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Caixa de ilusões
: o corpo-político no
espetáculo da Ânima companhia de Dança
Thais Coelho da Silva
Mônica Fagundes Dantas
Para citar este artigo:
SILVA, Thais Coelho da; DANTAS, Mônica Fagundes.
Caixa
de ilusões
: o corpo-político no espetáculo da Ânima
companhia de Dança.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 3, n. 45, dez. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573103452022e0208
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Caixa de ilusões
: o corpo-político no espetáculo da Ânima companhia de Dança
Thais Coelho da Silva; Mônica Fagundes Dantas
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-23, dez. 2022
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Caixa de ilusões
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: o corpo-político no espetáculo da Ânima
companhia de Dança
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Thais Coelho da Silva
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Mônica Fagundes Dantas
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Resumo
Partindo do entendimento de que o corpo dançante é político, o presente
artigo estabelece relações entre dança e política a partir dos discursos que
são levados à cena no espetáculo
Caixa de ilusões
, da Ânima companhia de
dança, dirigido pela coreógrafa Eva Schul.
Palavras-chave
: Dança contemporânea. Ânima companhia de dança.
Caixa de
ilusões
. Corpo-político. Eva Schul.
Caixa de ilusões
: The political-body in the show of Ânima
companhia de dança
Abstract
Starting from the understanding that the dancing body is political, this article
establishes relations between dance and politics from the discourses that are
taken to the scene in the show
Caixa de ilusões
, of the Ânima companhia de
dança, directed by choreographer Eva Schul.
Keywords
: Contemporary dance. Ânima companhia de dança.
Caixa de
ilusões.
Political-body. Eva Schul.
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Este artigo resulta em 63% de partes de tese de doutorado de Thais Coelho da Silva denominada:
Swing
momentum impulso: Mem
ó
ria
em processo de cria
çã
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Â
nima Companhia de Dan
ç
a. defendida no
Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), sob
orientação de Mônica Fagundes Dantas, em 2021.
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Maurício Chemello, Mestre em Literatura (PUCRS).
mfchemello@hotmail.com
3
Doutora em Artes Cênicas (PPGAC/UFRGS). Mestre em Educação (PPGEDU/UFRGS). Atua como Bailarina,
Professora e Pesquisadora na SMELJ (Secretaria Municipal de Esporte, Lazer e Juventude) da Prefeitura
Municipal de Porto Alegre RS. thscoelho@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5591783569329455 https://orcid.org/0000-0002-5038-9750
4
Professora Associada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua no Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da UFRGS, no qual é docente orientadora de Mestrado e Doutorado. Coordena o projeto
Carne Digital: Arquivo Eva Schul (www.ufrgs.br/carnedigital). modantas67@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0332056210980546 https://orcid.org/0000-0003-4632-9429
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Caixa de ilusões
: el cuerpo-político en el espectáculo de la Ânima
companhia de Dança
Resumen
Partiendo de la comprensión de que el cuerpo danzante es político, este
artículo establece relaciones entre danza y política a partir de los discursos
que se llevan a escena en el espectáculo
Caixa de Ilusões
, de la Ânima
companhia de dança, dirigido por la coreógrafa Eva Schul.
Palabras-clave
: Danza contemporánea. Ânima companhia de Dança.
Caixa de
ilusões
. Corpo-politico. Eva Schul.
Caixa de ilusões
: o corpo-político no espetáculo da Ânima companhia de Dança
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Este artigo busca estabelecer relações entre dança e política a partir dos
discursos que são levados à cena no espetáculo
Caixa de ilusões
(1994), da Ânima
companhia de dança
5
, dirigido pela coreógrafa Eva Schul. Os conceitos de
heterotopia (Foucault, 2009) e gap (Smith apud Rothfield, 2015) se articulam para
tratar do corpo-político que a companhia apresenta e, de modo cartográfico,
perfazer a construção teórico-artística-prática de Schul proposta em movimento
e performance na organização sintática dos corpos e seus discursos.
Quando decidi montar um balé baseado num texto que eu considerasse,
ao mesmo tempo atual e eterno, que se propusesse a retratar
cruelmente a realidade e, mesmo assim, criasse a possibilidade da
fantasia perpassá-lo, deixando o público livre para nele imprimir seus
próprios sonhos e vivências, imediatamente me veio à mente Jean Genet.
De início levei um susto. Meu Deus, Jean Genet dançado, que desafio e
ao mesmo tempo, que prazer isto seria. [...] Surge a pergunta imediata:
mas é um texto extremamente verbal, como transformá-lo numa
linguagem corporal? (Schul, 1992).
