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A atuação de artistasprofessoras e
artistasprofessores na (re)invenção do ato estético
Adriana Teles de Souza
Para citar este artigo:
SOUZA, Adriana Teles de. A atuação de
artistasprofessoras e artistasprofessores na (re)invenção
do ato estético.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0101
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A atuação de artistasprofessoras e artistasprofessores na (re)invenção do ato
estético1
Adriana Teles de Souza2
Resumo
A atuação de artistasprofessoras e artistasprofessores no âmbito da educaçãosica
tem revelado novas posturas para a compreensão do ato estético no fazer artístico
e pedagógico, na dimensão da (re)invenção de uma poética de sala de aula. Nesta
pesquisa, conceitos como ato artístico, ato docente, inacabamento e pensamento
não-indiferente, foram trabalhados para compreender os processos de construção
do ato estético, na perspectiva da Análise Dialógica do Discurso em Bakhtin. Foram
analisados também, os dizeres de um artistaprofessor e um estudante sobre a
singularização do sujeito nos processos artísticos em sala de aula e suas relações
com os aspectos estéticos e culturais. Os resultados demonstraram que a
organização das ações artísticas, provenientes de experimentos estéticos, os quais
incluíram situações da vida cotidiana, da inter-relação entre pessoas, dos objetos,
suas seleções e agrupamentos, foram fundamentais para sintetizar aspectos da
criação artística ou da vida vivida.
Palavras-chave
: Artistasprofessoras/artistasprofessores. Ato Artístico. Ato Docente.
Bakhtin.
The performance of artistteachers in the (re) invention of the aesthetic act
Abstract
The performance of artist-teachers and artist-teachers in the scope of basic
education has revealed new attitudes towards understanding the aesthetic act in
artistic and pedagogical practice, in the dimension of (re)invention of classroom
poetics. In this research, concepts such as the artistic act, the teaching act,
incompleteness and non-indifferent thinking were worked on to understand the
processes of construction of the aesthetic act, from the perspective of the Dialogical
Analysis of Discourse in Bakhtin. Sayings of an artist-teacher and a student were
analyzed on the singularization of the subject in the artistic processes in the
classroom and its relations with the aesthetic and cultural aspects. The results
showed that the organization of artistic actions, arising from aesthetic experiments,
which included situations of everyday life, the interrelation between people, objects,
their selections and groupings were fundamental to synthesize aspects of artistic
creation the or life lived.
Keywords
: Artistteachers. Artistic Act. Teaching Act. Bakhtin.
1 Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Bruna de Paula Moura. Graduada em Letras-Português
pela Universidade Tecnológica do Paraná (UTFPR). Mestrando no programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagem (UTFPR). brunapmoura647@gmail.com http://lattes.cnpq.br/4243548638145843
2 Pós-doutoranda pela Universidade Federal do Rio Grande (UFRG). Doutorado em Educação pela Universidade
Federal do Paraná (UFPR). Mestrado em Educação (UFPR). Especialização em Psicopedagogia e Educação
Especial pela Faculdade Guilherme Guimbala. Especialização em Fundamentos do Ensino da Arte pela
Universidade Estadual do Paraná (FAP). Licenciatura em Arte pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR). Graduação em Artes Cênicas pela Universidade Estadual do Para (FAP). Professora do Colégio
Estadual do Paraná. adriana_teles3@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/2368836151896583 https://orcid.org/000-0002-2885-5751
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La actuación de artistasprofesoras y artistasprofesores en la (re)invención del
acto estético
Resumen
La actuación de artistasprofesoras y artistasprofesores en el ámbito de la educación
básica ha revelado nuevas actitudes hacia la comprensión del acto estético en la
práctica artística y pedagógica, en la dimensión de (re)invención de una poética de
aula / salón de clase. En esta investigación se trabajaron conceptos como el acto
artístico, el acto docente, la incompletud y el pensamiento no indiferente para
comprender los procesos de construcción del acto estético, desde la perspectiva
del Análisis Dialógico del Discurso en Bajtín. Se analizaron dichos de un
artistaprofesor y un estudiante sobre la singularización del sujeto en los procesos
artísticos en el aula y sus relaciones con los aspectos estéticos y culturales. Los
resultados mostraron que la organización de acciones artísticas, procedentes de
experimentos estéticos, que incluyeron situaciones de la vida cotidiana, la
interrelación entre personas, objetos, sus selecciones y agrupaciones, fueron
fundamentales para sintetizar aspectos de la creación artística o de la vida vivida.
