1
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e
empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Para citar este artigo:
MORAES, Juliana Martins Rodrigues de. Coreografia da
Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino
na cena paulista –
Lobo
.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0206
Este artigo passou pelo
Plagiarism Detection Software
| iThenticate
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
2
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento
feminino na cena paulista
Lobo
1
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
2
Resumo
A partir da análise do espetáculo
Lobo
, de Carolina Bianchi e Cara de Cavalo,
de 2018, a autora deste artigo aponta a hipótese de que alguns trabalhos
recentes da cena paulista, produzidos majoritariamente por mulheres,
apresentam corpos convulsivos, cujas características os aproximam das
descrições dos corpos histéricos, do final do século XIX e início do XX. O texto
menciona outros quatro trabalhos para afirmar que há, nesse movimento
criativo, um sinal de empoderamento feminino, de afirmação de seu “lugar
de grito”. Por fim, a autora articula a sua experiência de espectadora às
diversas referências teóricas e artísticas, incorporando na escrita, as
impressões e o processo de registro daquilo que viu nas obras. Ademais, o
estudo se baseia na espectação como metodologia e situa essa prática entre
a recepção e a crítica. Refencias exteriores ao campo especificamente
cênico, especialmente à psicanálise, contribuem para a análise das
ambivalências e ambiguidades colocadas em jogo.
Palavras-chave: Coreografia. Histeria. Espectação. Corpos Convulsivos.
Dança Contemporânea.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Vânia Carolina Gonçalves Paluma, doutoranda em
Estudos Literários e Mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
2
Doutora em Artes e Bacharel em Dança pela UNICAMP. Mestre em Dança pelo Trinity Laban Conservatoire
for Music and Dance, em Londres. Professora e pesquisadora do Departamento de Artes Corporais da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). jumoraes@g.unicamp.br
http://lattes.cnpq.br/2645941853332386 http://orcid.org/0000-0003-0623-8178
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
3
Hysteria Choreography: convulsive bodies and female
empowerment on the São Paulo scene
Lobo
Abstract
Based on the analysis of the performance
Lobo
, by Carolina Bianchi Y Cara
de Cavalo, from 2018, the author hypothesizes that some recent works from
the São Paulo scene, produced mostly by women, present convulsive bodies,
whose characteristics bring them closer to the descriptions of hysterical
bodies of the late 19th and early 20th centuries. She mentions four other
works to affirm that there is, in this creative movement, a sign of female
empowerment, of affirmation of their “place of screaming.” The author
articulates her experience as a spectator with different theoretical and artistic
references, incorporating impressions in her writing and recording what she
sees in the works. Spectation is used as a methodology, placing this practice
between reception and criticism. References external to the performing arts,
especially psychoanalysis, contribute to studying the ambivalences and
ambiguities put into play.
Keywords: Choreography. Hysteria. Spectation. Convulsive Bodies.
Contemporary Dance.
Coreografía de la histeria: cuerpos con espasmos y
empoderamiento femenino en la escena paulista
Lobo
Resumen
A partir del análisis del espectáculo
Lobo
de 2018, de Carolina Bianchi Y Cara
de Cavalo, la autora formula la hipótesis de que algunas obras recientes de
la escena paulista, producidas en su mayoría por mujeres, presentan cuerpos
con espasmos, cuyas características son muy similares a las descripciones
de cuerpos histéricos de finales del siglo XIX y principios del XX. Menciona
otras cuatro obras para afirmar que en el movimiento creativo hay señales
de empoderamiento femenino y de afirmación de su “lugar de grito”. La artista
articula su experiencia como espectadora mediante distintas referencias
teóricas y artísticas, incorporando impresiones en su escritura y el proceso
de registro de aquello que ve en las obras. Además, se basa en la espectación
como metodología, y sitúa esta práctica entre la recepción y la crítica. Las
referencias externas al campo específicamente escénico, sobre todo al
psicoanálisis, contribuyen al análisis de las ambivalencias y ambigüedades
que están en juego.
Palabras clave
: Coreografía. Histeria. Espectación. Cuerpos con espasmos.
Danza contemporánea.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
4
Introdução
Este texto faz um relato de uma experiência espectatorial específica, o
encontro com a obra
Lobo
(2018)3, de Carolina Bianchi e Cara de Cavalo, utilizando-
o como fonte para reflexões teóricas. Em estilo ensaístico, a narrativa em primeira
pessoa faz uso da metodologia de espectação, proposta por Skantze (2013) e
aprimorada por Montagner (2018), para percorrer os caminhos entre a experiência
de assistir à obra, os impactos que ela provocou e os desenhos teóricos que a
reflexão, ancorada na experiência, delineou.
O artigo é formado por três partes. Inicialmente, descreve-se a metodologia
de espectação, que ancora todo o artigo. Para tanto, a escrita se permite fazer uso
de "palavras por vezes mais próximas do coração, do cérebro ou do estômago"
(Moraes, 2013, p.19). A seguir, a primeira metade de
Lobo
é analisada sob tais
premissas, passando pelos subtemas O Coro Masculino Nu, A Pintura de Artemísia,
A Protagonista Feminina,
Lobo
é
Camp
e Ela Mata o Homem Errado. Finalmente,
segue-se uma reflexão nomeada A Coreografia da Histeria, na qual os temas
levantados anteriormente culminam na hipótese teórica de que certas obras
cênicas contemporâneas, apresentadas em espaços de renome na cidade de São
Paulo, levam à cena corpos convulsivos, cujas características os aproximam das
descrições sobre os corpos histéricos, feitas no final do século XIX e na primeira
metade do século XX, especialmente por médicos e psicanalistas.
Propomos que, enquanto no passado tais corpos eram social, cultural,
econômica e politicamente subjugados, privados da sua liberdade e até
aprisionados, atualmente, vemos que algumas integrantes da nova geração de
coreógrafas, dramaturgas e intérpretes que se apresentam na cena paulista (por
vezes em parceria com colegas do gênero masculino - como vemos no coro
numeroso de homens em
Lobo
), apropriam-se do corpo em convulsão como
3 Informações textuais e visuais sobre essa obra podem ser encontradas no site:
https://www.carolinabianchiycaradecavalo.com/l-o-b-o. Acesso em: 14 mar. 2021.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
5
forma de empoderamento, subvertendo as expectativas patriarcais vigentes até
recentemente.
Esse movimento estético, ligado à terceira onda feminista4, não nos parece
ser exclusivo do território paulista. Todavia, a busca por circunscrever o contexto
espacial deriva da preocupação em não universalizar processos, contrariando o
histórico da reflexão crítica sobre dança contemporânea no nosso país que, muitas
vezes, toma a produção cênica do eixo Rio-o Paulo como toda a produção
nacional. Não nos cabe universalizar processos, mas esmiuçar aquilo com o que
se tem, efetivamente, contato.
Espectação
Escrevo essas linhas em ato de espectação (Skantze, 2013) construído pela
artesania de quem assiste, décadas, a inúmeras peças e acumula essas
experiências comparando-as, percebendo as diferentes emoções derivadas de
cada obra. Como ressalta Marvin Carlson (2020, p.6): “podemos levar conosco um
repertório acumulado de memórias de eventos semelhantes que podemos
utilizar para entender e apreciar a nova experiência”.
A espectação é uma ação continuada e parte indissociável da minha vida de
artista-pesquisadora. Um ir e vir de arquiteturas, cidades, ruas e línguas - busco
teatro, dança e performance em qualquer lugar em que me encontre.
