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O feminicídio como material: explorando a
narrativa dramatúrgica
Raquel Turco Zepka Senna
Walter Lima Torres Neto
Para citar este artigo:
SENNA, Raquel Turco Zepka; TORRES NETO, Walter Lima. O
feminicídio como material: explorando a narrativa
dramatúrgica.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0301
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O feminicídio como material: explorando a narrativa dramatúrgica
Raquel Turco Zepka Senna; Walter Lima Torres Neto
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-20, set. 2022
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O feminicídio como material: explorando a narrativa dramatúrgica
1
Raquel Turco Zepka Senna
2
Walter Lima Torres Neto
3
Resumo
Nesse artigo procuramos apresentar e problematizar duas questões relacionadas
entre si. A primeira questão é referente às estratégias e dinâmicas para o ensino ou
aperfeiçoamento da escrita teatral, isto é, uma contribuição para uma pedagogia da
dramaturgia. A segunda questão se traduz na apresentação, seguida de comentários,
de um fragmento de um texto que se deseja teatral. O texto em questão,
Hipólito
,
encontra-se em processo de escrita e aqui apresentamos uma reflexão parcial sobre
o processo de sua redação encaminhado por nós. Portanto, nosso artigo não
apresenta conclusões finais, permanecendo em “aberto” até que o processo de
escrita termine e possamos julgar melhor esse texto desde seu verdadeiro lugar de
enunciação que é o espaço teatral.
Palavras-chave
: Dramaturgia. Feminicídio. Pedagogia teatral. Processos criativos.
Escrita.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Sofia Robin Ávila da Silva - Licenciada em Letras
(UFRGS). Mestra em Estudos Literários Aplicados (UFRGS). Professora de Língua Portuguesa e Literatura na
rede estadual de ensino do Rio Grande do Sul.
2
Mestranda em Artes nicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pós-graduada em
linguagem audiovisual. Graduação em Teatro pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atriz,
diretora teatral, dramaturga, poeta. raquel.zepka@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0370334258238264 https://orcid.org/0000-0003-4730-2631
3
Pós-Doutorado em City University of New York (EUA). Doutorado pela Université Sorbonne Nouvelle Paris
3. Mestrado pela Université Sorbonne Paris 3. Professor titular de estudos teatrais nos cursos de
Graduação e Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e no Programa de Pós-
graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). limatorres@ufpr.br
http://lattes.cnpq.br/1848383210831565 https://orcid.org/0000-0001-5707-5896
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Raquel Turco Zepka Senna; Walter Lima Torres Neto
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Feminicide as a matter: exploring the dramaturgical narrative
Abstract
The present article presents and discusses two topics related to each other. The
first topic refers to the dynamics and strategies in teaching or perfecting theatrical
writing. That is, a contribution to a pedagogy of dramaturgy. The second topic is
expressed through the presentation, followed by comments, of an excerpt of a text
that aims to be theatrical. The text in concern,
Hipólito
, finds itself within the process
of writing, and here we propose a partial reflection surrounding the writing process
performed by us. Therefore, our article does not present final conclusions, remaining
“open” until the writing process reaches an end, and by then we will be able to
provide a better judgment of the text from its truthful place of enunciation, which is
the theatrical space.
Keywords
: Dramaturgy. Feminicide. Theatrical pedagogy. Creative processes. Writing.
El feminicidio como material: explorando la narrativa dramatúrgica
Resumen
En este artículo tratamos de presentar y problematizar dos cuestiones que se
relacionan entre sí. La primera se refiere a las estrategias y dinámicas para la
enseñanza o perfeccionamiento de la escritura teatral, es decir, una contribución a
una pedagogía de la dramaturgia. La segunda se traduce en la presentación, seguida
de comentarios, de un fragmento de un texto para ser teatralizado. El texto en
cuestión,
Hipólito
, está en proceso de redacción, y aquí presentamos una reflexión
parcial sobre ese proceso remitido por nosotros. Por lo tanto, nuestro artículo no
presenta conclusiones; sigue “abierto” hasta que termine el proceso de escritura y
podamos juzgar mejor ese texto desde su verdadero lugar de enunciación, que es el
espacio teatral.
Palabras clave
: Dramaturgia. Feminicidio. Pedagogía teatral. Procesos creativos.
Escritura.
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É escrevendo, a partir da e em direção a mulher e
enfrentando o desafio do discurso governado pelo
falo, que a mulher afirmará a mulher num lugar
diferente daquele reservado a ela no e pelo símbolo,
ou seja, o lugar do silêncio. Que ela escape da
armadilha do silêncio.
(Hélène Cixous. O Riso da Medusa, 2022).
