, fossem os
bons presságios ou uma forma de gratidão e culto. A tragédia e a comédia
evoluíram a partir deste ambiente, e foi na cidade grega que o espaço público
surgiu como local de manifestação dos cidadãos. O teatro grego passou de ritual
a ato público, no mesmo instante em que passou de itinerante, sem um local
preestabelecido, para um ato com lugar determinado na nova ordenação urbana.
Também o teatro medieval não possuía um lugar fixo, definido, para suas
montagens. O desenvolvimento urbano das cidades ocidentais, desde a Idade
Média até os dias atuais, deu às ruas diferentes funções, a partir da necessidade
dos seus moradores e de acordo com o crescimento urbano, por meio do qual o
uso desse espaço gerava uma complexa rede de ligações e relações sociais. Nesse
período, as ruas tinham traçados e tamanhos que privilegiavam o homem como o
principal ocupante desse espaço e estavam organizadas para o pedestre, em seu
caminhar cotidiano. O labiríntico desenho das ruas estava tão integrado à vida das
pessoas de cada comunidade que era totalmente funcional e favorável a esse uso.
Essa relação era alterada quando eventos religiosos transformavam as ruas em
cenário de evocação do sagrado, congregando a atividade cênica às atividades
doutrinárias, pois a igreja católica era a instituição de maior importância nas
atividades da rua e centralizava o poder sobre a realização dos eventos
cerimoniais. Mas, era na vida pagã dos mercados, que o homem comum podia
ingressar nos espetáculos sem hierarquias. Ali, além de atividades comerciais, se
concentravam várias atividades marginais, com regulares apresentações de
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artistas ambulantes. Essas ações eram um contraponto ao espetáculo religioso.
Foi nessa época que surgiram os primeiros grupos de pessoas que se
especializaram nas artes cênicas e passaram a depender, exclusivamente, dessa
atividade para se sustentarem (Moreira, 2011).
A idade moderna viu o nascimento do edifício teatral em suas mais diferentes
formas (currais, elisabetano, italiano). Entre os séculos XV e XVI, iniciou-se o
processo que difundiu o palco italiano como modelo padrão a ser seguido. E,
naquele momento, com a proibição do teatro religioso na rua e da consolidação
dos espaços teatrais fechados, o espetáculo de rua se limitou ao teatro, originado
na tradição de atores mambembes medievais. A modernidade trouxe consigo a
burguesia ao poder, e, por ela, surgiu uma nova conformação social concernente
aos modos de produção capitalista. As cidades mantiveram a estrutura herdada
da Idade Média, mas, ao mesmo tempo, iniciava-se uma nova maneira de se
ocupar o espaço urbano. As ruas, que antes eram uma extensão do espaço
religioso, foram se transformando num ambiente de várias manifestações sociais.
Com o Renascimento, o desenho urbano mudou. O trânsito de veículos
necessitava de ruas mais largas. Surgiram, então, as calçadas e, logo depois, as
grandes avenidas. O homem perdeu o predomínio sobre a rua. A cidade passou a
ser o lugar ideal para que a produção industrial e o comércio em grande escala se
desenvolvessem. Concomitantemente ao desenvolvimento da cidade
renascentista, o fenômeno teatral migrou, da rua, espaço aberto, para o ambiente
enclausurado da sala teatral (Carreira, 2007, p. 203).
Como consequência da afirmação e hierarquização dos âmbitos teatrais
fechados, as diversas formas marginais de teatro de rua começaram a
ocupar a totalidade dos espaços do espetáculo ao ar livre existentes nas
cidades, consolidando a separação entre o teatro culto, que ocupou
exclusivamente as salas, e o teatro popular, que se fez dono das ruas.
De acordo com o autor supracitado, a rua na cidade capitalista
contemporânea é um espaço urbano fragmentado, que se encontra
profundamente articulado, com grandes avenidas e edifícios gigantes, onde seus
diferentes setores estão permanentemente se relacionando. Para ele, o contraste
entre o desenvolvimento tecnológico e as precárias condições de vida de parte da
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população definem uma diversidade cultural típica das grandes urbes, onde o
indivíduo perdeu o direito de ocupar a rua. Esta passou a pertencer ao trânsito de
veículos e teve sua dimensão reordenada, conforme esta nova configuração. Disse,
ainda, que a cidade contemporânea tem suas regras de funcionalidade orientadas
para proporcionar um melhor fluxo dos processos econômicos que geram lucros,
e que as ruas dessa cidade passam a ser um espaço de convivência fugidia e
não têm o mesmo caráter espetacular e religioso.
Em seu livro
Teatro de rua: Brasil e Argentina nos anos 80 - Uma Paixão no
asfalto
, Carreira (2007) articula que o processo de hierarquização espacial pelo
qual passam as cidades dita normas e define alguns espaços como nobres e
outros como marginais, e que, ao enclausurar o espetáculo teatral nas salas,
[...] a cultura capitalista determinou que o espetáculo aceitaria perder seu
caráter de festa e ganharia o valor de mercadoria. Tal mercadoria tem
mais valor nos espaços fechados onde o pagamento de entrada não
somente gera lucro, mas também outorga hierarquia. Neste marco, a
manifestação teatral na rua, ocupa, cada vez mais, um espaço de
marginalidade. A expressão desta marginalidade denuncia a cara
segregacionista do sistema e portanto o questiona, transgredindo assim
as regras do uso espacial da cidade (Carreira, 2007, p.41).
Na observância desse contexto histórico, optamos por conhecer o fazer
teatral do grupo Teatro que Roda, especificamente a partir da observação e
análises bibliográfica, fotográfica e videográfica da montagem do espetáculo
Das
Saborosas Aventuras de Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança
- um capítulo que poderia ter sido
, dirigido por André Carreira, que estreou em
2006. Uma produção artística encenada em mais de 200 cidades, incluindo duas
apresentações fora do Brasil.
Na ocasião da pesquisa, realizada entre 2014 e 2015, realizou-se: etapa de
levantamento de referências bibliográficas, filmográficas, fotográficas, além de
análises documentais a exemplo, o programa do espetáculo e matérias
publicadas pela imprensa; etapa de investigação empírica, na qual o instrumento
de pesquisa foi a proposta de entrevistas semiestruturadas com alguns dos
integrantes do grupo em questão e com o diretor do espetáculo; e etapa de análise
de dados, cujos resultados se encontram em parte neste trabalho. O objetivo foi
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compreender, por meio de um estudo de caso, aspectos da práxis teatral realizada
em espaços urbanos em nossa contemporaneidade, bem como elucidar alguns de
seus procedimentos metodológicos e resultados estéticos. Para tanto, saímos da
sala fechada e fizemos um giro de retorno à rua.
