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O espanto da atriz: efeitos éticos e estéticos no
encontro com mulheres ingenas Guarani Mbya,
na cena da Cia Livre
cia Regina Vieira Romano
Para citar este artigo:
ROMANO, cia Regina Vieira. O espanto da atriz: efeitos
éticos e estéticos no encontro com mulheres indígenas
Guarani Mbya, na cena da Cia Livre.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0118
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O espanto da atriz: efeitos éticos e estéticos no encontro com mulheres indígenas
Guarani Mbya, na cena da Cia Livre
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O espanto da atriz: efeitos éticos e estéticos no encontro com
mulheres ingenas Guarani Mbya, na cena1 da Cia Livre2
Lúcia Regina Vieira Romano3
Resumo
Este artigo analisa duas produções da Cia Livre, apresentadas em 2019,
baseadas na peça de aprendizado
Os Horácios e os Curiácios
(1933), de
Brecht, e que tematizam a luta pela terra no Brasil hoje. Esse confronto foi
sintetizado, em
Morte e Dependência na Terra do Pau-Brasil
e
Os Um e Os
Outros
, como uma disputa entre o povo dos Um (povo que considera a si
mesmo como universal) e o povo dos Outros (todos os outros povos, com
suas culturas humanas, extra-humanas, animais, vegetais e minerais). A
crítica ao modelo estético-filosófico do teatro Euro-ocidental aqui efetivada
observa as contradições urdidas pelas presenças de intérpretes indígenas e
não-indígenas, que espelham os dissensos e coalizões entre diferentes
perspectivas das lutas emancipatórias. Como as experiências delas foram
traduzidas na cena? Que tipo de sociabilidade foi ali projetada? Que forma
teatral pode emergir da experiência de descentralização do sujeito ocidental
que o grupo indica nesses trabalhos?
Palavras-chaves: Cena contemporânea brasileira. Processos de criação.
Epistemologias ameríndias. Teatro anti-especista.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Lúcia Romano.
2 Este texto foi apresentado, em versão reduzida, no Feminist Research Working Group da IFTR, na
conferência IFTR Galway Conference "Theatre Ecologies, Environment, Sustainability and Politcs”, em 2021.
3 Doutora pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de o Paulo (ECA-USP - 2009). Mestre em
Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de o Paulo (2002). Bacharel em Teoria
do Teatro pela Escola de Comunicações e Artes da USP (1991). Professora na Universidade Estadual Paulista
"Júlio de Mesquita Filho", Instituto de Artes. lucia.romano@unesp.br.
http://lattes.cnpq.br/1085539773116789 https://orcid.org/0000-0001-8528-1793
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The astonishment of the actress: ethical and aesthetic effects in the
encounter with indigenous Guarani Mbya women, in the Cia Livre scene
Abstract
This article analyzes two productions by Cia Livre, presented in 2019, based
on the learning play
The Horatians and the Curiatians
(1933), by Brecht, and
which thematize the struggle for land in Brazil today. This confrontation was
synthesized, in
Death and Dependence in the Land of Pau-Brasil
and
The One
and the Others
, as a dispute between the people of the One (people who
consider themselves universal) and the people of the Others (all other
peoples, with their human, extra-human, animal, plant and mineral cultures.)
The critique of the aesthetic-philosophical model of Euro-Western theater
carried out here observes the contradictions created by the presence of
indigenous and non-indigenous interpreters, which mirror the dissensions and
coalitions between different perspectives of emancipatory struggles. How
were their experiences translated into the scene? What kind of sociability was
projected there? What theatrical form can emerge from the experience of
decentralization of the western subject that the group indicates in these
works?
Keywords: Brazilian contemporary scene. Creative processes. Amerindian
epistemologies. Anti-speciesist theatre.
El asombro de la actriz: efectos éticos y estéticos en el encuentro con mujeres
indígenas Guaraníes Mbya, en el escenario de Cia Livre
Resumen
Este artículo analiza dos producciones de Cia Livre, presentadas en 2019,
basadas en la obra didáctica!
