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Salamandra
: Filosofia-Performance, corpo
e saúde holística
Alba Pedreira Vieira
Para citar este artigo:
VIEIRA, Alba Pedreira.
Salamandra:
Filosofia-Performance,
corpo e saúde holística.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0202
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: Filosofia-Performance, corpo e saúde holística
Alba Pedreira Vieira
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
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Salamandra
: Filosofia-Performance, corpo e saúde holística
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Alba Pedreira Vieira
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Resumo
A partir da Prática Artística como Pesquisa e da Filosofia-Performance, problematizo
como o corpo performático constrói, reconstrói e cambia sentidos de fenômenos
diversos, ampliando entendimentos do movimento e do gesto como exercício
filosófico e aliados a dimensões de saúde holística. Compartilho trabalhos em que
seres se movem enquanto geram autoconhecimento, potência energética e
espiritualizada relacionadas à qualidade de vida. A Performance “Salamandra” (2018)
e o projeto de intercâmbio artístico “Salamandra” (2020), foram realizados em
momentos de doenças, dores e aflições. Reflexões complexificam conexões teórico-
práticas e alargam pensamentos sobre cura, ciência, realidade, corpo, filosofia,
performance, cognição, imaginação e arte.
Palavras-chave
: Corpo. Cura. Performance. Prática Artística como Pesquisa.
Salamandra
: Performance Philosophy, body and holistic health
Abstract
From Artistic Practice as Research and Performance Philosophy, the question is how
the performing body constructs, reconstructs and changes meanings of diverse
phenomena, which expands understanding of movement and gesture as a
philosophical exercise and related to holistic health dimensions. I share works in
which beings move while generating self-knowledge, energetic and spiritualized
power related to quality of life. The Performance “Salamandra” (2018) and the artistic
exchange project “Salamandra” (2020) were carried out in times of illness, pain,
affliction. Reflections complexize theoretical-practical connections to broaden
thoughts about healing, science, reality, body, performance, philosophy, cognition,
imagination and art.
Keywords
: Body. Healing. Performance. Artistic Practice as Research.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Mariana De-Lazzari Gomes. Doutorado em Letras
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
2
Pós-doutorado em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutorado em Dança pela
Temple University (EUA). Mestrado em Educação Física/Educação pela Valdosta State University (EUA).
Graduação em Educação Física pela Escola Superior de Educação Física de Goiás. Professora fundadora,
associada e pesquisadora dos Cursos de Licenciatura e de Bacharelado em Dança do Departamento de
Artes e Humanidades da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Professora e pesquisadora nos Programas
de Pós-graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal de Ouro Preto, e em Artes da Universidade
Federal de Minas Gerais. albapvieira3@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/2204010991291958 https://orcid.org/0000-0002-7622-1622
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Salamandra: Filosofía-Performance, cuerpo y salud holística
Resumen
A partir de la Práctica Artística como Investigación y Filosofía-Performance, yo
problematizo cómo el cuerpo actuante construye, reconstruye y cambia significados
de diversos fenómenos, lo que amplía la comprensión del movimiento y el gesto
como ejercicio filosófico y aliado a las dimensiones de la salud holística. Se
comparten trabajos en los que los seres se mueven generando autoconocimiento,
poder energético y espiritualizado relacionado con la calidad de vida. La Performance
“Salamandra” (2018) y el proyecto de intercambio artístico “Salamandra” (2020) se
realizaron en tiempos de enfermedad, dolor, aflicción. Las reflexiones complejan las
conexiones teórico-prácticas para ampliar pensamientos sobre curación, ciencia,
realidad, cuerpo, filosofía, performance, cognición, imaginación y arte.
Palabras clave
: Cuerpo. Cura. Performance. Práctica Artística como Pesquisa.
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Tempestade Corporal 1
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Muito/as pesquisadore/as (e.g., Bond, 2019; Halprin, 2000), e me incluo (Lima,
Vieira, 2007, 2013; Vieira, 2019), têm investigado relações entre dança e aspectos
da Qualidade de Vida/QV, incluindo saúde física, espiritual, social e psicológica. Na
pandemia causada pelo corona vírus, diante do perigo iminente da doença
altamente contagiosa e da morte, gozar de plena saúde se revelou como uma das
maiores vontades. Além de minimizar o risco de se contaminar com a Covid-19,
algumas pessoas têm ampliado a consciência sobre a necessidade de investirmos
em QV para todes os seres vivos. Uma situação complexa no nosso país em que
enorme desigualdade socioeconômica, e cujo cenário é agravado pela ‘peste do
século XXI’: “A qualidade de vida dos grupos menos favorecidos tende a não ser
das melhores, levando à maior prevalência de doenças crônicas que fragilizam o
organismo e enfraquecem o sistema imunológico” (Estrela, Cruz, Gomes, Oliveira,
Santos, Magalhães, Almeida, 2020, p.4).
Serafina e Vaicekauskaite (2014) propõem QV como um conceito subjetivo
que existe na consciência mental individual de cada sujeito. Possíveis e múltiplos
significados de QV podem ser mais bem compreendidos por pesquisadore/as via
palavras orais e escritas expressas, por exemplo, em pesquisas por meio de
questionários e/ou entrevistas. Expando esse pensamento, pois entendo que a
consciência é multidmensional (mental, corporal, espiritual, social) e constrói
significados de QV no constante fluxo relacional dos ‘entres’, das trocas entres
consciência pessoal e coletiva. Além de palavras, podemos elaborar, (re)significar,
expressar, ampliar a compreensão de QV por fontes e meios diversos, tais como
desenhos, pinturas, performances, movimentos, gestos e assim por diante.