De volta pra rua
O teatro de rua ou o teatro na rua, ocupando o espaço público, onde
acontecem eventos espetaculares e se desenvolve um fazer teatral provocador e
questionador, opõe-se ao modelo dito teatro convencional, que, dentro de uma
sala, tem seus rituais e mecanismos que podem condicionar o espectador
5
.
Desde a decisão de sair de casa para se dirigir a uma apresentação, o
espectador recebe estímulos que o levam a uma ação: comprar o ingresso, passar
pela catraca, se dirigir a um assento previamente demarcado e ouvir os sinais
sonoros os quais indicam o início do espetáculo, além da abertura das cortinas.
Ao contrário dessa ideia, o teatro com acontecimento na rua, sem essa prévia
interferência, está exposto a várias e diferentes intervenções fortuitas,
características inerentes à dinâmica da rua. Tal dinamismo condicionam o tempo
teatral e provocam um uso próprio das linguagens do espetáculo (Carreira, 2007),
originando uma ruptura na convenção do espaço do espectador e do espaço
cênico (Pasmadjian, 1998). A rua é espaço o qual fomenta a dispersão tanto do
público quanto dos atores por meio de ruídos e de acontecimentos múltiplos.
Enquanto na sala teatral o espectador tem uma melhor e mais detalhada recepção
do espetáculo, isso não acontece na rua, pois esta é um espaço de profusão de
sons e de agitação imprevista, que perpassa vigorosamente pela elaboração da
cena, interferindo na articulação das linguagens do espetáculo e nos
procedimentos técnicos do ator (Carreira, 2007). Neste sentido, para Carreira, “o
teatro de rua é uma forma espetacular que nasce do assalto à silhueta urbana. A
silhueta urbana diz respeito aos aspectos físicos da cidade, mas também, e
principalmente ao complexo de relações sociais que nascem do uso desse
5
Para Ulisses Pasmadjian (1998), o palco à italiana é exemplo de espaço convencional, pois separa o espaço
cênico do espaço do espectador e “pode” levar o espectador a um condicionamento.
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espaço” (Carreira, 2001, p.144).
Diante disso, propôs-se discutir a ocupação desses espaços urbanos onde as
pessoas transitam cotidianamente, transformando e ressignificando esses
espaços públicos, provocando uma quebra no uso diário da rua. Essa ocupação
tem a capacidade de reinventar uma outra percepção desse espaço,
transformando meros passantes em espectadores. Para isso, analisou-se o
trabalho desenvolvido pelo grupo Teatro que Roda
, Das Saborosas Aventuras de
Dom Quixote de La Mancha e seu escudeiro Sancho Pança - um capítulo que
poderia ter sido
, uma adaptação livre do clássico de Miguel de Cervantes que
estreou em julho de 2006, com o objetivo de se compreender e analisar a
ocupação desses espaços fora das salas teatrais ditas convencionais.
Ao traçar uma possível gênese do grupo Teatro que Roda, descobriu-se que
o coletivo se originou no ano 2001, mas esse nome foi adotado dois anos depois.
Nessa época, Marcelo Carneiro
6
, proprietário da agência Arte Brasil (Goiânia/ GO),
estava iniciando o agenciamento de projetos culturais e recebeu um convite para
apresentar espetáculos sob encomenda para empresas e instituições. Por esse
motivo, convidou também para o trabalho alguns artistas, dentre eles o ator
Dionísio Bombinha e a atriz Liz Eliodoraz, que já tinham trabalhado com o diretor
Marcos Fayad
7
e apresentavam certa sintonia. Segundo Dionísio Bombinha, o
processo foi bastante interessante, pois o projeto se ampliou e, com isso,
conseguiram montar cerca de cinco espetáculos encomendados. Até então, a rua
ainda não era vista como forma de expressão, nem como espaço possível de se
criar o jogo
8
relacional num espaço inóspito, de ser usado dramaturgicamente. Mas
a semente estava plantada, porque o coletivo tinha feito um trabalho
experimental, o
Telegrama Animado
(2001), onde um personagem fazia uma
surpresa em festas de qualquer tipo e tinha que criar algo em cima de uma
encomenda. Tratava-se de um esquete, em que um garçom servia numa festa e
6
Marcelo Carneiro é graduado em Economia, pela UCG, e tem, em sua formação, diversos cursos empresariais
e culturais. Trabalha com as leis de incentivo cultural, na elaboração de projetos, consultoria e captação de
recursos.
7
Marcos Fayad (Catalão/GO) é ator e diretor.
8
O jogo foi definido por Duvignaud (1982, p. 41 e 35 apud Carreira, 2001, p.146) “como uma atividade sem
objetivos conscientes, um estado de disponibilidade que foge a toda intenção utilitária [...] livre e sem regras
“neste estado de ruptura do ser individual ou social, no qual a única coisa que não se questiona é a arte”.
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de repente se transformava em um homossexual que, supostamente, tinha tido
um caso com o aniversariante. Isso criava uma surpresa, um clima tenso, mas era
um momento de muito improviso. Posteriormente, surgiu a ideia de se montar um
espetáculo de rua, a partir desse núcleo de investigação.
O grupo se firmou como tal em fevereiro de 2003, após a montagem do
espetáculo de rua
A Formiga da Roça
(2002). O espetáculo contava a história de
uma formiga arteira, cuja mãe a deixou de castigo num local onde quem entrava
estava condenado a viver para sempre e a não crescer mais, uma experimentação
de criação e direção coletiva baseada na cultura popular. Era um espetáculo para
a rua, que contava com um palco onde as pessoas ficavam em volta, em círculo,
e tinha a cantiga de roda como principal elemento. Contava com a participação do
público em vários momentos do espetáculo, com abertura para quem quisesse
participar ou não. Essa foi a primeira experiência do grupo com a rua e, somente
a partir de outubro do mesmo ano, o grupo adotou o nome de Teatro que Roda. O
nome surgiu da mistura do estilo adotado no primeiro espetáculo de rua, em
formato de roda, com o firme propósito de pesquisar e realizar um teatro
multifacetado, com base nas tradições e narrativas populares. O primeiro trabalho,
juntamente com a intenção de rodar o país, fez com que o nome adotado, além
do sentido lúdico, assumisse seu sentido dinâmico e se colocasse em movimento.
Em novembro 2003, mantendo sua linha de pesquisa, o grupo Teatro que Roda
criou seu segundo trabalho, Foliando (2003), um show caipira, baseado na cultura
popular goiana, que explorava elementos da Folia de Reis, das congadas, da catira,
dos textos de humor, além de resgatar músicas caipiras de raiz.