Os Horácios e os Curiácios
(1933), de Brecht, y
que tematizan la lucha por la tierra en el Brasil actual. Ese enfrentamiento
fue sintetizado, en
Muerte y Dependencia en la Tierra de Pau-Brasil
y
Os Um
e os Outros
, como una disputa entre el pueblo del Uno (pueblo que se
considera universal) y el pueblo de los Otros (todos los demás pueblos, con
sus , extrahumanas, animales, vegetales y minerales.) La crítica al modelo
estético-filosófico del teatro euro-occidental realizada aquí observa las
contradicciones creadas por la presencia de intérpretes indígenas y no
indígenas, que reflejan las disensiones y coaliciones entre diferentes
perspectivas de luchas emancipatorias. ¿Cómo se tradujeron sus
experiencias en la escena? ¿Qué tipo de sociabilidad se proyectó allí? ¿Qué
forma teatral puede emerger de la experiencia de descentralización del sujeto
occidental que el grupo señala en estas obras?
Palabras clave: Escena contemporánea brasileña. Procesos de creación.
Epistemologías ameríndias. Teatro antiespecista.
!
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O espanto da atriz
Este texto nasce do espanto, termo que busca descrever a surpresa diante
do inesperado. Contudo, mesmo a intensidade do espantar-se, talvez, seja
insuficiente para expor o que motivou esta escrita. Isso, porque a percepção desse
estado diz respeito não apenas ao reconhecimento consciente de algo impensado,
mas também ao movimento que sucedeu a aquele choque inaugural, provocando
ondas de reverberação que ainda me atingem de modo irreversível.
Considero ainda mais a efetividade desse impacto, se comparado à situação
presente, em que o imprevisível foi tornado rotina, em um cotidiano distópico que
nos anuncia, momento após momento, a normalização da morte, da desigualdade
e da violência; ao lado da inabilidade conivente das instituições e tantos outros
sintomas do fim.
Então, não é de pouca monta a persistência dessa percepção profunda sobre
a qual me refiro, esse abalo agudo cuja origem localizo na criação de
Os Um e Os
Outros
(2019), da Cia Livre, montagem que se relaciona a outra criação do grupo e
que é parte do mesmo projeto, a ocupação do Museu do Ipiranga, intitulado
Morte
e Dependência na Terra do Pau Brasil
(2019), ambos apresentados em São Paulo.
Porém, antes de detalhar o que caracteriza essa consciência de ser arrastada
e sentir, de repente, o "quadro da história" explodir (Löwy, 2005), é preciso
apresentar brevemente a Cia Livre. A companhia, coletivo teatral “maduro” em
seu percurso, acumulando vinte anos de trabalho, é considerada exemplar na
criação de obras que resultam de uma investigação continuada nas artes cênicas,
com a singularidade de oferecer diferentes ocasiões de partilha dos seus
processos, que geralmente duram bem mais de um ano. Além de abrir suas
pesquisas na forma de espetáculos, a Cia Livre também desenvolve estudos
públicos e processos pedagógicos, entre outras dinâmicas de seu interesse.
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recebeu prêmios nacionais e participou de eventos nacionais e internacionais, o
que também valida sua importância no teatro brasileiro4.
No desenvolvimento dessas duas obras, partimos do texto de Brecht
Os
Horácios e os Curcios
, de 1933, em diálogo com estudos antropológicos. Contudo,
se em apresentações anteriores a companhia vinha adotando as epistemologias
ameríndias como solução filosófica para os impasses da modernidade-
colonialidade, a convocação neste projeto passou a ser outra. Além do estudo e
da experimentação cênica que realizamos sobre as teorias do perspectivismo
ameríndio (Lima, 1996; Castro, 1996), circulamos pela primeira vez mais
diligentemente em leituras da antropologia feminista (Haraway, 2004, 2009a,
2009b, 2010; Strathern, 2009) e, sobretudo, estreitamos a aproximação e parceria
com comunidades indígenas da grande São Paulo, e estabelecemos moitarás5 com
povos e lideranças da TIX - Terra Indígena Xingu6. Ao lado disso, nos motivava
responder às ações promovidas pelo governo brasileiro, recém-empossado em
2018, que teve em seu gesto inaugural, no primeiro dia de legislatura, o desmonte
do sistema de saúde indígena e da Funai, em clara afronta às conquistas dos povos
originários, garantidas na Constituição Brasileira de 1988.7
Apresentado no Museu do Ipiranga8, mais antiga instituição de acervo
histórico da cidade, que abriga pinturas e esculturas sobre a fundação da região,
Morte e Dependência na Terra do Pau-Brasil
(2019) foi oportunidade de dialogar
com o público sobre os conflitos em torno do valor da terra e do direito a ela,
4 Em 2014, a Cia Livre recebeu o título de Patrimônio Cultural Imaterial da Cidade de São Paulo pelo COMPRESP
Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo.