Palabras clave
: Artistasprofesores. Acto Artístico. Acto Docente. Bajtín.
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Do ato artístico e docente à dimensão da estética para além
do espaço da arte
O estudo em questão faz parte da minha pesquisa sobre o ato artístico e o
ato docente, voltados para uma formação em ato
3
. O ato artístico e docente aqui
é compreendido no âmbito de uma postura diante da vida vida como ato
4
no qual o sujeito assina o produto da sua ação, seja na arte ou na vida. Portanto,
responde em toda a sua extensão por aquilo que produz em ato.
Ao situar o ato na perspectiva dialógica em Bakhtin, se instaura uma
proposição tanto da singularidade, quanto da autoria dos sujeitos que atuam no
diálogo da arte e da docência, como artistasprofessoras e artistasprofessores.
Nesse entendimento, a junção entre ambas as atuações não se trata de uma mera
derivação de conceitos ou de palavras que poderiam ser compostas, mas da
compreensão de que tal atuação está na inter-relação entre sujeitos, sujeitos e
objetos e objetos, ancorados nos termos bakhtinianos de inacabamento e de
pensamento não-indiferente.
Ao trazer para a conversa a compreensão do que pode ser a atuação artística
e docente, também as dimensionam na formação artística e pedagógica. Ambas
estão para além de uma atuação que se coloca na subserviência burocrática, tanto
dos processos educativos, quanto, muitas vezes, da própria arte. Cada vez mais
proposta pelo viés de uma visão institucionalizante, tal atuação se prontifica e se
realiza no ato estético.
Sob essa perspectiva, conceber uma formação em termos de ato é participar
de uma experiência estética, de um processo de sensibilização do ser, do sujeito
que atua no palco da arte e no palco da vida, uma correlação entre essas atuações.
Desse modo, não é possível pensar em uma formação que implique em uma visão
da estética na educação sem considerar que a própria formação estética não se
limita aos fazeres artísticos, mas está inscrita no movimento da vida, em sua
3 Para uma melhor compreensão consultar a tese
Do Palco à Sala de Aula: Diálogos entre o Ato Artístico e o
Ato Docente
Universidade Federal do Paraná, 2020.
4 Ato no sentido bakhtiniano do termo, ou seja, uma assinatura, a decio consciente da atuação do sujeito no
cotidiano da vida.
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cotidianidade, na tomada de assalto dos nossos olhos diante de um
acontecimento, de um arroubo ao ouvir uma palavra, um toque, um baque. A
formação estética é o espaço entre o olhar e o que lança o nosso olhar adiante
do que, até então, não podíamos conceber.
Dito isso, me adianto em colocar que, ainda hoje, é possível ouvir discursos
tanto da arte na escola, quanto no palco, dizendo que a estética de certo modo
está reduzida nesses fazeres, os da arte e suas manifestações. Esses discursos,
no entanto, não refletem a dimensão estética como sensibilização, essa
sensibilização fica à deriva, sem local definido na atuação da vida vivida, como diria
Bakhtin.
Considerar que a posição da inscrição do gesto no corpo é movimento
(Amorim, 2020), no sentido de deslocamento, transformação e mudança do olhar
diante de um acontecimento é compreender que o gesto é o do ato estético.
Aquele que é gerado na atuação do acaso ou não, posto diante dos olhos
daquela ou daquele que se propõe não a ver, mas participar do momento da
vida, que se apresenta em uma forma artística, ou ao caminhar pela rua, ao lavar
uma louça, ao subir uma escada, ao abrir a janela, descer do carro ou ficar em
silêncio. Nisso tudo que compõe a vida de um sujeito em atuação com ela, nela e
para ela é que se encontra a sensibilização do olhar, a formação de uma
humanidade em uma dimensão estética.