Em 2004, somente Dionísio Bombinha e a atriz Liz Eliodoraz permaneceram
no grupo e, por algum tempo, fizeram esse espetáculo com atores convidados.
Entretanto, a vontade de experimentar a rua de maneira mais decisiva continuava,
pois os dois atores sempre gostaram do contato direto com o público e do
improviso como impulso para seus trabalhos. Durante esse período, montaram
outros pequenos espetáculos que ainda tinham a cultura popular como base do
seu trabalho. Ainda durante o ano de 2004, o grupo passou por uma mudança que
marcou de forma decisiva o trabalho do Teatro que Roda. Em uma oficina teórica
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sobre teatro de rua, conheceram o diretor Carreira
9
que, na oportunidade,
participava do festival “Goiânia em Cena”
10
e fazia uma palestra cujo tema era o
tipo de teatro que ocupava a cidade, a rua, mas que não era relacionado ao
popular. Segundo Liz Eliodoraz (2015, s/p), foi um momento de encantamento, de
profundas mudanças no grupo, pois, até então, o conhecimento e o uso da rua
como espaço de representação eram quase nada.
A relação dos dois atores com Carreira, que surgiu a partir da discussão se o
teatro na cidade era necessariamente um teatro popular ou não, evoluiu para uma
oficina, que posteriormente deu origem a um projeto de encenação na cidade. O
desejo de experimentar a pesquisa do diretor sobre ‘teatro de invasão’ levou o
grupo a convidá-lo para dirigir o espetáculo
Das saborosas aventuras de Dom
Quixote de La Mancha e seu fiel Escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia
ter sido
(2006)
11
.
O espetáculo é uma adaptação da obra
El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de
La Mancha
ou
Dom Quixote de La Manch
a, do escritor espanhol Miguel de
Cervantes (1547-1616). Publicado em Madri, no ano de 1605, durante a Renascença
Espanhola, período no qual se destacaram as mudanças produzidas nos aspetos
econômico, político e social, o livro surgiu em um período de grande inovação e
diversidade por parte dos escritores ficcionistas espanhóis. Parodiou os romances
de cavalaria que gozavam de imensa popularidade no período e, na altura, se
encontravam em declínio. Nesta obra, o protagonista é um ingênuo senhor rural
que tem, como passatempo preferido, a leitura de textos sobre cavalaria e, em
sua obsessão, acreditava firmemente nas aventuras escritas e decidiu tornar-se
um cavaleiro andante. Em sua alucinação, tinha a certeza de que vivia na era das
cavalarias, que as pessoas que encontrava pelo caminho eram cavaleiros com
armas em punho, damas em apuros, gigantes, monstros, e muitas vezes não via a
9
André Luiz Antunes Netto Carreira nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais (1960). É graduado em Artes
Plásticas pela Universidade de Brasília (1983), doutor em teatro pela Universidad de Buenos Aires (1994), com
a tese
Teatro de Rua na Argentina e no Brasil democráticos dos anos 80: uma paixão no asfalto, estudioso
do teatro de rua e de grupo na América Latina
. Professor na graduação em Teatro e na Pós-graduação em
Artes cênicas na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
10
GOIÂNIA EM CENA Festival Internacional de Artes Cênicas que acontece regularmente em Goiânia 12
anos.
11
Este espetáculo estreou em 2006 e participou de diversos festivais em vários estados. Aconteceram cerca
de 200 apresentações em diversas cidades brasileiras.
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realidade, senão o que inventava sua fantasia. Tal imaginação o fazia crer que
moinhos de vento eram seres vivos contra os quais era necessário lutar. Como
todo cavaleiro que se preza, era preciso ter um fiel escudeiro. Sancho Pança, que
nada sabia de cavalaria, pois era um rude lavrador, concordou em seguir o seu
alucinado vizinho, o qual o prometera lhe tornar dono de uma ilha. Assim, por
interesse, e não por idealismo, levado por seu amo, se entregou à aventura,
preferindo o sonho à trivialidade do real. Dom Quixote e Sancho encarnaram o
choque entre as duas formas de ver o mundo: a fantasia e a realidade.
Essa obra surgiu em nossa mente, em função da estátua do Bandeirante
12
,
que durante o processo da oficina do André a gente escolheu aquele
ambiente e, como ele diz você esse vão depois disso a gente vai pensar
um texto para ele. Então, aquela figura gigantesca, lembrou esses
gigantes malucos como personagem Dom Quixote vê. Foi um trabalho
intenso, porque é um texto literário e nós tivemos que adaptá-lo e
roteirizá-lo para o teatro, pensar como seriam os diálogos, pois a ideia
era que o espetáculo não fosse um espetáculo da época em que foi
escrito, mas um espetáculo trazido para a modernidade da cidade de
agora (Bombinha, 2014, s/p).
Durante essa pesquisa, nos foi fornecida a
Gazeta Cervantina
(Teatro que
Roda, 2006), um informativo produzido pelo grupo para a divulgação do
espetáculo. A partir desses dados de pesquisa, pode-se entender que foram
escolhidos cinco episódios fundamentais da obra de Miguel de Cervantes, e a
adaptação foi pensada com o entendimento de que Dom Quixote representava
algo mais que o arquétipo da loucura, pois o personagem carregava em si a
determinação de enfrentar um mundo linear, que pedia atos grandiosos. “Foi um
processo de pensar qual tipo de personagem seria, ao invés de ser um fazendeiro
como era Dom Quixote, ao invés de ser um agregado da fazenda, ia ser uma
personagem da rua” (Bombinha, 2014, s/p).
12
O Monumento ao Bandeirante, símbolo da praça, é uma escultura em bronze, com três metros e meio de
altura, e retrata o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, em corpo inteiro, tendo nas mãos uma bateia e
armado de bacamarte. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Pra%C3%A7a_At%C3%ADlio_Correia_Lima. Acesso em: 22 fev. 2016.
Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
José Alencar de Melo; Natassia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-31, dez. 2022
13
Figura 1 -
Gazeta Cervantina
Acervo: Grupo Teatro que Roda.