Um exemplo de íntima relação entre arte e cura pode ser visto no
documentário
Psychomagic
,
A Healing Art
(“Psicomagia, uma arte de Cura”,
tradução livre da autora) de Alejandro Jodorowsky (2020). Sua percepção de cura
se por meio da ecologia profunda da natureza humana e ele abraça a arte
3
Tempestade Corporal foi um conceito que criei durante minha pesquisa de doutorado (Vieira, 2007) ao
discutir corpo, cognição, consciência e somática.
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performática como veículo para combater o sofrimento psíquico e debilitante.
Alguns dos seus atos de confrontação são apresentados no filme, tais como
mulheres que pintam com o sangue da menstruação, e um casal que caminha
lado a lado pela cidade com correntes nos seus respectivos tornozelos e depois
as enterram.
Outro exemplo das relações arte e cura ‘performam’ no documentário
Espaço
além
-
Marina Abramović e o Brasil
(“The Space In Between - Marina Abramović
and Brazil”, 2016), que revela jornadas de sua cura pessoal pelo país que
culminaram em uma performance artística. “Nessa peregrinação, a artista viaja por
regiões do Brasil experimentando rituais sagrados e explorando os limites entre
arte, imaterialidade e consciência” (Balász, 2020, p.6).
Neste texto
4
discuto percursos de Prática Artística como Pesquisa (Haseman,
2015) que, por alguns anos, tenho relacionado aos estudos da performance e
embasado minha imersão no campo de pesquisa e prática artística identificada
como Filosofia-Performance (ou Filo-Performance), Filosofia como performance
(ou Performance como filosofia) e a Fenomenologia-hermenêutica (van Manen,
1997). Destaco o potencial da performance em relação à cura holística, e conexões
dessa com perceções de QV que transitam entre pensamento individual e coletivo
por meio de possíveis relações entre arte, cura, qualidade de vida, espiritualidade
e senso comunitário. Problematizo possibilidades do corpo performático construir,
reconstruir e cambiar sentidos de fenômenos diversos, ampliando entendimentos
do movimento e do gesto como exercício filosófico e aliados a dimensões de saúde
holística.
Ao invés de buscar significados de QV e cura na pandemia em teorias
abstratas, tentei compreender como pessoas os re(elaboram) e expressam por
meio de suas experiências diretas, vividas e materializadas corporalmente via
performances. Como procedimentos metodológico-artístico-performáticos,
virtualmente lancei, no início da quarentena no Brasil (meados de março de 2020),
um convite a várias pessoas (artistas e não artistas) para que me enviassem vídeos
de 2-3 minutos do que a pandemia lhes significava, qual o papel da arte em suas
4
Este artigo contém trechos da pesquisa de doutorado da autora, cuja tese, na íntegra, nunca foi
publicada (vide Vieira, 2007).
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vidas naquele momento, o que mais lhes afligia (por exemplo, doença de cunho
psicológico, físico, espiritual, social; situação econômica, política, e assim por
diante) e seus processos subjetivos de cura. Recebi vários vídeos caseiros
(gravados em celulares) tanto no Brasil (incluindo Belém, Natal, Porto Alegre, Minas
Gerais: Ponte Nova, Divinópolis e Cataguases, Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo)
como do exterior (Portugal, Colômbia, Alemanha). Duas pessoas preferiram gravar
suas vozes recitando trechos de poemas (Fernado Pessoa) ou textos de Ailton
Krenak (
Ideias para Adiar o Fim do Mundo
, 2019) e de Davi Kopenawa e Bruce Albert
(
A Queda do Céu
, 2015). Um amigo cacique de fronteiras, Francisco Hyjnõ Krahô,
me enviou da sua aldeia Manoel Alves Pequeno, na Kraolândia/TO, imagens (fotos
e vídeos) de situações do dia a dia durante a pandemia.
Filosofia-Performance como mote para a criação artística em
relação com processos de cura a partir da Fenomenologia-
hermenêutica: destruição, transformação e renovação
Por várias décadas, discutiu-se e foi realizada a transposição de pensamentos
filosóficos para e pelos corpos dos performers, assim como os seus
desdobramentos e efeitos durante a construção (nos processos de criação) e
apresentação de performances. Considerava-se que o/a criador/a necessitava se
relacionar com a obra para que essa conseguisse traduzir um pensamento, uma
visão de mundo e um modo de enxergar a realidade.
Mais recentemente, surge uma proposta diferenciada: a que defende a
Filosofia-Performance, ou Performance-Filosofia, ou ainda Performance como
Filosofia. Como afirma Laura Cull (2014, p.24-25)
5
, independente de como é
chamada, o importante é a busca por se romper lacunas entre performance e
filosofia. Tais hiatos, para a pesquisadora, são inúteis e obstrutivos. Destruição de
uma antiga concepção para renovação das formas de pensar. Em vez de continuar
5
Minha tradução e paráfrase de: “In contrast, the position of the ‘performance as philosophy’ argument is that
performance can be understood as doing its own kind of philosophical work, without it being illustrative of
concepts or arguments already outlined by traditional’ philosophy. Resisting any fixed or reductive definitions
of what constitutes (proper) ‘philosophy’ or ‘philosophical activity’ in the first place, this view suggests that
performance. Performance Philosophy conducts it own specific manner of philosophical investigation in and
as performance in ways that might be fruitfully employed to expand existing definitions of what counts as
philosophy” (Cull, 2014, p.24-25).