Espectadores seriais são mariposas da energia que emana do palco, mesmo
quando a encenação acontece em espaços inesperados como buracos, neis,
subsolos, asilos, igrejas ou hospitais. “[…] Uma prática de espectar, uma prática
que pode ser tão intuitiva, cumulativa e trabalhada quanto a de fazer
performances, dirigir e escrever (Skantze, 2013, p.7)5. Sou diretora, bailarina,
coreógrafa e professora, bem como espectadora assídua. Isso é parte fundamental
4 A terceira onda feminista, iniciada nos anos 1990, questiona a centralidade da experiência das mulheres
brancas de classe média nas lutas anteriores do movimento. A causa se expande para questões enfrentadas
por grupos subalternizados, especialmente mulheres negras e indígenas. A terceira onda feminista também
luta contra formas de representação estereotipadas de mulheres na indústria de entretenimento, e revela as
experiências de machismo e assédio enfrentadas pelas mulheres nos espaços doméstico e de trabalho.
5 […] a practice of spectating, a practice that can be as intuitive, cumulative and crafted as that of making
performances, of directing and writing. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
6
da minha prática (como criar se não vejo o que os outros criam, se não me insiro
no universo poético dos palcos da minha cidade, ou das cidades, que frequento?).
!Aquilo que experienciamos enquanto espectadores forma-nos tanto enquanto
espectadores quanto indivíduos. Não seria essa também uma prática criativa, que
nos inventa à medida que nos constitui?” (Montagner, 2018, p.16).
A palavra espectatorial constitui-se em um neologismo e não é
encontrada nos dicionários de português. Espectatorial parece derivar
diretamente de spectatorial, adjetivo utilizado na língua inglesa para
referir-se ao espectador. Foi dessa forma, através dessa tradução direta
feita necessária pela limitação terminológica encontrada no português,
que também passei a empregar espectatorial como adjetivo para o que
concerne o espectador. Assim, o adjetivo !espectatorial é também aqui
proposto enquanto uma derivação necessária para o espectador,
complementando e acompanhando a espectação (Montagner, 2018, p.47).
A espectação pode ser entendida como “uma metodologia de sugestão em
vez de argumento, um convite para olhar juntos, em vez de uma renderização
plana da s-imagem, a superfície restante da performance lembrada” (Skantze,
2013, p.7)6. Espectar acontece com os outros, mas nunca como os outros - daí a
impossibilidade de um espectador ideal. A atenção espectatorial depende das
múltiplas vivências de cada um, além das experiências derivadas do acaso nos
tempos anteriores e subsequentes à experiência. “[S]eria mais viável falarmos de
práticas da espectação
em vez de presumir que um processo único ocorra na
interação espectatorial com a cena, pois não existe um espectador que possa
exemplificar todos os restantes” (Montagner, 2018, p.47).
A espectação entende o evento teatral como um campo interminável de
experiências, que não se limita ao tempo da ação, mas se prolonga para a vida:
“Espectação é uma forma de abordagem dos estudos do espectador, que aqui se
estabelece pela aproximação com experiências pessoais e com seus
desdobramentos perceptivos e corporificados, suas repercussões imediatas e
suas ressonâncias” (Montagner, 2018, p.29). A cada peça presenciada, o corpo do
espectador se altera e se expande, sustentando uma rede de associações a nutrir
6 A methodology of suggestion rather than argument, an invitation to look together rather than a flat rendering
of the afterimage, the leftover surface of the remembered performance. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
7
vivências futuras, além de rearranjar experiências passadas por adequações,
reparações e reavaliações. “[O]
corpo espectatorial
, rebelado no enquadramento
espaço-temporal da performance, reivindica sua parte no evento, como evento
que performava-se na espectação” (Montagner, 2018, p.93). Como diz Skantze, o
corpo do espectador responde com “aquela dança mimética estranha e constante
que acontece a uma espectadora envolvida; eu o estou fazendo a ação, mas
como a ação é feita afeta como eu a recebo, onde em meu corpo eu a recebo”
(2013, p.104)7.
Como ação que se instaura na escrita, a espectação impõe um desafio à
linguagem, pois precisa de linhas que descrevam não somente o evento, mas
também o que se sentiu naquele momento, como espectadora, assim como o que
se experimenta neste momento, como escritora. !A escrita, de certa maneira, torna
presente, é uma luta contra a ausência” (Roudinesco, 2019, p.15). Sabemos que a
nossa memória nunca é testemunha fiel, ela mexe nas lembranças, defasa, apaga,
aumenta, inventa, nega, obstrui, reduz, ataca, ignora e recria o evento. Como
escrevi anteriormente: “a mesma peça, se assistida em momentos diferentes da
vida, geraria arquivos diferentes de lembranças, pois cada contato depende de
inúmeras variáveis da 'vida que mexe muito'”8 (Moraes, 2013, p.15).
Sobre essas obras que tenho a intenção de escrever, elas são assistidas com
caderninho, no qual anoto rapidamente as cenas e as minhas impressões, muitas
vezes sem ver as suas páginas, pois es escuro e não quero deixar de olhar para
a ação. O caderninho me alguma ancoragem para o texto, certa segurança
contra a “vagabundagem em primeira pessoa” (Roudinesco, 2019, Loc. 438). Com
ele, navego nos dois tempos do evento, o de assistir e o de escrever, pendulando
entre o que vi e o que ainda está em mim. Segundo Skantze (2013, p.28)9: “existe
uma fronteira no espetáculo teatral no tempo entre os momentos de recepção do
espetáculo e considerações posteriores fora do espaço quente da apresentação”.
7
[…] that constant odd mimetic dance that comes from engaged spectating; I am not doing the action, but
how the action is done affects how I receive it, where in my body I receive it. (Tradução nossa)
8 Fala recorrente de Riobaldo em
Grande Sertão: Veredas
, de Guimarães Rosa.
9 […] a border exists in theatrical performance in the time between the moments in reception of the
performance and later considerations outside the host space of the live. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
8
Por se instaurar na fronteira entre receber e considerar, espectar oferece não
somente uma metodologia, mas um novo campo de estudos em performance.
Portanto, este texto não trata de recepção nem faz uma crítica da obra, mas é
tecido como um ensaio a respeito dos efeitos sentidos por uma espectadora
traquejada, em uma tentativa de articular a experiência sem o distanciamento do
crítico nem a ingenuidade do espectador eventual. Se é óbvio que qualquer sujeito
vive uma experiência ao assistir a uma peça cênica, não é verdade que a
experiência seja similar. Mesmo que assistam à mesma obra, no mesmo dia,
sentados lado a lado, cada um que assiste vive uma experiência única, afinal, “o
trabalho cognitivo de atribuição de sentido pode ser feito em certos contextos
de referência, e estes não são universais, mas culturalmente determinados”
(Fanon, 2020, Loc. 526). O espectador traquejado é capaz de tecer comparações e
contextualizações. Nas palavras de Carlson (2020, p.12): “Quanto mais teatro se
assiste, mais rica se torna a interação entre uma experiência nova e uma
experiência lembrada”. Além disso, frequentar repetidamente o teatro permite
visualizar laços de referências contemporâneas e históricas. Afinal, “[A]s obras
mais interessantes da arte contemporânea estão cheias de referências à história
do meio; na medida em que comentam a arte passada, exigem um conhecimento
pelo menos do passado recente” (Sontag, 2018, p. 36).
Lobo
Assisti à obra
Lobo
, dirigida por Carolina Bianchi e apresentada no Teatro de
Contêiner, duas vezes. Na primeira, anotei algumas palavras soltas no meu celular
logo ao sair do teatro. A seguir, escrevi mais algumas linhas ao chegar em casa e,
nos dias subsequentes, fui anotando mais e pesquisando elementos músicas,
pinturas, biografias, dentre outros aspectos. Depois de alguns dias, resolvi assisti-
la novamente, dessa vez com um caderninho para anotar a ordem das cenas, as
músicas que conseguia identificar e os letreiros projetados no fundo do palco. Nos
aplausos, ficou claro que muita coisa da minha primeira lembrança tinha sido
inventada. Eu colocara até mesmo uma canção inexistente,
Wuthering Heights
, de
Kate Bush. A sica o aparece, mas o figurino da cantora no videoclipe,
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
9
disponível no
YouTube
10, é muito parecido com o primeiro usado por Carolina
Bianchi. A minha memória trocou a roupa pela canção em um deslize freudiano
clássico.
