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A.part.tir da Residência de criação Entoar o
corpo sensível: diálogo epistolar entre
Vitor Lemos e Tiago Porteiro
Vitor Lemos
Tiago Mora Porteiro
Para citar este artigo:
LEMOS, Vitor; PORTEIRO, Tiago Mora. A.part.tir da Residência de
criação Entoar o corpo sensível: diálogo epistolar entre Vitor
Lemos e Tiago Porteiro.
Urdimento
– Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0103
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diálogo epistolar entre Vitor Lemos e Tiago Porteiro
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A.part.tir da Residência de criação Entoar o corpo sensível: diálogo
epistolar entre Vitor Lemos e Tiago Porteiro
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Vitor Lemos
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Tiago Mora Porteiro
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Resumo
Em setembro de 2021, em Lisboa, ocorreu a Residência Artística
Internacional -Entoar o corpo sensível - orientada por Carlos Simioni (Lume
Teatro) e Stephane Brodt (Amok Teatro). Os pedagogos-investigadores-
artistas Tiago Porteiro e Vitor Lemos dela fizeram parte. O primeiro participou
nas práticas enquanto o segundo as observou. Foi a partir deste diferente
posicionamento que os autores desenvolveram conjuntamente uma reflexão
em formato epistolar. Nas cartas abordam-se noções de corpo sensível e
suas implicações nos processos de formação, tal como considerações sobre
metodologias de investigação-criação do/a ator-atriz. No remate da conversa
o tema da “(des)educação” surge através de um diálogo mais direto,
associando-o a temáticas disseminadas ao longo das cartas.
Palavras-Chave:
Residência. Corpo-sensível. Artes performativas. Diálogo
epistolar. Processos de criação do/a ator/atriz.
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Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Maria Tereza Carneiro Lemos. Doutora em Letras
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO). tetelemos6@gmail.com
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Doutor em Letras/Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC-RJ -2016) e Mestre em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO-
2000). Professor auxiliar convidado da Universidade de Évora (UEVORA/Teatro). Investigador do
CET/ULISBOA. vitorlemos66@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7728375569747689 https://orcid.org/0000-0003-2842-4027
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Doutor (2006) e Mestre (1996) em Estudos Teatrais pela Université de la Sorbonne Nouvelle. Percurso que
articula atividade académica com a de pedagogia e criação (ator e encenador). Desde 2014 é Prof. Auxiliar
com nomeação definitiva na Universidade do Minho (UM)/Teatro. Investigador do CEHUM/NIEP.
tiagoporteiro2@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/1689479632258956 https://orcid.org/0000-0001-5052-9787
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From residency for creation Toning the sensitive body: epistolary
dialogue between Vitor Lemos and Tiago Porteiro
Abstract
In September 2021, in Lisbon, took place the International Artist Residency guided by
Carlos Simioni (Lume Teatro/Campinas) and Stephane Brodt (Amok Teatro/Rio de
Janeiro), Toning the sensitive body. The pedagogues-researchers-artists Tiago
Porteiro and Vitor Lemos were part of it. The first carried out the proposed practices
and the second observed them. It was from this different positioning that the authors
jointly developed a reflection in epistolary format. In the letters, notions of sensitive
body and its implications in the processes of formation are discussed, as well as
considerations about methodologies of research-creation of the actor-actress. At
the end of the conversation the theme of "(un)education" appears through a more
direct dialogue, associating it to themes disseminated throughout the letters.
Keywords
: Residency. Sensitive body. Performance art. Epistolary dialogue.
Actor/actress creation processes.
