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A ópera chinesa nos Estados Unidos
Marvin Carlson
Tradução: Esther Marinho Santana
Para citar este artigo:
CARLSON, Marvin. A ópera chinesa nos Estados Unidos.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 2, n. 44, p. 1-19, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0701
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A ópera chinesa nos Estados Unidos
Marvin Carlson |Tradução: Esther Marinho Santana
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-19, set. 2022
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A ópera chinesa nos Estados Unidos
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Marvin Carlson
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Tradução: Esther Marinho Santana
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Resumo
Este artigo apresenta um panorama das óperas chinesas nos Estados Unidos
da América. Em perspectiva histórica, destaca as primeiras montagens de
espetáculos tradicionais a partir da chegada de imigrantes vindos de
Guangdong para a Califórnia, no século XIX, e discute o desenvolvimento e a
irradiação do gênero também nos palcos de Nova York, ao longo dos séculos
seguintes.
Palavras-chave
: Teatro tradicional chinês. Estados Unidos. História do teatro.
Chinese Opera in America
Abstract
This essay presents a panorama of Chinese operas in the United States of
America. From a historical perspective, it highlights the first traditional
productions in 19th-century California by immigrants from Guangdong, and
discusses the development and expansion of the genre to the New York
stages throughout the following centuries.
Keywords
: Chinese traditional theatre. United States of America. Theatre
history.
1
Nota da tradutora: este texto foi apresentado em duas palestras ministradas por Carlson na China: a primeira,
na Universidade de Suzhou (州大), em 04 de julho de 2019; e a segunda, na Universidade Normal de
Shanxi (山西范大), em Linfen, em 08 de julho de 2019.
2
Ph.D. em Teatro pela Cornell University, é Distinguished Professor (Sidney E. Cohn Chair) na City University
of New York - CUNY, e diretor do Marvin Carlson Theatre Center, na Academia de Teatro de Shanghai (上海
戏剧学院). Sua vasta atuação nos campos da história, teoria e tradução teatrais rendeu-lhe diversos prêmios,
como o da Association for Theatre in Higher Education pela carreira acadêmica, o George Jean Nathan Prize
por crítica teatral, o Bernard Hewitt Prize por pesquisa em teatro, o George Freedley Award por estudos das
artes da cena, e uma bolsa Guggenheim. É autor de dezenas de livros publicados internacionalmente, e sua
obra mais célebre,
Theories of the Theatre
(
Teorias do teatro
), de 1993, já foi traduzida para oito idiomas.
3
Doutora e Mestre em Teoria e Crítica Literária pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), com
estágio doutoral na City University of New York (CUNY), onde foi Segal Fellow no Martin E. Segal Theatre
Center. Faz parte do conselho científico e é secretária internacional para a América Latina da Edward Albee
Society, e integra o grupo de pesquisas Estudos do Teatro Ex-Cêntrico ETEx (CNPq/ ECA). Atualmente, é
pesquisadora de pós-doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (processo
2021/08668-7), na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo - USP.
esther.mrst@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2277445498006600 https://orcid.org/0000-0003-1370-6304
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La ópera china en los Estados Unidos
Resumen
Este texto presenta una descripción general de las óperas chinas en los
Estados Unidos de América. Desde una perspectiva histórica, destaca los
primeros montajes de espectáculos tradicionales tras la llegada a California
de inmigrantes de Guangdong, en el siglo XIX, y aborda el desarrollo y la
difusión del género también en Nueva York en los siglos siguientes.
Palabras clave
: Teatro chino tradicional. Estados Unidos. Historia del teatro.
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A primeira grande onda imigratória da China para os Estados Unidos ocorreu
em meados do século XIX. O fluxo envolvia sobretudo imigrantes do Delta do Rio
das Pérolas, na província de Guangdong (mais conhecida como Cantão), que,
naquela época, deslocavam-se para diversas partes do mundo e consideraram os
Estados Unidos particularmente atrativos. Em 1848, a descoberta de ouro na
Califórnia alimentara ao redor do globo o rumor de que qualquer um que fosse
para aquela região encontraria fortunas. As notícias aportaram em Hong Kong em
1849, e logo se espalharam pela China. Ao longo do ano seguinte,
aproximadamente vinte e cinco mil chineses imigraram para terras californianas à
procura do que muitos chamavam de “gam saan”
4
, a montanha de ouro.
Por certo, apenas alguns dos milhares de recém-chegados foram bem-
sucedidos na caça ao ouro, e a maioria viu-se sem recursos em um país
estrangeiro, obrigada a aceitar trabalhos dos mais árduos meramente para
sobreviver. Para muitos isso significou o envolvimento na construção da primeira
estrada de ferro que atravessava os Estados Unidos
5
. O processo foi difícil e
perigoso, e dependeu pesadamente de imigrantes chineses. Até 1869, mais de 90%
dos dez mil trabalhadores nas obras férreas do oeste vinham da China. Entre 1852
e 1882, quando o governo estadunidense passou a limitar oficialmente a entrada
de novos indivíduos vindos do território asiático, havia no país mais de trezentos
mil chineses, em grande parte concentrados na Califórnia.
A Ópera Cantonesa chegou aos Estados Unidos com esses milhares de
imigrantes. O seu epicentro foi São Francisco, no perímetro onde os recém-
chegados inicialmente se estabeleceram, e que, com o tempo, acabou conhecido
como Chinatown - um termo empregado pela primeira vez por veículos de
imprensa da cidade, em 1853
6
. em 1852, empresários locais decidiram fundar
4
Nota da tradutora: O termo vem do cantonês, e, em Mandarim, atualmente o idioma oficial da República
Popular da China, é
Jīnshān
( ).