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14
Em agosto de 2005, o diretor Carreira, juntamente com a especialista em voz
para teatro, Mônica Montenegro
13
, participou de outra oficina em Goiânia. Através
da proximidade com o diretor, surgiu o convite para que Mônica fosse a
preparadora vocal do grupo. Convite aceito, aconteceu, então, a primeira reunião
para traçar estratégias e definir ações para desenvolvimento do projeto. Foi o
momento de estudar a obra de Cervantes, elaborar projetos e pensar na
viabilização financeira. A partir de janeiro de 2006, os contatos com André se
intensificaram, ainda por telefone e internet. Nesse momento, o grupo deu início à
preparação do roteiro, de alguns elementos cênicos e ensaios isolados. De acordo
com a atriz Liz Eliodoraz (2015, s/p), durante os primeiros contatos, se decidiu
sobre quais episódios da obra do escritor espanhol seriam usados na adaptação e
complementou:
Depois dos episódios escolhidos, eu retirei do livro as possíveis falas que
caberiam em cada tema. [...] Fizemos um intenso trabalho de sala para
descobrir os tipos. A Mônica Montenegro nos ajudou na pesquisa de corpo
dos personagens através do trabalho com a voz e a respiração (Eliodoraz,
2015, s/p).
Uma importante ação foi a realização de uma oficina sobre a encenação na
cidade, processo que envolveu diretor e atores no desenvolvimento dos exercícios,
que deram origem ao processo de criação do espetáculo.
Esses exercícios nos permitiram estabelecer os elementos para a
interpretação de Dom Quixote. Surgiu então a ideia de um Dom Quixote
como um homem que abandona o escritório e vai para a rua e tenta fazer
uma nova aventura. No seu trajeto ele arregimenta um catador de papel
para ser o seu Sancho Pança. Isso não foi uma coisa que esteve clara
desde o começo. Foi aparecendo porque nós fomos trabalhando na rua.
Então fomos armando essa leitura, e foi desaparecendo qualquer
tentativa de mostrar o texto do renascimento e ele foi ficando
completamente contemporâneo (Carreira, 2014, s/p).
13
Mônica de Almeida Prado Montenegro possui graduação em Fonoaudiologia, pela Universidade de São Paulo
(1987), e especialização em voz, pela PUC/SP (2005). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em
Interpretação Teatral /voz cênica. Trabalha com formação de atores e montagens teatrais e é professora da
Escola de Arte Dramática - EAD/ECA/USP, desde 1998.
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15
Figura 2 - Dom Quixote/Dionísio Bombinha e Sancho Pança/Liz Eliodoraz, apresentação em
Vila Rica MG, agosto de 2013
14
Durante a oficina, exercitou-se a capacidade de enxergar, de “ver a cidade
realmente como possibilidade de arte” (Bombinha, 2014, s/p). Quando as pessoas
circulam pelas ruas, estão protegidas por suas individualidades anônimas, e esse
anonimato faz com que elas não se prendam a convenções e estejam mais abertas
ao jogo proposto pelo teatro de rua. Esse fenômeno faz com que haja uma
aceitação da invasão do espaço coletivo.
É preciso considerar a ideia de uma invasão teatral não apenas desde
uma perspectiva definida pela ação política ou por um posicionamento
14
Fonte: Disponível em: http://janelasdevilarica.blogspot.com.br/2013/08/o-dia-em-que-dom-quixote-
invadiu-praca.html. Acesso em: 30 jan. 2016.
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16
radical, mas sobretudo desde uma perspectiva que toma a cidade como
campo simbólico no qual o teatro se instala, inevitavelmente, como
elemento de ruptura com os fluxos do cotidiano. A invasão cênica é um
gesto que se politiza porque representa uma ocupação objetiva de um
espaço definido por um repertório de usos cotidianos, no qual o teatro
não pertence naturalmente [...] A cidade é dramaturgia porque é
produtora de sentidos, e sempre interfere no espetáculo condicionando
seu funcionamento e estabelecendo condições de recepção e mesmo
promovendo a produção dos signos da cena. Essa estrutura é realizada
pela ação imagética da arquitetura pela presença do aparato urbano
construído , pelas ações e atitudes dos sujeitos que ocupam os espaços
da cidade, e pela força dos discursos institucionais que tratam sempre
de dominar a construção da paisagem urbana [...] (Carreira, Mimeo, s/p).
Figura 3 - Atores Dionísio Bombinha (Dom Quixote) e Liz Eliodoraz (Sancho Pança), em
apresentação na cidade de Teresópolis RJ, agosto de 2013
15
A ocupação dos espaços urbanos sempre os modifica, atribuindo-lhes outros
significados, pois ocorre uma (des)apropriação, mesmo que temporária, desse
espaço, desse
habitat
, quebrando a linearidade do dia a dia e propondo uma
15
Disponível em: http://teretotal.blogspot.com.br/2013/08/grupo-teatro-que-roda-de-goiania-e-os.html.
Acesso em: 30 jan. 2016.
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17
abordagem urbana diferente. Com essa concomitante desapropriação e
apropriação, o espaço do teatro pode ser imaginado como algo não estanque,
passível de se transformar a cada montagem, de tal maneira que seu uso seja
alterado a partir da necessidade de cada circunstância e/ou local da encenação.
Ou seja, os espaços teatrais não tradicionais são uma explicitação da explosão do
espaço teatral descrita por Jean-Jacques Roubine (1988, p.103): “Agora, o teatro
pode ser feito em qualquer lugar de preferência evitando-se aquelas
construções a que se costuma dar o nome de teatros... A estrutura desse novo
espaço pode variar ao infinito”.
A cidade assume infinitas possibilidades de ocupação, como observa o ator
Dionísio Bombinha (2014, s/p):
[...] a cidade tem inúmeras possibilidades e ao invés de você trazer o
espetáculo aqui para esse vão aberto, traz para um corredor de passagem
de gente, onde vai ter que incomodar muita gente. Então, essa outra visão
de lidar com esse público que o André fala. Esse público que não está
com a opção de contato com o ator, porque quando você vai num teatro
pago, você está com essa opção, eu vou ter um encontro com o ator.
Esse público [que está na rua] não tem essa opção na cabeça. Ele está
para fazer algo na rua, para resolver alguma coisa, de repente de frente
com um ator que cruza seu caminho. Então, ele tem a opção de continuar
esse jogo ou simplesmente desprezar e ir embora. Qualquer coisa da
cidade pode ser arte. Isso foi fundamental para a gente essa teoria do
André, esse pensamento dele dessa arquitetura da cidade como opção
de arte.
Durante entrevista semiestruturada realizada com o diretor Carreira ele disse
que o receio da transformação nos torna conservadores:
[...] somos seres muito conservadores, e preferimos repetir nossa rotina
vinte vezes antes de mudá-la uma vez. É óbvio que eu estou
generalizando e existem exceções. Mas as cidades são plasmadas por
aquilo que o antropólogo Roberto DaMatta
16
chama de repertório de usos.
Então, a gente tem um repertório de uso (Carreira, 2014, s/p).