De la residencia para la creación Tonificación del cuerpo sensible:
Diálogo epistolar entre Vitor Lemos y Tiago Porteiro
Resumen
En septiembre de 2021 ocurrió en Lisboa la Residencia Internacional de Artistas
“Entonar el cuerpo sensible”, conducida por Carlos Simioni (Lume Teatro/Campinas)
y Stephane Brodt (Amok Teatro/Rio de Janeiro). Han tomado parte de ella los
pedagogos-investigadores-artistas Tiago Porteiro y Vitor Lemos. El primero realizó
las prácticas propuestas y el segundo las observó. A partir de este posicionamiento
diferente, los autores desarrollaron conjuntamente una reflexión en formato
epistolar. En las cartas se discuten nociones de cuerpo sensible y sus implicaciones
en los procesos de formación, así como consideraciones sobre metodologías de
investigación-creación del actor-actriz. Al final de la conversación aparece el tema
de la "(des)educación" a través de un diálogo más directo, asociándolo a los temas
diseminados por las cartas.
Palabras clave
: Residencia. Cuerpo-sensible. Artes escénicas. Diálogo epistolar.
Procesos de creación actor/actriz.
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Entoar o corpo sensível
foi o título conferido à residência orientada por Carlos
Simioni
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(Lume Teatro - Campinas) e Stephane Brodt
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(Amok Teatro - Rio de
Janeiro), ocorrida entre os dias 23 e 30 de Setembro de 2021. Sendo Tiago Porteiro
e Vitor Lemos pedagogos-investigadores-artistas interessados nos processos de
criação do/a ator-atriz, participaram na residência a partir de diferentes pontos de
vista: o primeiro experimentou as práticas propostas enquanto o segundo
colocou-se na posição do observador. O que segue é uma escrita processual,
realizada através da troca de cartas, em que a reflexão conceitual é articulada à
experiência do vivido.
Carta 01: Lisboa, 05/12/21
De Vitor Lemos para Tiago Porteiro
Caro Tiago,
Preciso dizer que esta iniciativa me causa algum medo. Uma
Escrita
performativa
, como você mesmo vem chamando, é um grande desafio para mim.
Se, por um lado, é uma oportunidade para me desarmar e me lançar em zonas
pouco ou nada familiares quando se trata da produção acadêmica -
tradicionalmente cercada de regras, exigências de rigor, responsabilidades - por
outro, como acontece quando estou diante de uma novidade, resisto. Espero
sustentar até o fim a disposição para me expor, para escrever a partir do que não
sei, para dar visibilidade às minhas incertezas, enfim, para que esta nossa troca
seja um exercício de escuta entre dois pedagogos-investigadores-artistas.
É certo que não sabemos aonde vamos chegar, mas sabemos de onde vamos
partir. A nossa conversa terá como pano de fundo as ideias e práticas propostas
na residência
Entoar o corpo sensível
. Não foi por acaso que nos reencontramos
ali. Além do interesse comum pela criação do/a ator/atriz, sabemos das
4
Carlos Simioni, ator-pesquisador-diretor, fundador do Lume junto com Luís Otávio Burnier.
http://www.lumeteatro.com.br/
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Stephane Brodt, ator-pesquisador-diretor, fundador do Amok Teatro junto com Ana Teixeira.
http://www.amokteatro.com.br/
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convergências dos nossos pontos de vista. Nós nos conhecemos em 2019, num
evento em Lisboa organizado pelo
Estudos em Companhia
- coletivo do qual faço
parte junto com mais 3 artistas, professores e investigadores: André Paes Leme,
Helena Varvaki e Zé Luiz Rinaldi. Estudar em companhia é privilegiar o convívio na
formação, na investigação e na criação artísticas. A iniciativa realizada em Lisboa,
para a qual você foi convidado a orientar uma das sessões, foi chamada de
Diálogos para o ator
por conta dessa disposição à partilha. Você ofereceu uma
sessão que me marcou muito. Por isso, aquele primeiro encontro também
representa para mim o início de uma aproximação que espero prosseguir para
além desta conversa.
Caro amigo, 26 anos, comecei a trabalhar num curso profissionalizante de
atores e atrizes no Rio de Janeiro.