5
Nota da tradutora: tratava-se da Pacific Railroad, posteriormente rebatizada de Overland Route, e hoje
conhecida como First Transcontinental Railroad. Construída entre 1863 e 1869, estendia-se por mais de 3000
km, conectando o estado de Iowa, no centro do país, até a costa do Pacífico.
6
Nota da tradutora: se de início designava apenas as imediações da Sacramento Street e da Dupont Street,
em São Francisco, o nome Chinatown logo passou a ser utilizado para se referir a diversas vizinhanças
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uma companhia de ópera chinesa na região, a primeira nos Estados Unidos.
Trabalhando em conjunto com um empreendedor de Guangdong, conseguiram
que a trupe de excelência Hong Fook Tong
7
se mudasse para a cidade californiana
com os seus quarenta e três membros. O grupo trouxe consigo para serem
montados no Novo Mundo elaborados cenários, figurinos e artefatos, e até mesmo
toda a estrutura física de um teatro.
A sessão de 20 de outubro de 1851 foi a primeira apresentação de ópera
chinesa nos Estados Unidos, e, como os artistas ainda não contavam com uma
estrutura própria concluída, utilizaram o teatro existente American. Embora a
plateia, majoritariamente chinesa, tenha se deleitado, não era numerosa o
suficiente para manter um programa composto por uma obra tão inusitada. Logo,
a partir da terceira noite em cartaz uma comédia estadunidense assumiu o
espetáculo, e a porção chinesa passou a ter duas peças, seguidas de uma exibição
de acrobacias e cambalhotas. Assim a companhia seguiu se apresentando até que
o seu teatro, trazido da China em diversos pedaços, fosse devidamente armado e
inaugurado. Assemelhava-se a um pequeno pagode, e se mantinha aberto dia e
noite para performances. A maior parte do entretenimento se concentrava em
malabarismos, arremesso de facas e acrobacias, porém, amostras de Ópera
Cantonesa eram incluídas. Aqueles que não eram chineses apreciavam os
números acrobáticos, mas mostravam pouco interesse pela ópera. Um dos
espectadores teria declarado que os únicos atrativos da programação eram as
“vestimentas extraordinárias do elenco”, visto que “o barulho incessante feito com
gongos e tambores de metal é tão discordante e ensurdecedor”, e os falsetes
habitadas por chineses e seus descendentes em todo o mundo. Cada qual com suas particularidades,
Chinatowns existem em outras cidades estadunidenses, no Canadá, em Cuba, no Peru, na França, na
Inglaterra, na Índia, na Austrália, etc.
7
Nota da tradutora: a companhia foi também chamada de Hook Took Tong, Hong Took Tong, Hook Tong Hook,
Tung Hook Tong, Tung Hong Took, Hook Took Tong e Tung Hook Long. Carlson adota a anglicização Hong
Fook Tong, comumente empregada nos Estados Unidos, e, portanto, para este e outros casos manterei as
grafias do texto original. Relembro que Daphne Pi-Wei Lei discute o complicado processo de transcrição de
nomes próprios chineses para o inglês, marcado pelo desconhecimento do funcionamento das nguas
chinesas (sobretudo o cantonês, então predominante na região de São Francisco), pelo preconceito com as
sonoridades, pela indiferença diante de especificidades linguísticas e culturais, e pela tentativa de produzir
grafias mais facilmente assimiláveis pelos anglófonos. Tais entraves ajudam a explicar a ausência de maiores
informações sobre os artistas asiáticos em registros da época, que, não raro, eram citados sem jamais serem
de fato nomeados. (
Operatic China: Staging Chinese Identity Across the Pacific
. New York: Palgrave MacMillan,
2006).
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nasalados tão estranhos e aborrecedores “que uns poucos minutos por vez são o
máximo que se aguenta nesse lugar”
8
.
Ainda assim, a novidade das experimentações chinesas se espalhou pelos
Estados Unidos, e atraiu a atenção de empresários de Nova York, que estavam à
procura de atrações para a primeira Exposição Mundial ocorrida no país, a Crystal
Palace Exhibition, de 1853. O empreendedor George Beach liderou as iniciativas e
ofereceu à trupe Hong Fook Tong um contrato de dez meses e passagens para
Nova York de barco a vapor. Eles chegaram à cidade em maio daquele ano apenas
para descobrir que a abertura do Crystal Palace havia sido adiada, e o
financiamento de Beach colapsara. O único planejamento feito pelo sujeito foi que
a companhia se apresentasse por uma semana no Niblo’s Garden, um dos maiores
teatros locais, dedicado a óperas italianas. Ainda que o ineditismo da programação
tenha atraído uma pequena plateia, a população chinesa na região era
significativamente menor do que em São Francisco, e os críticos não chineses
consideraram o espetáculo incompreensível, e até mesmo desagradável. Dois
elementos que pareciam transcender barreiras culturais, no entanto, foram
elogiados: as acrobacias desafiadoras e as vestes suntuosas. Antes que a semana
de apresentações no Niblo’s fosse concluída Beach desapareceu com o restante
dos fundos do grupo, cujos cenários e figurinos terminaram tomados por credores,
deixando-os abandonados pelas ruas de Nova York. Alguns artistas retornaram
para a China, outros para a Califórnia, e outros permaneceram em terras nova-
iorquinas, sem atuarem nos palcos. Levaria, então, alguns anos para que a ópera
chinesa fosse vista novamente na cidade.