Caixa de ilusões
é inspirada na obra dramática O balcão (
Le Balcon
1956),
do célebre Jean Genet (1910-1986); isso, em si, é um convite a um movimento
transgressor, se observarmos o
leitmotiv
marginal e marginalizado da escrita de
Genet. Como descreve Silva (2021, p. 104) “a peça é composta por nove quadros e
se passa em um bordel em que os frequentadores podem vivenciar seus desejos
e suas fantasias, vestindo e incorporando as mais diversas figuras que
representam o poder: juiz, bispo, rainha, general. A eles é oferecida a chance de
atuar conforme seus personagens”; impulsionados por seus desejos o fazem
acompanhados das prostitutas, que também encenam os papéis escolhidos por
eles. Essa constelação disposta no bordel, ou a
Caixa de ilusões
, é um
5
A Ânima companhia de dança foi criada por Eva Schul em 1991, em Porto Alegre/RS. Pioneira no trabalho
com dança contemporânea no sul do Brasil, a coreógrafa desenvolve um conceito balizado por
temporalidades e narrativas não lineares e espacialidade constituída de planos simultâneos. A companhia,
através de seus criadores-intérpretes, leva à cena, temáticas que discutem as relações humanas e as
construções do sujeito na sociedade contemporânea. Ver mais em: https://www.ufrgs.br/carnedigital/
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microuniverso, um lugar em que as ilusões são realizáveis, os desejos permitidos
e as fantasias encarnadas; uma heterotopia (Foucault, 2009). Os elementos
técnico-poéticos levados à cena pelos corpos que dançam discursam e constroem
a heterotopia chamada bordel ou, nas palavras da personagem Irma: “Prostíbulo.
Lupanar.
Rendez-vous
. Bordel. Fodedor. Puteiro” (Genet, s/d, p. 47).
O bordel tem suas paredes revestidas por espelhos, que permitem e instigam
a contemplação da representação performática do eu. A imagem ilusória do
espelhamento permite uma dupla visão do eu que duela entre o que manifesta de
si, nesse jogo, e o que performa ao outro, em seu cotidiano. Seria esse um espaço
heterotópico? Em março de 1967, Foucault proferiu uma palestra que seria
publicada em forma de ensaio apenas na década de 1980, em que traz seu
importante conceito de heterotopia. Diz o filósofo:
também, provavelmente em todas as culturas, em todas as
civilizações, espaços reais espaços que existem e que são formados na
própria fundação da sociedade que são algo como contra-sítios,
espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros sítios reais
dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são,
simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de
lugar está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente
apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares
serem totalmente diferentes de quaisquer outros sítios, que eles refletem
e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias
(Foucault, 2009, p.415).
Foucault (2009) utiliza o espelho como exemplo da intersecção entre a utopia
e a heterotopia. Pontua nesta fala que “os bordéis e as colônias são dois tipos
extremos de heterotopias […]. Um navio é um pedaço flutuante de espaço, um
lugar sem lugar, que existe por si só, que é fechado sobre si mesmo e que ao
mesmo tempo é dado à infinitude do mar” (Foucault, 2009, p.421). O jogo dos
desejos no bordel seria, então, um navio, um “lugar sem lugar”, mas que navega
nos mares da sociedade, dos prazeres não permitidos e dos corpos que os sentem.
O bordel é mantido devido às boas relações de Irma (a dona) com os políticos
detentores do poder, seus clientes. Nessa relação metonímica, a inspiração inicial
de Genet para compor a trama teria sido o regime franquista (1939-1975) na
Espanha, escancarando as nuances do poder fascista.
O balcão
foi apresentado
pela primeira vez em abril de 1957 e, a partir dali, foi remontado em várias versões,
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em diferentes países. No Brasil, a atriz Ruth Escobar realizou uma grandiosa
produção da peça, que estreou em dezembro de 1969, em seu próprio teatro, que
foi ‘reconstruído’ para dar lugar ao bordel espelhado de Genet. A montagem
metaforizava a ditadura militar brasileira e Jean Genet foi a São Paulo para assisti-
la, ficando hospedado durante um mês na casa da atriz (Revista Cult, 2020).
A Ânima, em sua montagem da década de 1990, evoca o caráter político dos
corpos, não apenas dando forma à heterotopia, mas questionando o policiamento
dos corpos em seus deslocamentos. A obra (ou as obras
O balcão
e
Caixa de
ilusões
) trata(m) de desejos, instintos, sexualidades, poderes, permissões e
recusas. Em seu bordel estão alegorizados, sobretudo, os prazeres recusados, o
que pode nos remontar a Foucault (1988) ao apontar o que denomina de “lógica
capenga” da sociedade moderna burguesa: silenciar as sexualidades “ilegítimas”.
Como concessão se o deslocamento das sexualidades recusadas para os
lugares de tolerância, como o rendez-vous e as casas de saúde, um espaço
paralelo, marginal e, também, metonímico. Fora deles, “o puritanismo moderno
teria imposto seu tríplice decreto de interdição, inexistência e mutismo” (Foucault,
1988, p.10). Assim, interditar, ignorar ou calar o sexo ou a sexualidade seriam as
estratégias de uma sociedade hipócrita que incitaria os sujeitos a examinar e
confessar suas práticas, desejos e prazeres. A cena dramatúrgica escancara,
satiriza e celebra essa sociedade e suas premissas em relação ao sexo, ao poder
e às idiossincrasias.