Portanto, ao se disponibilizar para harmonia das formas, dos textos e dos
contextos que compõe a vida, o sujeito adentra o mundo de uma formação pela
estética. Com isso, não quero dizer que esta disponibilidade se dá ao acaso, muito
pelo contrário, ela parte sempre do lugar único de que é feito o sujeito, da sua
singularidade posta à prova na inter-relação com outros sujeitos e também com
seus outros, e toda a sorte de mediação, para que, então, haja de fato uma
mobilização do olhar com sensibilidade. Nada se coloca como espontâneo, mas
na construção ou reconstrução do olhar.
Nesse sentido, considerar que os atos artístico e docente são aspectos
simbióticos de uma atuação é não desconsiderar a vida como um todo de
artistasprofessoras e artistasprofessores, essa vida entra/está em sala de aula e
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no palco também, sem com isso ser destituída de seus processos estéticos. Essa
vida que pulsa em cada corpo pode e deve ser reconhecida nos fazeres
pedagógicos, como integrante da invenção ou da (re)invenção da sala de aula.
Uma poética de sala de aula: diálogos para uma atuação
insurgente
Quais são as condições para a formação da sensibilidade? Como visto, ela se
constitui de vida e na vida, portanto, não se reduz na arte e suas experiências de
produção e/ou fruição.
Essas breves colocações permitem, pois, verificar como se anunciam no
campo da formação estética uma reiterada associação do estético ao
artístico destacada do poético , correlação essa que reduz de modo
muito nítido o primeiro ao segundo e que, aparentemente, não considera
outras fontes de realização de experiências estéticas. [...] (Pereira e Icle,
2020, p.197).
A redução da experiência estética à experiência artística, acaba por distanciar
o próprio entendimento do que venha a ser a sensibilidade humana, do que são
feitos seus entornos e seu núcleo. Assim, entende-se que ela se processa em
diferentes níveis e que, apesar de ser comum a todo ser humano, ela é composta
de singularidades, a singularidade de cada corpo e suas atuações em diferentes
espaços.
Essa mesma redução da estética ao campo da arte, fomenta ideias
distorcidas sobre quem, porventura, não compartilha de uma mesma visão sobre
determinado objeto que venha avalizado por certa cultura erudita, tido como
uma espécie de incapaz. Isso se amplifica quando colocamos essa problemática
para a sala de aula, se relacionando com a formação estética tendo unicamente a
arte como resposta.
Assim, uma (re)invenção do ato estético se torna necessária, tanto no que
concerne a produção e fruição artística, bem como a arte que se apresenta em
sala de aula. A estética em termos bakhtinianos se encontra no patamar de uma
redenção (Mccaw, 2017), no sentido de como o sujeito se coloca nas
circunstâncias. Ou seja, de que lugar ele olha? Como olha? Qual olhar?
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Esse olhar não tem álibi e quando se expressa nas circunstâncias da vida o
faz na ação participante ou no pensamento não-indiferente, o qual diz respeito à
responsabilidade do ato. Não qualquer ato, mas o da ação assinada, do gesto ético,
porém, dentro de um todo inacabado, que necessita de complemento pelo olhar
de um outro. Assim, o sujeito se realiza na vida e a compreende na
intersubjetividade, no encontro com os outros de si e com as outras pessoas desse
encontro. Há um duplo em um ser único e uma completude pelo olhar alheio.
Para tanto, o universo que compõe a visão estética em Bakhtin está para além
de uma unidade ou de uma sistematização do sentido, se coloca, como um
empreendimento concreto, de uma vida concreta e de um sujeito em sua
concretude, que se propõe concretamente regido por valores em correlação com
a vida e sua diversidade. Segundo o autor, aí é que é possível tornar o mundo, um
mundo humano “[...] e aqui a visão estética não conhece limites deve estar
correlacionado a um ser humano, deve tornar-se humano. [...]” (Bakhtin, 2010,
p.124). É nessa visão bakhtiniana que se insere a materialidade que trago a seguir
para dialogar com a construção dos processos artísticos, pedagógicos e estéticos,
a fim de reflexionar saberes para uma poética de sala de aula.