A situação era bastante distinta em São Francisco, por sua vez, com uma
população chinesa muito mais numerosa. Durante os anos 1850 diversas novas
companhias ali chegavam, encorajadas por turbulências econômicas e políticas na
China. Particularmente relevante, aqui, foi a insurgência liderada pelo cantor de
Ópera Cantonesa, Li Wenmao, especialista em artes marciais, que, com outros
artistas vestidos com seus figurinos teatrais, utilizaram o treinamento em kung fu
para lutar contra as tropas governamentais e capturar a cidade de Foshan, próxima
8
J. D. Borthwick.
Three Years in California
. Edinburgh/ London: William Blackwood and Sons, 1858, p. 77.
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7
de Guangdong, em 1854
9
. Após lograr derrotar os rebeldes, o governo Manchu baniu
a Ópera Cantonesa de toda a China pelos próximos quinze anos como punição.
Assim, no final da década de 1850 e ao longo dos anos 1860, o centro mundial
de produção de Ópera Cantonesa passou a ser São Francisco, com braços se
estendendo por toda a Califórnia. O teatro previamente erguido pela Hong Fook
Tong foi vendido após a partida do grupo, deixando a cidade sem nenhum local
especificamente dedicado às óperas chinesas. Porém, novos artistas reformavam
espaços existentes ou ajustavam os seus trabalhos para que fossem
apresentáveis em palcos mais convencionais. Em 1855, um pequeno prédio na
Dupont Street foi transformado no Shanghai Theatre para a Companhia Dramática
Chinesa, com cinquenta membros. Em 1860, a trupe Hing Ching Yuen
10
começou a
se apresentar no Union Theatre, onde permaneceu sediada, enquanto, no decorrer
das temporadas seguintes, também excursionou para destinos variados até a
inauguração do Royal Chinese Theatre, em 1868. Com sessões oferecidas todas as
tardes e noites, ele se tornou um dos empreendimentos mais exitosos de toda a
cidade, e contava com um salão de padrões estadunidenses capaz de comportar
mil e cem pessoas, um mezanino e galerias. A orquestra, seguindo as convenções
chinesas, ocupava um recuo nos fundos do palco sem cortinas, iluminado por
lâmpadas a gás. A casa de espetáculos não tardou a se tornar o desfecho habitual
de passeios por Chinatown, e, após as performances, os visitantes eram
convidados aos bastidores para ver os figurinos e conhecer os atores, com quem
dividiam uma típica ceia chinesa.
Ao longo do século, sob diversos nomes, o Royal Chinese se consagrou como
o mais relevante produtor de óperas chinesas em São Francisco, e um dos mais
notórios em qualquer outro lugar do mundo. Do início dos anos 1870 em diante,
todavia, passou a ter dois ou três rivais de maior importância, e alguns outros de
9
Nota da tradutora: iniciada em 1854, a Rebelião dos Turbantes Vermelhos (广洪兵起) foi encabeçada pela
sociedade secreta Céu e Terra (天地会contra os representantes da dinastia Qing, estabelecida pelos
Manchu. Li Wenmao, artista de uma companhia de ópera de Guangdong, juntou-se ao movimento em
Foshan, onde mais de quarenta mil camponeses, pescadores, artesãos e artistas de teatro aderiram aos
combates. Li não apenas lutou, como também liderou tropas. Após tomar a cidade de Guilin, no território
de Guangxi, foi morto em batalha, em 1858. Conforme relembra Daphne Pi-Wei Lei, o ator e guerreiro inspirou
diversas obras teatrais, tornando-se um símbolo de mobilização e liderança popular (2006, p. 161).
10
Nota da tradutora: o nome da companhia também foi anglicizado como Hing Chuen Yuen.
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menor estatura, sempre na região de Chinatown. O primeiro e mais significativo foi
inaugurado logo do outro lado da rua, em um salão com capacidade para mil e
setecentos espectadores, e a mídia previu, acertadamente, que as plateias
aumentariam o suficiente para frequentar ambos os espaços. De fato, uma terceira
casa de ópera chinesa, a Grand Chinese, abriu as portas no entorno, na Washington
Street, em 1877. Era a maior e mais ambiciosa estrutura do tipo jamais construída
na cidade – com quatro andares, três lojas no primeiro piso, e acomodações para
a companhia no último. Segundo o jornal
San Francisco Chronicle
, seu gerente
saíra de Hong Kong com um grupo de noventa atores e seis cozinheiros, e os
artistas principais figuravam entre os mais bem pagos de São Francisco. Intensas
disputas surgiram entre os diferentes teatros, e a polícia era frequentemente
acionada quando gangues rivais tentavam bloquear as entradas, interromper as
apresentações, ou intimidar os espectadores presentes. Ainda assim, um quarto
empreendimento ainda mais audacioso, comportando duas mil e quatrocentas
pessoas, foi aberto em 1879. Uma visita a Chinatown, selada com um espetáculo
em algum desses espaços, tornou-se parte essencial de qualquer viagem para a
cidade, fato atestado pelo presidente Rutherford B. Hayes em sua passagem por
ali, em 1880.