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a separar as duas áreas, ela propõe seguir resistindo a qualquer definição fixa ou
redutiva do que constitui filosofia ou atividade filosófica
adequada
(grifo meu). A
pesquisadora sugere que a performance conduz uma maneira própria, específica
de investigação filosófica, e essa forma particular de pensamento pode tensionar
e expandir entendimentos existentes do que se considera como filosofia.
A Filosofia-Performance tem uma premissa fundamental: o pensamento ou
conhecimento do corpo, que vem sendo expresso de diferentes formas, tais como
na performance de 1968 de Yvonne Rainer, “A mente é um músculo”, e em
expressões que sintetizam tais conceitos como as usadas por Foster (1976)
“conhecendo nos seus ossos”, por Adler (2006) “conhecendo em nossos corpos”,
por Anttila (2007) “conhecimento do corpo como forma de cognição” e por Cohen
(2003) “conhecimento interno”.
Ao defender o conhecimento e a filosofia gerados pelo corpo, em suas várias
relações/entres, não como fugir de uma questão fundamental colocada por
Hollingshaus e Daddario (2015, p.52): estamos preparados para reconhecer que
práticas artísticas constituem tipos de pesquisa (e acrescento, tipos de ‘exercícios’
filosóficos) que são qualitativamente pareados com as práticas acadêmicas
legitimadas e consideradas típicas, tais como visitar arquivos, fazer fichamentos,
escrever e apresentar palestras, artigos, livros? Acredito que sim.
Eu mesma já havia feito uma performance em 2018, Salamandra
6
, no Centro
Cultural Banco do Brasil no Rio de Janeiro/CCBB- RJ, logo após ter me submetido
à uma cirurgia em que foi retirada parte do meu dedo indicador direito para conter
a doença que se alastrava corporalmente alguns anos, devido à uma infecção
viral. Essa performance (figura 1) foi parte essencial do meu ciclo de cura, por isso
apresento um breve relato da mesma a seguir. Tal experiência foi ainda o mote do
projeto de intercâmbio artístico que desenvolvi na pandemia (2020) e que resolvi
nomear, igualmente à performance de 2018,
Salamandra
.
6
A performance da Salamandra foi feita no Centro Cultural Banco do Brasil/CCBB no Rio de Janeiro, em
agosto de 2018, e um curto vídeo com fotos que a registraram está postado em:
https://www.youtube.com/watch?v=O2JmIwdiEyQ&feature=youtu.be
A edição é da comunicadora social Marcela Figueiredo Coura.
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Figura 1 - Performance
Salamandra
. CCBB, Rio de Janeiro.
Agosto de 2018. Foto: Laina Vieira
A blusa é vermelha, lembrando a cor do fogo. A posição inicial é agachada
devido ao estado corporal de desconforto, durante e após a cirurgia, que trouxe
também dores e incertezas. Confusão. Os movimentos e gestos são tímidos a
princípio; dúvida do quanto posso e consigo mover o dedo recém-operado. Uma
parte dele se foi. Ofereci ao cosmos. Aos poucos a confiança toma conta e o corpo
fica mais ágil. Dançar basicamente com o dedo. Deixar um dedo orientar e
reverberar tudo o mais que acontece no corpo. Novidade para minha arte, dançar
com o dedo. O dedo curioso se enfia em uma fenda da instalação artística de
madeira do CCBB (busca algo da natureza no prédio de concreto? Figura 2);
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vaidoso, o dedo tampa meu rosto; dominador, segura o queixo; carinhoso, se
aproxima do coração.
Figura 2 - Alba Vieira em Filosofia-performance
Salamandra
. CCBB, Rio de Janeiro. Filosofia que
se dá pelo conhecimento tático, e que nem sempre pode ser colocado em palavras.
Agosto de 2018. Foto: Laina Vieira
O dedo é sempre colocado à frente das demais partes do corpo e o próprio
corpo se esconde atrás de instalações artísticas do CCBB para ressaltar a
visibilidade do dedo operado. Gestos e movimentos minimalistas relacionados
com o desapego. Gestos diretos, pois o dedo operado é o indicador, aquele
acostumado a apontar. O dedo, agora imobilizado pelo curativo, é um dedo-duro.
Gestos e movimentos simples, simétricos, precisos e repetitivos. Típicos do
pensamento minimalista, viver com menos. A artista aprendendo a viver com uma
parte a menos de si.
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Finalmente, enchendo-me de coragem, levanto-me e sobre um fundo
vermelho exibo o dedo ainda com o curativo que, devido à movimentação, ainda
que essa tenha sido mínima na performance, está sangrando. Num repente, num
‘passe de mágica’, retiro o curativo, limpo o sangramento na própria blusa
vermelha e exibo agora o dedo ‘nu’ sobre uma parede branca (figura 3). Ao lado e
em harmonia com seus quatro irmãos. Branco, cor da paz; vermelho, cor do amor.
“Salamandra” foca, a partir da repetição, fragmento e transformação, na revelação
e no enfrentamento de desafios ‘provas de fogo’ com os quais nos deparamos,
bem como forças de regeneração e resiliência em busca de curas.