Apresentamos e problematizamos a seguir duas questões relacionadas entre
si. A primeira questão é referente às estratégias e dinâmicas para o ensino ou
aperfeiçoamento da escrita teatral, isto é, uma contribuição para uma pedagogia
da dramaturgia. A segunda questão se traduz na apresentação, seguida de
comentários sobre o processo, de um fragmento de um texto que se deseja
teatral. Porém, o texto em questão,
Hipólito
, encontra-se inacabado sendo parte
integrante de nossa dissertação de mestrado. E assim apresentamos uma reflexão
parcial sobre esse processo de sua escrita encaminhado por nós. Nosso artigo
apresenta conclusões parciais e lacunares sobre o destino desta “escrita criativa”,
visto que permanece em “aberto” aguardando sua finalização. Trata-se de um
processo de escrita que ainda não encontrou seu termo e que precisa, segundo
nosso julgamento, passar pela prova de sua enunciação desde seu verdadeiro lugar
que são as vozes e o espaço teatral.
É possível o ensino da dramaturgia?
Sim. É bem possível. Os norte-americanos que o digam. Sabemos que a
cultura teatral norte-americana é pródiga em livros que sistematizam propostas
didáticas para escrita teatral. São conhecidos os diversos manuais de
playwriting
.
O volume elevado de obras evidentemente está associado às demandas do
mercado teatral estadunidense, sobretudo aquele concentrado na Broadway e no
Off-Broadway
como àquele associado à indústria cinematográfica do roteiro. Além
da ampla profusão de bibliografia específica sobre o assunto, existem muitos
anos cursos em nível de graduação ou pós-graduação que abordam a formação
de escritores tanto para o cinema quanto para o teatro. Isto é, uma dinâmica
na vida teatral e cinematográfica norte-americana que provoca permanente
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interesse sobre “como escrever uma peça”, fato que induz a renovação de uma
bibliografia especializada.
Entre nós, esse tipo de sistematização dentro do gênero “manual” de
dramaturgia ou de teledramaturgia, a maneira do modelo americano também é
conhecida. Temos uma bibliografia razoável em língua portuguesa
4
. Como se sabe,
é muito específico o processo de se escrever para teledramaturgia ou para um
roteiro cinematográfico, se comparamos com o processo de uma narrativa cênica.
Entretanto, em ambos os casos podem ser encontrados os vestígios da peça-
bem-feita
5
como estrutura modelar. Esse modelo da
peça-bem-feita
, gestado por
Eugène Scribe e chancelado pelo crítico Francisque Sarcey, forjou a base da
narrativa burguesa do entretenimento, que usa de uma metodologia que organiza,
[...] peripécias, situações surpreendentes e
quid pro quo
engraçados de
tal maneira a configurar uma história emocionalmente cativante, sem que
os adornos narrativos ferissem o caráter realista da história. Ou melhor,
sua verossimilhança, e com isso seu grau de realismo, é tanto testada
quanto respeitada por sua eficácia emocional específica. A ela devem
servir os elementos estruturais fixados. Isso indica a função ideológica
dessa dimensão afetiva e sensacionalista, cujo escapismo é camuflado
pelos recursos realistas, mas revelado pelo excesso de peripécias. Essa
interação entre eficácia emocional e seu enquadramento num
naturalismo realista é a base formal da finalidade moralista da peça bem-
feita (Baumgärtel, Medeiros, Sanches, 2019, p.125).
Com as intervenções das vanguardas históricas na primeira metade do século
XX e no entre guerras, algumas experiências narrativas atritando formas e
conteúdos tentaram abalar, todavia sem sucesso, o lugar hegemônico desse
modelo. Foi necessário aguardar o advento do dito teatro do pós-guerra (na sua
versão do “teatro do absurdo” conforme classificou Martin Esslin um conjunto de
autores e obras “irregulares”) para que os alicerces desse edifício modelar
começassem a ser abalados.
No teatro, o modelo é estremecido, mas persiste. no cinema, que trabalha
na transposição do romance para as telas, essa estrutura exemplar se demonstra
4
No âmbito de uma bibliografia geral sobre
playwriting
sinalizamos: Campos, Zahar, 2007.
5
Sobre a condição modelar da
peça-bem-feita
destacamos a reflexão de Baumgärtel, Medeiros e Sanches
(2019), quando analisam e descrevem a presença desse modelo na dramaturgia contemporânea brasileira.
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eficaz. Foi necessário a emergência do teatro político, desde as experiências de
Piscator com sua revista-política e Brecht com o teatro épico para que a soberania
desse modelo decalcado da estrutura narrativa da tragédia antiga diminuísse o seu
alcance deixando de ser hegemônico. Mais recentemente, com o advento das
considerações de Hans-Thies Lehmann na formulação por um teatro pós-
dramático, a estrutura da peça-bem-feita conhece uma retração no ambiente da
dramaturgia teatral contemporânea, mas evidentemente que não desaparece.
E o ensino da dramaturgia no Brasil?