A década de 1870 foi um período de grandeza para as óperas chinesas nos
Estados Unidos, mas nuvens cinzentas se aproximavam no horizonte. Durante a
expansão da corrida pelo ouro e a construção da estrada de ferro transcontinental,
anos antes, houve uma alta demanda por trabalhadores, e milhares de chineses
se juntaram a tais projetos. No entanto, após os anos 1870 os empregos no setor
passaram a rarear, e, com a economia da Califórnia entrando em declínio, muitos
consideraram que os imigrantes usurpavam trabalho dos estadunidenses.
Conforme o sentimento sinofóbico crescia, centenas de protestos contrários à
presença dos asiáticos ocorriam no oeste do país, levando a um golpe quase fatal
contra a presença de chineses no país, o Ato de Exclusão de Chineses de 1882
[
Chinese Exclusion Act
of 1882].
Pela primeira vez na história dos Estados Unidos proibia-se a imigração de
um grupo específico de pessoas, e o fato da medida ter sido voltada contra
chineses evidencia o quanto se pensava que tal força de trabalho ameaçava a mão
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9
de obra proletária estadunidense
11
. Em verdade, artistas de teatro chineses não
foram diretamente afetados por essa lei, visto que, tecnicamente, não se tratavam
de trabalhadores. até mesmo relatos de indivíduos que, na tentativa de entrada
no país, eram convocados por autoridades legais a demonstrarem suas habilidades
de cantar, tocar instrumentos musicais ou fazer acrobacias e, assim, provarem
que eram apenas profissionais das artes, e não trabalhadores braçais. De todo
modo, a proibição freou a chegada de potenciais novos espectadores, que as
plateias das óperas tradicionais eram formadas sobretudo por chineses. Nas duas
décadas finais do século XIX, embora algumas comunidades, em particular na
Califórnia, ainda contassem com apresentações operísticas, apenas dois teatros,
ambos em São Francisco, continuavam a oferecer sessões regulares. Até o ano de
1900 somente a maior casa, a Grand Chinese, ainda seguia em funcionamento.
Surpreendentemente, a despeito da fase turbulenta, em 1893 foi criado o
primeiro teatro dedicado à ópera chinesa na Chinatown de Nova York, tornando-
se, ao lado dos californianos, o único empreendimento do tipo nos Estados Unidos:
a Chinese Opera House. O prédio não tinha balcões, e os frequentadores se
sentavam em fileiras, em banquinhos de madeira. Havia apenas um palco simples,
com pouco espaço para os cenários, conforme a tradição chinesa. Apesar das
configurações modestas, o local passou a atrair não apenas asiáticos, mas
também alguns turistas brancos, que ali selavam um passeio por Chinatown, como
ocorrera em São Francisco. A cena teatral terminou abatida, contudo, pela
imposição de restrições cada vez mais severas à imigração, em especial uma lei
de 1898 que excluía os artistas da lista de entradas permitidas, inviabilizando, pois,
a vinda de novos talentos. Somaram-se aos prejuízos à Chinese Opera House as
Tong Wars, conflitos entre gangues chinesas inimigas, que conferiam à região da
Chinatown uma aura perigosa, afugentando potenciais visitantes. Em 1905, uma
briga com revólveres irrompeu durante uma sessão teatral, e a pequena casa de
espetáculos jamais se recuperou. Em 1908, ela encerrava as suas atividades e, por
11
Nota da tradutora: no círculo proletário californiano do período ecoava o bordão The Chinese must go!” (“Os
chineses têm que ir embora!”), cunhado por Denis Kearney, líder do partido Workingmen’s Party da Califórnia.
Desde a década de 1870 Kearney e seus parceiros intimidavam os imigrantes com ameaças de violência, tais
como a de que ateariam fogo nos barcos por onde chegavam da China, atracados nas docas da companhia
marítima Pacific Mail o que de fato fizeram, em 1877 (Philip P. Choy.
San Francisco Chinatown: A Guide to
Its History & Architecture
. San Francisco: City Lights, 2012).
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conseguinte, a presença de óperas chinesas em Nova York. Paralelamente, um
terremoto devastador, em 1906, destruíra diversas áreas de São Francisco,
incluindo o Grand Chinese, o único teatro chinês ainda existente na costa oeste.
Assim, após 1910 não restava um único palco onde se pudesse assistir às óperas
chinesas nos Estados Unidos.
Tal vazio perdurou por mais de uma década, mas, de súbito, a forma reviveu
de tal modo entre 1920 e 1930 que estes anos podem ser chamados de uma era
de ouro das óperas chinesas no contexto estadunidense. O maior obstáculo para
a formação e manutenção de companhias, a interdição da vinda de artistas da
China, foi abrandado em 1921, quando o Serviço de Imigração passou a emitir vistos
temporários para atores. Embora a medida provocasse alterações frequentes nos
elencos, garantia aos produtores teatrais também uma oferta fluída de
profissionais chineses, cuja nova onda de chegada, no outono de 1922, direcionou-
se, conforme se poderia esperar, para São Francisco.
Convém observar que durante o desaparecimento das óperas chinesas nos
Estados Unidos algumas trupes seguiram se apresentando no Canadá,
especialmente em Vancouver, na costa oeste, e Toronto, no leste. As alterações
nas políticas de imigração estadunidenses em 1921 passaram a oferecer um novo
mercado para tais companhias, ocasionando mudanças na Ópera Cantonesa na
própria China. Nos anos iniciais do século XX, o gênero se transformara de uma
arte majoritariamente rural para uma manifestação urbana, centralizada em
Guangdong e Hong Kong. A sua comercialização e urbanização produziram um
maior interesse no espetáculo cênico, acompanhado do aumento da participação
de mulheres com até mesmo o surgimento de companhias inteiramente
femininas –; da noção do estrelato de intérpretes e dramaturgos; da construção
de grandes casas de espetáculo; e da competição ferrenha entre diferentes
grupos. Tais mudanças faziam da década de 1920 um dos momentos mais
efervescentes da cena cantonesa, e a reabertura do mercado estadunidense
proporcionava uma excelente oportunidade para que as renovações fossem vistas
internacionalmente.