Segundo ele, na mesma entrevista, quando uma mudança nesse
processo, ocorre uma quebra que provoca um distúrbio, pois, “se a rua é para
andar e encontramos um grupo de gente deitada e deslocada do cotidiano, ou há
16
Roberto Augusto DaMatta (Niterói, 29 de julho de 1936) é um antropólogo, conferencista, consultor, colunista
de jornal e produtor brasileiro de TV.
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18
uma pessoa pendurada no prédio fazendo algo que não é limpar janela, isso gera
alguns distúrbios de percepção da cidade”. Diz, ainda, que o:
[...] teatro de invasão gera possibilidades na percepção dos usuários da
cidade. Pensamos a cidade de uma determinada forma, mas poderíamos
pensá-la de outra maneira? Por que que a cidade não pode ser um
espaço de jogo mais intenso? Então, esse teatro pode trazer algo disso
para esse espaço repetido, moldado pela rotina. A ruptura da qual falo
está relacionada com a possibilidade de criação de um certo espaço de
jogo” (Carreira, 2014, s/p).
Entre outras coisas das quais foram tratadas, Carreira afirmou que o teatro
na cidade está associado à reutilização do espaço urbano e à permeabilidade da
cidade para o acontecimento ficcional. A cidade tem, ao mesmo tempo, fluxo da
vida cotidiana, que ele chama de realidade, e presença da ficção, da teatralidade.
Segundo ele, quem habita um pedaço da urbe consegue entender que algo é
ficcional e se relaciona com sua realidade, e isso abre espaço para o jogo, uma vez
que o espectador percebe que o que está acontecendo à sua volta é ficção, mas,
ao mesmo tempo, pode falar com o ator sabendo que aquilo é real e estabelece
um diálogo.
A cidade é mais porosa que os edifícios teatrais. Quando o espectador vai
ao Teatro Goiânia
17
, ele senta e diz: - “o que vai acontecer no palco é para
eu ver”. Por outro lado, na rua o espectador percebe que o que acontece
na cidade como ficção é para ele ver, mas sente que aquilo lhe diz
respeito porque é o seu espaço. Ele é interferido por aquilo e se sente no
direito de interferir. Neste caso tem-se um diálogo de muito
interpenetrável do que no espaço normatizado da sala teatral fica
limitado às regras bem claras (Carreira, 2014, s/p, nota nossa).
O desejo de encenar Dom Quixote surgiu a partir da observação da cidade,
onde se um espaço possível de ser utilizado, invadido e ocupado por
intervenções cênicas, instalações, performances, teatro. A rua pode ser também
espaço para o exercício da liberdade e da criatividade, que subverte o lugar de
convivência cotidiana e, ao mesmo tempo, explora sua cotidianidade.
17
O Teatro Goiânia é o mais tradicional espaço cultural de Goiânia. Inaugurado em 12 de junho de 1942, ele
integra o conjunto arquitetônico de estilo
art decó
projetado pelo arquiteto Jorge Félix. Sua construção teve
início em 1940, sendo inaugurado dois anos depois. Além de sua importância histórica, o teatro, na
atualidade, é um dos principais espaços de apresentação de dança, teatro e música erudita e popular da
cidade, tendo sido declarado Patrimônio Nacional em 2003. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Teatro_Goi%C3%A2nia. Acesso em: 22 fev. 2016.
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19
No caso de Dom Quixote, a subversão da teatralidade e da espetacularidade
se deu na Praça do Bandeirante, no centro da cidade de Goiânia:
A praça ostenta, em um pedestal de mármore, um gigante de bronze com
seu bacamarte em punho. A figura remente aos gigantes com os quais
Dom Quixote luta durante sua saga. Em Das saborosas, o grupo reelabora
alguns episódios do texto de Miguel de Cervantes, a fim de criar uma
poesia urbana sobre o sonho, a loucura e o próprio sentido da cidade
(Teatro que Roda, 2006, s/p).
Segundo Dionísio Bombinha, que no espetáculo encarna a figura do cavaleiro
andante, a adaptação do texto não foi simples, porque, ao longo do processo, o
grupo percebeu que o texto do Sancho Pança não poderia ser literalmente o texto
do livro, pois era muito rebuscado para um personagem de rua, um morador de
rua, um catador de materiais recicláveis.
Dom Quixote, nessa obra, nessa representação é um executivo, advogado,
um empresário, um “enternado” de gravata, que, cansado dessa rotina,
dessa fadiga da vida moderna, urbana, resolve mergulhar nesse mundo
maluco de fantasia, de ilusão, de aventura, de uma busca. O Sancho
Pança, em contraponto, está do outro lado. É um pobre da rua, um
paupérrimo que é levado a se tornar o que é pelas promessas de uma
vida melhor que o executivo fala para ele, porque a princípio, o Sancho
um executivo mesmo, um cara de terno e gravata e na sua
simplicidade, começa, realmente, a mexer com sua cabeça e a achar que
aquilo pode ser uma verdade. Como é uma cara que não tem nada a
perder na vida, é uma cara de rua, resolve seguir aquilo em função
daquela promessa (Bombinha, 2014, s/p).
A proposta do grupo Teatro que Roda, que, além de Dionísio Bombinha e Liz
Eliodoraz, contava com os atores Hugo Mor, Patrick Éster, Carlos Roberto,
Fernando Moterane e Ieda Marçal, era invadir a cidade e romper de maneira lúdica
o cotidiano. De acordo com o texto publicado na
Gazeta Cervantina
(2006), a
montagem do espetáculo Das saborosas aventuras de
Dom Quixote de La Mancha
e seu fiel Escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia ter sido
provoca essa
possibilidade de jogo, de quebra da regularidade do cotidiano.
A utilização de um segmento do centro da cidade para a encenação das
aventuras de Dom Quixote e de seu fiel escudeiro Sancho Pança, diz
respeito à nossa compreensão de que a realidade de nossas cidades
exige rupturas dignas de Quixote. Buscamos ressignificar este espaço
urbano lançando mão de instalações, prédios e monumentos, para
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dialogar de forma direta com os transeuntes. Propomos vários níveis e
interface com quem passa pela rua, desde um contato muito próximo,
quase cara-a-cara, até momentos relâmpagos para alguém que passa
dentro de um ônibus. Tratamos de construir imagens que permitam que
os transeuntes, que seguem pela cidade, possam lembrar e comentar
aquilo que cruzou seu cotidiano (Teatro que Roda, 2006, s/p).