Como é sabido, a forma narrativa predominante em nosso país, independente
de regionalismos, é a musical, ou dramático musical. Isto é, a canção por
excelência com todas as suas denominações em gêneros (samba, MPB, sertanejo,
brega...). A canção é uma narrativa que brota desde os lugares mais inusitados e
nunca ouvimos dizer que existisse uma “escola para cancioneiros” ou que haja um
curso preparatório específico para letristas. A canção popular brasileira,
independente do seu ritmo, é uma produção narrativa que aflora desde o interior
mais telúrico da cultura de modo a se transformar até mesmo numa marca
identitária. A canção brasileira graças a sua excelência se transformou em objeto
de exportação como o futebol e a capoeira que são entendidos no exterior como
sinônimo de Brasil. O mesmo não se dá com uma dramaturgia, sobretudo escrita
em português e que demandaria tradução para outros idiomas a fim de encontrar
maior penetração no estrangeiro. Em todo caso, numa rápida pesquisa na Internet,
o interessado em escrever dramaturgia encontra lugares específicos e
especializados no estudo dessa prática narrativa.
Dando um passo atrás, encontramos a preocupação com a formação de
autores dramáticos numa das ações formativas mais simbólicas, pois se inscrevia
no desejo de interpretar a “realidade brasileira”. Estamos aludindo ao emblemático
Seminário de Dramaturgia do Teatro Arena (1958). Desde então, essa preocupação
em formar quadros que se renovassem na escrita de nossa dramaturgia não
foi mais exuberante devido aos obstáculos impostos pela censura do regime civil
militar. Desde seu término e com o advento do denominado “teatro de grupo” o
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interesse na retomada de novos autores ganhou renovado impulso graças às
diversas modalidades que se foram inventando no seio dessa sociabilidade que é
o trabalho coletivo. Na atualidade, como dizíamos, o interessado em escrever para
teatro encontra ações formativas articuladas por diversas instituições, como por
exemplo: Seminário Internacional de Dramaturgia Amazônica (UFPA/CAPES);
Seminário Brasileiro de Escrita Dramática (Sistema S/UFSC); Seminário de
Dramaturgia (SP Escola de Teatro); Núcleo de Dramaturgia SESI em parceria com
o British Council; dentre tantas outras iniciativas inclusive associadas aos grupos
teatrais de vida mais longeva como o Grupo Galpão. Muitas dessas ações
formativas resultam em publicações em E-Pub, como no caso do Núcleo de
Dramaturgia Sesi-British Council
6
, que além de ser um curso focado no estímulo
a novos dramaturgos oferecendo aulas a alunos selecionados via edital, publica as
peças dos autores que desenvolveram seus textos teatrais ao longo dessa
formação. O lançamento dos textos, após o encerramento de cada turma, em
formato PDF, MOBI e EPUB de forma gratuita, incentiva a leitura e difusão da
dramaturgia produzida no Brasil. Nesta mesma proposta, o Núcleo de Dramaturgia
SESI PR, lançou a coletânea Escrevendo o Presente
7
.
Outras vezes, observam-se as mais diversas modalidades de Oficinas de
Dramaturgia ou até mesmo o oferecimento de Cursos online de dramaturgia.
Cursos de graduação a exemplo de instituições como a UFRGS, a UFSC e a Célia
Helena Centro de Artes e Educação preocupam-se em construir uma formação
específica na qualificação de autores teatrais em consonância com as habilitações
mais tradicionais.
Compreendemos as dramaturgias no contexto brasileiro a partir da década
de 1990 como um vasto repertório que abarca desde a visibilidade para
dramaturgos que publicam a escritura de textos teatrais, como o autor londrinense
Mario Bortolotto, até a dramaturgia direcionada a encenação propriamente dita,
6
O Núcleo de Dramaturgia SESI-SP, teve sua primeira turma formada em 2008.Resultado de uma parceria
entre SESI-SP e o British Council, o curso anual, oferecido via chamada pública, tem publicado o compilado
de textos dos dramaturgos que passam pela experiência de desenvolver sua escrita para teatro tendo aulas
com professores autores experientes da cena teatral contemporânea. Em junho de 2022, foi lançado o ePUB
da 12ª turma do Núcleo de Dramaturgia SESI-SP.
7
Escrevendo o presente é o ebook comemorativo dos 10 anos do Núcleo de Dramaturgia do SESI- Paraná,
que contém 10 textos dramatúrgicos produzidos ao longo do projeto.