6
Ali, comecei a me deparar com questões como:
o que e como o/a ator/atriz cria? O que e como o/a professor/a ensina? Quando
jovens, nos cercamos de certezas, mas o tempo nos mostra a complexidade das
perguntas acima. Pois em 2003, o curso se transformou num bacharelado e eu fui
nomeado coordenador e responsável, junto com os demais professores, pela
elaboração de um projeto pedagógico. As perguntas acima, até então enfrentadas
por mim no universo da sala de aula, agora eram postas na criação de um
programa que pretendia formar o/a ator-atriz. Com o passar dos anos, o projeto
foi sendo modificado inúmeras vezes. Como enfrentar a complexidade do desafio
sem a experimentação permanente?
passaram 5 anos que migrei para Portugal e deixei a coordenação do curso.
Encontro-me, hoje, do outro lado do Atlântico debruçado sobre as mesmas
questões. Elas vêm sendo tratadas no estúdio
O Canto do Bode
7
, um espaço
laboratorial da minha investigação no Centro de Estudos de Teatro da Universidade
de Lisboa.
8
O corpo ali é questão recorrente e o Lume Teatro e o Amok Teatro são
dois exemplos do que de mais consistente no Brasil no que diz respeito à
investigação dos processos de criação do/a ator/atriz.
6
O Curso de Formação de Atores era oferecido no Centro Universitário da Cidade (UniverCidade), Rio de
Janeiro, e foi extinto em 2016 como Curso de Teatro (bacharelado).
7
https://www.ocantodobode.com
8
https://www.ceteatro.pt
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Eu sabia que a residência seria exigente fisicamente e, portanto, pedi para
não fazer as práticas. Na realidade, sempre que possível, participo das formações
como observador. Eu não me considero ator, não me sinto ator, não tenho prazer
em atuar, o que me fascina é assistir a um/a ator/atriz em ação e, junto dele,
experimentar modos que possam facultar a realização de uma ação viva. No
entanto, por vezes, me pergunto se posso cumprir este papel sem me
experimentar naquilo que proponho. Esta dúvida me inquieta, e me inquietou
novamente quando vi você, que tem a mesma idade que a minha, se arriscando,
se expondo através das práticas, enquanto eu me preservava na cadeira, por trás
da caneta e do caderno de anotações.
Querido Tiago, nesta carta busquei deixar os dedos e o pensamento soltos.
Fico ansioso pelo seu retorno a partir do qual, espero, seguirei nessa aventura que
já está deixando um saboroso frio na barriga.
Um forte abraço,
Vitor Lemos
Carta 02: Guimarães, 13/12/21
De Tiago Porteiro para Vitor Lemos
Caro Vitor,
Fiquei entusiasmado ao receber a tua carta pois ela representa também o
primeiro passo de um diálogo que decidimos encetar. No nosso encontro
preliminar (
on-line
) o formato epistolar não terá sido senão equacionado, mas o
teu “gesto” concretiza a direção. Em todo o caso, aceito de bom grado a proposta,
até porque ela me reenvia para o território da imprevisibilidade e do não saber
devido ao desuso. Ao conceito de
Escrita Performativa
associo a permissão para
desenvolver uma redação “vivencial” e onde conhecimentos subjetivos e tácitos
se podem concatenar com outros mais alicerçados. E isso agrada-me e alivia-me!
O tom receoso que encontrei na tua carta surpreendeu-me. Pareceu-me que
te interrogas, na qualidade de investigador-pedagogo-artista, sobre se a linguagem
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intimista e dialógica que as cartas demandam será a mais credível e a mais
ajustada para elaborar uma reflexão escrita no domínio das artes performativas.
Pergunto-te: experimentar a partir da prática não terá consequências no tipo de
escrita que elaboramos?