Figura 3 - Alba Vieira em Performance
Salamandra
À direita: detalhe da mão com dedo
operado; à esquerda: durante a performance a artista retira o curativo. Centro Cultural
Banco do Brasil, Rio de Janeiro, agosto de 2018. Rio de Janeiro, RJ. Foto: Laina Vieira
No texto de divulgação da performance em redes sociais e plataformas
virtuais faço referência ao cais, pois o Centro Cultural Banco do Brasil/CCBB, local
escolhido para realizar a performance, localiza-se na região portuária da cidade do
Rio de Janeiro. A água, em muitas culturas, tem o sentido de limpeza da ‘alma’ e
do ‘corpo’, e assim foi para mim, pois me senti energizada
7
. Senti-me inundada por
7
Vide outros trabalhos que realizo, total ou parcialmente na água, sempre buscando uma conexão com
esse ser vivo que ligo ao estado de purificação interior: “Margo e Karvo”
https://youtu.be/nDp8Zxal-mQ ; “Libertas Quæ Sera Tamemhttps://youtu.be/LNAWTPHOJXg
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autoconfiança e alegria (elementos fundamentais em QV); nova jornada de vida
brotava.
Na divulgação da performance Salamandra, meu desejo por
autorregeneração se revela:
“Para quem quer se libertar
De uma parte do corpo que se vai
Inventaram o cais
Como a Salamandra se regenera
Traz e faz do fogo
O Novo
(Re)Invento a arte”
Nesse breve
release
da obra, trago à tona uma experiência pessoal dolorosa:
perder uma parte do dedo em uma cirurgia para retirada de um ‘ataque’ viral
intenso que começava a se espalhar para outros dedos. Na performance
vivenciei, refleti/filosofei e resignifiquei corporalmente um processo de cura,
“travessia simbólica de uma busca ontológica” (Alonso, Leite, 2007, p.12).
Sou professora universitária, pesquisadora e diretora artística e performer da
Mosaico Cia de Dança Contemporânea, criada em 2009. Com essa companhia,
tenho desenvolvido um trabalho que identifico como “moreno” (Vieira, Marques,
2018), pois as obras criadas mixam diversas propostas e gêneros: dança-teatro,
videodança, performance, espetáculo, solos, coreografias, ecoperformances,
improvisações-estruturadas. Como uma salamandra, eu e minha companhia, por
vezes, temos sido quase totalmente consumidas pelo fogo das várias dificuldades
que enfrentamos (financeiras, políticas, ideológicas, culturais e outras), mas temos
conseguido nos regenerar e ressurgir das cinzas. No meu diário de bordo refleti na
época do ritual de cura performático: “[...] provas de fogo nessa minha jornada de
vida incluem tantos desafios, inclusive inúmeras lesões ao me machucar, algumas
vezes, dançando, performando. Resisto. Continuo querendo ‘artistar’ e tento, assim
como Laban que se via como uma Salamandra, me incorporar da força desse
animal para renascer e me regenerar após cada embate, cada desafio
8
”.
Baseada nessa minha experiência da performance como parte fundamental
8
Diário de bordo artístico, agosto de 2018.
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de um processo de cura, elaborei o processo de intercâmbio artístico (março a
outubro de 2020) que revelo e descrevo, a seguir, por meio também de várias
imagens. Disponibilizo ainda os respectivos
links
de cada videodança para que se
possa visualizá-las. Essas diversas camadas possibitam a quem o texto e assiste
as obras, agenciamento na criação de significados próprios sobre as mesmas.
Tempestade Corporal 2
Apresento, nesse texto, algumas das videodanças do projeto de intercâmbio
artístico cultural “Salamandra”, realizadas ao longo de 2020 (período da pandemia).
“Abraço Oração” foi feita com a artista Cibele Sastre, professora da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul/Porto Alegre/RS, que, a partir do meu convite, filmou
sua partitura de dança inspirada por um abraço que queria dar em sua mãe
falecida durante a quarentena. Na sua movimentação, Cibele abraça o espaço do
quintal da sua casa, o qual, embora pareça vazio, é cheio de lembranças maternas.
A luz do sol traz outra camada ao trabalho, um sinal de esperança que novos dias
virão para aquecer o planeta em uma rede de afetos (figura 4).
QV inclui a capacidade de lidar com situações de estresse, como o luto.
Mesmo em um momento de dor profunda, Cibele se deixou mover pelo meu
convite e se lançou ao desafio de realizar uma atividade que lhe era prazerosa.
Editei as imagens que ela me enviou com imagens minha dançando, antes da
pandemia, na areia da praia, nas proximidades de águas que, acredito, purificam.
Essa experiência de dançar um ‘dueto virtual’ com Cibele me sugeriu que
cruzamentos entre QV, tecnologia e performance é menos sobre a saúde em um
sentido restrito, e mais sobre viver a vida em plenitude. O
link
para assistir a
videodança: https://youtu.be/4XuP8Yb6HLY
9
9
Todos as obras do Projeto Salamandra estão também no Instagram @dancamosaico ou
https://www.instagram.com/dancamosaico/?hl=pt
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Figura 4 - Videodança
Abraço oração
, com Cibele Sastre e Alba Vieira
Postada em: 25 jul. 2020. Foto: Printscreen da videodança
A videodança
Saída
foi realizada com Marcílio Vieira (bailarino, pesquisador,
professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/Natal/RN). A obra foi
feita quando a ocupação de leitos na UTI de hospitais pela Covid-19, atingiu 100%
em Natal e Mossoró. As imagens que Marcílio gravou dançando, ao lado da janela
do seu apartamento, revelam um desejo de que pudéssemos logo encontrar uma
saída para o vírus que assolava o planeta e, principalmente, o Rio Grande do Norte
naquele momento. Ele se move pela aflição de viver em casa confinado, querendo
sair, mas, ao mesmo tempo, sabendo que o distanciamento social era o melhor
meio de ajudar a controlar a disseminação viral.