Como foi dito, o grupo Teatro que Roda lançou mão de fragmentos do texto
de Miguel de Cervantes, reelaborou alguns episódios com o objetivo de “criar uma
poesia urbana sobre sonho, loucura e o próprio sentido da cidade”
18
, questionando
se a cidade é um lugar de fantasia ou de realidade. O tema continua sendo o
mesmo: batalhas, monstros, gigantes com braços enormes. No entanto, é trazido
para os dias atuais, atualizado e contextualizado, em centros urbanos da nossa
contemporaneidade. Dom Quixote, o alucinado cavaleiro andante, agora é um
executivo engravatado, um homem de negócios, que desce de rapel de um prédio
alto gritando por sua amada Dulcinéia. Mas, repentinamente, abandona seu terno
e sua gravata e se transforma em cavaleiro. Cavaleiro do lixo. Sancho Pança é um
homem da rua, que empurra seu carrinho pela cidade e vive de recolher sobras
esparramadas pelos becos e vielas. Nesse processo, o grupo propõe uma lógica
de invasão urbana com a ocupação de fachadas e vãos da cidade. Para o diretor
do espetáculo Carreira (2014, s/p),
[...] a premissa desse espetáculo foi trabalhar, obviamente, com um
conceito de um teatro que invadisse a cidade e para fazer isso, nós
trabalhamos com a ideia de usar o risco, que é um outro componente do
meu trabalho. Como diretor eu procuro que a atuação seja menos
enfática e menos grandiloquente possível. Busco uma cena mais perto
do realismo, do ponto de vista da atuação, não da história. O primeiro
elemento que a gente experimentou foi ir para cidade, aqui na Avenida
Anhanguera
19
, no centro, perto da Avenida Goiás. A premissa também foi
fazer em um lugar mais barulhento da cidade, não procurar uma praça
mais silenciosa. Trabalhar no meio da cidade com todo seu barulho foi
nosso primeiro objetivo.
18
Frase retirada do programa do espetáculo publicado no informativo
Gazeta Cervantina
.
19
As avenidas Anhanguera e Goiás são as principais avenidas do centro de Goiânia.
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21
Figura 4 - Apresentação no centro da cidade de Goiânia GO, julho de 2006
Gazeta Cervantina
. Publicação do grupo Teatro que Roda para divulgação do espetáculo.
Um dos elementos indispensáveis na construção de qualquer espetáculo é o
figurino, que colabora de forma decisiva na dramaturgia e é parte importante na
construção do espetáculo, com seus códigos próprios, podendo, às vezes,
substituir parte do texto que seria dito pelos atores durante a encenação. No
espetáculo Das saborosas aventuras de
Dom Quixote de La Mancha e seu fiel
Escudeiro Sancho Pança - um capítulo que poderia ter sido
, não é diferente. Como
é um espetáculo concebido para ocupar a rua, o figurino lança mão da estética
urbana para se transformar em linguagem.
Segundo Júlio Van (2015, s/p), que ficou responsável pelo figurino e pela
cenografia, a concepção desses elementos se deu num processo de criação
coletiva, com a participação de todos os integrantes do grupo, “[...] tudo foi
pensado conjuntamente com a direção e os atores: a ideia fundamental é que
tudo se aproximasse da vida urbana, assim, a ideia de um Dom Quixote vestido de
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22
terno e de uma Dorotéia vestida de noiva, uma noiva em fuga, perseguida por,
talvez, um noivo abandonado”
20
.
Ainda de acordo com Van (2015), ele compreendeu que a narrativa se passou
em um universo urbano, e tal noção fez com que, durante o processo de
adaptação, a personagem de Sancho Pança deixasse de ser um lavrador para ser
“contemporaneizado”, tornando-se um catador de lixo de materiais recicláveis,
com roupas desgastadas, como se estas tivessem sido encontradas nas sobras
que ele recolhia pelas ruas. Consequentemente, seu figurino também seguiu essa
estética do urbano, do descartável. O mesmo pensamento permeou o
desenvolvimento do figurino de Dom Quixote, que vestia uma imponente
armadura que lembrava os guerreiros medievais, porém, totalmente feita de lacres
de lata de refrigerante, o que lhe conferia a característica urbana necessária. A
espada usada pelo cavaleiro em suas batalhas não passava de um simples pedaço
de ferro. Na cabeça, ao invés de um vistoso elmo, importante proteção para um
guerreiro, ele usava uma simples panela velha e amassada. Eram objetos
ressignificados que, na visão alucinada do cavaleiro andante, se transformavam
em objetos dignos de serem usados no grande embate que, em suas alucinações,
ele ainda travaria.
Figura 5 - Dionísio Bombinha/Dom Quixote e seu cavalo Rocinante.
Acervo: grupo Teatro que Roda.
20
Entrevista concedida por e-mail a partir de questões previamente enviadas.
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Para Carreira (2006), a cidade é uma construção dinâmica não apenas um
ordenamento urbano e com edifícios e está definida pela relação que nós,
sujeitos, estabelecemos com nossas ruas, com nossos edifícios e com as
diferentes formas de habitar e administrar o ambiente. Partindo dessa premissa,
Van disse que a cenografia desenvolvida veio sempre a partir da cidade, com seus
prédios, suas avenidas, seus carros. Segundo ele, tudo que foi usado é reconhecível
e encontrável no mundo real, contudo, a partir da concepção cênica do espetáculo,
foi sendo transmutado em figurinos e objetos cenográficos. Prédios, marquises,
ruas, calçadas, espaços que dentro do nosso repertório de uso são apenas espaços
urbanos ocupados no cotidiano da cidade, ganham outros sentidos e compõem a
dramaturgia, visto que a cidade produz sentidos que interferem diretamente no
espetáculo, modulando seu funcionamento e ditando condições de recepção,
como explica o próprio encenador:
A relação do ator com a cidade como espaço significante é o elemento
que pode estabelecer patamares sobre os quais se apoiará o projeto de
trabalho de montagem. A experiência concreta do ator com o ambiente
permite que a equipe de criação estabeleça procedimentos que nasçam
do próprio contato com o espaço da cidade. Isso significa dizer que o
espaço não como cenografia, mas como dispositivo cênico deverá
envolver o corpo do ator como ponto de partida para o início do processo
de criação. A ambientação e todas as circunstâncias que envolvem o
sujeito imerso neste contexto constituirão então os estímulos e os
condicionamentos basais para a elaboração de um espetáculo que
incorporará os fluxos cidadãos. O cidadão representa ao mesmo tempo
um componente do espetáculo e é seu público potencial. Por isso a lógica
segundo a qual o público é o foco do processo criativo, e portanto estar
fora das margens do mesmo é posto em questão. Quando se presencia
um espetáculo que invade a cidade se relacionando com todo o
dispositivo urbano, o público dinâmico que segue a cena também se
transforma em elemento de observação por parte do próprio público.