O Coro Masculino Nu
É sábado à noite, dia 15 de setembro de 2018. Entramos em fila na sala de
espetáculos do Teatro de Contêiner, no centro de São Paulo, e buscamos lugares
disponíveis. O meu parceiro e eu sentamos em cadeiras na lateral do palco,
enquanto mais de uma dezena de jovens rapazes correm nus com tênis,
segurando, cada um, uma garrafa vazia de vidro. São todos magros, alguns mais
atraentes do que outros, uns mais peludos e uns mais… Por desconhecimento,
que não possuo órgão genital masculino, pergunto baixinho ao meu parceiro,
sentado ao lado, se não incomoda correr com os genitais soltos e ele me responde
que somente se estivessem rígidos incomodaria. Olho para os moços e vejo os
membros murchos, pendurados e balançando enquanto correm e sinto um misto
de pena, curiosidade e vontade de rir.
Esses pedaços extras de carne percorrem o espaço na altura dos meus olhos,
pois me encontro sentada em cadeira posicionada no chão do palco. Durante os
primeiros dos longos minutos enquanto os rapazes correm, transpiram e
exaurem-se, fico sem saber se devo ou não olhar tão declaradamente para os
seus órgãos expostos e compará-los ou se não deveria me importar mais com
seus rostos, mãos ou joelhos.
Penso que os seus corpos são exibidos nus de propósito, com o
consentimento de cada um deles, justamente para nos causar um misto de
curiosidade, desejo e culpa, e, depois dessa breve reflexão, entrego-me à análise
das suas figuras, cuidando somente para que o meu rosto não denote as minhas
interpretações (afinal, estou na primeira fila e quase tão iluminada quanto os
atores/bailarinos). Nesse momento, trava-se a aliança entre a obra e minha
percepção: de um lado o exibicionismo louco, transviado, suado, babado, arriscado,
10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Fk-4lXLM34g. Acesso em: 15 mar. 2021.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
10
contorcido e desvairado dos artistas em cena; do outro meu
voyeurismo
mascarado pelos músculos do meu rosto, que mantêm a impressão de
distanciamento, enquanto, por dentro, imagens, associações, desejos, atrações,
nojo e repulsa invadem a minha percepção.
A cena é acompanhada por uma sequência de músicas
pop
sampleadas.
Reconheço Kid Abelha (“eu quero você como eu quero”),
Wicked Game
(de Chris
Isaak), Maria Betânia (!negue meu amor e meu carinho”),
Guns in Roses
, Marina
(!solidão com vista pro mar”) e
Total Eclipse of the Heart
(de Bonnie Tyler). Tento
continuamente contar o número de jovens, mas não consigo, pois eles não param
quietos e são muitos. Fico na dúvida se são treze, quatorze ou quinze. Depois de
muitas tentativas, confirmo que são 15. Às vezes, batem as garrafas entre si sem
querer. Certa vez, um deles deixa cair a garrafa, mas ela não se quebra. Quando a
música para, todos param juntos, respiram alto e exaustos.
Depois de correrem loucamente por vários minutos, vivendo o risco de
tropeçarem e se cortarem caso quebrassem as garrafas de vidro vazias que
levavam nas mãos, parando individualmente somente quando estavam quase
desmaiando, os rapazes começam a passar as mãos nos próprios corpos suados,
ainda segurando as garrafas. Depois, levam os objetos ao chão e, aos poucos, tiram
as meias e os tênis. Um a um, colocam as garrafas embaixo das cadeiras da
primeira fila da plateia e voltam para a cena. Eles colocam as mãos dentro da
boca, nos sexos, deitam-se no chão e começam a se lambuzar no próprio suor.
Silêncio. Enfiam os pés na boca, giram, escorregam e arrastam-se no chão,
umedecido pela transpiração. Os seus cheiros impregnam o ar do teatro. Um
moço, enrolado aos meus s, causa-me repulsa pela proximidade extrema e
imposta. Prefiro olhar para outros corpos, mais distantes.
A um metro e meio à minha esquerda, noto nas costas de um dos jovens um
machucado recente, na altura de sua lombar: um raspão fundo, ainda sem casca.
Ele começa a rolar no tablado desnivelado do chão e as frestas, entre as tábuas,
me contam que talvez tenham sido elas que, nos dias anteriores, tenham talhado
aquela pele. Uma citação de Freud me vem à mente: “[…] toda dor, em si, contém
a possibilidade de uma sensação de prazer” (Freud, 2016, p.54). Prazer do ator ou
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
11
meu? Fico esperando se sai sangue novamente. Enquanto me entrego ao meu
sadismo, os muitos corpos se arrastam para o centro do palco e formam a imensa
imagem de uma suruba coletiva. Cenas dos bacanais de
Calígula
no filme de Gore
Vidal (1979), imagens do filme
Anticristo
(2009), de Lars Von Trier, figurinhas de
Pieter Bruegel (
the Elder
), cenas de sexo grupal e outras imagens de modos de
satisfação com gozo excessivo invadem minha cabeça - a diferença entre o que
imagino e o que vejo é que os membros dos atores continuam murchos. A pegação
coletiva pode ser fingida pelos diversos sculos dos seus corpos, mas não por
esse excesso de carne pendurado. Sim, estamos no teatro, não estamos em uma
sauna gay ou em uma casa de
swing
.
A Pintura de Artemísia
A imagem de uma mulher segurando um martelo preparado para fincar um
enorme pino de ferro na cabeça de um homem dormindo é mostrada em projeção
na grande parede branca ao fundo do palco: Giaele e Sisara, pintura do barroco
italiano feita por Artemísia Gentileschi, por volta de 1620. Uma voz feminina em
off
nos explica que o nome Giaele quer dizer cabra selvagem da montanha. Pesquiso,
nos dias subsequentes, que a obra representa uma narrativa famosa do primeiro
testamento, na qual, após perder a batalha contra os Israelitas, Sisara, um grande
general Canaanitas, foge e encontra acolhida na tenda de Giaele, mulher que não
pertencia a nenhum dos dois povos em guerra. Ela lhe promete segurança,
oferece-lhe comida e repouso, mas, enquanto ele dorme, ela martela um enorme
pino de barraca no seu crânio, cravando a sua cabeça no chão.
Inúmeras interpretações foram feitas sobre essa passagem da blia e
estudiosos debatem os motivos de Giaele - se sua figura deveria ser vista como
maternal, pois ela oferece leite a Sisara, ou como uma
femme fatale
, pois
indicações de que ela possa -lo seduzido e o exaurido com sessões de sexo
ardente. De qualquer maneira, em ambas interpretações, a personagem feminina
apresenta enorme capacidade de dissimulação. que não existe um motivo claro
para o assassinato, uma leitura possível considera a sua ação um ato de vingança
a todos os homens. O autor Järlemyr, ao tentar oferecer uma leitura para a história,
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
12
faz uso das ideias de Niditch: “Em sua interpretação, Giaele está realizando um
estupro reverso, derrubando as convenções usuais de guerra, onde as mulheres
às vezes são vítimas de estupro”11 (2016, p.53).
Essa leitura parece bastante adequada à obra
Lobo
, na qual nenhum dos
muitos atores/bailarinos em cena possui nome ou protagonismo. Transformados
em uma massa masculina em oposição à única mulher, cada um que rola no chão
ou é devorado (de fato, em uma das cenas Bianchi arranca as tripas de um deles
e mergulha o seu rosto no ventre do cadáver estendido no chão), parece
representar todos os homens do mundo - assim como Sisara parece ter sido
morto por Giaele pelo simples fato de ser um homem.