O vídeo que Marcílio me enviou foi editado com outro meu, também gravado
antes da pandemia no Parque Lage no Rio de Janeiro, dentro de uma caverna com
pouca luminosidade e cuja fresta de entrada/saída era pequena e estreita. A junção
desses dois trabalhos na videodança “Saída” me pareceu adequada pelo estado
de insegurança que Marcílio sentia naquele momento, e que eu também havia
sentido ao dançar na caverna.
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Essa performance colaborativa permitiu refletir a partir de outros pontos de
vista sobre a situação complexa que se configurava, pela pandemia, em Natal e
em várias cidades brasileiras. Problematizamos corporalmente a liberdade e a
sociabilidade, aspectos fundamentais da QV. Ao dançarmos em frente à janela
(Marcílio) e em uma saída estreita de uma caverna em um parque (Alba), revelamos
nossas respectivas fragilidades emocionais. Não encaramos essa criação artística
como escapismo, mas como uma maneira de revelar nosso autodistanciamento
físico como forma de cuidado consigo e com outras pessoas. Um dos aspectos da
QV é sobre participação social, e a pandemia nos levou a tecer novas configurações
de ‘aglomeração social’ pela
World Wide Web
/WWW e via novas tecnologias.
Estabelecer (novas) redes de comunicação se tornou possibilidade de encontros,
mesmo que virtuais, o que promoveu a saúde social para muitas pessoas,
principalmente, aquelas que necessitavam ficar em completo confinamento. O
link para assistir a videodança (figura 5): https://youtu.be/rtuz_D_u1dg
Figura 5 - Videodança
Saída
, com Marcílio Vieira e Alba Vieira
Postada em: 11 jun. 2020. Foto: Printscreen da videodança
“Virgo” teve a participação de Renata Alves, bailarina e professora de dança
que mora em Divinópolis, MG. Na videodança realizada no auge do movimento
“Vidas negras importam”, Renata dançou o aprisionamento vivido anos:
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concepções racistas que a discriminam, bem como aos demais negros devido ao
tom da pele. A cor escura do seu figurino era como um luto por George Floyd, que
foi cruelmente assassinado por policiais americanos.
QV é relacionada à dignidade, direitos humanos e igualdade. Essa videodança
revela possibilidades de empoderamento, pois foi feita justamente no momento
em que muitos negros sentiam baixa autoestima por mais uma consequência,
dentre inúmeras, da construção social do racismo por séculos. A videodança
visibilidade à ‘voz’ corporal de Renata, que clama por liberdade ampla, para além
do confinamento social imposto pela pandemia. A arte, incluindo “Virgo”, permite
negociar conflitos internos e se libertar ou pelo menos tensionar, resignificar
amarras opressivas impostas pelas desigualdades historicamente fabricadas. A
arte fortalece a QV por meio da sua comunidade artística antirracista, que luta
pelo respeito coletivo entre todos seres humanos, na busca do rompimento de
ciclos de exclusão de parcelas da população (incluindo negros, deficientes,
indígenas, idosos, dentre os que mais sofreram com/na pandemia).
O
link
para assistir a videodança (figura 6): https://youtu.be/tpXoxqG7DNQ
Figura 6 - Videodança
Virgo
, com Renata Alves e Alba Vieira
Postada em: 6 jun. 2020. Foto: Printscreen da vídeodança
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A atriz Deborah Finocchiaro (Porto Alegre) gravou um áudio com trecho de “O
Marinheiro: Drama Estático em um Quadro”, de Fernando Pessoa, e me enviou.
“Nem sei” nasceu a partir desse áudio. Na videodança imagens de viagens feitas
por mim em diferentes locais (Belgrado, Malta, Niterói, Serra da Capivara, Viçosa e
Ilha de Boipeba) antes da pandemia. Na edição, incluí ao lado dessas imagens a de
uma pessoa olhando pela janela. Essa obra se relaciona com a saudade de circular
livremente, viajar, cruzar fronteiras, abraçar e encontrar pessoas. Lembranças que
começavam a angustiar vários/as de nós que vivíamos em completo
distanciamento físico desde meados de março de 2020. Mas havia a incerteza
(“Nem sei”) de quando poderíamos novamente aglomerar ou pelo menos
encontrar amigos e familiares que não víamos presencialmente alguns
meses, sem colocar em risco a vida nossa e de demais pessoas. Vinha uma dúvida,
como diz Pessoa, “Já não tornarei a ser aquilo que talvez eu nunca fosse”.
Um outro aspecto da QV é a capacidade de nutrir pensamentos positivos e
a alegria, mesmo em tempos de adversidade. Satisfação é vital na QV. Mas, como
lidar com lacunas entre o que estávamos sendo capazes de ser e de fazer e o que
gostaríamos? As medidas de restrição exigidas pelo novo coronavírus poderiam
levar à contenção de disseminação da doença, mas também, à repressão da nossa
potência de vida. “Nem sei”, trabalho feito à distância por duas amigas e colegas,
busca refletir as nuances entre solidão e solitude. A quarentena de contatos e a
prática voluntária de não frequentar ambientes com aglomerações de pessoas,
permitiu fazer surgir outras energias comunicativas até para podermos descansar
do excesso de informação (que muito se intensificou na pandemia). A QV, nesse
momento de excesso de proximidade com as telas, nos pedia para estarmos
atentos com o que, quanto e como transmitíamos nas redes sociais. A QV pedia
também a não contaminação de outras pessoas com notícias falsas, com poluição
de imagens e textos, com desânimo. A QV pedia força e resiliência, o que podia
ser exercitado na/pela arte.