5 Termo que designa os rituais de troca de objetos, visitas e bens culturais entre os povos do Alto Xingu
(Fundação Oarapora, 2016). Aqui, o significado de moitará é de escambo simbólico.
6 Além do trabalho de "campo" realizado mais formalmente em imersões junto às comunidades Guarani Mbya
na grande o Paulo, para as criações da Cia Livre desde 2018, as visitas se tornaram mais frequentes a
partir de 2013 e 2014, no trabalho do grupo em parceria com a Cia Nova Dança 8, com direção de Lu
Favoretto,
Xapiri Xapiripê
, onde a gente dançava sobre espelhos (2014).
7 O avanço autorizado de madeireiros, fazendeiros e mineradores nas terras ingenas, demarcadas e em
processo de demarcação, foi consagrado no Projeto de Lei (PL) 490/2007, aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em junho de 2021. Ver em: Souza e Botelho (2021).
8 Construído em homenagem às grandes personalidades históricas nacionais, o Museu do Ipiranga, também
chamado de Museu Paulista, simboliza o discurso oficial sobre o hersmo de padres, bandeirantes e demais
representantes do poder do império português na colonização do país; o que o torna um testemunho da
história única (Adichie, 2019) e do silenciamento e genocídio cometidos contra os povos originários, que se
estende, com outras formas de opressão, até hoje. Inaugurado em 1895, encontra-se atualmente em
processo de restauro e fora de funcionamento.
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assim como sobre militância ecológica, tecida à luta social. Ao mesmo tempo,
entendemos a criação como uma maneira de fortalecermos o encontro com as
comunidades indígenas com as quais nhamos trocando experiências em
processos anteriores. também preparamos a espinha dorsal do espetáculo
Os
Um e os Outros
(2019), que estrearíamos a seguir, num teatro.
Nessa nova ação, voltamos ao assunto da luta pela terra no governo de Jair
Bolsonaro, encenando a peça ditica de Brecht9. Para isso, mantivemos os textos
originais do autor, intercalados com um amplo material documental, e contando
com a presença de um coro do povo indígena Guarani Mbya, composto por duas
famílias da Tenondé Po10. A convivência com os Guarani se estendeu da cena aos
bastidores e ao cotidiano do grupo, que as duas famílias foram recebidas por
nós e moraram por cerca de quatro meses na sede da Cia Livre, mais perto do
centro da cidade de São Paulo, onde seria a peça, do que a região de Parelheiros,
onde residem.
Embora a Cia Livre trabalhe alguns anos com formas de teatro épico e
com a "questão ameríndia", o aprofundamento na cosmopolítica dos povos
indígenas ganhou outra dimensão, devido ao encontro com as duas mulheres
Guarani Mbya, Kerexu Mirim e Kerexu Poty, dia após dia no espetáculo. Atrevo-me
a dizer que isso aconteceu porque houve uma espécie de reconhecimento, que
me reposicionou como atriz de teatro, um aspecto da minha experiência social
que não havia sido tão verdadeiramente revisto, até ser colocado em perspectiva,
ou encarado em contraste (Maizza, 2017)11. Kerexu Mirim e Kerexu Poty, no palco
conosco, acabaram por retirar a posse que detinha de uma identidade social, de
uma pessoa auto-identificada como mulher cisnormativa, branca e atriz: essas
eram algumas das minhas ficções (Maizza, 2017, p.114) como "povo dos Um", com
efeitos subjetivos, poéticos e estéticos próprios. Como isso começou a
9 Na versão da Cia Livre de
Os Horácios e Os Curiácios
, os Horácios foram chamados de povo do Um,
detentores de umagica civilizatória que coloca o sujeito branco, masculino, cristão e eurocêntrico como
único, enquanto os Curiácios se tornaram o povo dos Outros , que se expande para muitos outros povos (e
o apenas grupos humanos), múltiplos em seus modos de existir.