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como a organização não somente do texto, mas dos demais elementos cênicos,
como iluminação, som, a performance dos atores a fim de gerar um discurso
artístico a partir da teia de relações entre os fios que ligam esses elementos. No
entanto, como estamos, aqui, nos detendo ao texto literário dramático, apontamos
que a dramaturgia brasileira permanece na tentativa de tensionar a forma clássica
do drama escrito como o texto a ser desenvolvido no palco, ou seja, com caráter
representativo. Ainda que as experimentações textuais indiquem diferentes
formas de relação do espetáculo teatral com o público, através dos atores com a
quebra da quarta parede ou por dispositivos cênicos que provocam o
estranhamento do espectador e, por consequência, gera uma reflexão sobre o que
ele está vivenciando; ou ainda, que o texto seja organizado, enquanto redação, de
forma fragmentada e poética, ainda a forma predominante é a do drama como
regente da encenação.
Nas vastas experimentações estruturais nas composições dramatúrgicas
desenvolvidas no cenário brasileiro hoje, destacam-se, no entanto, discursos em
comum, com temáticas predominantemente críticas às urgências sociais. Para
nós, a violência contra a mulher que, desde o período pandêmico, de 2020 a 2021,
recrudesceu no país e a banalização da produção de conteúdo de
entretenimento que reforçam posturas abusivas contra milhões de mulheres, foi
o tema que nos levou a pensar nos meios de construir uma dramaturgia onde seu
corpus
e seu discurso promovessem a discussão sobre feminicídio. Para isso, se
realizou o planejamento de procedimentos que envolvessem a aproximação com
o tema, através da coleta de documentos sobre o feminicídio, e a prática criativa
de estruturação do texto teatral. Somado à prática de desenvolvimento do texto
Hipólito
, houve o estudo sobre os elementos fundamentais do drama teatral,
através da leitura de obras de autores dramaturgos que aprofundam o
entendimento da composição das estruturas, conteúdos e construção de
personagens na dramaturgia ocidental.
Hipólito
, um
work-in-progress
O fragmento do prólogo que o leitor encontrará abaixo faz parte do texto
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teatral
Hipólito
, que vem sendo desenvolvido ao longo da pesquisa de mestrado
no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. O núcleo deste estudo é a investigação sobre o feminicídio, para a
criação de uma dramaturgia. Em nosso processo para escrita do texto temos
explorado diferentes documentos como reportagens e filmes sobre a temática,
bem como entrevistas realizadas por nós com sobreviventes deste crime
hediondo que interrompe a vida das mulheres. Respondendo à brutal constatação
de que ser mulher é estar em constante risco de violência, esta pesquisa descreve
o desenvolvimento da dramaturgia disparada por uma diversidade de vozes
femininas. As vozes de mulheres que nos relataram suas experiências limites
confrontadas com a bestialidade humana e as vozes que nos narraram a história
daquelas que não sobreviveram aos abusos e à violência física terminal.
Foram esses testemunhos, documentos sobre feminicídio, que serviram
como fontes para a fabricação de fragmentos atravessados pelo reconhecimento
que estas mulheres têm sobre si neste mundo, neste tempo. Os depoimentos
registrados em áudios foram gravados em entrevistas realizadas na
DEAM
-
Delegacia 24h de Proteção à Mulher, em Porto Alegre e via
WhatsApp
com
mulheres sobreviventes destes crimes. Outras fontes ainda foram os arquivos de
reportagens, informações de plataformas
online
sobre os índices que apresentam
as condições de violência e os riscos que as mulheres enfrentam. Essas fontes
suscitaram uma polifonia de vozes que está povoando nosso imaginário para a
redação do texto. Diante destas informações reunidas, todas potencialmente
imagéticas e sensíveis, foi que elaboramos procedimentos para o agenciamento
ficcional destes registros que estão dando forma à escrita de
Hipólito
.
Abaixo, o estado atual do prólogo que abre nosso texto.
*
PRÓLOGO
Fim de tarde.
Mulher e Homem em um carro, ele, calado, dirige sem parar.
Mulher
- Por favor, o rádio está muito alto. Pode desligar?
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Desculpe, eu não quis dizer isso.
Onde estamos indo amor?
Pausa
Faz um tempo que não passeamos.
Me sinto bem melhor, boa ideia, ótima ideia!
Reconheço essa estrada! Perto das pedras. É silencioso aqui.
Pausa
Não deveríamos sair tão tarde. Podíamos aproveitar o dia melhor saindo
antes deles acordarem.
De qualquer forma, é um passeio, não vamos ficar.
Se as coisas estivessem um pouquinho melhor, até poderíamos...
Desculpe, eu não quis dizer isso.
Mas foi uma boa ideia. Eu precisava respirar um pouco sabe...
Longe da cidade, longe de tudo. E as contas chegando sem parar! Separei
umas vagas que eu vi nos classificados, depois te mostro.
Também não tem por que ser tão exigente, nessa situação qualquer coisa
serve
A Mulher abre a janela, acende um cigarro. Pausa longa.
Faz tempo que não passamos por aqui, tem tanta coisa linda aqui perto,
ninguém nem conhece, a natureza é perfeita.