Como referimos, na obra de Genet, as figuras do bispo, do juiz e do general
representam os poderes estabelecidos, o moral e religioso, o judiciário e o Estado.
Dentro do Grande Balcão as relações de poder são atravessadas, especialmente,
pelos prazeres. No microuniverso do bordel, os corpos discursam desejos e
prazeres em relações de poder, no sentido assumido por Foucault (2004, p.89) de
que “o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência
de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa
numa sociedade determinada”, assim, as dominações são conduzidas pelos
prazeres ditos apenas nos espaços de tolerância. No entanto, Silva (2021, p. 113),
sustenta que:
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o bordel não está “submetido” às ordens das autoridades, há um jogo de
forças no qual Madame Irma, a dona, o está totalmente sujeita às
exigências dos clientes e dirige seu negócio segundo suas regras.
Percebe-se, assim, que as relações entre as personagens são
atravessadas por pontos de resistência, no sentido proposto por Foucault
(2004, p.88) como a pluralidade de forças correlacionadas, mais ou
menos organizadas, heterogêneas, instáveis e imanentes ao local próprio
onde se exercem.
As resistências são intencionais e se encontram entre um ponto e outro de
qualquer relação. Do lado de fora do bordel, uma revolução está sendo organizada.
Percebe-se uma das formas de resistência, uma ruptura, uma divisão. Para
Foucault (2004, p. 92) “é a codificação estratégica desses pontos de resistência
que torna possível uma revolução, um pouco à maneira do Estado que repousa
sobre a integração institucional das relações de poder”.
Se na montagem feita por Ruth Escobar, Wladimir Cardoso e Víctor García
em 1969 víamos a crítica irônica à ditadura militar brasileira, na leitura de Eva Schul,
em 1994, observamos as frágeis aparências do período de redemocratização
brasileira, em que a coreógrafa lançou mão da obra de Genet para construir em
uma linguagem de dança contemporânea uma dramaturgia que fosse além da
simples interlocução entre dança e teatro, mas que construísse algo mais em
cena, centrado no sentido que o movimento do corpo produz com sua dança.
Assim,
Caixa de ilusões
ou “Jean Genet dançado”, marcou o início da trajetória em
constante inovação cênica, técnica e poética da Ânima companhia de dança.
Algumas mídias jornalísticas da época se referiram ao espetáculo como “Jean
Genet coreografado” ou “uma alegoria atemporal da sociedade” ou ainda “a
coreografia sexual de Jean Genet”. Estas mídias, aliadas a imagens e trechos
recuperados do vídeo
6
de uma das apresentações de
Caixa de ilusões
,
disponibilizados pelo
Projeto Carne Digital: Arquivo Eva Schul
(www.ufrgs.br/carnedigital/), foram utilizadas como fontes para compor esta
análise do espetáculo. Tais impressões da recepção crítica à época do lançamento
do espetáculo reiteram a intertextualidade dos propósitos, personagens e corpos
guiados pelo desejo e pelo ímpeto de seus movimentos, no microuniverso do
6
Vídeo do espetáculo
Caixa de ilusões
. Projeto Carne Digital: Arquivo Eva Schul. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=0-p-0uIq3ss&t=3s
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bordel. Nesta caixa de ilusões espelhada, é escancarada a sociedade e suas
relações de poder.
Na técnica de dança desenvolvida por Eva Schul, o princípio do peso e do
esforço mínimo é central, bem como os movimentos e elementos que o
enfatizam, como aponta Resende (2018, p.77): alavanca, pêndulo (
swing
),
lançamento e/ou abandono do segmento e a curva por cima (
momentum
ou
over
curve
). A partir destes movimentos, o peso não age contra a força da gravidade,
pelo contrário, o corpo se abandona à força da gravidade, para que seu corpo não
precise fazer força controlando o movimento. A sequência técnico-poética
lançamento-suspensão-queda será a base para trabalhar o conceito de gap (Smith
apud Rothfield, 2015): o momento que antecede a queda, o lugar em que ocorre a
suspensão momentânea do ponto de referência e que possibilita pensar em novas
direções. É o espaço aéreo, a resposta pendente em que o corpo dançante
improvisa e realiza um espaço expandido em que é possível a criação de um
conteúdo novo, fora do habitual. Na dança de Eva Schul, o gap corresponde ao
momentum, a curva por cima.
Antes da estreia oficial de
Caixa de ilusões
, a Ânima apresentou uma prévia
do espetáculo, ainda em fase de montagem, chamada
Fragmento de uma obra
inacabada
(1992), que consistiu em um embrião do espetáculo e nos permite
percorrer a cartografia da criação de Eva. A obra marca o retorno dela para Porto
Alegre, depois de se construir bailarina, professora universitária, diretora, gestora e
coreógrafa de dança contemporânea em diversas partes do mundo, como Uruguai,
Argentina, Estados Unidos e trabalhar por 10 anos em Curitiba, capital do Paraná.