10 Kerexu Mirim é casada com Cláudio, e mãe de Karai (Rafael) e Karai Tataendy (Ricardo, ou Kadú). Kerexu
Poty é casada com Tataendy (Germano).
11 Fabiana Maizza (2017), referindo-se a Marilyn Strathern, comenta a presença de tal oposição na trama entre
feminismo e antropologia, posições que se complementam e, assim, se apoiam na lida com temas como
corpo e pessoa.
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desmoronar na vida da cena, e como isso pode alterar ainda mais minha maneira
de agir, é sobre o que vamos divagar a seguir.
Mulheres indígenas no palco do teatro eurocêntrico
Em
Os Um e Os Outros
(2019), a forma de participação dessas duas mulheres
indígenas foi fundamental para o surgimento de uma presença cênica única, que
não se afasta de suas distintas experiências no coletivo.12 A forma cênica que
caracterizava a qualidade de
estar ali
(Coelho, 2013) foi sendo construída a partir
de conversas com a Cia Livre, logo antes das apresentações. Facilitando essas
intervenções, o coro Guarani foi posicionado na lateral do espaço nico, num
teatro com duas plateias opostas, de onde podiam observar tudo e comentar as
cenas, conforme sentissem a necessidade (Figura 1).
Em todas as intervenções que resultaram, em português e em guarani, o coro
Guarani foi autônomo: foram eles que criaram a cena de abertura, um prólogo em
que todos cantávamos a sica de saudação
Oreyvy Peraa Va'ekue
13; e foram eles
que sugeriram a narrativa do mito Guarani
sobre o
petyngua
, o cachimbo sagrado
Guarani
(História e Cultura..., s.p.), no trecho da escolha das armas, no Desfile dos
guerreiros (Figura 2). na temporada da peça, foi Kerexu Poty que se levantou,
de forma quase inesperada, entrando na cena de preparação para a luta, quando
uma coreografia sugeria a daa dos guerreiros e guerreiras Xondaro, para soprar
a fumaça de seu cachimbo sobre nossas cabeças, enquanto Kerexu Mirim falava
palavras improvisadas de encorajamento e confiança em Guarani, ao microfone
(Figura 3).
12 O jogo entre experiência singular e dimensão grupal, aqui, tenta abarcar a especificidade de uma "[...]
permanência no tempo tal que a realidade grupal transcenda as experiências individuais" (Collins, 1997,
p.375).
13 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=1T2NZrq1K_Y&list=RDwBAiRywomOY&index=14
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Figura 1 - Bancada do Coro, em
Os Um e Os Outros
(2019). Da esquerda para a direita,
Kerexu Poty, Kerexu Mirim, Germano e Cláudio. Frame da filmagem de Cacá Bernardes e Bruna
Lessa, no SESC Pompéia (São Paulo)
Acervo: Cia Livre.
Figura 2 - Uso do
petyngua
, na cena de escolha de arma (O Desfile), em
Os Um e Os Outros
(2019). Da esquerda para a direita: Fernanda Haucke, Kerexu Poty, Roberto Alencar, Vanessa
Medeiros e Marcos Damigo. Frame da filmagem de Ca Bernardes e Bruna Lessa,
no SESC Pompéia (São Paulo)
Acervo: Cia Livre.
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Figura 3 - Intervenção de Kerexu Poty, em preparação para a
luta do Povo dos Um
, em
Os
Um e Os Outros
(2019). Frame da filmagem de Ca Bernardes e Bruna Lessa,
no SESC Pompéia (São Paulo)
Acervo: Cia Livre.
Ao lado dessas proposições, foram as duas que, levando pela mão o filho
mais novo de Kerexu Mirim, Ka, de dois anos, decidiram se juntar à cena do luto
da Esposa do Lanceiro dos Outros, quando esta perde o marido na batalha. Na
ação que inventaram, acolhiam - com cantos e gestos assemelhados aos rituais
da casa de oração Guarani - a dor do luto, auxiliando a disjunção definitiva do
morto (Figura 4).