O texto em
off
, em voz feminina, que acompanha toda a cena, traz imagens
como "eu nunca durmo", !quanto mais enferma mais estacas guardo na cintura”,
!eu quase não tenho seios, mas dentes, dentes tenho muitos”, “eu tenho uma
boca com cinquenta e seis dentes afiados apontando para o seu coração”, !a
minha bandeira não tem nada escrito, porque se tivesse não seria em nenhuma
língua desse mundo”, !a humanidade é o nome de uma hiena pequena com dentes
assassinos”, !quando falo sinto que meus dentes mudam de cor”, !ainda é uma
novidade estar diante do terror?”, !eu nunca estive na Itália, eu imagino como
seja” e !faça a luz e uma voz sobre o fim da guerra”. A escrita dramatúrgica de
Carolina Bianchi aparece fortemente nos textos em
off
e constroem imagens que
se repetem ao longo do trabalho, especialmente a de uma boca com muitos
dentes. Essa boca é ameaçadora, monstruosa, arquetípica do feminino que devora
e ameaça o falo de decepação. Enquanto os 15 homens dormem, como Sisara, as
suas mortes estão sendo fantasiadas e a devoração dos seus corpos imaginada
pelo feminino instaurado na voz desencarnada.
11
In her interpretation Jael is performing a reversed rape, overthrowing the usual conventions of war where
women would sometimes fall victims to rape. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
13
A Protagonista Feminina
Os homens se levantam e fazem juntos uma dancinha ridícula em uníssono
para uma música italiana. A seguir, saem correndo para o limite do palco e, ao
retornar, trazem uma jovem nos braços: Carolina Bianchi, diretora, coreógrafa e
dramaturga do trabalho. Ela veste blusa vermelha de babados, fechada até o
pescoço, calças também vermelhas, botas de
cowboy
e um cinto que suporta
duas pistolas à frente de seu quadril, formando um grande triângulo na altura do
seu órgão genital. O seu corpo feminino não possui um pênis (por que ela teria
inveja dos membros frouxos mostrados até então?), mas ela tem ao seu poder
dois revólveres - objetos que, potencialmente, expelem balas que atravessam
corpos, penetram, marcam paredes, muros, tetos e árvores.
As suas pistolas têm canos longos e duros (a forma fálica é óbvia) e ela as
usa para encenar o assassinato de cada um dos homens, indefesamente passivos
à sua frente. Ela diz: "Boa noite, vamos começar. As últimas palavras de vocês
serão de Emily Dickinson”. Ela empunha uma arma em cada mão, aponta para um
deles e grita “Você!” (eles não têm nome). O rapaz fica em e começa a recitar
“morri pela beleza…” quando ela, no meio da fala, interrompe-o com a sentença
“Morre!”. Ela encena um disparo e o jovem cai no chão. Um por um, todos vão
sendo derrubados, até que um deles recita o poema tão lindamente que ela se
emociona. Em vez de matá-lo, abraça-o e lhe um beijo na bochecha um
gesto de carinho amigável e gentil. A imagem de poder da jovem de vermelho (a
relação com chapeuzinho vermelho é direta) sobre os homens fica clara: ela não
é devorada pelo coro masculino (pelo lobo), pelo contrário, ela submete os seus
integrantes às suas pistolas. Nessa cena, a diretora também se parece com a
rainha de copas, de
Alice no País das Maravilhas
, com o seu famoso bordão
“Cortem-lhe a cabeça!” (no caso, declamem lindamente ou morram!).
Os homens formam um coro de homens pujantes no início (jovens, fortes,
corredores, desbravadores e corajosos), que vão sendo pacificados ao longo da
obra, curvando-se ao regime de um desejo feminino apresentado pela única
mulher em cena: complexo, violento, agressivo, autoritário, imprevisível, mordaz,
manipulador, sádico, atraente, despudorado, excêntrico e masoquista. Pelas suas
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
14
ações no decorrer da trama, a jovem invoca as bruxas queimadas nas fogueiras da
inquisição, as histéricas aprisionadas e mortas no Salpêtrière, em Paris, no
Sanatório Pinel de Pirituba, em São Paulo, e em tantos outros depósitos para as
recusadas do convívio, as lésbicas dentro e fora dos armários da história, as
sufragistas, as que ficaram para titia, as avós que tomavam injeções de insulina e
choques de eletrochoques para aguentar suas vidas modorrentas. Um ódio
feminino se instaura no palco como o retorno do reprimido. Homens, aguentem,
pois vocês serão aniquilados. O lobo é um animal que não se presta à
domesticação. Qual é a alternativa? “Morre”!
Lobo
é
Camp
Carolina se desfaz do abraço e diz !gente, tudo bem, todo mundo vivo,
vai gente, se mexe”. A estratégia de metalinguagem reaparece algumas vezes
quando a personagem indomável, grandiosa e excêntrica lugar a uma moça que
fala com voz comum, diretamente ao espectador, pede com educação e brinca
como se fôssemos colegas. Desse breve momento de quebra de encenação,
entra-se de súbito novamente no teatro como representação, agora parodiando
os karaoquês. Bianchi dubla a música
Those Were The Days
(1968), de Mary Hopkin,
enquanto os homens passam as mãos no seu corpo e a jogam para cima no refrão.
A dramaturgia de Bianchi faz do
Camp
(Sontag, 2018) a sua estrutura de
montagem. Tudo é exagerado: o karaokê, o
lip sync
, a dancinha ridícula dos
homens em uníssono para música italiana, a cor de seu figurino, as duas
espingardas na sua bis, suas botas de
cowboy
, seu jeito de andar, as sicas
cafonas que sabemos de cor, o bicho empalhado falando pelas gravações, as tripas
de linguiça amarradas na barriga do ator com filme de PVC, o sangue
declaradamente falso que espirra de uma bexiga e o ovo que ela pare no final.
Susan Sontag, na sua longa lista descritiva sobre a estética Camp, escreve: “Na
verdade, a essência do
Camp
é seu amor pelo não natural: pelo artifício e exagero”12
(2018, p. II). Mais à frente, a autora coloca: “Camp afirma que bom gosto não é
12 Indeed the essence of Camp is its love of the unnatural: of artifice and exaggeration. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
15
simplesmente bom gosto; que existe, de fato, um bom gosto de mau gosto”13
(Sontag, 2018, p.31). Muitas das cenas de
Lobo
são boas de tão ruins, falsas,
desmedidas e hiperbólicas. Uma das frases mais famosas da grande ensaísta
norte-americana me vem à cabeça: !A declaração final do
Camp
: é bom porque é
horrível”14 (Sontag, 2018, p.33).
Um dos rapazes se senta no piano, nu, e improvisa suavemente enquanto lê-
se projetado INTERMEZZO. Uma raposa empalhada é colocada na diagonal do
palco. Ouvem-se sons de respiração feminina e uma voz em
off
recita um
monólogo: !depois de dar à luz um ovo gigante, desconfio que minha bacia tenha
se destroçado. […] a porca vai torcer o rabo”. A raposa não é um lobo, mas na cena
faz as vezes de um “lobo”.
Camp
tudo entre aspas. Não é uma lâmpada, mas uma 'lâmpada'; o
uma mulher, mas uma 'mulher'. Perceber o Camp em objetos e pessoas
é compreender o Ser-Enquanto-Desempenha-Um-Papel. É a extensão
mais ampla, em sensibilidade, da metáfora da vida como teatro”15
(Sontag, 2018, p.9-10).
Camp
é canastrão, decadente, aberrativo e “converte o rio em frívolo
(Sontag, 2018, p.1).
Ela Mata o Homem Errado
Bianchi retorna ao palco com peruca loira, blusa de alça, sapatos de salto e
saia rodada azuis. O coro masculino nu segura equipamentos de filmagem e um
dos jovens, à frente, veste terno preto, camisa branca e sapatos sociais. Um dos
rapazes do coro usa óculos escuros - objeto que o distingue dos outros e o
caracteriza como o diretor da cena de filmagem a ser representada. Bianchi e o
moço vestido interpretam os atores da cena. O diretor, enquanto coordena a
13
Camp asserts that good taste is not simply good taste; that there exists, indeed, a good taste of bad taste.