Nos processos de reflexão sobre o campo da atuação cénica, procuro uma
escrita que seja mais processual, que conta de um pensamento em devir e que
possa articular o sensível com a ebulição e o tateamento. Explorar as
potencialidades de uma escrita assim formulada torna-se para mim imperativo,
até porque no meio académico, onde nós os dois também nos movimentamos,
existe, atualmente, abertura suficiente para validar tipos diferenciados de
conhecimento, nomeadamente os que advêm da investigação artística. E, para
suavizar ainda mais o teu receio, quero ainda lembrar-te que a revista para a qual
escrevemos contempla formatos menos “normalizados” (debates, relatos,
entrevistas e dramaturgias). Inserindo nessa área este nosso contributo, teremos
uma margem mais ampla para arriscar.
E que bom que foi teres na tua carta avivado a memória do nosso primeiro
encontro! Sinto, como tu, que
Diálogos para o ator
estabeleceu, entre nós, um
vínculo. Para o facto terá também contribuído, tanto a qualidade dos participantes
como a dimensão afetiva e humana que nesse encontro circulou. O desenho
inovador do evento combinou muito bem a experimentação prática com a
reflexão, e terá isso tido também influência na qualidade das trocas que
realizámos. E não foi por ter estado envolvido um grupo restrito de artistas-
investigadores-pedagogos, muitos deles conhecidos entre si, que a confrontação
de pontos de vista deixou de existir! São formatos e contextos como estes em que
estou interessado investir quando se trata de investigar/partilhar no campo das
artes cénicas. Poderemos pensar que estamos perante dispositivos de
(des)educação porque ação corpórea e reflexão, conhecimento e partilha de afetos
são tratadas enquanto dimensões em simbiose?
Amigo Vítor, entre nós teremos muitos temas para poder desenvolver a nossa
conversa. Constato, por exemplo, que
Diálogos para o ator
envolveu a participação
de artistas-investigadores-pedagogos, tanto brasileiros como portugueses, tal
como a residência artística que nos voltou a juntar. Existem muitos outros
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intercâmbios interculturais entre Portugal e o Brasil que, nos últimos anos e no
âmbito das artes performativas, têm tido lugar. Como este trânsito de pessoas e
saberes alunos, pedagogos, artistas está a transformar, tanto o tecido artístico,
como a paisagem da investigação e da formação, nestes dois países? Tu que
conheces bem as duas realidades, o que pensas sobre esta situação?
Na tua carta referes ainda um outro assunto que poderíamos desfiar, o facto
de teres assumido, num determinado momento do teu percurso, a direção de um
programa formativo em teatro. Pois digo-te que eu também passei por essa
experiência; e curiosamente, dirigi por vários anos o curso de teatro da
Universidade de Évora, onde tu agora lecionas! No âmbito da formação levantas
na tua carta questões pertinentes e essenciais. Mas, abordá-las, desde já, não me
permitiria reagir a interrogações mais íntimas e pessoais que expressas. A
determinado momento partilhas o seguinte: “por vezes, me pergunto se posso
cumprir este papel (investigar os processos do ator/atriz) sem me experimentar
naquilo que proponho”. Encontro em mim ressonâncias desse questionamento.
Pergunto-me muitas vezes: ter enveredado por uma carreira académica dificulta
a pertinência da investigação que desenvolvo no domínio da arte do ator? Faço
um grande esforço para não me “arregimentar” em modelos mais “canónicos” do
que é ser professor universitário e por isso, tanto quanto possível, participo nestes
laboratórios de experimentação. Ou seja, as nossas obrigações académicas
dificultam um fazer artístico continuado e, por isso, é neste tipo de residências
que consigo satisfazer, em parte, este meu ímpeto vital de me “reciclar” através
da prática. Vivendo estas participações com um modo de resistência, não
poderemos aqui falar de uma atitude de (des)educação?