Também foram elas que, ao perceberem nossa angústia, quando
retrabalhávamos a última cena proposta por Brecht (na qual o Espadachim
Horácio investe contra o Espadachim Curiácio), disseram com segurança "Deixa
com a gente; sabemos como fazer.”. Enquanto lutávamos para encontrar outra
saída para o conflito armado, que nos desagradava por operar numa gica dualista
e orientada para a solução pela dizimação, elas nos conduziram em uma dança
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de mãos dadas, enquanto cantavam
Nhanerãmoi'i Karai Poty
.14 No espetáculo, essa
dança passou a envolver o grupo e o público (Figura 5) em uma espiral sinuosa
que percorria o palco, até que todos nos sentássemos no chão, reunidos pela
caminhada.
Por fim, foi Kerexu Mirim que, de microfone em punho, começou a esboçar
um discurso final, diferente a cada dia, contrastando palavras em português e
guarani para explicar porque, como entende o povo Guarani, a natureza traduz a
própria vida (Figuras 6 e 7). O direito à terra, concluía ela, é o direito à vida dos
Guarani e uma possibilidade de preservação da natureza, em benefício de todos.
Figura 4 - Kerexu Mirim, Kerexu Poty, Kadu e Lu Favoretto, na cena das Mulheres dos
Lanceiros, em
Os Um e Os Outros
(2019). Frame da filmagem de Cacá Bernardes e Bruna Lessa,
no SESC Pompéia (São Paulo)
Acervo: Cia Livre.
14 Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=MoK_Xb2X6GQ&list=RDwBAiRywomOY&index=4
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Figura 5 - Público no palco, na dança coletiva que sucedia a Batalha final, numa espécie de
“coda”, apoiada ao texto original, em
Os Um e Os Outros
(2019). Frame da filmagem de Cacá
Bernardes e Bruna Lessa, no SESC Pompéia (São Paulo)
Acervo: Cia Livre.
Figura 6 - Discurso final de Kerexu Mirim, em
Os Um e Os Outros
(2019). Frame da filmagem
de Ca Bernardes e Bruna Lessa, no SESC Pompéia (São Paulo).
Acervo: Cia Livre.
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Figura 7 - Discurso final de Kerexu Mirim. Ao fundo, as atrizes Vanessa Medeiros e Gisele
Calazans e uma pessoa da plateia, em
Os Um e Os Outros
(2019). Frame da filmagem de Ca
Bernardes e Bruna Lessa, no SESC Pompéia (São Paulo)
Acervo: Cia Livre.
Através das "belas palavras15 de Kerexu Mirim, ao final do espetáculo,
estabeleceu-se uma aproximação entre a enunciação do teatro e a conversação
na casa de oração, ao redor da fogueira; bem como uma escie de aliança entre
indígenas e não parentes, bem diversa do desfecho previsto na peça de Brecht. No
lugar do confronto armado, Kerexu Mirim proveu, estrategicamente, "evidências"
sobre o cotidiano dos Guarani e seu ponto de vista sobre a própria situação nas
terras localizadas nas periferias das grandes cidades. No palco do teatro, Kerexu
Mirim aproveitou a oportunidade da cena para reunir os aliados o indígenas da
plateia, convocados a lutar pela demarcação dos territórios originários, junto com
ela.
15 Na cosmovisão Guarani, as “belas palavras" (
ayvu porã
) o a prática da palavra certa, que emana sabedoria ancestral e
mítica (no sentido de discurso fundador, de potência simbólica, material e ética). As "belas palavras" estão associadas à
narrativa mítica, mas também aos cantos e rituais, bem como a um
ethos
cotidiano.
