
Uma mirada solar ao sul:
relato do processo de criação da dramaturgia e encenação da peça de agitação
Soledad
Mariana Cesar Coral
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-20, set. 2022
melancolia do tema. A relação alegórica com o Sol possibilitou um direcionamento
mais vivo, ligado a uma imaginação política de enfrentamento de nossos desafios
da criação artística.
Em relação à Sol (Soledad), havia um acerto de contas, uma dívida. Esse
acerto passava pela questão da maternidade, Soledad havia deixado sua filha em
Cuba em 1971 e não pode voltar. Em janeiro de 1973, foi capturada em Olinda (PE)
e, junto com Pauline Reichestul, foram torturadas e assassinadas. Passam-se
décadas. Há um vácuo, há outras mulheres. Pensando com a pesquisadora
nigeriana
Oyèronké OyeWùmí
(2019), há outras formas de entender a questão da
maternidade, da
maternagem
, das maternidades e do gênero. A história de
Soledad Barrett Viedma como militante e como mãe é complexa e nos deparamos
com essa questão assim que iniciamos a pesquisa. Os ecos patriarcais são tão
fortes que nos impedem de entender histórias fora do padrão.
Para compor essa alegoria, algumas outras imagens foram colocadas em
cena: o milho, a fome (
hambre
), el perro
matapacos
. Durante toda a peça,
decidimos que era preciso mesclar o português e o espanhol em um linguajar
poético e popular. A escolha pelo milho inseria a representação do alimento base
das civilizações maias, astecas e tantas outras de nosso continente da América
Latina ou “Améfrica Ladina”
(Gonzalez, 1988). Desde o início da peça, colocamos
diversas imagens de pluralidade para tentar dar conta desse espaço, sem recalcar
nossas mazelas, sendo a maior delas a fome. As imagens em contradição: o milho
e a fome. Na
Améfrica
, a fome é construída a partir do início da colonização, da
modernidade e do racismo. A fome, presente também em nosso ano de 2022,
constrói-se por uma brutal má distribuição de renda, de terra e pela venda de
nossas empresas estatais, ilustrando parte do cenário brasileiro. A fome é um
Lélia coloca a categoria
amefricanidade
para dar conta de nossas particularidades. Primeiro ela se utiliza da
palavra América e junta com a África como registro de legado, herança. “Partindo de uma perspectiva histórico
e cultural é importante reconhecer que a experiência
amefricana
diferenciou-se daquelas dos africanos que
permaneceram em seu próprio continente” (Gonzalez, 1988, p. 78). A
amefricanidade
faz com que possamos sair
de uma visão idealizada da África lidando com nosso próprio legado de resistência construída aqui nesse
território. A amefricanidade serviria para todos que estão na América, pois leva em consideração o legado
indígena e africano, apoiando-se na resistência da escravização, a reinterpretação e as adaptações culturais e
históricas. Amefricanos são todos da América, sem limite territorial dos estados nações. A categoria
amefricano
tem muito do négritude, afrocentricity (expressões de positivação do panafricanismo). Há uma criação do
território da diáspora incorporando o legado como uma grande herança de riqueza cultural, artística, histórica e
de conhecimentos. Lélia destaca a força dessa herança e podemos pensar em outros tempos e espaços de luta
que se somam ao atual.