Trazer os dizeres de um artistaprofessor e de um estudante sob sua
orientação para falar da (re)invenção do ato estético, não é porque a estética
precisa ser “inventada”, mas porque ela a estética em seu ato primeiro que trata
de estar na vida, com a vida e em presença viva precisa ser lembrada, revisitada
a todo instante, seja na arte ou nos afazeres cotidianos.
A poética de sala de aula expressa pelo artistaprofessor em questão, surge
das suas inquietações diárias em sala e no palco (um professor, artista visual, ator,
dramaturgo e diretor teatral), se deparando com a árida e prazerosa tarefa de
ensinar. Ela surge ao identificar que a escola em si não estabelece espaços para
uma construção poética no ensino, no que se refere às narrativas cotidianas que
a vida traz para a sala de aula e nos contextos e textos diversos dos seus sujeitos.
Nesse direcionamento de formação em ato estético, e de uma poética de
sala de aula, que se estabeleceram durante três anos as nossas conversas em
momentos diferentes de nossas vidas, assim como em lugares diversos.
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As conversas foram em torno dos seus processos de formação como sujeito
atuante na vida e na arte e como materializava seus processos de criação de
aula e artística.
Trouxe para essa conversa uma fala que melhor expressa a atuação do
artistaprofessor no sentido de uma atuação não-indiferente do ato estético, e uma
fala de seu estudante que também revela essa posição. Foram grafadas em
negritos os recortes analisados para este estudo, como seguem:
Aquilo que a gente falou naquele dia,
eu não consigo mais entrar em sala
de aula e não levar esse (fala o seu nome) inteiro que eu sou hoje, o meu
corpo inteiro que está em transformação, e tudo que é pulsante, e tudo
que eu estou vendo, é estar íntegro comigo mesmo, e também tudo que
eu absorvo, permitir que as pessoas tenham esse espaço de integridade.
Somos todos humanos, temos que dar conta das nossas emoções,
professores e alunos.
De entender esse espaço, eu não estou numa área burocrática, eu estou
trabalhando com arte, mais humana
na medida que eu estou vivendo
essa minha profissão, não tem como desvincular minhas outras práticas,
eu faço um contraponto com a escola uma coisa mais formatada, isso
me levava para um outro lugar, eu não tenho como deixar a minha arte
para entrar em sala de aula
, e não é algo pensado, “a agora vou usar das
estratégias que nós, atores, usamos para seduzir uma plateia,” (fala em
outro tom) não é isso,
é a minha relação com o mundo mesmo
.
(Artistaprofessor, 2017; 2018; 2019).
Fala do estudante em questão:
Começamos com as vanguardas, fomos para as mulheres vanguardistas,
Frida Kahlo, Leila Diniz e passamos por outros nomes, imprimimos
poemas, textos sobre o assunto.
Não sabíamos nada, não me interessava
pelo assunto
. Mas o professor explica bem e envolve mais as pessoas
nas aulas, é diferente. Faz perguntas para as pessoas, não fica falando,
como os outros professores. As pessoas se sentiam mais envolvidas nas
aulas dele. Creio que a maioria das coisas que ele dizia, consegui
entender, como a consciência negra, o que o negro é na sociedade, pelo
professor ser negro, ele vive isso e isso ele consegue explicar melhor,
através da leitura de imagens, (pausa, pensativo) não ficamos no que
víamos na TV.O difícil para mim foi procurar e imprimir textos e imagens,
pois no período da tarde gosto de fazer outras coisas, como sair, ver TV,
outras coisas (fica corado, a respiração mais ofegante).
O professor levava
a gente para o laboratório, a maioria dos professores não tiram a gente
da sala, o que eu mais gostei foi isso. Eu não lembro de ter feito criações,
não sei se a pintura se encaixa nisso
. Ou outra coisa. A partir do que
consegui entender nos estudos das vanguardas artísticas é que ser
diferente não é ruim é prazeroso ser diferente. Se não tivéssemos as
vanguardas não teríamos a arte hoje, 105 (ofegante, segurando as os)
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como a arte contemporânea que engloba todas as artes, pelo que
entendi, porque (ofegante) ficaríamos presos em um tipo de arte.