A QV pode ser pensada a partir das partilhas de outros modos de (se) cuidar,
e de ‘gastar’ o tempo. Aquietar a velocidade para fruir mais momentos de
contemplação, de silêncio. Diminuir ruídos e exercitar a escuta de si e de outros
seres para reelaborarmos diferentes modos de interação com a saúde holística.
Salamandra
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O l
ink
para assistir a videodança (figura 7): https://youtu.be/2mAvXW9xse8
Figura 7 - “Nem sei” - voz de Deborah Finocchiaro (Porto Alegre)
Postado em: 5 jun. 2020. Foto: Printscreen da videodança
"Boitatá" (bóia = cobra, atatá = fogo), palavra de uma das mais de mil línguas
dos nossos povos originários, nomeia a grande cobra transparente que tem fogo
azul-amarelado e, segundo a lenda, cintila as noites em que aparece deslizando
nas campinas e na beira dos rios. Pode se transformar em uma tora em brasa para
queimar aqueles que pretendem colocar fogo nas matas. Essa videodança se
inspirou em trechos do livro "Ideias para adiar o fim do mundo", de Ailton Krenak
(2019), que foram gravados em áudios por Bruno Silva dos Anjos, discente do Curso
de Ciências Sociais da UFV. Foi finalizada em outubro de 2020, mês que acumulava
as intensas dores pelas perdas de vidas e pelas doenças. No Brasil, a situação
naquele momento ainda era grave: a crise ambiental se somava à sanitária, pelas
queimadas de nosso cerrado (aonde Alba Vieira dançou para gravar cenas do
trabalho, antes da pandemia, na terra dos kalungas em Goiás), da Amazônia e do
Pantanal. O fogo, na época, chegava perto de aldeias – como nas imagens feitas e
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gentilmente cedidas para a videodança por Francisco Hyjnõ Krahô, na aldeia
Manoel Alves Pequeno, Kraholândia/TO.
Com essa videodança fomos capazes, Francisco, Bruno e eu, de criar poéticas
do/sobre o caos ambiental que se intensificou no país durante a pandemia. Essa
foi uma forma de exercitamos nosso ‘artivismo’. Em termos de QV, arrisco afirmar
que essa criação, em particular, explora diferentes dimensões (incluindo questões
ecológicas) da totalidade da vida, e não somente humana. Não me parece ser
possível discutir a QV a partir de uma perspectiva do antropoceno. De forma
ecocentrada, buscamos dar visibilidade também aos sentimentos do Sistema
Terra, que sofre e adoece com as queimadas e outras ações destrutivas. O
autocuidado, um fator da QV, envolve esse cuidado mútuo consigo mesmo/a e
com outras existências.
O
link
para assistir a videodança: https://youtu.be/APSOXxLfQ2s - (Figura 8)
Figura 8 - “Boitatá” - voz de Bruno Silva (Viçosa, MG)
Postado em: 04 out. 2020. Foto: Printscreen da Videodança
“Pó de yãkõana: curando os males da floresta”, foi inspirada em trechos do
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texto de Davi Kopenawa, lidos por Bruno Silva, em que ele afirma:
O antepassado que criou esta floresta, Omama, nos criou também para
cuidar dela. Ele não quis que a destruíssemos. Nós somos seus filhos e
por isso não podemos estragá-la. Nós, habitantes da floresta e de suas
colinas, de seus rios e de seus igarapés, que vivíamos nela inteira antes
que os brancos se aproximassem, nós cuidamos dela com atenção. Os
pajes estão sempre atentos ao seu bem-estar. Quando a floresta está
doente, tomam o de yãkõana e curam seus males. Os brancos, ao
contrário, parecem não querer que ela seja cuidada. São essas as palavras
de sabedoria que queremos dar para vocês. Grande parte dos brancos
não vai escutá-las, eu sei; o vão dizer: “Os Yanomami estão certos!
Vamos parar antes que a floresta seja toda destruída!” (Ricardo, Ricardo,
2011, p.22).
O link da videodança: https://youtu.be/ZYvjh58WvCI - (Figura 9)
Figura 9 - “Pó de yãkõana: curando os males da floresta” - voz de Bruno Silva (Viçosa, MG)
Postado em 30 de novembro de 2020. Foto:
Printscreen
da videodança
Essa videodança ‘caminha’ por diferentes cosmologias. Ao tentarmos
identificar parâmetros de saúde e QV, geralmente nos pautamos em
conhecimentos científicos. A colonização nos aproximou da ciência, mas nos
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afastou de sabedorias dos povos originários. A arte e a dança, para comunidades
indígenas ao redor do mundo, têm poderes curativos. Ailton Krenak (2019) afirma:
“Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em
muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte
prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, [...]”
(Krenak, 2019, p.21). riqueza nas diferentes perspectivas e subjetividades em
relação à QV e à saúde holística, como explorei nesta pesquisa; mas também,
potência em identificarmos similaridades. Dunphy e Ware (2019) citam os estudos
de Gee et al. (2014) e Kite e Davy (2015) para elencar aspectos que são comuns
entre o que é importante na QV para indígenas e não-indígenas: conexão com o
corpo, mente e emoções; com a família, amigos e entes queridos; participação na
comunidade, cultura, país ou território; harmonia com a espiritualidade e
ancestralidade.