Esse sujeito que seria externo passa a ser um objeto de desejo
transformado em interlocutor e componente dos princípios de
funcionamento da encenação. Uma vez invadido o espaço de uso
cotidiano, o público não voluntário se frente à questão de aceitar
o acontecimento e tratar de desvendar seus códigos ou simplesmente se
distanciar (Carreira, 2009b, s/p).
Neste sentido, o espetáculo se apropria da cidade não como cenografia, mas
experiencia o espaço urbano como dispositivo cênico que sustenta a experiência
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dos corpos seja dos performadores/ atuadores, do público, dos espetadores, dos
transeuntes criando de maneira orgânica a dramaturgia (Carreira, 2009b).
Dramaturgia do/ pelo/ com espaço: do espaço do corpo e do corpo especializado,
concomitantemente. Por esse motivo, o que poderia ficar atrás da cena como
elemento cenográfico de ‘pano de fundo’ sempre vai ocupar um lugar de
protagonismo na dramaturgia e na per.formação, que a cidade se torna um
organismo vivo e poroso por excelência.
Organi.cidade na/da encenação quixotesca
Do ambiente urbano pode emanar uma ‘organiCidade’, categoria inaugurada
aqui, neste trabalho, pelos autores. Tal conceito adveio de desdobramentos da
noção de organicidade, definido por Renato Ferracini (2005, p.126 – grifo do autor)
como “um tempo-acontecimento que, por mais fugaz e efêmero que seja, dura,
perdura e ecoa porque afeta e é afetado. Esse tempo-acontecimento se autogera
nos elementos que habitam o território ‘entre’ orgânico e inorgânico, que é,
portanto, comum aos dois”.
Numa abstração acerca da obra/encenação, analisada neste trabalho, esse
tempo-acontecimento fez com que o carro de recolher materiais recicláveis,
empurrado por Sancho Pança, fosse afetado e se transformasse no garboso
“cavalo Rocinante”. Assim, como na fugacidade do tempo-acontecimento, uma
colheitadeira, maciço de aço e ferro, foi transformada em dragão, contra o qual
Dom Quixote travou seus duelos imaginários. Esse pensamento de Ferracini se
ampliou pelo diretor Carreira, que disse que “a rua é múltipla, por isso, o que eu
procuro na rua é que ela seja um elemento estruturante da minha poética [...].
Uma estrutura viva com a qual quero dialogar” (Carreira, 2014, s/p).
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Figura 6 Apresentação em Teresópolis-RJ, agosto de 2013
21
Desse modo, a fim de se avançar um pouco mais na questão da
espacialidade urbana, recorreu-se a Roubine (1988), que, em seu livro
A Linguagem
da Encenação Teatral
, no capítulo III intitulado “A explosão do espaço”, diz que a
democratização do teatro é, antes de tudo, a democratização da relação do
espectador com o palco e do ator com o público. Segundo o autor, o palco à
italiana era o espelho de uma hierarquia social que reproduzia “uma ordem na qual
não convém que o pequeno comerciante se beneficie das mesmas facilidades que
o príncipe” e “que convém que o rico seja favorecido em relação ao menos rico”
(Roubine, 1988, p.83). Ao longo do texto, ele afirma que, apesar de muito
questionado, o modelo do palco à italiana serviu a vários encenadores, em
21
Acervo do grupo. Disponível em: http://teretotal.blogspot.com.br/2013/08/grupo-teatro-que-roda-de-
goiania-e-os.html. Acesso em: 30 jan. 2016.
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26
diferentes momentos, mesmo aos mais inquietos, como Antonin Artaud (1896
1948). Ele buscava um espaço que dialogasse com sua dramaturgia e sempre
aspirou escapar às limitações da estrutura à italiana, mas teve as suas principais
realizações neste modelo de palco, que também permitiu que André Antoine (1858
– 1943) elaborasse sua teoria da ‘quarta parede’
22
(Roubine, 1988).
Isso é destacado a fim de se contextualizar o espaço em suas diversas
camadas, com o objetivo de avançar, rumo a alguns recortes, com o conceito de
um teatro que invade e ocupa a cidade. Nesse contexto, aborda-se o espaço do
corpo do ator como território que se forma no contato, na ambientação, nas
experiências e na ‘per.formação’ com o espaço urbano, que é, ao mesmo tempo,
corpo que se torna espacializado na dinâmica das experimentações com/na
cidade (Oliveira, 2009)
23
.
O ambiente urbano tem a capacidade de estimular as próprias operações dos
atores e as do público, que são as pessoas que passam pelas ruas embaladas
pelas normas do cotidiano urbano. Invadir a cidade é um processo que cria
transitórias fendas nas operações do cotidiano, produzindo fragmentações
efêmeras nos fluxos da cidade, sendo uma interferência na lógica da cidade, uma
intromissão ao uso cotidiano dos espaços. E, ainda, propõem-se possibilidades
outras para a urbe, o que permite ao cidadão propor novos ritmos, novos fluxos e
novos sentidos.
O teatro que aborda o espaço da cidade seria um vetor que redefine o
ambiente, e mais que isso, é uma força que busca essa interferência
como ação consciente e intencional. Todas as ações realizadas no espaço
da rua modificam e formulam o ambiente, mas em sua grande maioria
essas ações não têm um caráter consciente. O teatro tem uma presença
na rua sempre como um acontecimento desorganizador das dinâmicas
tradicionais da rua. Essa é sempre uma operação temporária que
interfere nos fluxos e modifica as percepções dos fragmentos da cidade
22
A quarta parede’ é uma criação teórica do realismo teatral, de André Antoine, criador e diretor do Teatro
Livre, em Paris. Os atores deveriam mentalizar uma parede imaginária que se estenderia no mesmo plano
vertical da boca de cena, vedando ao público a visão do que ocorre no palco, entre as quatro paredes de
um cenário em gabinete ou de interior. Essa parede seria removida pela convenção teatral, dando ao
espectador ocasião de testemunhar detalhes da ação dramática.
23
Desde 2009, a partir do projeto de pesquisa
(Per)formações: zonas de aproximações entre teatro e
performance cadastrado
oficialmente e desenvolvido na Emac, UFG; e por meio da práxis do Grupo
Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Interações Artísticas
SoloS de Baco
em parceria com diversos
artistas e coletivos de teatro, a autora deste artigo vem trabalhando com a investigação do espaço do corpo
e do corpo espacializado em performances, intervenções urbanas e espetáculos cênicos. Disponível em:
EMAC - ExtensãoSolos de Baco (ufg.br) e SoloS de Baco: Quem somos Acesso em: 23 OUT. 2022.