Em 1921, diversos artistas virtuosos se apresentaram no Sheng Ping Theatre,
o mais importante dos teatros chineses de Vancouver, e a eles se seguiu, no
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outono daquele ano, a companhia Le Wannian, cuja chegada, pode-se dizer,
assinala o princípio do renascimento das óperas chinesas na América do Norte. O
grupo trouxe consigo, com grande entusiasmo, as transformações recentes da
Ópera Cantonesa desengatilhadas na China. Com dois gerentes, dois contadores,
um profissional de relações públicas e demais administradores, destacava-se
como uma operação comercial muitíssimo bem-organizada. Ao invés de cenários
neutros, utilizavam nos fundos do palco pinturas realistas, que se tornavam mais
comuns na China. Pela primeira vez, Le Wannian listava em seus anúncios os
nomes de todo o elenco, liderado pela atriz Guan Ying-Lian. A trupe possuía mais
mulheres do que quaisquer outras, e não contava com homens interpretando
mulheres até então, papéis de grande importância. As alterações fizeram a ópera
mais atraente para o público ocidental, e Le Wannin aproveitou para levar o gênero
para fora da Chinatown de Vancouver pela primeira vez, ocupando o Imperial
Theatre, localizado no centro da cidade. Construído em 1912 para hospedar óperas
europeias, e contando com os equipamentos mais modernos disponíveis, foi o
palco de estreia da companhia, em setembro de 1921.
O relaxamento das restrições de imigração estadunidenses encorajou os
empresários de Vancouver a levarem as suas companhias para São Francisco, que
possuía uma população chinesa muito maior do que as cidades canadenses.
Assim, alugaram o Crescent Theatre, uma casa de vaudeville local, e obtiveram
permissão do Departamento de Trabalho dos Estados Unidos para trazer uma
outra trupe de trinta e oito artistas. Nomeada de Renshou Nian em homenagem a
um famoso grupo do sul da China, a companhia estreou em outubro de 1922,
trazendo a forma operística tradicional de volta para a Califórnia após uma lacuna
de dezesseis anos. A empreitada foi tão satisfatória que não tardou a atrair outros
profissionais de Vancouver.
Embora anunciada como uma trupe de homens e mulheres, a Renshou Nian
era fundamentalmente masculina, fundada com apenas três atrizes dentre os
trinta e oito membros, e quatro intérpretes homens de papéis femininos de
destaque. De toda maneira, nesse aspecto as companhias sediadas nos Estados
Unidos estavam à frente das chinesas, que possuíam grupos formados
exclusivamente por mulheres, mas careceram de formações mistas até os anos
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1930. Essa configuração gerou uma tendência específica de
casting
exclusiva das
óperas chinesas estadunidenses, definindo uma de suas maiores inovações. Certas
peças no repertório clássico cantonês seguiam a personagem protagonista por
muitos anos, tal como a comumente apresentada
Pinggui Bidding Farewell
(平贵
别窑). Com um elenco composto tanto por atrizes mais jovens quanto por atores
mais velhos, a Renshou Nian não raro utilizava dois profissionais para um mesmo
papel feminino. Assim, a bela e popular atriz de dezesseis anos, Li Xuemei,
interpretava os anos de juventude, enquanto o intérprete de papéis femininos Xian
Huada cobria a última fase da vida adulta. A popularidade de Li Xuemei era
tamanha que o
San Francisco Chronicle
a chamava de “uma Mary Pickford
chinesa”, comparando-a à mais famosa atriz do ainda em desenvolvimento -
cinema estadunidense
12
.
O êxito da Renshou Nian e de seu diretor, Lun Hop, motivou a Le Wannian a
segui-los e ir de Vancouver para São Francisco, em 1923. As companhias logo se
fundiram, inaugurando a maior trupe de ópera chinesa das Américas, com
sessenta e quatro integrantes, possibilitando que se apresentassem tanto
regularmente em sua sede, quanto em outras cidades do sul da Califórnia e até
mesmo no México, onde, naquele momento, havia uma comunidade chinesa
substancial. Outros grandes talentos foram importados da China, ainda liderados
pela atriz Guan Ying-Lian.
No início da década de 1920 havia, na China, dois grandes partidos políticos:
o Partido Constitucionalista e o Partido Nacionalista
13
, que, em São Francisco,
possuíam cada qual os seus próprios apoiadores e jornais. Lun Hop era membro
do Partido Nacionalista, logo, não era nada inesperado que um teatro rival,
associado ao Partido Constitucionalista, fosse construído na cidade. Tratava-se do
12
Nota da tradutora: Batizada como Gladys Marie Smith, a atriz canadense adotou o nome Mary Pickford e
trilhou uma carreira cinematográfica de mais de cinco décadas. Considerada uma espécie de menina dos
olhos dos estadunidenses, estrelou duas centenas de filmes, dos primórdios até a era de ouro de Hollywood,
e foi também produtora e uma das fundadoras da Academy of Motion Picture Arts and Sciences, atualmente
mais conhecida pelos prêmios Oscar.