(Tradução nossa)
14
The ultimate Camp statement: it
s good because it
s awful. (Tradução nossa)
15
Camp sees everything in quotation marks. It
s not a lamp, but a
lamp
; not a woman, but a
woman
. To
perceive Camp in objects and persons is to understand Being-as-Playing-a-Role. It is the farthest extension,
in sensibility, of the metaphor of life as theater. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
16
encenação, passa a mão no corpo da atriz, em referência aos escândalos
hollywoodianos de homens poderosos sobre atrizes aspirantes e à terceira onda
feminista ligada ao movimento #metoo. Carolina repete a mesma fala, !Eu te dei
os melhores anos da minha vida, mas não tem importância porque no final o amor,
o amor sempre vale a pena”. O diretor demanda: !mais louca! vai!”. Em resposta
aos comandos, a jovem vai acentuando a sua interpretação cada vez com maior
intensidade (uma estratégia que ficou muito conhecida com Pina Bausch, pela qual
a bailarina/personagem perde, pela repetição, o controle sobre si). No ápice da sua
interpretação exagerada, ela corre até o homem de terno, arranca as suas tripas e
o mata. Ela desenha, com o intestino de linguiças, um coração em volta do
cadáver, enquanto a equipe de cinema filma tudo.
A atriz ataca o seu colega de profissão (o ator com quem contracena), em
vez de atacar o diretor que a assedia sexual e moralmente. Ela mata o homem
errado, em um processo de substituição analisado em profundidade por Freud e
Breuer em
Estudos sobre a Histeria
: “A cólera apresenta reações adequadas,
correspondentes a suas causas. Se elas são impossíveis ou veem-se inibidas,
outras a substituem. […] transpomos a excitação da cólera, da reação adequada
para outras, e nos sentimos aliviados” (Freud; Breuer, 2016, p.287). Atrizes
assediadas não podem (ou não podiam, vejamos os efeitos a longo prazo do
#metoo), rebelar-se contra os seus diretores e produtores, dos quais as suas
carreiras dependem (ou dependiam, idem). Todos nós atuamos substituições
recorrentemente na vida, pois nossa cólera, quando não pode ser direcionada aos
agentes de nosso infortúnio, é desviada a um objeto próximo. A atriz de peruca
loira reitera a ira mal direcionada de Giaele em assassinato, que substitui o culpado
pelo inocente. Repetidamente, em
Lobo
a crueldade feminina é justificada pela
opressão patriarcal.
Carolina enfia o rosto na barriga ensanguentada e mancha seu maxilar e nariz
de tinta vermelha. A imagem da jovem sobre as tripas do morto é ambígua, pois
parece, ao mesmo tempo, um ato de devoração e de felação. Em meio à ação
grotesca, um dos jovens do coro, com o rosto pintado de rosa, começa a cantar à
capela, em inglês, a música
L'Amour Toujours
, de Gigi D'Agostino. A canção pop de
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
17
gosto duvidoso se transforma em canto lírico e o sublime baixa o seu manto sobre
a selvageria representada, emoldurando a cena antropofágica.
Coreografia da histeria16
Corpos convulsivos em
Lobo
Um forte elemento da dramaturgia da obra, tanto nos letreiros projetados na
tela ao fundo quanto nas diversas vezes em que escutamos uma voz nos
amplificadores, é a transmutação do ser humano em animal e vice versa, seja pelo
antropomorfismo do lobo e da lagosta ltima cena), que falam com palavras
humanas, seja pelas vozes femininas que narram as transformações de pessoas
em bestas (“a humanidade é uma hiena”, Giaele mata Sisara “com a força de
setecentas cabras” e “sente falta de quem lhe pouse as mãos nos cascos”). Bianchi
faz da zoantropia parte de seu estilo dramatúrgico, referenciando medos e crenças
que levaram milhares de mulheres às fogueiras da Inquisição, acusadas de serem
feiticeiras que conversavam com espíritos e dominavam ou transformavam-se em
animais.
Seria essa mais uma obra com características marcadamente do corpo
histérico desde que esquadrinhado, descrito e analisado por Charcot, na segunda
metade do século XIX? !Está tudo ali [nas fotos de Salpêtrière]: poses, crises, gritos,
"atitudes passionais#, "crucificações#, ‘êxtases#, todas as posturas do delírio” (Didi-
Huberman, 2015, p.15). Ao sair do espetáculo, ainda no corredor do teatro, abro em
meu celular a lista das características da “performance do corpo histérico”
(Marshall, 2016, Loc. 30), que venho elaborando a partir das descrições de Charcot,
Freud, Didi-Huberman, Kate Gotman e Jonathan Marshall, e noto que praticamente
16
Ressalva importante: O corpo feminino histérico tem a sua história abraçada à das mulheres
brancas de classe média e alta que permaneceram sexualmente, financeiramente, legalmente e
subjetivamente submissas aos seus representantes legais masculinos até recentemente.
Entretanto, como nos lembram as teóricas feministas negras, como bell hooks (2019), essa nunca
foi a condição de todos os corpos femininos, especialmente nos países com passado
escravagista, como o Brasil. Apesar desse não ser o foco deste artigo, não podemos nos abster
dessa observação, já que fazê-lo incorreria o texto em mais uma generalização que invisibiliza a
luta das mulheres subalternizadas.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
18
todas as palavras da minha lista foram representadas em cena: apreensão,
convulsões, espasmos, solavancos, ataques repentinos, histrionismo, destempero,
exibicionismo, descontrole, despudor, desfiguração, desordem, desvario,
desmonte, extravagância, desarticulação, agitação, sedução, exagero, figuras
descabeladas, olhos revirados, corpos que babam, corpos que urinam, contorções,
contrações, explosões, automutilações, paralisia de membros, dormência de
membros, movimentos involuntários, movimentos abruptos, dissociação,
desintegração, corpos parcialmente vestidos, exaustão, bem como agressão a si e
ao outro. Tais padrões motores típicos da agitação, estado psicofísico que
desafiava a sociedade ocidental antes dos antipsicóticos, antidepressivos e
calmantes, e que enchiam os sanatórios aos milhares, preenchem o palco. Para
os que sabiam ouvir: !A agitação não é somente uma excrescência, um câncer
'psicomotor'. É também, e acima de tudo, uma modalidade de existência, um tipo
de atualização, um estilo expressivo” (Fanon, 2020, Loc. 1684). o corpos
prodigiosos, que aguentam muito mais do que o corriqueiro. Valho-me das
palavras de Didi-Huberman, mais uma vez, para descrever esse corpo: “do que é
capaz o corpo histérico: pois bem, parece um prodígio. Parece um prodígio,
ultrapassa a imaginação e até qualquer expectativa#, como se costuma dizer” (Didi-
Huberman, 2015, p.15).
Segundo Freud, corpos convulsivos nos inquietam porque parecem ter sido
capturados por porções inconscientes do ser. Sendo assim, corpos histéricos nos
mostram que o inconsciente não somente sonha e deseja, mas também age nos
músculos e ossos.
O efeito inquietante da epilepsia e da loucura tem a mesma origem. Os
leigos veem nelas a manifestação de forças que não suspeitavam existir
no seu próximo, mas que sentem obscuramente mover-se em cantos
remotos de sua própria personalidade. De modo consequente e
psicologicamente quase correto, a Idade dia atribuiu todas essas
manifestações patológicas à ação de demônios (Freud, 2010, p. 363).
Saio com a pergunta inconveniente de Marshall (2016, Loc. 262): seria
Lobo
uma obra que se inscreveria na longa genealogia de trabalhos que representam
estados neuropatológicos como entretenimento radical? Segundo
questionamento inconveniente, citando Didi-Huberman (2015, p.22):
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
19
Eu gostaria de interrogar esses acordos […] quando, em se tratando de
histeria, um dico [no meu caso, uma espectadora] mal consegue não
assistir como artista à dor como que luxuosa de um corpo entregue a
seus sintomas. Eu mesmo o escapo a esse paradoxo de atrocidade […].