Perfeita.
Eu sempre quis conhecer outros lugares...não tem como.
Inferno.
Querido, estamos indo perto do rio?
Está bem, não vou estragar a surpresa. Tudo bem?!
Desculpa.
O vento parece um assovio, está esfriando. Perto do rio fica gelado, não
peguei um casaco, na pressa assim... tu também podia ter dado uma pista
que íamos longe...
Desculpa.
O Homem estaciona o carro. Um pôr-do-sol exuberante toma o veículo por
inteiro. Diante da violenta iluminação a Mulher sorri admirada. Pausa longa.
Querido, esse é o sol mais lindo que eu já vi…
Obrigada. Tudo vai melhorar. É um sinal.
O Homem dá a partida e segue dirigindo.
Não era isso...tá perto?
Tu está cuidando do horário?
Já não reconheço mais essa estrada, estou um pouco enjoada de tanto
rodar, preciso voltar e preparar tudo para amanhã, vai ser um dia cheio.
Por que está indo adiante?
O homem suspira profundamente, ele não olha para a Mulher que esfrega
as mãos, abre a bolsa, olha a paisagem, com desconforto.
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Olha, é lindo, mas precisamos pegar o caminho de volta.
Podíamos vir no final de semana, mas hoje…
Não que eu não tenha gostado, não é isso, mas queria aproveitar mais, tu
podia ter organizado isso melhor, ou eu tenho sempre que pensar em tudo?
Aliás, paguei a conta de luz, fiz o mercado da semana, tá ouvindo?!
Desculpe, eu não quis dizer isso.
A mulher acende outro cigarro, impaciente
.
Eu me preocupo…
Só isso.
Pode ligar o rádio se quiser, tudo bem.
Ai…uma dor de cabeça estranha.
Tá cuidando onde a gente tá? Passou o quilômetro 2 e já não tô entendo
nada, não é litoral né?
Pausa.
Não é mesmo!
Reparou que existem uns lugares que não são lugar nenhum?
Entre as cidades, entre os municípios, tudo tinha que ter um nome, de
repente até tem...como será viver nesses espaços entre, nas fronteiras,
assim no meio do nada.
O que foi? Vai me dizer que eu pareço louca agora?
A gente precisa conversar sobre as coisas.
O Homem faz uma manobra violenta com o carro.
Blackout.
Som estridente do carro freando bruscamente. Som da porta do carro
sendo aberta.
Amor? Amor?!!
*
Criando caminhos e conhecendo a dramaturgia
Como mencionado, nossa dissertação está em desenvolvimento, e ela
consiste na peça que vem sendo escrita, e numa reflexão que se debruça sobre a
teoria do drama e os principais elementos que constituem a escrita de uma
narrativa teatral. Desse modo, nos dedicamos a estudar como subsídio os
trabalhos em língua portuguesa de alguns autores consagrados e que legaram uma
reflexão sobre suas experiências dramatúrgicas:
Da Literatura ao Palco -
Dramaturgia de Textos Narrativos
, de José Sanchis Sinisterra (2016);
Introdução a
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Dramaturgia
de Renata Pallottini (1988) bem como artigos e entrevistas sobre a
dramaturgia de Luís Alberto de Abreu (2016).
Nosso trabalho criativo de escrita do texto teatral vem sendo encaminhado
pela investigação das contribuições desses autores supracitados. Constatamos
que em seus livros, esses autores compartilham tanto seus modos de pensar a
narrativa quanto suas práticas de escrever propriamente um texto. Esses autores
oferecem caminhos distintos para o acesso ao entendimento de uma escrita
teatral. Nessa tríade encontramos um núcleo pedagógico que descreve e analisa
os elementos constitutivos da dramaturgia em relação com gêneros literários e
formas teatrais.
Nosso objetivo vem sendo o de conhecer o mais adequadamente possível a
função de cada parte constituinte da dramaturgia, bem como a problemática dos
gêneros e seus possíveis efeitos sobre o leitor/espectador. Como comenta Abreu
(2016) é imprescindível a todos os criadores, em especial ao dramaturgo, o sentido
de contribuir para estabelecer a delicada e complexa tapeçaria artística nos
tempos que correm, visto que cada tempo inventa suas próprias formas para
tratar de conteúdos conhecidos.
No âmbito de nossas investigações, tanto teórica sobre o drama e seus
constituintes, quanto na prática em torno do feminicídio procuramos uma forma
de dramaturgia autoral. Isto é, que a forma venha a ser o resultado de nossas
pesquisas e de nossa subjetividade. Vem se demonstrando revelador os
fundamentos da narrativa teatral e os procedimentos desenvolvidos com intuito
de exercitarmos as potencialidades da criação a partir da noção de profanação
8
segundo os documentos oficiais sobre o feminicídio.