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Figura 1 Primeira célula coreográfica de Caixa de ilusões (1992). Bailarinas Mônica Dantas,
Andréa Druck e Rosângela do Brasil. Fonte: Projeto Carne Digital
Arquivo: Eva Schul (https://www.ufrgs.br/carnedigital/)
Uma das mais impactantes contribuições de Eva Schul ao ‘bordel’ é o modo
como articula discursivamente os elementos técnico-poéticos do seu fazer dança
no corpo dos criadores-intérpretes (bailarinos), especialmente os lançamentos e
as quedas, fundamentais na dança contemporânea que desenvolve e que
perpassam suas coreografias nas mais diferentes formas, salientando a relação
entre o corpo e a ação da gravidade. Na dança de Eva, cair remete a uma
possibilidade de abrirmos mão do controle para nos jogarmos ao imprevisível, a
queda é uma experiência de conexão com a força da gravidade, uma oportunidade
que é dada ao corpo do bailarino para abrir-se ao desconhecido e criar. Esse
binômio perpassa todo o espetáculo: a queda de amores, os movimentos de
Chantal, o jogo sedutor das prostitutas e, também, as desilusões finais com o
pranto das mulheres, a derrota de Roger, o fim de utopias. É o que Albright (2013)
pontua em “caindo na memória”, que uma queda não é necessariamente
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considerada uma falha e que em vez de cair em desgraça, é possível cair com
graça. Após a queda, vem a recuperação e a chance de nos colocarmos novamente
em prontidão para um novo lançamento. Entre um lançamento e uma queda
existe um momento em suspensão, o gap: o lugar da desorientação, em que o
corpo se entrega à ação da gravidade e se abre ao desconhecido experimentando
a liberdade de escolher outras direções.
A primeira célula de
Caixa de ilusões
apresenta Irma, a dona do bordel, e suas
meninas, as prostitutas do Grande Balcão. A cena se assemelha a um desfile e foi
composta por uma sequência de movimentos circulares que partem do quadril
para caracterizar o clima sensual do bordel. No Grande Balcão, como propõe Silva
(2021, p. 108):
as prostitutas dão carne ao corpo dançante que discursa uma
sexualidade que é vendida. Culturalmente, as mulheres prostitutas são
discriminadas, não representam os valores familiares, pelo contrário,
colocam em risco tais valores, ameaçando a ordem e a estrutura social
estabelecida. São marcadas pela desonra e seus corpos são objetificados,
condição explicitada no espetáculo pela minuciosa caracterização e
desempenho de cada personagem exigido pelos clientes. Albright (2013,
p.50) traz a ideia de “hegemonia cultural da vertical que afetou as
mulheres no sentido de serem vistas como “caídas” e cita a perda da
virgindade como um dos exemplos desta hegemonia. A autora sinaliza
para o simbolismo que a queda carrega no Ocidente: “Uma queda
representa uma passagem dos sublimes céus do estrelato para o grão da
terra”. Nos corpos coreografados por Eva, a queda é o vazio que
impulsiona a revolução.
Neste mesmo sentido podemos pensar em Butler (2002, p.156) quando
afirma que seu trabalho sempre se propôs a “expandir e realçar um campo de
possibilidades para a vida corpórea”. Assim, aponta que no interior dos próprios
códigos socialmente construídos e determinados que consideram alguns corpos
como desqualificados a possibilidade de ruptura, de oposição, de resistência.
Os corpos na expressão de seus desejos são pontos de resistência, que também
são seres percebidos na trama, nas diversas relações que se estabelecem entre
os personagens e destes com o próprio bordel, como a prostituta Chantal, que
foge do bordel para seguir Roger, líder da revolução.
Em cena, os corpos das meninas de Madame Irma lançam-se às fantasias do
Grande Balcão, sob a ação da gravidade, caem, recuperam-se e perseveram. Estão
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em movimento. Albright (2013, p. 58) aponta que “o movimento é uma série de
quedas algumas pequenas, algumas mais espetaculares que impulsionam o
corpo através do tempo e do espaço”. Silva (2021, p.109) coloca que, “dessa forma,
os corpos dançantes das prostitutas entregam-se à ação da gravidade e no gap
suspendem o paradigma cultural de que a queda é uma falha, e outros significados
tomam o seu lugar”. Como propõe Albright (2013, p.59): “A expressão ‘cair em
desgraça’ torna-se uma afirmação impossível quando a queda propriamente dita
é experimentada com um estado de graça”. Na coreografia, os bailarinos se
lançaram sem medo da queda e, em
Caixa de ilusões
, caíram com graça.
O corpo-político se move no bordel pleno em seus desejos, revelados no
espaço heterotópico em quedas e recuperações que desenham o espetáculo
cênico da Ânima. Esse é o bordel dos anos 1990, espelhado na diegese de Genet.