Teatro que Roda invade a cidade: Ensaio acerca do espetáculo
Das Saborosas Aventuras de Dom Quixote...
José Alencar de Melo; Natassia Duarte Garcia Leite de Oliveira
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-31, dez. 2022
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(Carreira, 2009a, p. 5).
O fazer teatral requer uma significativa diminuição das distâncias, uma vez
que o ator deve agir diretamente sobre alguns indivíduos. “Torna-se necessária,
segundo uma expressão de Grotowski, “a proximidade de organismos vivos”, pois
a relação do ator com o espectador torna-se, aqui, uma relação física, ou melhor,
fisiológica, na qual o choque dos olhares, a respiração, o suor etc., terão
participação ativa” (Roubine, 1988, p.101 aspas do autor). Ainda acerca desta
questão e sobre a atuação no teatro de invasão, cunhado e conceituado por
Carreira, ele próprio discorre:
A interpretação nas condições de um teatro de invasão é uma
interpretação que solicita do ator o jogo em um lugar duplo, onde se atua
e se escreve a situação cênica. Além do sentido tradicional da
improvisação estamos frente a uma demanda por uma classe de jogo no
qual o ator não apenas aproveita aquilo que merge do ambiente, mas
sobretudo o ambiente e busca reverberar nas ações da cena essa
dramaturgia modificando as condições de recepção e sua própria
condição de representação (Carreira, 2009b, p. 8).
A cada apresentação de um espetáculo na rua, de alguma maneira essa
rua/espaço interfere e reestrutura o espetáculo. Cada espaço gera diferentes
imagens durante uma apresentação e, para os que se dispõem a parar, é gerado
um tipo de imagens. No entanto, para os transeuntes que, na celeridade do
cotidiano urbano, acompanham apenas trechos do espetáculo, há outro código na
construção das imagens. E, ainda, para aqueles que passam em um coletivo ou
mesmo dentro de um carro, que carregam consigo, colados em suas retinas,
fragmentos daquilo que foi visto. Estes são afetados de outra maneira e se
impregnam com outras imagens. Assim, o espaço que continua o mesmo, porém,
agora ressignifica e gera diferentes imagens apreendidas de maneira diferente por
cada pessoa que passa por ele.
Ademais, tal condição do espaço do/no corpo e da corpOralidade
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Corp(oralidade), atualizado recentemente também por corpOralidade, é um conceito cunhado, elaborado e
aperfeiçoado por Natássia Garcia desde 2009 a partir de suas pesquisas no/com/pelo teatro dialético e
do estudo da Teoria Crítica, especificamente das obras benjaminianas no sentido de compreender as
narrativas orais que compõem a voz do corpo e o corpo-sujeito em sua historicidade. Tal perspectiva já foi
trabalhada em diversos textos da autora ao longo dos anos, dentre eles: sua dissertação de mestrado, sua
tese de doutorado e artigos acadêmicos (Oliveira, 2009 e 2013; Bittar, Maia, Oliveira, 2012).
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espacializada provoca nos atores outros estímulos, que ora vão moldando, ora
modificando, ora reestruturando a dramaturgia ou algo que está sendo encenado
por esse ator de “corpo-em-vida”, o qual é orgânico e pode vir a conhecer a
organicidade cênica. Ou seja, um ator que aprende, apreende a plenitude dos sons,
dos cheiros, das imagens e que entra em fluxo com a cidade. Portanto, o ator é
parte desse espaço, o espaço se torna parte dele, e ele se compõe com esse
espaço. Neste caso, não se pode, portanto, falar de espaço e espacialidade sem
falar da atuação do ator.
Quando se opera com o corpo objétil
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, trabalha-se com a ideia do objeto que
é ressignificado, transformado e lançado numa forma de imaginário diferente.
Elementos concretos são lançados para uma abstração, para um imaginário dos
seres imaginários que permeiam a narrativa original de
Das saborosas aventuras
de Dom Quixote de La Mancha e seu fiel Escudeiro Sancho Pança um capítulo
que poderia ter sido
, isto é, são atualizados no momento e na presentificação da
performance urbana. O ator lança mão de uma técnica, e seu corpo entra em
fluxo com o espaço, se tornando um corpo, sinestesicamente, com toda a
espacialidade, em suas múltiplas dimensões. É um ator que está intimamente
conectado com a espacialidade e, ao mesmo tempo, a espacialidade de seu corpo
deve se organicizar com a cidade, no tempo e no espaço. Assiste-se a atores que
interveem e interferem na cidade, com seu corpo que dialogam com a cidade para
criar a dramaturgia.
É nesse contexto que o grupo Teatro que Roda estabelece suas relações com
a cidade, com o fluxo em que o ator entra em relação ao espaço e a todas as
possibilidades que esse espaço pode dar. Essa relação pode ser nos espaços
acústico, visual, plástico e estético, ou mesmo no espaço afetivo, que envolvem
as relações do ator com pessoas que transitam por estes.
25
Natássia Oliveira (2009, 2011, 2013) a partir de seus estudos contínuos, atualmente, define corpo objétil como
o corpo que se lança como objeto e entra em fluxo com as rias dimensões do espaço da cidade em todas
as suas dimensões (plasticidade incluindo espaço cênico, des.caracterização dos performers, sonoridade
e luminosidade; textualidades corp.Orais; per.formações e experiências estéticas; cinestesias e sinestesias
movimentos, peso, resistências, posição do corpo, intensidades, estados, sabores, cheiros, odores,
experienciações táteis e auditivas, texturas; contato com transeuntes, etc.). Mas o corpo-objétil é sujeito
histórico e está ligado às condições objetivas e materiais, podendo modificar a estrutura da rua e
ressignificá-la em suas várias dimensões, bem como pode ser trans(formado) por ela. Ou seja, o ator ora é
sujeito, ora é objeto: o espaço ocupa seu corpo, ao mesmo tempo em que o seu corpo estabelece uma
conexão com a espacialidade da cidade.
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Assim, observa-se que, na experiência com o teatro de invasão, bem como
na encenação proposta pelo grupo Teatro que Roda, dirigida por Carreira, a
ampliação da perspectiva do conceito de espaço com a espacialidade do corpo e
o corpo especializado. Ou, se poderia dizer que expande a noção da dramaturgia
no, do, com e pelo espaço.
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TEATRO QUE RODA. http://teatroqueroda.blogspot.com
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Florianópolis, v.3, n.45, p.1-31, dez. 2022
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VAN, Júlio. Entrevista de concedida para José Alencar de Melo, por meio eletrônico
em resposta a e-mail. Fevereiro de 2015.
Recebido em: 25/08/2022
Aprovado em: 15/10/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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