Também estamos sendo norteados pela ideia de Sarrazac (2002, p. 34), outro
autor que nos é caro, quando afirma que “escrever no presente não é contentar-
se em registrar as mudanças da nossa sociedade; é intervir na conversão das
formas”. Acreditamos que, com a dramaturgia é possível trazer à tona problemas
8
De acordo com Giorgio Agamben (2007), profanar é desativar os dispositivos do poder e devolver ao uso
comum os espaços que ele havia confiscado, ofertar uma nova dimensão do uso de algo anteriormente
designado para uma função específica, neste caso os documentos que atestam a violência contra mulher,
os registros de feminicídio, são utilizados justamente como disparadores poéticos para a criação artística,
no caso desta pesquisa.
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sócio-políticos e reescrevê-los, imprimindo no texto outras possibilidades de
sentido e significado. A dramaturgia é um potente campo no qual precisamos
praticar e compartilhar publicamente as questões de nosso tempo.
Revisando os elementos do drama
Nesta pesquisa, percebemos a necessidade de, inicialmente nos determos na
estrutura dramática como um todo e na elaboração das personagens em
particular. É notável o percurso do drama até a pós-modernidade. Nesse percurso
percebemos suas alterações da forma clássica até suas mutações em função de
outros gêneros de narrativas. As três abordagens que abaixo descrevemos
contribuíram com nosso modo de refletir sobre os caminhos da dramaturgia e,
sobre as escolhas que optamos para a escrita da peça.
A obra
Da literatura ao palco: dramaturgia de textos narrativos
(2016), de
Sinisterra, nos apresentou diversos exemplos de como o autor desvenda
procedimentos para extrair a dramaticidade de textos narrativos não dramáticos
e organizá-los, adaptando-os para a forma teatral. No livro estudado, as
alternativas e métodos, que são expostos, nos possibilitaram uma intelecção e um
olhar mais apurado sobre como modelar o material coletado para a nossa escrita.
De forma didática, Sinisterra explora o uso de ferramentas da narratologia para a
compreensão das partes que compõem o texto e as possibilidades de reformulá-
lo. Os documentos disparadores para a composição de nossa peça são textos
jornalísticos, entrevistas e vídeos, e cabe a nós a transformação da linguagem
sintetizada pela ficcionalização das informações levantadas. Na proposta
metodológica de Sinisterra, por exemplo, o autor faz a separação entre a fábula
(enredo e interação entre as personagens do texto) bem como o teor discursivo
dos textos. Essa sistematização nos vem auxiliando na transposição da forma dos
documentos para a criação de
Hipólito
.
Além do aprofundamento no estudo da teatralização de textos não escritos
para o palco, nos vem sendo fundamental compreender a estrutura que sustenta
a peça teatral. Para tanto,
Introdução a dramaturgia
(1988) de Renata Pallottini foi
uma espécie de guia para revisão da noção de drama, desde sua origem, partindo
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da
Poética
, de Aristóteles. Os escritos do filósofo grego, segundo Pallottini,
registraram as três leis fundamentais a serem consideradas para a criação da
poesia dramática, sendo elas, o
tempo
, o
lugar
e a
ação
, elementos que são
insuficientes para nosso mundo atual. As leis que determinam que toda obra
dramatúrgica deve apresentar uma ação com início, meio e fim, dentro de um
mesmo dia e espaço físico, não daria conta, ao longo do tempo, de serem
utilizadas em toda e qualquer obra dramatúrgica no tratamento de outros temas
diferentes do preconizado pelo teatro antigo. É necessário romper, portanto, as
leis postas como fundamentos acerca das unidades de
tempo
e
lugar
.
Partindo igualmente das considerações de Aristóteles, Luís Alberto de Abreu,
nos auxilia na compreensão das transformações da noção de drama e da noção
de construção das personagens. Isso ele o faz por meio de uma reflexão em três
textos que selecionamos: EPPUR SI MUOVE, publicado na revista
Vintém
, em 1998;
“A personagem contemporânea: uma hipótese”, publicado na revista
Sala Pre
ta,
em 2001 e “A restauração da narrativa”, publicado na revista
Percevejo
, em 2000.
Por meio desses três escritos, Abreu desvenda o percurso histórico da relação que
as grandes mudanças no âmbito social provocaram no fazer artístico e,
consequentemente, na forma e conteúdo do drama. Em EPPUR SI MUOVE, o autor
reafirma importância da
Poética
devido a sua potencialidade em avançar nas
discussões acerca “do fazer dramaturgia”, na estética, no conteúdo posto em
palavras. Os registros aristotélicos foram o ponto de partida para que outros
autores que contestaram ou ainda reafirmaram as noções do que seria de fato
uma
peça bem-feita
. Em
A personagem contemporânea: uma hipótese
, Abreu
discorre sobre algumas das principais trajetórias progressivas de heróis e de
heroínas na dramaturgia. Enquanto as personagens que surgem na raiz do drama,
são homens e mulheres de valores e linhagens sociais elevados, podemos
compreendê-las como personagens de base para outros tipos que viriam
posteriormente. Abreu nos convida a desbravar a trajetória dos elementos
basilares da peça teatral e das constantes necessidades que a variação de caráter,
objetivos e linhagens de personagens, nos permitem tecer uma linha do tempo,
do teatro ocidental e compreender, que todas essas reformulações, fizeram com
que a narrativa também se transformasse.