No programa do espetáculo, encontramos a seguinte descrição:
Enquanto uma revolução ameaça tomar conta de um reino, os fregueses
do Grande Balcão, bordel de luxo, satisfazem suas mais secretas
fantasias de sexo e poder representando as figuras que compõem a
mitologia da sociedade ameaçada e que são responsáveis pela ordem
estabelecida.
Madame Irma, dona do bordel, supervisiona, junto com sua menina
‘predileta’, as representações por trás de espelhos. Ela teme a revolução,
pois o Grande Balcão é aliado do poder estabelecido e lhe presta serviços,
transmitindo os planos dos revoltosos, obtidos através das prostitutas,
ao seu amante, o Chefe de Polícia.
A revolta progride, sugere-se que os verdadeiros detentores do poder
foram assassinados. Chantal, uma das meninas do bordel, apaixona-se
por Roger, líder da revolução, passa para o lado dos revoltosos e
transforma-se em seu símbolo. Como contra-ataque para debelar a
revolução, são convocadas as figuras do bordel: os falsos Bispo, General
e Juiz desfilam para o povo liderados pela falsa Rainha.
A revolta é subjugada. Chantal é assassinada e Roger acaba por entregar-
se às fantasias do Grande Balcão, inaugurando uma nova representação:
o Chefe de Polícia que, satisfeito por ter sido finalmente levado à
categoria das grandes figuras do bordel, se encerra para sempre no Salão
Funerário (Schul, 1992).
Caixa de ilusões
teve uma produção grandiosa e, por isso, foi apresentada
poucas vezes. O cenário era de complicada montagem, havia água escorrendo de
uma parede, velas acesas que pingavam e até um carro que era puxado pelo palco,
o que gerou a necessidade de uma grande equipe de técnica e executiva. O
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espetáculo teve temporadas significativas, estreou no Theatro São Pedro e foi
apresentado também no Teatro Renascença, ambos em Porto Alegre/RS. Na
análise de Silva (2021, p.113):
Dança, teatro, trilha sonora especialmente composta e texto em LIBRAS
(Língua Brasileira de Sinais) se articularam para compor um espetáculo e
um conceito que levam à cena o corpo-político que discursa poderes e
resistências em meio a um ambiente de desejos, prazeres e fantasias.
Igreja, Estado e prazer entram em movimento na dança de Eva Schul.
Dança e política compõem o discurso que a Ânima leva à cena.
Na atualização do balcão nos anos de 1990, as relações de poder seguem as
mesmas, ainda que sobre outras superfícies, e Eva apreende na performance de
cada bailarino o papel político do corpo em sua expressão artística. A relação entre
arte e política é inerente ao teatro e à dança. Lepecki (2011, p.43) se apoia em
Rancière e em Agambem para tratar de tal relação que, graças a tais autores, pode
ser entendida como formada por partes “co-constitutivas” e não antagônicas.
Assim, arte e política se conformam em uma relação ideológica e estética, ou,
parafraseando Eagleton (1993), em uma ideologia da estética. Lepecki reitera o que
Rancière nomeou como “regime estético” das artes, que opera para além das
classificações de belo ou sublime, em que a arte seria responsável pelas “partilhas
e distribuições do sensível”, que surgem, segundo o autor, de modo quase
imanente, graças à particular força expressiva do objeto artístico neste regime.
Assim, estruturas de repetição podem ser “quebradas” graças a estas partilhas e
distribuições, pois são ferramentas para questionar as verdades acerca de uma
obra, ampliando as possibilidades de leitura de um fato artístico. Isto evidencia a
potência política da arte. No binômio arte–política também reside a potência do
corpo no sentido de “perturbar a formatação cega de gestos, hábitos e
percepções” (p.44) entendendo-o como ferramenta para pensar a dança. Se toda
a dança, ao ser dançada, teoriza o seu contexto social,
Caixa de ilusões
apresenta
sua potência política de forma plena, já que a expressão de um corpo que deseja,
seja esse desejo cerceado ou exposto, é um corpo político que performa uma
estética da arte.
Guzzo e Spinik (2015) destacam também a apropriação política da dança
pelos dançarinos como uma das características que a dança contemporânea
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apresenta. O ponto de vista do bailarino acerca da realidade e sua postura crítica
e engajada nos modos de fazer dança faz com que haja a busca por um fazer
dança que crie discursos com potência para a reflexão e transformação nos
modos de vermos e entendermos o mundo. Retomando o que propõe Setenta
(2016, p.10), criar e enunciar são ações simultâneas e produzem corpos específicos
para cada enunciado. Assim, a política pode ser entendida como “a
performatividade que se enuncia no corpo que dança”. Nas palavras de Silva (2021):
Caixa de ilusões apresenta no fazer-dizer dos corpos o universo de Jean
Genet: a política, a subversão, a hipocrisia dos poderes, a luxúria, a
degradação humana, a fantasia recusada da realidade. Nesta trama se
constrói o corpo que dança, o corpo-político, que se posiciona
criticamente e lança para o mundo um discurso engajado com as
questões de seu tempo.