13
Nota da tradutora: Carlson se refere ao partido nacionalista Kuomintang, e provavelmente ao Partido
Progressista (步党), que chegou ao fim em 1916. Nos anos 1920, alguns de seus ex-membros fundaram o
Partido Democrático Constitucionalista (民主政党), que teve pouca atuação direta na China e se concentrou
na comunidade chinesa dos Estados Unidos.
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13
Mandarin Theatre, inaugurado na primavera de 1924, com uma equipe de trinta e
oito pessoas. O novo espaço trazia importantes novidades cênicas: poltronas
decoradas com lâmpadas, flores de lótus e colunas com luz elétrica, enfeites de
criaturas do mar feitos de papel, e um mecanismo para elevar os cantores acima
do nível do chão. Ainda que Lun Hop contasse com os maiores talentos, ambos
os teatros se mantinham bastante populares e, de tempos em tempos, atiçavam
a sua competitividade apresentando uma mesma ópera nas mesmas noites.
Assinalando a popularidade do gênero, em 1924 era publicada a primeira antologia
de arias e canções da Ópera Cantonesa
14
no Novo Mundo.
Os desenvolvimentos na Califórnia animaram empresários na costa leste para
que tentassem reavivar as artes cênicas chinesas na região, uma vez que, a
despeito do crescimento local da população asiática, mais de sessenta anos
essa parte dos Estados Unidos não possuía um teatro chinês em funcionamento
contínuo. O fato era particularmente espantoso quando se considera que, no
período, Nova York tinha uma cena teatral das mais ebulientes, com mais de
setenta teatros profissionais em operação. Em 1924, enfim, a companhia
canadense Jock Ming On foi contratada para que se mudasse de Vancouver e se
estabelecesse em solo nova-iorquino. Ali, assumiram uma casa de espetáculos de
oitocentos lugares, no coração de Chinatown, com um elenco de quarenta e quatro
profissionais. Ao longo de seu primeiro ano, conseguiram uma ampla variedade de
artistas graças ao intercâmbio de atores com o Mandarin Theatre de São Francisco.
Em São Francisco, a concorrência com os vários recursos cênicos e o
desenvolvimento do programa de turnês do Mandarin deixou Lun Hop insatisfeito
com a sua sede no Crescent Theatre, e o diretor decidiu construir um novo espaço,
criado especialmente para a Ópera Cantonesa. Designers, figurinos e cenários
foram trazidos da China, e em 1925 foi inaugurado o Great China Theatre. Com
novecentos e cinquenta lugares, a casa possuía um palco ligeiramente mais
estreito que o Mandarin, mas muito mais alto e profundo. Com uma companhia
tecnicamente superior, e agora com melhores condições estruturais, o Great China
logo se destacou frente ao seu rival um feito devidamente reconhecido pelas
14
Nota da tradutora: compilada pelo grupo amador Log Quong Shear, a antologia era intitulada
Essence of
Cantonese Arias and Songs
.
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autoridades estadunidenses, que aumentaram o número de membros permitidos
em seu elenco para oitenta e cinco artistas, vinte e um a mais do que fora
concedido ao Mandarin.
Alguns eventos contemporâneos desenrolados na China também operaram
a favor do novo teatro. Em 1925, a violência policial em Shanghai
15
levou a uma
greve geral em Guangdong e Hong Kong, durante a qual casas de espetáculo foram
fechadas e artistas ficaram sem trabalho. Enquanto certos profissionais foram
para a indústria da Ópera Cantonesa em florescimento no próprio país, diversos
outros talentos partiram para São Francisco, contribuindo tanto para o Great China
quanto para o Mandarin. O mais relevante dos imigrantes foi o experiente ator Bai
Jurong, amplamente considerado o melhor intérprete do estilo cantonês de
xi
ǎ
oshēng
(小生), isto é, homens jovens. A sua chegada foi o evento mais
impactante de toda a década, e levou o Great China a uma posição de centralidade
não apenas dentre as casas estadunidenses de ópera chinesa, como também em
qualquer parte do mundo.
Muito embora também tenha se beneficiado da nova onda de profissionais
recém-chegados, o Mandarin seguia enfatizando o glamour do espetáculo,
enquanto o Great China era conhecido pelo rigor e pela excelência de suas
atuações. Dentre as suas inovações, o Mandarin passou a oferecer produções de
escala colossal, apresentadas ao longo de diversas noites. Assim,
Ten Belle
Spectacle
, baseado no clássico
Romance dos três reinos
16
, teve uma encenação
que durou sete sessões, em dezembro de 1925. Ainda que grandes produções em
tais proporções pudessem empregar de oito a dez artistas principais, também as
óperas estreladas por um único virtuoso se estendiam por diversas noites. Por
essa razão, vários novos espetáculos acabaram por demandar mais dramaturgos
e intérpretes especializados vindos da China, e em 1926 o Mandarin tinha três
15
Nota da tradutora: o episódio é conhecido como Movimento Trinta de Maio (五卅运). Em 15 de maio de
1925, oito trabalhadores de uma fábrica japonesa em Shanghai apresentaram as suas reinvindicações por
melhores condições de serviço aos responsáveis pelo local, que agrediram o grupo, matando um de seus
integrantes. Diante da inação das autoridades de Shanghai, quinze dias depois um grande protesto irrompeu
na cidade, durante o qual a Polícia Municipal, então controlada pela Inglaterra, abriu fogo contra a multidão,
assassinando treze pessoas. Em resposta, diversas ações contra instituições e instalações japonesas e
inglesas, tais como boicotes e greves, eclodiram por várias partes da China.