Nossa vida seria muito parecida uma com a outra, (ofegante) no modo de
viver, de ser das pessoas, o preconceito seria bem mais comum
(Estudante, 2017).
Na formação em ato, que é a ação da assinatura do sujeito diante de uma
dada realidade é que se forja a identidade de uma artistaprofessora ou
artistaprofessor, diante de um cenário diverso e adverso que é a escola, obrigando
ou a se submeter ao burocrático, ou a encontrar espaços de respiro para uma
atuação insurgente, de se colocar como partícipe da vida real.
Esse pensamento que se coloca como não-indiferente (Bakhtin, 2010), diante
da própria condição dada, traduz um sujeito em sua singularidade e que reconhece
em sua vivência única, em seu lugar único, a sua identidade.
As identidades singulares que trata Bakhtin são as contrárias às identidades
forjadas por uma determinada ordem social, ou seja:
[...] o reconhecer-me insubstituível na minha participação, é o meu
nãoálibi em tal mundo. Esta participação assumida como minha inaugura
um dever concreto: realizar a singularidade inteira como singularidade
absolutamente não substituível do existir, em relação a cada momento
deste existir. E isso significa que esta participação transforma cada
manifestação minha sentimentos, desejos, estados de ânimo,
pensamentos em um ato meu ativamente responsável (Bakhtin, 2010,
p.118).
Nessa perspectiva a participação do sujeito está posta e sem desculpas, ali
em que o sujeito atua, atua com todo o seu corpo, todo o seu pensamento, na
extensão do seu discurso, na interação com o seu lugar único (de onde fala), e do
lugar que se apresenta na sua atuação. Bakhtin ainda aponta que, “O indivíduo não
tem apenas meio e ambiente, tem também horizonte próprio. [...]” (Bakhtin, 2017,
p.58). Para além da dimensão do contexto coletivo, está o olhar próprio daquela
ou daquele que observa a realidade, não sendo desse modo possível uma análise
destituída do horizonte singular de cada sujeito.
Essa destituição do horizonte singular é o que tem promovido um mundo
controverso em relação à estética na educação, como dada aos processos
artísticos, às obras de arte e à fruição. Ao contrário, diz-se do espaço da
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inventividade que cada horizonte próprio pode mobilizar coletivamente em prol do
ato estético como meio de formação de si.
A interação com o horizonte de outra pessoa que se a conhecer é a
possibilidade de também se conhecer, se revelar para si e para o outro, tanto um
outro de si, quanto o outro que é outra pessoa. Esse conhecimento se faz no corpo
como materialidade viva, de carne, sangue, ossos, olhos e pele... É nessa
intersubjetividade que se cruzam e se complementam o espaço da consciência,
consciência do eu e da outra pessoa da minha interação (Bakhtin, 2017).
A partir dessa concepção de horizonte próprio que o artistaprofessor se
coloca diante da vida, constituído por todas as faces que o seu corpo construiu ao
longo do seu trajeto na vida e com a vida, como expresso na seguinte fala: “[...]
na
medida que eu estou vivendo essa minha profissão, não tem como desvincular
minhas outras práticas, eu faço um contraponto com a escola uma coisa mais
formatada, isso me levava para um outro lugar, eu não tenho como deixar a minha
arte para entrar em sala de aula, [...] é a minha relação com o mundo mesmo.”
Viver uma profissão é se colocar na posição da não-indiferença diante do que
constitui o seu ser e o seu saber, sem com isso corromper aquilo que lhe constitui
para acomodar seu corpo e sua vivência única em um lugar despersonalizado para
si e para os outros de si. Nesse sentido que o artistaprofessor não deixa a sua arte
(seus processos acadêmicos e de pesquisas artísticas) para entrar em sala de aula.
O mesmo vai para esse espaço com tudo que tem seu corpo, seus textos e todos
os contextos que lhe cravam a pele, como ele mesmo afirma
“é a minha relação
com o mundo mesmo”
. Não tem como se desfazer das relações com os aspectos
exteriores e interiores do nosso mundo (sentidos) e do mundo ao redor (cultura).