Reflito que o reconhecimento da ambivalência emocional é uma das maiores
contribuições da psicanálise: "Como conciliar a tensão desprazerosa e a sensação
de prazer?" (Freud, 2016, p.124). A ambivalência do espectador diante de estados
neuropatológicos como entretenimento, repulsa e atração misturados, não são
novidade na encenação da loucura. Recordo-me das palavras de Lucia Sander: "A
louca no palco é uma visão tão assustadora e fascinante que deixa na penumbra
tudo e todos os demais à sua volta" (Sander, 2013, p.113).
O incômodo continua:
Lobo
propõe aos espectadores a cumplicidade, o
voyeurismo
sádico, o nojo e a repulsa. Recordo-me de uma citação famosa do pai
da psicanálise: "A força do instinto sexual se compraz em afirmar-se na superação
desse nojo" (Freud, 2016, p.44). Imagino que alguns possam se assustar ou rejeitar
tais ofertas, mas vejo-me abraçando-as em um misto de vergonha e prazer. Nos
seus três ensaios sobre a sexualidade, Freud decifra esse sentimento paradoxal:
"A força que se opõe ao prazer em olhar, e que eventualmente é suplantada por
este, é o pudor (como antes sucedeu com o nojo)" (Freud, 2016, p.51). Racionalizo
as minhas impressões revisitando os mesmos ensaios: "o instinto sexual tem de
lutar contra certas forças psíquicas que agem como resistências, entre as quais a
vergonha e o nojo" (Freud, 2016, p.57). Talvez a minha captura atencional e
desejante pelo coro masculino de
Lobo
derive de formações reativas à minha
sexualidade polimórfica recalcada (Freud, 2016, p.81, 98-99). O investimento
estético, explicitamente sexual, força em mim um questionamento moral, sem o
qual meu prazer de
voyer
não existiria - não prazer na contemplação do
sofrimento, real ou representado, se não misturado à culpa, daí sua atrocidade
inescapável.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
20
Corpos convulsivos na cena paulista
Figuras ativas da jovem geração de coreógrafas, dramaturgas e intérpretes
em terras paulistas nos fazem pensar sobre um modo feminino cada vez mais
presente: seres andróginos, que recusam a feminilidade doce, gentil, bela,
submissa, passiva, contida, subserviente e heteronormativa, e incarnam corpos
explosivos, raivosos, sensuais e sexuais, da ordem homoafetiva, bissexual ou
heterossexual anti patriarcal. Nas suas obras, essa nova geração reencena práticas
psicomotoras historicamente associadas aos ataques histéricos e apresentam-nas
como formas estéticas de empoderamento feminino. São corpos que
convulsionam, agitam-se, atacam o ar, a si mesmas e o outro repentinamente,
atuam com espasmos inesperados, pausam catatonicamente, expõem-se sem
pudor ora arrancando as roupas sem erotismo ora seduzindo o espectador com
trajes curtos e olhares adocicados. São mulheres descabeladas ou que raspam
seus cabelos, reviram os olhos, urinam, babam e se contorcem.
Vi
Égua
em agosto de 2017 no Teatro do Centro da Terra. Criada, dirigida e
interpretada pelas bailarinas Josefa Pereira e Patrícia Bergantin, a obra conta com
a colaboração visual da artista Manuela Eichner. Na sinopse do programa, -se
que gua experiencia a potência do animal cavalo, quando afirmado a partir deste
outro estranho, 'o segundo sexo'". Como se quisessem regredir para escrever uma
outra história do corpo feminino, as artistas se alinham a personagens femininas
raivosas que rondam tanto o imaginário mítico antigo (Eva, Lilith, Medeia, Lady
Macbeth, entre inúmeros outros) quanto o contemporâneo (Charlotte Gainsbourg
nos filmes
Anticristo
e
Ninfomaníaca
, de Lars Von Trier, e o livro autobiográfico
Argonautas
, de Maggie Nelson, são somente alguns exemplos). As duas mulheres
em cena se colocam de quatro para se regerem novamente pelo olfato, sugerindo
uma regressão evolutiva descrita na sinopse: "um movimento para
farejar
resquícios de modos esquecidos de existir" (grifo nosso).
Assisti à performance
Monstra
em abril de 2018 no Sesc Pompeia. Nela, cinco
jovens mulheres (Bárbara Elias, Danielli Mendes, Josefa Pereira, Mariana Costa e
Patrícia Bergantin) tecem uma coreografia-colagem com plantas. Com a direção
da coreógrafa e bailarina Elisabete Finger e da artista visual Manuela Eichner, as
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
21
células cênicas independentes unem-se como "blocos de ações que se colam e
se separam uns dos outros com certa brutalidade, como se fossem cortados com
uma tesoura"17. A tessitura corporal engloba formas e movimentos imprevisíveis,
agitados, desajeitados, irregulares e disruptivos. Ao longo do trabalho,
acompanhamos a instauração de um estado de descontrole cada vez mais
acentuado e violento, pelo qual testemunhamos a fuo de mulheres e plantas
em um corpo único, uma massa revoltosa. Em uma das cenas, as cinco performers
urinam em cena, impregnando o chão com o líquido amarelado e o teatro com
seu odor característico.
Em fevereiro de 2019, assisti ao solo
Marcela Banguela
, de Natália Mendonça,
no Teatro do Centro da Terra. Segundo a autora: "uma criatura que veste fogo e
bicho. um projeto de velha. descabelada. assimétrica. perigosa. na rua ela não
anda, se monta pra guerra. mija na caçamba. toda dada a excessos. num segundo
gargalha, no outro se debulha em lágrimas"18. A obra foi apresentada com o público
sobre o palco, dividindo o espaço com a artista, que se movia muito proximamente
aos espectadores. A sua pesquisa, autobiográfica, debruçou-se sobre a
corporalidade que sentiu emergir quando se mudou do interior do estado de São
Paulo para a capital. Nessa nova realidade, Natália passou a "andar com roupas
largas, muito largas. Ter um caminhar masculinizado. Sair gritando na rua escura.
Correr, como se estivesse atrasada para algo. Usar chapéu tampando o rosto.
Esquivar-se. Sobreviver"19. O seu corpo, habilmente treinado, passava de estados
fortes e violentos para momentos frágeis e delicados. Ela iniciou vestindo
sobretudo, calças douradas e chapéu, e terminou nua em um canto do espaço,
em cena comovente de grande intensidade dramática. O seu corpo foi da
masculinidade parruda, excessiva, teatralizada, para a feminilidade confusa,
desencaixada do seu ambiente e insegura.
Entre novembro e dezembro de 2019, orientei o desenvolvimento da obra
Manada
, no Departamento de Artes Corporais da UNICAMP, em Campinas, como
17
Disponível em: http://cargocollective.com/manuelaeichner/MONSTRA. Acesso em: 13 abr. 2021.
18
Disponível em: http://centrodaterra.org.br/natalia-mendonca. Acesso em: 13 abr. 2021.
19
Disponível em: http://www.canalaberto.com.br/index.php?r=clientes/375-marcela-banguela-de-natalia-
mendonca-estreia-na-oswald-de-andrade. Acesso em: 13 abr. 2021.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
22
Trabalho de Conclusão de Curso do Bacharelado em Dança dessa universidade. O
trabalho foi criado pelas alunas Ana Carolina Yamamoto, Ariadne de Souza, Beatriz
Paias, Clara de Clara, Fernanda Xavier e Thaís Santana. Interessava às criadoras
pesquisar corpos convulsionantes, indomados, extasiados, descontrolados,
exauridos, trêmulos e retorcidos. Sobre sapatilhas de ponta nos quatro membros,
cobertas com meias cor de rosa, as bailarinas entravam em cena caminhando de
quatro sobre um grande tapete de grama falsa, vestidas com macacões
laboratoriais brancos. Ao se despirem dos macacões, apareciam com roupas e
maquiagens muito coloridas e retiravam, com os dentes, as sapatilhas de ponta
de suas mãos e pés, transformando-as em armas ao lançá-las com força no chão.