Desse modo, Setenta (2016, p. 94) sustenta que a postura crítica conduz à
abordagens políticas e “na performatividade do corpo que dança, dança e política
não são instâncias distintas, mas estão imbricadas intersticialmente”.
Figura 2
Caixa de ilusões
. Fonte: Projeto Carne Digital
Arquivo Eva Schul (https://www.ufrgs.br/carnedigital/)
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“No teto, um lustre que será sempre o mesmo, a cada quadro. O cenário parece
representar uma sacristia, formada por três biombos de cetim, vermelho sangue”.
(Genet, s/d, p.2). Do texto original, a inspiração para o cenário do espetáculo: ao fundo
os três arquétipos do poder: o clero, o exército e a magistratura no Grande Balcão.
Acima, o grande lustre. O lustre remete à realidade suspensa da heterotopia. A
coreografia se desenvolve, bailarinos entram e saem de cena, dançam seus
personagens, discursam através de seus corpos enquanto o lustre permanece
suspenso, representando a ameaça da queda. O crepitar das metralhadoras permanece
assim como o lustre. Dentro, o lustre, fora, as metralhadoras. Na
Caixa de ilusões
, o
lustre gravita acima de todos, o lustre que tudo vê, símbolo do poder que incide sobre
os corpos que dançam.
Um dos autores que apontou o corpo como campo de exercício e de
funcionamento do poder foi Michel Foucault (1987) ao analisar as práticas utilizadas
dentro das instituições modernas no século XX. Tais práticas são apontadas como
ferramentas para o controle e disciplina do corpo, construindo saberes a partir,
principalmente, do discurso médico-científico. Desses discursos com efeitos de
verdade originaram-se práticas que acabam por conformar os corpos e controlá-los,
desde o mecanicismo laboral (pois um corpo melhor é mais produtivo
economicamente) as normas morais em relação à sexualidade e ao cuidado de si.
Assim, os corpos e, consequentemente, os comportamentos são vigiados para
controlá-los. Então, o lustre, que será sempre o mesmo, empoeirado pelo tempo,
testemunha o discurso em ação da tríade igreja-justiça-exército e seus jogos de poder
que buscam subjugar os corpos.
Caixa de ilusões
: o corpo-político no espetáculo da Ânima companhia de Dança
Thais Coelho da Silva; Mônica Fagundes Dantas
Florianópolis, v.3, n.45, p.1-23, dez. 2022
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Figura 3 e 4 Cena de abertura de
Caixa de ilusões
.
Bailarinos: Mônica Dantas, Alecssandro Dal’Omo, Eduardo Severino e Ana Bonini
Arquivo Eva Schul (https://www.ufrgs.br/carnedigital/)
Após a cena de abertura, os casais formados se deslocam para os quartos,
dispostos em lugares diferentes do palco. As prostitutas encarnam os personagens
que os “visitantes” do bordel solicitam para viverem suas fantasias. O bispo e a
pecadora, o juiz e a ladra, e o general e seu cavalo entregam-se aos prazeres nos
ambientes espelhados. Nessa direção, a fala de Carmen, extraída do texto original
d’
O balcão
: “ingressar no bordel é recusar o mundo. Aqui estou e aqui fico. A minha
realidade são os seus espelhos, as suas ordens e as paixões” (Genet, s/d, p.36).
Em cena, a simultaneidade dos espaços internos e externos ao bordel, os
planos atemporais simultâneos, dentro do bordel, a heterotopia como alegoria
atemporal da sociedade, a encarnação dos desejos, fora do bordel, o levante
revolucionário. As cenas acontecem simultaneamente, caracterizando a relação
entre os arquétipos. Percebe-se que o espetáculo se apresenta em tríades: os
quartos, os casais, os espelhos, os arquétipos. Como aponta Silva (2021, p.119),
um gap espaço-temporal, uma suspensão entre o dentro e o fora do bordel:
“dentro se vive a plenitude dos prazeres excêntricos que fora do bordel não seriam
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permitidos” ou socialmente adequados. As fantasias têm preço, durações
determinadas e leis próprias. Dentro dos quartos, as fantasias, fora dos quartos,
as metralhadoras. Como expõe a fala do chefe de polícia, no texto original da peça:
“Aqui, os suspiros, lá, o eco das lamentações” (Genet, s/d, p.44).
Figuras 5 e 6 Irma e o Chefe de polícia.