Considero relevante para as artes refletirmos e publicizarmos criações
realizadas na ‘grande peste’ do século XXI, como fiz neste artigo. Os artefatos
artísticos criados por mim e pelas demais pessoas que contribuíram com as
videodanças durante a pandemia – revelam contribuições para o campo da saúde
holística e da QV pelo viés da arte. Destaco as subjetividades e a resiliência de
cada corpo que se move e dança, em um estado de resistência e em momentos
que fomos majoritariamente convocados a ficar sentados (principalmente, na
frente de telas de celular, computador, televisão). Esse tipo de resposta ativa,
proativa, provocativa, sugere que a ação performática pode se constituir como
espaço de cura ou, pelo menos, de reorganização das dimensões políticas,
culturais, existenciais e espirituais de cada pessoa/performer.
Tempestade Corporal 3
Em agosto de 2018, após ter uma parte do meu dedo retirado por causa de
um vírus que poderia ser cancerígeno e se alastrava para outras partes do corpo,
fiz uma performance que denominei “Salamandra”.
10
Busquei nesse trabalho, por
10
Uma versão anterior da reflexão sobre Salamandra, e conexões entre esse ser, o projeto de criação dos
Cursos de Dança da UFV e o teórico da Arte do Movimento, Rudolf Laban, foi publicado em Lima, Vieira,
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meio das estratégias de repetição, fragmentação e transformação (Vieira, 2016),
revelar ‘provas de fogo’ com as quais tenho me deparado ao longo da vida.
Na Creta antiga, a salamandra faz parte do bestiário cretense e,
supostamente, surge das profundidades. O poderoso animal é dono do fogo e
desse se nutre. O fogo é considerado elemento divino ou sagrado e é incorporado,
por vezes, como elemento central de algumas crenças religiosas (por exemplo, o
catolicismo apresenta o fogo do inferno). A salamandra como bestiário é uma
potência criadora, uma analogia, uma referência para o humano.
Com o passar do tempo, o corpo da salamandra passa a ser representado
como uma fusão entre serpente e dragão, que pode destruir tudo em seu caminho
toda vez que aparece em voos rasantes soltando chamas. Na Idade Média,
segundo a crença popular, a salamandra é um espírito elementar que pode viver
no fogo sem ser danificado, por isso é o símbolo das chamas. Também é
considerado como o símbolo da pessoa que mantém a sua paz de espírito apesar
dos mais variados ataques. Segundo Llamb (2012), a salamandra se torna um
símbolo da justiça e da paz interior.
A salamandra, na Grécia Antiga, passa a fazer parte de um processo de
transformação a partir das metamorfoses de Ovídio, que nutrem fartamente a
Obra Magna dos alquimistas. Assim, no século XVI, o alquimista Philippus Aureolus
Theophrastus Bombastus von Hohenheim em seu Liber de
Nymphis, sylphis,
pygmaeis et salamandris et de caeteris spiritibus
, apresenta as salamandras como
espíritos elementais junto com os silfos (do ar), os gnomos (da terra) e as ondinas
(da água) (Llamb, 2012). Existem documentos nos quais se associa a característica
da salamandra para apagar ou engolir o fogo àquela pessoa que busca tanto evitar
o mal, como desejar o mal de outrem. Concomitantemente, a ‘pessoa salamandra’
não é prejudicada pelo fogo.
Na descrição da salamandra como o espírito elementar do fogo, essa é uma
criatura majestosa de beleza violenta, mais parecida com uma serpente de torso
erguido, com duas extremidades que terminam em quatro garras na forma de
dedos, asas curtas, cauda longa afinando em sua extremidade e cabeça similar à
2021.
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de um dragão, com a língua terminando em ponta de flecha. Como espírito
elementar do fogo, a salamandra compartilha e carrega sua essência que lhe é tão
peculiar: fornece calor, arde e se consome, produz tanto bem-estar, como pode
causar incômodo (afinal, transformar e/ou regenerar pode ser um processo
doloroso).
Por outro lado, a salamandra representa a mudança no conhecimento e em
suas formas de elaboração e comunicação; um ser que auxilia a eliminar o que
não serve para dar lugar ao renascimento ou regeneração do que é vital na
natureza. Há um fundo comum entre o conhecimento oculto que devemos obter
da natureza e o ato de arrancar o fogo oculto dos deuses. um paralelo entre
Prometeo e a salamandra, quando ele entra no Olimpo para se apropriar do fogo
que foi negado aos seres humanos por Zeus. Ao mostrá-lo ao mundo, a
salamandra revela sua capacidade de resgatá-lo das profundidades e transportá-
lo até a superfície (Llamb, 2012).
Por causa das suas características biológicas, a salamandra tem atraído o
interesse dos cientistas por décadas, pois é o único animal vertebrado capaz de
se regenerar. No grupo desses anfíbios, destaca-se o axolote mexicano
(
Ambystoma mexicanum
) por sua extraordinária habilidade de regenerar
extremidades amputadas, órgãos e tecidos. Se esses animais perdem uma
extremidade, ela pode ser recuperada em questão de semanas com todos os
ossos, músculos e nervos no lugar certo. Mais fascinante, de acordo com
pesquisadores, é a habilidade do axolote de reparar inteiramente sua medula
espinhal quando essa sofre uma lesão. Além disso, feridas também são
recuperadas sem deixar cicatrizes. Mas não é isso. Esse anfíbio, que está em
perigo de extinção em seu habitat natural, também tem atraído o interesse de
estudiosos por sua relativa facilidade de reprodução.