As cenas que se seguiam misturavam violência e ironia para tratar da ambivalência
com a qual as intérpretes experimentam a feminilidade. Esse trabalho foi
apresentado no Teatro de Contêiner, na cidade de São Paulo, em março de 2020.
Em todas as peças descritas acima, roteiros flexíveis alinhavam as
coreografias, permitindo a ocorrência de adaptações temporais e espaciais que
fisicalidades extremas, que lidam com estados corporais em vez de movimentos
minuciosamente planejados, demandam. Outro aspecto comum é o alto grau
técnico das intérpretes, assim como em
Lobo
. São artistas com formação em
instituições de renome, muitas tendo trabalhado com diversos coreógrafos na
última década, tendo produzido, ademais, trabalhos próprios e autorais. Nota-se o
cruzamento entre os trabalhos, por exemplo as intérpretes de
Égua
dançam em
Monstra
, assim como Natália Mendonça performa com intérpretes de
Monstra
e
Égua
em trabalhos com outros coreógrafos na cidade de São Paulo.
Ao assistir a essas obras, percebi, operando na minha memória, o que Carlson
descreve como "assombração".
Ao assistir a uma peça, somos sempre em certa medida afetados pelas
lembranças de outras peças, que cercam nossas experiências atuais
como ‘fantasmas’. Por essa razão, eu designei essa parte inevitável do
processo de recepção no teatro de ‘assombração’, e considero que toda
nova encenação, em algum grau ou outro, é assombrada por tais
fantasmas (Carlson, 2020, p.7-8).
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
23
Os fantasmas de
Égua
,
Monstra
,
Marcela Banguela
,
Lobo
e
Manada
vagam na
minha experiência de espectadora sentada nas cadeiras ou arquibancadas dos
teatros. A minha percepção não é somente cumulativa, mas assombrada pela
satisfação de reconhecer similitudes, assim como pelo dissabor que a mesma
constatação desperta. Reflito: seria essa uma repetição como sintoma de um
momento cultural ou a reprodução de estilos em função do desejo de participar
da pauta artística do momento, que assegura convites e visibilidade? (Artistas
experientes perdem a ingenuidade no confronto com o mercado, pois curadores,
críticos e programadores sinalizam o que interessa ou não à pauta do momento,
em um rculo vicioso que define quem está dentro ou fora do circuito). Muito
provavelmente, concluo, ambas as coisas.
Considerações finais
Lobo
se insere num campo que nunca deixou de existir, mas que,
recentemente, vem ganhando força dentro do cânone da dança cênica paulista.
Esses trabalhos teriam suas corporeidades descritas, por médicos e escritores de
tempos atrás, como histéricas. Quando teatralizadas por Charcot, na segunda
metade do século XIX, eram coreografias da doença, de mulheres !neuróticas à
força de serem educadas ao mesmo tempo no horror e na exibição do sexo”
(Roudinesco, 2019, p.12). Quando encenadas hoje, obras como
Lobo
,
Égua
,
Monstra
,
Marcela Banguela
e
Manada
enchem teatros e atraem numerosos espectadores.
Em 2018,
Lobo
fez duas apresentações lotadas no Teatro Oficina, com mais
de 700 pessoas por noite.
Égua
ganhou o prêmio do Cultura Inglesa Festival em
2017 e foi selecionada para a Bienal Sesc de Dança de 2019.
Monstr
a se apresentou
no Sesc Pompeia, no Sesc 24 de maio, além de festivais no Brasil e no exterior.
Manada
encheu o Centro Cultural Casarão, em Campinas, e se apresentou para
um bom público no Teatro de Contêiner, em São Paulo. Se, um século atrás, corpos
convulsivos, desorganizados, descabelados e despudorados eram abandonados e
trancafiados no Sanatório Pinel de Pirituba (Vacaro, 2011), atualmente, as suas
encenações encontram público vasto e interessado em São Paulo.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
24
São coreografias que se insurgem contra a histórica "suspeita profunda [na
dança cênica] contra a motilidade irregular - uma preferência por movimentos
suaves, regulares e previsíveis sobre atos corporais espontâneos ou abruptos"
(Gotman, 2018, p.5). Ao invés de nos ofertarem movimentos com belas linhas em
sequências milimetricamente desenhadas, esses corpos nos entregam linhas
tortuosas e gestos entrecortados. No lugar de faces neutras ou sorridentes,
ofertam-nos rostos contorcidos ou catatônicos. Em vez do controle de gestos
habilmente treinados, entregam-nos o descontrole habilmente cultivado.
Essas peças revigoram, ademais, o medo patriarcal da dissolução do
psiquismo feminino em selvageria animal - como se a mulher e o bicho fossem
similares na sua incapacidade de contenção.
O paradigma darwiniano da animalidade fez sua entrada não nos
textos literários - pensemos no Drácula de Bram Stoker (1897), homem-
morcego, grande sedutor de ratos - mas também no discurso das
nascentes ciências humanas e no da medicina mental. Ele permitia
afirmar que, se o animal, inferior ao homem, o precedera no tempo, o
homem civilizado conservara em diversos graus - tanto em sua
organização corporal como em suas faculdades mentais ou morais - o
traço indelével dessa anterioridade e dessa inferioridade. Em seu foro
íntimo, o animal humano podia eno se transformar, a qualquer
momento, numa besta humana. E foi nessa perspectiva que os humanos
sempre se insultaram utilizando um vocabulário animalesco: cadela,
piranha, cérebro de minhoca, galinha morta, burro de carga, barata de
sacristia, vaca, víbora, porco (Roudinesco, 2019, p.23).
Estabelece-se uma coreografia da histeria que, todavia, rejeita a negatividade
historicamente associada aos movimentos característicos desse estado. Palavras
pejorativas, como vadia, mana, monstra, cavala, histérica, louca, desvairada,
cachorra, puta, vaca, manada e outras perfazem os títulos de algumas dessas
peças, subvertendo xingamentos e transformando-os em identificadores positivos.
Nas palavras de Montagner:
Estratégias de choque, a implementação do escândalo, a explicitação do
corpo nu e de suas relações com a sexualidade, a pornografia e formas
de objetificação do corpo feminino , a confrontação de padrões e
condutas impostas às mulheres, entre outros, constituem-se em
manifestações performáticas que décadas buscam desestabilizar as
concepções e condutas atribuídas à mulher nas sociedades. Nessas
desestabilizações parece ocorrer um recorrente desmantelamento da
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
25
ideia da mulher dócil, domesticada e delicada, por meio de estratégias
que conferem ao corpo feminino o status de abjeto, desprezível e vil,
inapropriado frente às concepções do patriarcado (Montagner, 2019,
p.313).
Essa tendência não se isoladamente, que São Paulo é uma metrópole
hiperconectada aos outros centros financeiros e culturais do mundo, onde muitas
das artistas acima estudaram. A onipresença do corpo desestruturado na cena
ocidental é descrita por Giambronen:
O corpo do performer contemporâneo é um corpo histérico, patológico,
infecto, purulento, excessivo, que depois de desafiar a lei da gravidade,
superou a fisiologia e a anatomia clássica contorcendo-se em posições
no limite do humano, ou ainda, aspirando ao pós-humano (2012, p. 131).
Entretanto, na visão desse autor, a lista de coreógrafos europeus e norte-
americanos, cujos desenhos corporais se remetem às crises histéricas
identificadas no final do século XIX é tão extensa que nos faz perguntar se ele não
estaria incorrendo no viés cognitivo de buscar corroborações afirmativas em
qualquer indício. A sua asserção de que o
butoh
seria mais um exemplo de corpos
histéricos em cena demonstra incapacidade de perceber nuances culturais em
contextos diversos, como se as respostas artísticas a crises históricas em qualquer
lugar do globo seguissem o manual de psiquismo ocidental (Watters, 2011).