O feminicídio como material: explorando a narrativa dramatúrgica
Raquel Turco Zepka Senna; Walter Lima Torres Neto
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-20, set. 2022
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Finalmente, em
A restauração da narrativa
, o autor discorre sobre as
mudanças nas estruturas sociais que afetaram a essência da coletividade e do
imaginário comum, e como isso refletiu nas construções dramatúrgicas e nas
encenações teatrais. Estamos de acordo com Abreu, quanto à sua defesa por um
aprofundamento na pesquisa dramatúrgica voltada para o reequilíbrio entre os
princípios narrativos e dramáticos e por uma aproximação com o espectador. Este
seria um bom caminho para ampliar as possibilidades do teatro como veículo de
partilha de experiências com o ouvinte/espectador.
Uma escrita que se faz em etapas
Ao iniciarmos nossa dissertação de mestrado, entendemos que esta seria
uma
pesquisa artística e criativa em ação
, conforme menciona Sánchez (2015).
Esse autor abre espaços para indagar e organizar diferentes modos de
pensamento e métodos. Percebemos que não e nem estamos propondo para
nós mesmas uma forma rígida no modo de operar neste processo de uma escrita
cênica. Nesse sentido é que compartilhamos aqui as etapas de nosso processo.
Primeiramente, organizamos procedimentos propiciatórios para criação e
estruturação da escritura do texto, considerando que seus eixos matriciais
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são os
documentos levantados sobre feminicídio, os elementos dramatúrgicos estudados
(diálogos, narração, cena e gêneros dramáticos...) e a escrita criativa livre
estimulada por esses atritos entre elementos formais e conteúdos descobertos.
Partindo dessa “pedagogia da dramaturgia” organizamos ações que favorecessem
o processo de escrita do texto. Essas ações se constituíram basicamente em três
etapas distintas, porém amalgamadas entre si conforme descrevemos abaixo.
1ª Parte. Investigando e recolhendo o conteúdo (pesquisa de campo)
- Coletamos documentos sobre feminicídio. Selecionamos diferentes formas
de registros como reportagens e entrevistas publicadas na mídia digital e impressa,
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Pilares utilizados pelo autor que constituem a base da obra desenvolvida. “A análise matricial é uma
metodologia que visa analisar a matriz criativa do artista e que tem como esclarecimento seu processo de
criação” (Brito,1999, p. 281).
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fotos e áudios;
- Organizamos um cronograma de entrevistas que foram realizadas com
sobreviventes de feminicídio;
- Realizamos as gravações das entrevistas e estabelecemos um arquivo de
assuntos tratados nos testemunhos;
- Registramos em diário/áudio os tópicos que na nossa opinião se
destacariam na escrita dramatúrgica (“onde” e com “quem” foram feitas, “qual a
sensação” provocada por esses encontros, quais aspectos da aparência, fala e
movimentação das entrevistadas foram marcantes etc.).
Inicialmente, pretendíamos reunir todo esse material, constituindo um bom
volume de notícias e entrevistas, imagens e áudios, para posteriormente iniciar a
escrita de fragmentos dramatúrgicos. Porém, as entrevistas desencadearam a
necessidade de iniciar os esboços de diálogos e pequenas cenas, a partir das ideias
que os encontros suscitaram.
As entrevistas registradas foram realizadas com: uma delegada de polícia da
delegacia da mulher
DEAM
-24h de Porto Alegre; duas sobreviventes de feminicídio;
uma das advogadas da mobilização Isso é
Feminicídio Porto Alegre
; e uma
atendente da Delegacia da Mulher.
Para dar expressão ao impacto desses encontros, vêm sendo escritos
pequenos fragmentos de diálogos. Cada voz, cada gesto, cada história ouvida vem
mobilizando nossa escrita. Por isso, definimos que experimentaríamos um contato
mais íntimo com material registrado em áudio.