Vitor, temos de saber valorizar as especificidades de um percurso que
procura combinar, em diferentes “doses”, a investigação com a pedagogia e estas
com a criação. E não nos podemos esquecer ainda de que existem, na realidade,
muitos “modelos” de se ser ator/atriz, tal como muitas metodologias possíveis
para dar “corpo” ao pedagogo-investigador. Enfim, o teu percurso e os teus
contributos têm demonstrado que não é imprescindível colocar-se diretamente
em jogo para desenvolver uma reflexão sobre a arte da atuação! Este aspeto a que
te referes levanta ainda, a meu ver, uma reflexão sobre o “casamento” entre o
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fazer e o analisar, o escrever e o atuar. Não será na interseção dessas esferas, na
sua complementaridade e não na sua oposição, que se encontra o nosso desafio
de conjugação pedagogo-investigador-criador? Parto do princípio que a prática
pela prática não é garante de aprendizagem e que, portanto, os exercícios
analíticos da observação, tal como o gesto perspicaz de dissecação dos processos,
são imprescindíveis para quem ambicione aceder à consciência crítica do que
estamos a fazer. Acho, ainda, que o processo de análise exige algum modo de
distanciamento, algum mecanismo de desdobramento no interior da perceção.
Muitas áreas do conhecimento poderiam convocar-se para alicerçar o que aqui
insinuo, como, por exemplo, o poder que hoje se atribui à visualização da ação
como estratégia de aprendizagem tu, quando estás a observar, não te sentes,
muitas vezes, como se estivesses a fazer? tal como, numa outra dimensão, a
experimentação que alguns autores estão a desenvolver no âmbito da formação
do intérprete e onde se exploram as relações dinâmicas e profícuas entre escrever
e fazer
9
. Tudo isto para te dizer que me parece evidente que observar e escutar,
são ações cruciais para quem quer perceber e analisar os processos e os
mecanismos do/a ator/atriz. Anseio, sem demoras, conhecer as perspetivas de
análise extraídas do teu ato de observação, tal como as notas que foste
produzindo ao longo das sessões!
Ao sentir chegar o fim desta carta, apercebo-me de que nela não incluí uma
análise mais específica sobre o modo como vivenciei as propostas da residência
que decidimos analisar. Para nos aproximar do tema do dossier da revista, te
pergunto: relativamente à corporeidade cénica, será possível diferenciar
pressupostos e/ou visões entre Carlos Simioni e Stephane Brodt, tendo em conta
os exercícios que cada um deles propôs?
É assim que te relanço o jogo.
Com amizade e estima,
Tiago Porteiro
9
Veja-se o trabalho de Cassiano Quilici, nomeadamente no âmbito do Laboratório de Dramaturgia e Escritas
Performativasver: https://www.iar.unicamp.br/labdrama/
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Carta 3 - Petrópolis, dia 23/12/21
De Vitor Lemos para Tiago Porteiro
Caro Tiago,
Início a retomada desta nossa conversa comentando o que pode ter sido um
mal-entendido: eu não tenho a menor dúvida quanto à pertinência e à potência
que a “linguagem intimista, dialógica e ‘fluída’ que as cartas, por norma,
demandam” - como você tão bem se refere a elas - podem conferir à reflexão
escrita em torno das artes performativas. O receio manifesto nasce do desafio que
representa essa escrita processual que busca (usando novamente as suas
palavras) “dar conta de um pensamento em devir” e que “possa articular o sensível
com a ebulição e o tateamento”. Manifestar o meu receio é um modo de aceitá-
lo. O “medo” é um aspecto importante da criação: não o “medo” que nos paralisa
diante do desafio, mas sim, o “medo” que revela um território novo e desconhecido
no qual escolhemos avançar. O exercício a que estamos nos propondo, pensar
com a alteridade, nos lança em zonas inseguras e o meu medo não é mais do que
a indicação de que seguimos no caminho certo.
Avanço para o final da sua carta, quando você me pergunta sobre uma
possível diferença entre as perspectivas de “corpo cênico” presentes nas práticas
orientadas por Simioni e por Stephane. Observo uma afinação entre os dois
pedagogos. Não quero afirmar que não existam diferenças, mas não sou capaz de
apontá-las com clareza. Não quero sugerir também, que a convergência seja um
atributo daquela parceria. Divergências podem ser potentes, como temos
ressaltado insistentemente. No caso em questão, elas seriam até prováveis. Afinal,
Stephane e Simioni são artistas investigadores com longas trajetórias percorridas
em diferentes grupos.