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O debate blico e a cena das oprimidas, contra a dos
vencedores
É possível associar o apelo inspirado de Kerexu Mirim à máxima de Donna
Haraway (2016) sobre a atitude insurgente, anticapitaloceno e antiantropoceno:
"Façam parentes, não bebês!” (Haraway, 2016, p.141), proclama a autora
estadunidense. Em ambos os casos, de Haraway e Mirim, está proposta a ênfase
na ecojustiça e na amabilidade, por meio da imaginação de um contexto relacional
não especista, ou seja, estendido à multiplicidade de pessoas e espécies. De outra
maneira, no texto de Brecht, o que vem ao final é um confronto violento que
conduz à desejada vitória política dos oprimidos e à reconquista do território
invadido. A noção de propriedade proposta pelo discurso de Kerexu Mirim, que
coincide com algumas reivindicações do ecofeminismo, é contrária a esta visão,
uma vez que carrega em seu bojo a crítica à exploração dos recursos naturais,
perpetrada pelo poder econômico e pela continuidade da gica colonial. Se a
relação entre a submissão das mulheres e a destruição do ambiente do
capitalismo tardio pode ser tratada como um problema potico, ela é também um
caminho que leva à redefinição dos dualismos euro-ocidentais, que tem na relação
hierárquica entre natureza e cultura na sua raiz mais profunda.
É nesta outra dimensão da paisagem política que entendo também a revisão
da posição das mulheres, do feminismo e da natureza no teatro, o que implica
cruzar conexões simplistas e naturalizadas entre essas instâncias. Para que a
potica cósmica do Kerexu Mirim seja viável, natureza e cultura devem permanecer
em continuidade; algo que será eficaz se s, o indígenas, pararmos de atacar
o meio ambiente como se fosse "nosso" e não "nós mesmos”. E aqui, a
cosmopolítica precisa negociar com o "modelo sociocêntrico", pois o privilégio da
Lei e a força econômica (e militar) dos o indígenas tem operado para realizar
categorizações e hierarquizações, em nome de um etnocentrismo, que leva a um
inevitável fechamento ao Outro e ao esgotamento fatal dos recursos necessários
à vida de todas as espécies.
Na cultura Guarani, um recuo estratégico, chamado de esquiva, que serve
não para aniquilar o inimigo em uma guerra de extermínio, mas para promover a
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resistência, ao mesmo tempo que recria a tensão do confronto, forjando o erro
para, por fim, anexar a outra força (Santos, 2017). Kerexu Mirim, assim, operou por
meio da esquiva. Ou seja, no convite que fez a todos para participarem das
associações interespécies que os Guarani M'bya sempre praticaram com animais,
plantas e espíritos, foi gerado mais um "campo intersubjetivo" (Castro, 1996), no
qual s, o povo dos Um, foi incorporados simbolicamente, por meio da
sociopolítica do parentesco. Como resume Eduardo Viveiros de Castro, pode-se
dizer que Kerexu Mirim praticou uma versão do "[...] xamanismo perspectivista
ameríndio [...] como potica cósmica" (Castro, 1996, p. 120); implementada como
antídoto ao relativismo do "multiculturalismo ocidental [...] como política pública
[...]" (Castro, 1996, p. 120).
Pela primeira vez atuando em cena com mulheres indígenas, também me vi
provocada a negociar com as políticas da cena, abrindo caminho a um novo
trânsito intersubjetivo. Sentindo-me desprovida dos recursos familiares da
linguagem teatral, que tacitamente excluem do regime discursivo da cena a
multiplicidade inerente à ontologia ameríndia, fui levada a procurar formas de
trafegar na passagem entre como vejo a mim mesma e como represento (mesmo
que em enunciação épica) os diferentes sujeitos da peça. No entanto, não foi a
falta de virtuosismo para o jogo de estar na pele de três ou quatro personagens
diferentes, ou em coro, que ficou cristalina ao longo dos ensaios e das
apresentações, mas uma fragilidade da convenção teatral como um todo. Diante
da presença não representada de Kerexu Mirim e Kerexu Poty, evidenciou-se a
necessidade de rever o teatro como mais um texto de cultura à serviço da
dominação das múltiplas formas de vida.
Na constituição do "estado cênico", mesmo em modos de enunciação em
que graus mínimos de intencionalidade e indexação (Kirby, 1987), vigora uma
economia de poderes cuja prerrogativa é manter a centralidade de um sujeito
universalizado, o que possibilita e regula a identificação entre palco e plateia. Mas
esse sujeito o está mais sozinho na cena; o que ameaça o universalismo da
representação: não "fazer identidades", mas multiplicidades inter-relacionais,
poderia ser uma adaptação para o pensamento de Kerexu Mirim e Donna Haraway,
com ressonâncias na cena teatral.