Bailarinos Gerson Berr e Cibele Sastre
Arquivo Eva Schul (https://www.ufrgs.br/carnedigital/)
uma relação de afeto entre Madame Irma e o Chefe de polícia. Nesta
relação, um diálogo entre seus conflitos internos. Ela se preocupa com a
posição política do bordel, os clientes fazem parte do poder dominante e o bordel
precisa deles. Irma os chama e exige que sejam chamados de “visitantes”. No texto
dramatúrgico (Genet, s/d, p.36) diz Irma: “Exijo respeito aos visitantes. Vi-si-tan-
tes! Nem mesmo eu ouso chamá-los de clientes. E, no entanto… (Faz estalar, de
maneira acintosa, as cédulas novas de mil que segura na mão”). Irma pertence à
classe operária e se identifica com as demandas do povo, ainda que se perceba
sua clara submissão aos poderes. Ao Chefe de polícia apenas cabe manter a
ordem, pois sua função não está entre as fantasias disponíveis no bordel. A Irma
de Genet comenta: “meu caro, seu cargo não tem a nobreza suficiente para sugerir
aos sonhadores uma imagem que sirva de consolo” (p. 43). Ou seja, a roupa deste
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representante da lei não portava qualquer insígnia de poder. Percebe-se que o duo
do Chefe de polícia com Irma é permeado por este conflito, que por vezes os
desorienta, há uma espécie de disputa de poder entre ele, chefe de polícia, e ela,
dona de bordel. Entre eles, o afeto. Equilíbrio e desequilíbrio de forças e de
autoridade. No final, ela cai em seus braços e ele a carrega, derretida, como na
cortina d’água por detrás deles, símbolo do feminino, do sexo e do poder.
Figura 7 e 8 Bailarinos Eduardo Severino e Mônica Dantas
Fonte: Projeto Carne Digital: Arquivo Eva Schul (https://www.ufrgs.br/carnedigital/)
As persianas do Grande Bordel estão fechadas e do lado de fora, na praça,
em meio à Revolução, Roger e Chantal se encontram. Chantal é a prostituta
favorita de Irma e foge do Balcão com Roger, o líder revolucionário por quem se
apaixonou, para se tornar mártir da Revolução. Ela é convocada a ser a
representante dos revoltosos, o único corpo possível de ser o símbolo da
Revolução, a criatura que deixou de ser mulher para se transformar em uma
imagem, a pessoa que levará as exigências do povo. Ela acredita que pode enganar
a rainha, o bispo, o juiz e o general, pois conhece o poder que eles têm e no bordel
aprendeu a representar e a fingir. Ao aceitar o papel de símbolo, sua vida teria um
propósito. Roger, o líder dos revolucionários, “terno e doce, o mais duro e o mais
severo dos homens”, é contra a participação de Chantal e tenta fazê-la desistir.
Porém, Chantal é a mulher prostituta que não tem rivais e empresta sua voz a
serviço do ódio: “Nada sou além de meu rosto, de minha voz e dentro de mim uma
adorável bondade” (Genet, s/d. p.53).
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Chantal e Roger fazem da praça uma heterotopia para um duo romântico no
palco da Ânima, em que são encenados os argumentos de ambos os personagens,
o amor é a justificativa dela para que siga e a dele para que a impeça. O duo é
permeado por sequências de saltos, quedas e recuperações. As palavras de
Albright, (2013, p.56) encontram eco e sensibilidade para o duo de Chantal e Roger:
Cair em si. Voar antes que caia no chão, prazer e medo no risco. O medo
se torna emoção, a emoção se torna uma espécie de unidade em êxtase
com o ar, eu não tenho medo. A gravidade saberá lidar conosco. Caídos,
o nosso amor deve encontrar um novo caminho ou morrer.
Nesta cena, os corpos se afetam através dos movimentos fluidos que narram
a alegria do encontro, a paixão e o desespero da despedida. Como apontou Spinoza
(2009, p.38):
Por afeto entendo as afecções do corpo que aumentam ou diminuem,
ajudam ou limitam, a potência de agir deste corpo e ao mesmo tempo as
ideias destas afecções. Portanto, se podemos ser causa adequada de
uma destas afecções, entendo por este afeto uma ação, caso contrário,
uma paixão.
Para Roger, Chantal pertence a ele. Para Chantal, ela encarna a Revolução. E
é nesse
gap
que os corpos oscilam. “Você me envolve e eu te contenho”. (Roger).
“Eu te envolvo e te contemplo”. (Chantal). (Genet, s/d. p.56). O homem apaixonado
e possessivo não quer perder Chantal, pensa que ela pertence a ele, não à
Revolução. Com medo, implora a ela que fique, pois não a tirou do bordel para
entregá-la à insurreição. Mas Chantal escapa e Roger cai, triste e abandonado.
Após o duo romântico, entra em cena, lentamente, o coro de revolucionários
e se coloca no fundo do palco. Chantal dança na frente dele, enquanto a música
se confunde com o som das metralhadoras.
O solo inicia após o duo romântico com Roger, líder revolucionário, e por
isso certa languidez nos movimentos, que vão se transformando em
gestos heroicos, que se intensificam com a entrada de um grupo de
rebeldes, que são incitados à luta por Chantal (Dantas, 2012, p.2).