Kélina Gotman, similarmente à Giambronen, observa a prevalência de corpos
desordenados e marginais na dança contemporânea. Ambos autores, como quase
sempre o fazem teóricos da cultura norte-americanos e europeus, generalizam os
seus contextos para o mundo todo, pois o termo contemporâneo, como sabemos,
nunca é por eles localmente situado. Apesar desse excesso de narcisismo, as
observações dos autores, se redimensionadas, podem iluminar questões
importantes. Ao analisar coreografias europeias desse início de culo XXI, Gotman
escreve:
Esses trabalhos sugerem o que estou descrevendo como uma virada
coreográfica no teatro-dança contemporâneo, deslocando a paisagem do
movimento do que André Lepecki (2006) chamou de dança "exausta dos
anos 1980 e 1990 - em que ruptura, silêncio e quietude apresentavam
dramaturgias do fracasso - para a adoção de movimentos extra-
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
26
cotidianos intensos, tensos e extáticos que podem parecer doentios,
desordenados ou marginais. Essas danças altercinéticas, emprestadas da
neurologia, histeria e distúrbios psiquiátricos, rearticulam os regimes do
corpo ao mesmo tempo em que oferecem um vocabulário de movimento
polimórfico20 (Gotman, 2012, p. 159).
O fato de corpos femininos em crise não serem novidade na dança cênica
ocidental (como atestam as apresentações para público seleto da célebre
dançarina sonâmbula Madaleine G. no início do século XX, em Munique) não
diminui o interesse nem a importância da reincidência dessa corporalidade neste
início do culo XXI, inclusive em São Paulo. Como escreve Johana Braun: "Embora
a história e a evolução da representação da histeria tenham sido extensivamente
pesquisadas, o estudo de como esses discursos foram transferidos para a cultura
do século XXI permanece um território em grande parte inexplorado"21 (2020, p.11).
Apesar dos motivos dessa reciprocidade entre tendências coreográficas europeias
e paulistas não serem o foco deste artigo, ela provavelmente deriva dos enlaces
entre origem e formação de muitas das artistas citadas.
Observa-se a sedimentação de uma cultura na dança paulista na qual corpos
impensáveis sobre o palco algumas décadas tomam espaço. São artistas que
discutem a feminilidade a partir de uma corporalidade despudorada, babada,
urinada, agressiva, agitada, sedutora, provocante, enojante, contorcida, nua,
seminua, catatônica, trêmula, explosiva, violenta, espasmódica, exagerada,
descabelada, desfigurada, descontrolada, exibida, histriônica, destemperada,
desarticulada e escrachada. Desde essa posição estética, elas parecem ter tomado
para si o lugar de fala ou, melhor dizendo, do grito.
20 These works suggest what I am describing as a choreographic turn in contemporary dance-theatre, shifting
the movement landscape from what André Lepecki (2006) has called the
'
exhausted’ dance of the 1980s and
1990sin which rupture, silence, and stillness present dramaturgies of failureto a heightened, tense,
ecstatic embracing of extra-daily movements that might appear diseased, disorderly, or marginal. These
alterkinetic dances, borrowing from neurology, hysteria, and psychiatric disorders, re-articulate the body
s
regimens while offering a polymorphic movement vocabulary. (Tradução nossa)
21 Although the history and evolution of the representation of hysteria have been extensively researched, the
study of how these discourses have been transferred to twenty-first-century culture remains largely
uncharted territory. (Tradução nossa)
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
27
Referências
BRAUN, Johanna (ed.).
Performing Hysteria: Images and imaginations of hysteria
.
[S. l.]: Leuven University Press, 2020. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/j.ctv18dvt2d.4. Acesso em: 2 fev. 2022.
BREUER, Josef; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria. In:
Sigmund Freud:
Obras completas
. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 [1893-1895]. v. 2
CARLSON, Marvin. O mesmo, que diferente: o Teatro e a !assombração”.
Tradução de Evelyn Furquim Werneck Lima.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 38, ago./set. 2020.
DIDI-HUBERMAN, Georges.
Invenção da histeria: Charcot e a Iconografia Fotográfica
da Salpêtrière
. Museu de Arte Moderna do Rio. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015.
FANON, Frantz. 2020.
Alienação e liberdade: escritos psiquiátricos
. São Paulo: Ubu
Editora, 2020.
FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Sexualidade. In:
Sigmund Freud: Obras
completas
. São Paulo: Companhia das Letras, 2016 [1905]. p. 13-172. v. 18
FREUD, Sigmund. O Inquietante. In:
Sigmund Freud: Obras completas
. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010 [1919]. p. 328-376. v. 14
GIAMBRONEN, Roberto. Dançar a crise: a histeria da clínica à cena.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, n. 19, p. 129-133, nov. 2012.
GOTMAN, Kélina.
Choreomania: Dance and Disorder
. Nova Iorque: Oxford University
Press, 2018.
GOTMAN, Kélina. Epilepsy, Chorea, and Involuntary Movements Onstage: The
Politics and Aesthetics of Alterkinetic Dance.
About Performance
, Sydney, n. 11, p.
159-183, mar. 2012. Disponível em:
https://search.informit.org/doi/10.3316/INFORMIT.503154365090185.
Acesso em: 11 fev. 2022.
HOOKS, Bell.
Eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feministas
. Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.
JÄRLEMYR, S. A. Tale of Cross-Dressers, Mothers, and Murderers: Gender and
Power in Judges 4 and 5.
Svensk Exegetisk Årsbok
, Uppsala, v. 81, p. 49 - 62, 2016.
Disponível em: http://urn.kb.se/resolve?urn=urn:nbn:se:uu:diva-313745. Acesso
em: 28 nov. 2020.
MARSHALL, Jonathan W.
Performing Neurology: The Dramaturgy of Dr Jean-Martin
Charcot
. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2016.
Coreografia da Histeria: corpos convulsivos e empoderamento feminino na cena paulista
Lobo
Juliana Martins Rodrigues de Moraes
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-28, set. 2022
28
MONTAGNER, Alessandra.
Corpos Despedaçados: Choque e Espectação nas Artes
da Cena
. 2018. 197 f. Tese (Doutorado em Artes da Cena) - Universidade Estadual
de Campinas, 2018. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/jspui/handle/REPOSIP/333375.
Acesso em: 26 set. 2020.
MONTAGNER, A. Do corpo feminino em performance: exceder-se para não
asfixiar.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes nicas, Florianópolis, v. 2, n.
35, p. 311-325, set. 2019. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102352019311.
Acesso em: 3 fev. 2022.
MORAES, Juliana.
Dança, Frente e Verso
. São Paulo: NVersos, 2013.
ROUDINESCO, Elisabeth.
Dicionário Amoroso da Psicanálise
. Rio de Janeiro: Zahar
Editora, 2019.
SANDER, L. V. O que eles querem de Augustine? Sobre o Retrato de Augustine, de
Peta Tait e Matra Robertson.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes nicas,
Florianópolis, v. 2, n. 21, p. 112-119, dez. 2013. Disponível em:
https://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/article/view/1414573102212013112.
Acesso em: 3 fev. 2022.
SKANTZE, P. A.
Itinerant Spectator/Itinerant Spectacle
. New York: Punctum, 2013.
SONTAG, Susan.
Notes on 'Camp'
. Reino Unido, EUA, Canadá, Irlanda, Austrália,
India, Nova Zelândia e África do Sul: Penguin Random House UK, 2018.
VACARO, Juliana.
A Construção do Moderno e da Loucura: Mulheres no Sanatório
Pinel de Pirituba (1929–1944)
. 2011. Dissertação (Mestrado em História Social) -
Universidade de São Paulo, 2011. Disponível em:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-31102011-103753/pt-br.php.
Acesso em: 27 set. 2020.
WATTERS, Ethan.
Crazy like us: The Globalization of the Western Mind
. Londres:
Robinson, 2011.
Recebido em: 18/04/2022
Aprovado em: 03/08/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br