No acolhimento da fala do artistaprofessor é que busco compreender a
dimensão da sua atuação nos dizeres do estudante sob sua orientação, em
especial no seguinte trecho de fala
: “Não sabíamos nada, não me interessava pelo
assunto. [...] envolve mais as pessoas nas aulas, é diferente. Faz perguntas para as
pessoas, não só fica falando, como os outros professores. As pessoas se sentiam
mais envolvidas nas aulas dele.”
O saber que trata o ensino é o da construção que se situa em um processo
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de coletivo, histórico, social, cultural que se institui agora e na extensão do tempo
(Amorim, 2021). Para tanto, pensar que professoras e professores são as pessoas
que detém o saber é algo datado e formatado pelo tempo escolar. O saber só se
processa na responsabilidade da compreensão de quem ensina, de que um dado
saber sempre está na dimensão geracional, ou seja, das pessoas que antecederam
e das que sucederam determinado saber.
Sob essa perspectiva, o estudante em questão traz para nossa conversa três
pontos fundamentais para pensar em uma poética de sala de aula: o envolvimento,
a questão do que é diferente e o que é a fala.
O envolvimento apontado não se coloca como via de mão única, mas na
interação entre o objeto estudado, os sujeitos e sujeitos juntamente com objeto.
Portanto, “O objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser
nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e
significado” (Bakhtin, 2017, p.59 – grifos do autor).
Nisso o reconhecimento de que tanto o sujeito quanto as demais pessoas
da ação não estão indiferentes, mas participantes do ato e em ato vivido, na
relação com a vida nesse caso, a vida específica de uma aula de arte, mas na
dimensão de tudo que compõe a vida de modo expandido. Não de qualquer modo,
o estudante repete em sua fala que o professor envolvia as pessoas na aula, aí se
apresenta um processo de compreensão de um ato estético pelo viés do
envolvimento, do chamado, da convocação consciente à construção da aula, que
não se faz pelo artistaprofessor, mas por todas as pessoas envolvidas na e com
a aula.
O diferencial da aula na fala do estudante trata-se do como o artistaprofessor
estabeleceu um processo de “jogoem sua aula, de como havia envolvimento, cada
participante cumpria o seu papel, jogavam e, ao jogar, foram responsáveis pelos
acontecimentos em aula, sem que o artistaprofessor conduzisse a aula como um
palestrante, sem interatividade com as demais pessoas. Nesse sentido, A aula
estabelece um pensamento em movimento contínuo, porque é um percurso que
faz parte de um todo ainda maior” (Fahrer, 2021, p.8). Ali estavam o eu e outro, que
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devem ser compreendidos não como meras pessoas, mas nas suas participações,
nos seus horizontes próprios.
Ao dizer:
“O professor levava a gente para o laboratório, a maioria dos
professores não tiram a gente da sala, o que eu mais gostei foi isso. Eu não lembro
de ter feito criações, não sei se a pintura se encaixa nisso.”
; ainda a sala de aula é
a cela, o tolher do corpo, a sua domesticação, o castigo. O fora, expresso pelo
estudante revela a liberdade desse corpo, a autorrevelação, a possibilidade de ir
além da “caverna”, da sombra e vislumbrar a luz, a sua plenitude o laboratório
onde as coisas se transformam, onde a experiência da vida e com a vida é
possível.
Quando o estudante diz não lembrar se fez criações na aula de arte é porque
ainda a escola circula no modo da imposição do conhecimento, do endurecimento
e da frieza em relação aos saberes que são diversos, como são diversos os corpos
que os expressam. Fica muito difícil compreender a produção em arte ou em outro
campo do conhecimento como criação, quando não existe uma formação humana
que se volte para a promoção da autoria nos espaços educacionais.
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Adriana Teles de Souza
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FAHRER, Lucienne Guedes. Insistir na presença Tentativas de invenção teatral e
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Urdimento
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SOUZA, Adriana Teles.
Do palco à sala de aula: diálogos entre o ato artístico e o ato
docente
. 2020. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Paraná,
Curitiba, 2020.
Recebido em: 15/01/2021
Aprovado em: 21/02/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br