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Silva (2021, p.131) entende que em
Caixa de ilusões
, a mulher é o símbolo da
revolução, “a presença feminina e o discurso empoderador reforçam a proposta
de Eva Schul, de exaltar a ânima, a porção feminina da alma. O corpo de Chantal
discursa, com sua doçura, sensualidade e heroísmo, a própria revolução”. O solo
foi permeado por movimentos de saltos, quedas, contrações e expansões para
salientar as várias faces da personagem: prostituta, heroína e apaixonada. Algumas
referências para compor a personagem Chantal são trazidas por Dantas (2012, p.2):
“Os gestos heroicos da prostituta se inspiraram nas grandes dançarinas modernas,
como Isadora Duncan, Mary Wigman e Martha Graham”. Assim, Mônica dá carne à
Chantal, a mais dura e severa, a mais terna e a mais doce das mulheres. Na análise
de Silva (2021, p.135):
O corpo Chantal discursa sua essência única e singular e se constrói
dançante em afeto com outros corpos. Pontos de poder e resistência
atravessam seu corpo e em sua dança Chantal se torna melhor em
relação a si mesma, pois, no pensamento de Spinoza (2009), um corpo
que se constrói em afeto se torna melhor. O encontro com Roger e o
afeto romântico, a ousadia doce e revolucionária no encontro com as
figuras arquetípicas, a sensualidade no balcão, a recusa e, por fim, a
queda, decretada pelo chefe de polícia.
Chantal é morta. A menina pela qual Madame Irma “tem uma queda”, cai. O
chefe de polícia a mata e se retira parecendo segurar algo com as mãos, como se
fosse um coração, o coração de Chantal, o coração da Revolução. Sai de cena em
êxtase, como se desfilasse, contemplando o que carrega em suas mãos.
Finalmente o “insignificante”, o “pobre incapaz”, tem o troféu que lhe conferirá
poder. Os revolucionários saem de cena carregando Chantal, morta. Caída, como
propõe Albright (2013, p.53): “com a graça inerente da aceitação do destino”.
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Figuras 9 e 10 Caixa de Ilusões
Fonte: Projeto Carne Digital: Arquivo Eva Schul
O chefe de polícia puxa um carro alegórico. Nele estão os três poderes,
ostentando a vitória. Como aponta Silva (2021, p. 132), “é a espetacularização do
poder, da morte e da dor”. O carro atravessa o palco e carrega Chantal, presa à
roda, uma clara referência à roda de Catarina, um dos métodos de punição,
suplício e espetacularização utilizado desde a Antiguidade até o início da
Modernidade e citada por Foucault em Vigiar e Punir (1987). Uma roda de carroça,
em que o condenado era amarrado, com os membros expostos entre os vários
raios. Seus membros eram quebrados com martelos e seu corpo ficava exposto,
agonizando até a morte, em praça pública. Que Chantal seja o corpo condenado,
morto e exposto na roda, com tochas em volta. No espetáculo há um cortejo que,
de algum modo, remete a um desfile carnavalesco em que na alegoria de um carro
se a espetacularização da tortura, da morte e da manutenção do poder da
igreja, da justiça e do carrasco. Serviram de inspiração para a composição do
quadro os espetáculos de dança
The Catherine Wheel
, de Twyla Tharp e
Revelations
, de Alvin Aylen.
Na análise de Silva (2021, p. 133) o início é retomado no final do espetáculo,
através da cortina d’água no fundo do palco e a descida dos panos: “Os arquétipos
dançam com Roger e por fim o carregam, ostentando seu poder e vitória, sob a
luz do grande lustre. Roger perdeu Chantal, perdeu a batalha e lhe restam os
prazeres do Grande Balcão, que precisa reabrir”.
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Tranque as portas, meu bem, e cubra os móveis... Daqui a pouco será
preciso recomeçar... acender tudo de novo... Vestir-se... ah, as fantasias!
Redistribuir os papéis... assumir o meu... preparar o de vocês... juízes,
generais, bispos, camareiros, revoltosos que deixam a revolta congelar,
vou preparar meus trajes e os salões para amanhã... é preciso voltar para
casa onde tudo, não duvidem, será ainda mais falso que aqui (Genet, s/d,
p. 95).
O corpo-político em
Caixa de ilusões
experimenta e potencializa diversos
tempos e espaços. Afeta e é afetado, fluindo através do fazer dança de Eva Schul.
Fabião (2010, p. 321) sublinha que o “nexo do corpo cênico é o fluxo. O passageiro,
o instantâneo, o imediato – rajada, revoada, jato. Nascendo e morrendo; nascendo
morrendo. O corpo fluido e fluidificante é a matriz espaço-temporal da cena”.
Nesse sentido, discursando poderes, prazeres e resistências é que o corpo
dançante da Ânima flui em cena. O corpo que dança é político pelo simples fato
de dançar, pois em sua dança se posiciona e produz discursos que organizam e
desorganizam tempos e espaços, questionando e subvertendo lógicas, expondo
sua potência. Foi assim que a Ânima construiu em cena a heterotopia de Genet,
entre lançamentos, gaps e quedas.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br