2ª Parte. Ouvindo, anotando, escrevendo
- Organizamos sessões de escuta: escuta das entrevistas na íntegra,
anotando à mão o que identificamos como palavras ou frases pulsão, que
desencadeiam ideias, que apontam caminhos para a criação da matéria textual;
- Preparamos pequenos fragmentos escritos;
- Realizamos sessões de escrita reunindo os documentos coletados e as
anotações feitas, revendo-os a partir das imagens e sensações geradas, realizando
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a escrita automática
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durante alguns minutos;
- Reescrevemos os fragmentos a partir das palavras/frases pulsão das
entrevistas e a "deformação" do material em si, à escuta das entrevistas,
estabelecendo-se um trânsito entre o material bruto e o simbólico.
3ª Parte. Estruturando, ordenando, lendo e ouvindo novamente
- Na ânsia de saber se “funcionava”, e o que de fato a pré-estruturação de
Hipólito comunicava, foram convidadas oito atrizes para lerem a peça. Atrizes com
idades diferentes, corpos diferentes uns dos outros e residentes em cidades
distantes que passaram a se reunir conosco via plataforma Zoom. Esta etapa,
permitiu que através da escuta do texto, fosse possível identificar ritmos, falhas e
potências na dramaturgia insurgente. Dessa forma, criaram-se condições para a
percepção da própria escrita a fim de dominá-la, modificá-la, transformá-la
(Lemahieu, 1992). Assim,
Hipólito
foi criando forma;
- Estruturamos os fragmentos escritos e iniciamos a ordenação e a edição
do material;
- Efetuamos constantemente alterações relevantes no texto a partir dos
apontamentos feitos pelas atrizes e pelo que foi possível perceber ao longo da
escuta das leituras como edições necessárias (cortes ou adição de texto/rubricas).
Considerações provisórias
Não acreditamos que haja um “jeito certo” de se escrever dramaturgia.
caminhos, existem experiências e nós estamos compartilhando a nossa. O
processo descrito neste artigo se desenvolveu de acordo com as necessidades
que foram surgindo em cada momento da pesquisa para redação do texto. O
aporte teórico foi fundamental para o processo criativo, por esclarecer conceitos
e formas da escrita dramatúrgica, como bases que possuem suas potencialidades
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Escrita sem um objetivo prévio, sem uma forma ou assunto já definidos. Estabelecemos que escreveríamos
durante alguns minutos sem pausa, em fluxo, a partir das sensações e contato com os documentos
coletados na pesquisa. A expressão inicialmente foi lançada e definida por André Breton (1886-1966), escritor
francês surrealista, que acreditava que a “escrita automática” seria uma forma de escrever livremente,
colocando pensamentos no papel, sem a influência da lógica e da razão.
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para serem recriadas e estarem operando no modo de gerar dramaturgias hoje.
Essas matrizes não foram tomadas como conjunto de regras invioláveis, mas
como suporte para novas experimentações para o desenvolvimento de
dramaturgias tensionadas pelas urgências de nosso tempo, e para nós, o
assustador índice de mortes de mulheres, foi a ferida a ser aberta pelo uso da
palavra. Acreditamos que o teatro, nos permite pôr em discussão a terrível
violência que nos cerca através do simbólico, do uso da fábula que não desvia da
realidade, pelo contrário, que a escancara por outras vias, por isso Hipólito, trata-
se de uma cidade controlada por homens, uma cidadezinha cercada de mato,
regida pelo medo, de onde nenhuma mulher pode fugir, pois sabe-se que, todas
que ousaram cruzar a fronteira de cidade desapareceram, ficaram invisíveis. O
material massivo gerado pelos contatos com as vítimas e mulheres entrevistadas
condicionaram a formulação desta dramaturgia por meio de memórias, temores
e esperanças. Somando-se às entrevistas, como mencionamos, foram acessados
constantemente os acervos de reportagens jornalísticas, vídeos sobre feminicídio
levantados para a dissertação. Esta miscelânea de informações (diretas e indiretas)
vem motivando a escrita de diversos fragmentos nas sessões de escrita livre onde
as palavras jorram, sem que se faça um juízo de valor ou que se busque algum
sentido para elas.
As semelhanças entre os relatos registrados nos conduziram à "costura" dos
fragmentos, como gesto de “criação poética”. Essa ação
rapsódica
estabeleceu
uma “relação concorrencial entre o dramático e o épico no seio das dramaturgias
demasiado contemporâneas que por sua vez se inscreve num devir rapsódico.”
(Sarrazac, 2012, p.152).
O trabalho de edição (selecionar/cortar/colar) do que seria a primeira versão
da peça teatral escrita se desenvolveu ao longo do segundo semestre de 2021.
Este trabalho desempenhado por nós está diretamente ligado à organização das
ações do texto e o constante aperfeiçoamento da estrutura. Sendo assim, o
processo de construção da peça
Hipólito
, vem sendo permeado pela articulação
entre a compreensão das noções elementares do drama e a liberdade de
experimentação na escrita a partir da relação que se estabeleceu com o material
coletado.
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Recebido em: 14/06/2022
Aprovado em: 16/08/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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