Em pesquisas anteriores na área da Dança (Lima, Vieira, 2021), constatei que
o famoso dançarino Rudolf Laban se descrevia como uma salamandra (Bradley,
2009). Apesar de não ter encontrado suas explicações para se considerar como
tal, suponho que ele usa tal metáfora para se referir como possuidor das
qualidades misteriosas e até mágicas da salamandra, como a força de
transformação que o ser humano lança mão em sua busca por conhecimento e
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espiritualidade. Em sua jornada pessoal e profissional, eu me identifico, assim
como Laban, com a salamandra que faz uso do poder do fogo para transformar
em cinzas (que podem ser nutrientes para que se brote vida da terra) desafios,
problemas, aflições. Para processar cura. Acredito que outras pessoas também
possam se identificar com esse poderoso animal.
Na vida de Laban, um dos grandes desafios é sua fuga da Alemanha pelas
perseguições do sistema nazista
11
. Na minha vida, um grande desafio foi ter que
retirar parte de dedo indicador da mão direita por causa de um vírus, Papilomavírus
Humano. Como esse vírus causa verrugas que podem ser precursoras (ou não) de
tumores malignos, até sair o resultado da biopsia (feita no momento da cirurgia)
passei por períodos de aflição. Mal sabia que viria pela frente a pandemia de 2020,
que continua até o momento em que escrevo este texto. Agora, a busca da cura
é/deveria ser um processo coletivo, que requer senso comunitário de cuidado.
Longe de coerção e controle dos corpos, acredito que a demanda por
distanciamento social possa se orientar por sentimentos de afeto e solidariedade
no reconhecimento de que medidas sanitárias são para preservar a vida de todes
os seres humanos – crianças, jovens, idosos/as, pessoas com comorbidade, pois
o vírus não escolhe faixa etária, apesar de alguns grupos serem mais vulneráveis.
Tanto a performance (2018) e o projeto de intercâmbio artístico “Salamandra”
(2020) como ‘Laban-salamandra’ se conectam à nossa busca pela vida plena e à
necessidade de criação, a qual é potência de vida, segundo Nietzsche (Dias, 2011);
esse pensamento se move ao encontro do que Mircea Eliade (2002) discute a
respeito dos mitos de origem e mitos cosmogônicos: “[...] a cosmogonia constitui
o modelo exemplar de toda situação criadora; tudo o que o homem faz, repete,
de certa forma, o ‘feito’ por excelência, o gesto arquetípico do Deus criador: a
Criação do Mundo” (Eliade, 2002, p. 25). O mundo, segundo uma teoria da física, se
originou do caos, do
big bang
; segundo a filosofia do yoga, se originou da
destruição
12
. Encarando a performance como filosofia-performance, busco
11
Laban trabalhou por alguns anos sob o regime nazista até que, em 1936, seu trabalho
Vom Tauwind und der
Neuen Freude
foi banido por não promover a agenda daquele regime. Em 1937, ele obteve autorização para
viajar para Paris e de lá seguiu para a Inglaterra, aonde passou a morar (Kew, 1999).
12
Na mitologia hindu, o deus Shiva simboliza a destruição, a renovação, a transformação. É por meio dele que
o mundo e todos nós fomos criados. Sou praticante do método ‘Shivam Yoga’ por mais de dez anos, faço
pesquisas e coordeno cursos de extensão na UFV sobre essa proposta em suas conexões com a dança,
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(re)construir o mundo impregnado de processos de criação em arte que se
conectem com processos de cura pela liberdade da imaginação que leva à
reconstrução e transformação da realidade.
Assim como reflete Anttila (2007), creio que é possível aumentar o trânsito
entre consciência pré-reflexiva e reflexiva. Podemos aprender a filosofar com/no
corpo e fortalecer as conexões entre esses dois modos de consciência. Uma
forma, sugiro, é priorizar conexões corporais para ir ao encontro de complexidade
e lucidez, simultaneamente. Encontros espiralados, que sempre recomeçam nas
curvas da existência.
O corpo, como aconteceu nas performances “Salamandra” e no projeto
“Salamandra”, faz, à sua maneira, filosofia-performance sobre a existência da vida
e de seus acontecimentos e fenômenos sócio-políticos-culturais-econômicos na
tentativa de aumentar seu poder curativo sobre o mundo, o ser humano, a
realidade. Assim se ampliam as possibilidades do corpo exercitar modos de ser e
agir; de não se curvar às ideias do senso comum de que devemos produzir
somente o que é considerado útil, que devemos a tudo nos conformar e não
estranhar o que está posto. Razões da filosofia-performance, então, se aproximam
das razões do mito: “compreender os paradigmas dos atos significativos do ser
humano” (Eliade, 2002, p.14).
Tal como o mito, a filosofia-performance também pode dar abertura para
diversas interpretações, que os significados das ‘palavras’ do corpo, seus
movimentos e gestos, podem ser mais sutis que aqueles das palavras na
linguagem escrita.
somática e performance (vide Vieira, 2018).
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Figura 10 - Performance Salamandra. CCBB, Rio de Janeiro, agosto de 2018.
Vermelho que remete ao fogo, no figurino, é diluído pela iluminação azulada
luz fria que remete à paz interior. Foto: Laina Vieira
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Universidade do Estado de Santa Catarina
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Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br