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Nota da tradutora: atribuído a Luo Guanzhong, o longo texto do século XIV é um dos mais tradicionais na
literatura chinesa.
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autores residentes.
Insistindo em vencer a superioridade dos elencos do Great China, naquele
mesmo ano o Mandarin trouxe para o seu quadro uma atriz que poderia competir
com o notório Bai Jurong: Mudan Su, a atriz principal de uma das mais famosas
companhias femininas da China. Ela logo se tornou a atriz mais popular da Ópera
Cantonesa na América do Norte, mantendo tal posição por muitos anos.
Frequentemente, ela aparecia em papéis masculinos (
cross-dressing
), que
interpretava em um novo estilo, utilizando a sua voz natural ao invés do tom
tradicional estabelecido pelas convenções, mais alto e nasalado. De tempos em
tempos, ambos os teatros montavam um mesmo espetáculo protagonizado por
um jovem rapaz para que as plateias comparassem Mudan Su, em
cross-dressing
no Mandarin, com Bai Jurong no Great China.
Apesar de vez ou outra alguns atores do Mandarin viajarem para Nova York,
os artistas sediados em São Francisco costumavam permanecer, de modo geral,
na costa oeste. Enquanto a trupe Jock Ming On costumava importar novos
profissionais diretamente da China, nomes do Canadá foram contratados para
compor uma segunda companhia nova-iorquina, que operou de 1925 a 1927.
Estreando no Thalia Theatre, estavam a apenas dois quarteirões ao sul dos palcos
da Jock Ming On. Diferentemente da dinâmica de ferrenha competitividade travada
entre o Great China e o Mandarin, os caminhos dos dois grupos de Nova York se
fundiram. Transformadas em uma única trupe, em 1927, alcançaram o mesmo
nível das californianas, e a partir daí estrelas chinesas como a atriz Li Xuefang, o
ator de papéis femininos Xiao Dingxian, e até mesmo a vastamente aclamada
Mudan Su se apresentaram ali. A extraordinária era das óperas chinesas em Nova
York foi, contudo, tragicamente curta. Em 1929, o teatro Thalia foi destruído em
um incêndio, e a companhia jamais se reergueu. Mudan Su retornou para a
Califórnia, e diversos outros artistas deixaram o país. Ironicamente, portanto, a
cena nova-iorquina não possuía um único teatro dedicado à ópera chinesa quando,
nos anos 1930, a forma alcançou o ápice do seu sucesso nos Estados Unidos
graças à turnê de seis meses, ocorrida em 1930, de Mei Lanfang, considerado o
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maior ator da China
17
.
Mais espectadores estadunidenses conheceram o teatro clássico chinês
pelos espetáculos de Mei Lanfang do que pelos quase oitenta anos de outras
apresentações até então, e essa turnê foi, em diversos sentidos, diferente de tudo
o que as plateias do país jamais tinham visto. Ao contrário de todas as iniciativas
anteriores, as sessões de Mei Lanfang não eram direcionadas primeiramente aos
sino-estadunidenses, mas aos estadunidenses de modo geral. O artista foi para
Nova York reputado como o maior ator chinês do seu tempo, e sua turnê não
estreou em um pequeno teatro de uma Chinatown, mas em um grande teatro da
Broadway. Logo, ele era visto e anunciado como uma atração estelar internacional,
assim como o Teatro de Arte de Moscou, que também se apresentou na cidade
naquela década. Especializado na interpretação de papéis femininos, ele produziu
uma experiência absolutamente inédita para a maioria do público dos Estados
Unidos, não familiarizado com a mudança de gênero em cena. Evidentemente, a
prática era mais conhecida pelos chineses, mas até mesmo entre eles, se tivessem
assistido às óperas tradicionais no Novo Mundo, teriam visto a Ópera Cantonesa.
Mei Lanfang apresentava uma forma distinta, a Ópera de Pequim, em outra
linguagem, e em diferentes figurinos, maquiagens e estilo.
A sua turnê de seis meses foi estrondosa. Mei Lanfang se apresentou em
diversos dos maiores teatros de Nova York, Chicago, Los Angeles e São Francisco.
Em todas as cidades, as suas apresentações lotavam as salas. No entanto, a sua
visita pouco fez para despertar o interesse duradouro pelas óperas chinesas fora
das comunidades sino-estadunidenses. As empreitadas nova-iorquinas, em
declínio, extinguiram-se por completo em 1934, e o teatro chinês retornou à sua
primeira base, em São Francisco. Também lá, todavia, a ópera estava em vias de
desaparecer. O Great China, percebendo que o seu público minguava, passou a
exibir filmes durante as tardes para conseguir financiar as sessões teatrais
noturnas. Em 1940, renomeado de The Great Star, tinha apenas películas na
programação.
17
Nota da tradutora: poucos anos depois, em 1935, Mei Lanfang excursionaria pela Europa, apresentando-se
em Moscou, onde foi visto por Bertolt Brecht e serviu de inspiração para o desenvolvimento de suas teorias
sobre o efeito de distanciamento (
Verfremdungseffekt
) no teatro épico.