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Por tudo isso, não havia resposta indexada possível, dado o que me era
pedido no espetáculo: estender minha "humanidade" para além da potica de si,
para ensaiar uma cosmopolítica das afinidades. Enquanto na ecologia dominante
na cena teatral euro-ocidental, que organiza as relações entre os seres vivos e o
meio ambiente, uma alteridade previvel estava estruturada, projetada e
imaginada pelo jogo da atuação, agora essa noção de alteridade parecia ruir: as
duas Kerexu, acompanhados de seus maridos e filhos, formavam uma dimica
"para si, como diria Simone de Beauvoir (1980), não objetivada pelo discurso usual.
Essa perspectiva de alteridade vel, que me descentralizava completamente,
denunciava também o projeto hegemônico de "coletividade" abrigado na cena
teatral, carente de reciprocidade, e que era produzida também pelo meu modo de
estar ali
, como pessoa-atriz-personagem. Qual seria a saída para esse impasse?
Agenciamento por meio do sonho
Um dia, pouco antes de uma apresentação, quando perguntada sobre como
se sentia em estar novamente no teatro conosco, Kerexu Mirim respondeu,
calmamente, que "Já tinha visto aquelas cenas em sonho, não sabia que
aconteceria conosco, e naquele teatro". Afastando-se do dualismo entre vida real
e vida encenada que eu professava, Kerexu Mirim sugeria que, uma vez que as
imagens brotavam dela mesma, atuar naquelas cenas não poderia soar estranho
para ela. Tampouco, nós éramos estranhos para ela, porque havíamos nos
tornado seus semelhantes, em seu sonho.
Na cultura Guarani, os sonhos estão relacionados a ltiplos aspectos, que
vão desde cura, aconselhamento e intensificação do futuro, até compromisso,
deslocamento territorial e feitura de laços de parentesco (Salustiano, 2020). As
mensagens que os sonhos entregam não são preditas; porém, o que é incerto nas
situações oníricas, cabe ao sonhador transformar em fato. Kerexu Mirim
transformou seus sonhos pregressos sobre nossa experiência cênica conjunta
numa decio, a de estar em São Paulo e falar em blico num palco de teatro.
Sem interpretar suas causas, ela optou por replicar as imagens incompletas de
seu sonho, nascidas do invivel que o sono manifestava. Assim, ela consolou a
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mulher que perdera o marido; ela contou histórias; ela cantou e dançou; fez
fumaça com o
petyngua
e, por fim, compartilhou com a plateia como Nhanderu
legou aos Guarani a tarefa de preservar o
nhe'ëm
16 existente em todas as coisas.
Dessa forma, seu sonho realizou o destino das mirações: desafiar e renovar as
forças de quem sonha.
Voltando ao espanto
Kerexu Mirim e Kerexu Poty mostraram a possibilidade de mobilizar e romper
modelos de relações e iniciar novos parentescos, para fortalecer a luta. Também,
como não dissociar-se de nenhuma das realidades concorrentes, mas sem apenas
ficcionalizá-las no palco: elas testemunharam uma comunicação com outras
realidades, verdadeira e impalpável como esta que chamamos de vida real, e
intimamente entrelaçada a ela. Entretanto, não deram a isso o nome de teatro, ou
imitação representativa, ou jogo de cena, mas antecipação (Sztutman, 2020);
afinal, os termos que relacionamos às experiências estéticas da cena eurocêntrica
pouco dizem sobre seus modos de pensar. De olhos fechados, Kerexu Mirim
estabeleceu relações concretas entre mundos discretos, e com seu agenciamento
sobre o devir, em suas horas de vigília, foi desvendando uma nova realidade. Assim,
de olhos abertos, numa cosmopolítica informada pelo sonho, deu voz a imagens
aparentemente banais, atualizando-as num apelo à aliança, para lidar com o
impulso de mudança. Mudando a si mesma, ela mudou as interações ao seu redor
e mudou a mim, determinando a mim e a si mesma, assim como realidade e
irrealidade, como "variavelmente sobrepostas (Vianna, 2016, p.271). Em paralelo à
multiplicação dos mundos, ampliou as formas de intervirmos neles.