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O Mandarin Theatre também foi fechado, embora tenha durado um pouco
mais e deixado um legado mais distintivo. Tal como o Great China, começou a
exibir filmes na década de 1940, mas seguiu apresentando óperas ao vivo em
sessões noturnas. Até por isso acabou retratado na película de Orson Welles,
A
dama de Shanghai
[
The Lady from Sanghai
], de 1947, em que uma das cenas
acontece ali, durante uma apresentação. era, porém, quase o fim da casa de
espetáculos. Em 1949, o seu nome foi alterado para Sun Sing, e ela se tornou uma
sala de cinemas, que também sucumbiu, em 1984. No espaço foi aberta uma loja
de descontos
18
, que manteve o arco do proscênio do teatro e, atualmente, não
está mais em funcionamento.
Curiosamente, conforme os últimos teatros para óperas chinesas
desapareciam de São Francisco, a tradição foi continuada por um novo
empreendimento, em Nova York. Em 1942, artistas de Hong Kong, em uma breve
visita à costa leste, acabaram presos ali devido à Segunda Guerra Mundial e ao
bloqueio à China feito pelo Japão
19
. Conseguindo um pequeno prédio nas bordas
da Chinatown, batizaram-no de New Canton Theatre e passaram a apresentar
sessões de óperas noturnas. Ali sobreviveram por dez anos, e, nos anos 1950, eram
a única casa de espetáculos tradicionais chineses nos Estados Unidos. Como os
seus predecessores, o New Canton acabou tendo que exibir películas para
financiar a sua programação teatral. Também renomeado de Sun Sing, tornou-se,
durante parte do dia, uma sala de cinema. Os patronos eram, sobretudo,
moradores das imediações, e, em menor escala, turistas e estudantes de teatro –
dentre eles, estava eu mesmo, então com vinte e poucos anos, e afortunado o
suficiente para ter assistido a alguns dos últimos espetáculos do Sun Sing. No final
da década cinquentista o lugar se tornou um cinema em tempo integral, assim
permanecendo até 1984, quando foi demolido para a construção de um
shopping
center
.
O fechamento dos teatros dedicados às óperas chinesas nos Estados Unidos
18
Nota da tradutora: nos Estados Unidos, as “discount stores” operam em grande escala vendendo itens
populares a varejo, geralmente com pouca variedade e por preços mais baixos.
19
Nota da tradutora: dentro dos conflitos da Segunda Guerra Sino-Japonesa, em 1942 os japoneses tomaram
e bloquearam a Estrada da Birmânia (Mianmar), por onde os Aliados enviavam alimentos e armamento para
a China - que, invadida pelo exército imperial do Japão, já havia perdido o acesso ao mar após a Batalha do
Sul de Guangxi.
A ópera chinesa nos Estados Unidos
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motivou tanto os chineses quanto os estadunidenses apreciadores da forma a
buscar outros caminhos para mantê-la viva no país. Diferentemente de todo o
processo de desenvolvimento dessa arte tradicional no século anterior, o centro
para o seu reavivamento não foi São Francisco, mas Los Angeles, que hoje conta
com uma população asiática mais numerosa.
A primeira das novas sociedades de ópera na Califórnia, a Ópera de Pequim
de Los Angeles, foi criada em 2005 por uma cantora aposentada da Ópera de
Pequim, Li Tung-Chen, que fora amiga íntima do lendário Mei Lanfang. Outra
estrela aposentada da ópera chinesa, Haipo Wang, especialista em personagens
de rosto pintado Jìng (), usualmente interpretados por homens, mudou-se para
Los Angeles em 1999. Ela foi a primeira artista de Taiwan a vencer o prêmio Plum
Tree, o mais renomado no meio. Na cidade californiana ela promoveu a forma
operística em sua estação de rádio e foi essencial para reanimar a curiosidade pelo
assunto. Embora a maioria das produções em Los Angeles seja realizada de acordo
com o estilo de Beijing, um dos traços distintivos desse movimento atual tem sido
a sua inclinação para diversos tipos de ópera. A Hangzhou Yue Opera Company,
formada em 2010, apresenta-se de acordo com a outrora popular Ópera
Cantonesa, e os seus espetáculos incluem tanto obras clássicas orientais quanto
autores ocidentais, como William Shakespeare e Henrik Ibsen, montados ao modo
chinês. Há até mesmo sociedades voltadas para o estudo de Ópera Kun, uma das
mais antigas e requintadas formas teatrais chinesas.
Malgrado nenhum desses grupos possa ser considerado
mainstream
, juntos
têm uma presença significativa na cena do sul da Califórnia, fornecendo uma
espécie de laboratório onde uma ampla variedade de formas dessa grande
tradição se mantém preservada e estudada. Longe de serem apenas parte da
memória nostálgica de uma comunidade imigrante, tais esforços colaboram de
modo contínuo para uma história de séculos de existência das óperas chinesas.
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Referências
BORTHWICK, J. D.
Three Years in California
. Edinburgh/ London: William Blackwood
and Sons, 1858.
CHOY, Philip P.
San Francisco Chinatown
: A Guide to Its History & Architecture. San
Francisco: City Lights, 2012.
LEI, Daphne Pi-Wei.
Operatic China
: Staging Chinese Identity Across the Pacific.
New York/ Hampshire: Palgrave Macmillan, 2006.
RAO, Nancy Yunhwa.
Chinatown Opera Theatre in North America
. Urbana/ Chicago/
Springfield: University of Illinois Press, 2017.
Recebido em: 29/03/2022
Aprovado em: 18/05/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
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