Enquanto finalizava este texto, assisti aos registros gravados das
mobilizações ocorridas em todo o país, em protesto à votação do Marco Temporal,
que tenta institucionalizar a política de governo de regularização da mineração em
terras demarcadas, por meio da votação do Projeto de Lei 490/200717, uma franca
ameaça ao direito à terra e à vida dos povos indígenas. Nas imagens de vídeo a
16 A palavra é traduzida como “sagrado”, ou que vem da morada celestial, ou como “espírito" (Benites, 2020).
17 Mais sobre o desastre ecológico e humanitário causado pela PL 490, ver em: Raquel (2021).
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que tive acesso, da manifestação Guarani Mbya em São Paulo, na Avenida Paulista,
encontrei Kerexu Mirim falando aos passantes (Figura 8), junto com um grupo de
mulheres. Em seu discurso, reconheci a força vital das palavras que a vi ensaiar,
dia após dia, durante as apresentações de
Os Um e Os Outros
(2019): "Não
queremos terra para nos enriquecer, queremos terra para sobreviver, para crescer
nossos filhos, para ter comida.”, Kerexu Mirim reivindicava. Continuando a atualizar
sua cosmopolítica, estava ela, em busca de um tempo mais justo, seguindo o
caminho desbravado em sonho, onde o teatro foi apenas uma breve parada.
Figura 8 - Kere Mirim, em protesto contra o PL 490/ 2007, do movimento de Mulheres
Indígenas, emo Paulo, em 24 de Junho de 2021
A caminhada da Cia Livre também teve continuidade, desde Os Um e Os
Outros (2019). Atribuo a Kerexu Mirim e Kerexu Poty e suas famílias uma mudança
na noção do grupo a respeito das possibilidades formais do teatro de crítica
político-social. Com elas, vislumbramos a constituição de um teatro sustentado
na finalidade de participar da vida blica, dando “corpo à crítica da sociedade"
(Sarrazac, 2013, p.58), mas que se configura por meio do engajamento da audiência
na ação ritualizada e da constituição de planos de realidade complexos e
sobrepostos. Essa abertura tem nos levado ao encontro de estratégias múltiplas
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para combater as forças de dominação e as estruturas de poder também
presentes na teatralidade.
A localização de um diferenciador no estatuto da pessoa humana, que a
presença delas promoveu, trouxe também um estranhamento quanto à ideia de
unidade do sujeito, à qual a personagem dramática psicológica está atrelada,
mesmo que na chave épica. O deslocamento estético assim operante emana de
uma presença sem o compromisso da simbolização, ainda que produza ação e
situação (Sarrazac, 2013). Essa presença, em atrito com o núcleo da representação,
abre os veios do jogo da cena, mostrando seus vazios e, desse modo, reclamando
uma parceria mais comprometida do/a espectador/a.
Por fim, a experiência de ativismo dessas mulheres levou a um confronto
direto com as propostas feministas na cena teatral da Cia Livre, mais afeita ao
feminismo branco, que também tem me informado. A diversidade identitária, na
perspectiva das mulheres indígenas, que Kerexu Mirim e Kerexu Poty experienciam
e validam, aporta um afastamento radical dos universalismos ainda subjacentes
ao feminismo hegemônico. Nas cosmologias que as informam, estão presentes
categorias para além das preconizadas pela modernidade, em sua “dicotomia
central”, como menciona Lugones (2014), entre o humano e o não-humano,
refletida na assimetria entre cultura e natureza. Contudo, se a distinção entre
esses feminismos se por diferenças profundas, o diálogo entre suas premissas
e, mais do que isso, a convivência entre as mulheres indígenas e não-indígenas
num processo de criação teatral, anuncia uma “outra construção do ente
relacional” (Lugones, 2014 p.943), apta a dar contorno diverso ao social, numa
resposta cosmopolítica constituída na resistência e na comunalidade.
Foi assim que o espanto, que suspendeu as certezas, convocou ao
questionamento descrito neste texto. Espera-se que, como deve ser, esse espanto
mantenha a predisposição à busca, sempre incompleta, das resultantes estéticas
e políticas do descerramento da espécie humana no teatro, conforme percebido
por mim (não mais “eu mesma”) na experiência incomum de contracenação entre
artistas indígenas e não-indígenas proposta na cena da Cia Livre.
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Recebido em: 24/01/2022
Aprovado em: 07/03/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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