No entanto, um primeiro encontro profissional entre os dois vem ocorrendo
5 anos, através de um exercício pedagógico bipartido que acontece no APA -
Ateliê de Pesquisa do Ator
10
, iniciativa do SESC/Paraty. Nesse ateliê, eles vêm
reunindo artistas de diferentes regiões do Brasil na criação de uma metodologia
10
http://atelieator.blogspot.com
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de trabalho inédita para a atuação. Esta investigação metodológica, segundo
Simioni, nasce justamente no “corpo cênico” como questão. O interesse é a
experimentação de modos de acessar o que Simioni chama de “corpo sutil” do
ator-atriz. Possibilidades encontradas no ateliê foram organizadas num conjunto
de “técnicas” e “ferramentas” que, segundo Simioni e Stephane, permitem ao
ator/atriz uma qualidade psicofísica possível de ser aplicada em qualquer
circunstância de criação.
11
Uma mostra desse material foi apresentada em Lisboa
na residência Entoar o Corpo Sensível, da qual nós participamos, tendo sido você
um “fazedor” e eu um “observador”.
O nome escolhido para a residência sugere, primeiramente, que o “corpo
cênico” é um “corpo sensível” que pode ser resgatado da letargia cotidiana através
de estratégias conscientes. Enquanto Simioni demonstrou e orientou a
experimentação de algumas estratégias relacionadas ao que ele apresentou como
“criação de campos energéticos”, Stephane orientou o entoar do “corpo sensível”
dos artistas participantes através de cantos tradicionais. Este trabalho parece ser
inspirado naquele desenvolvido por Grotowski e continuado por Thomas Richards
e Mario Biagini no Workcenter de Pontedera.
12
Este “corpo sensível” se apresentou
à minha observação, tanto nas propostas de Simioni como nas de Stephane, como
um composto material (tecidos, órgãos e sistemas) e imaterial (energético). Sua
solidez é contraposta à vibratilidade e seus limites estão expandidos para além da
carne. Nestas condições, o corpo sensível é um corpo conectado e atravessado
por múltiplos agenciamentos que o constitui e o regenera intermitentemente com
a menor intervenção consciente possível do sujeito-ator/atriz. Trata- se de um
corpo estranho, pois rejeita identidades e o uso meramente funcional que constrói
hábitos e automatismos. O que você pensa a respeito, Tiago? Você, que
experimentou na carne as propostas, que mergulhou nos “campos energéticos” e
nos cantos, teria alguma consideração a fazer em relação ao que foi observado
por mim? Muito me interessaria conhecer um ponto de vista divergente, ou um
11
Todas as informações foram obtidas do material institucional do SESC/Paraty disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=sVHPayxErbo.
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https://www.theworkcenter.org
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aspecto que tenha me escapado e que a sua experiência de “fazedor” possa me
revelar.
Devolvo a você outras questões que me parecem interessantes de serem
partilhadas. A primeira: você vislumbra a possibilidade dos exercícios e práticas
que você experimentou atenderem a atrizes e atores em qualquer circunstância
de criação, como sugere, ao menos, Simioni? Lembro de ele fazer comentários a
esse respeito no decorrer da residência, comentários que podem também ser
encontrados no documentário institucional do SESC/Paraty disponível na rede. É
possível que existam tais práticas? Esta questão, de alguma forma, acaba por
voltar à já colocada na carta anterior e que diz respeito aos processos formativos
do/a ator/atriz em escolas oficiais.
A outra questão: como você recebe o uso das palavras “técnica” e
“ferramenta” para a criação do/a ator/atriz? Confesso que eu não vejo com
simpatia o uso destes termos, pois sugerem - ainda que não seja a intenção - que
a criação do/a ator/atriz está voltada para resultados antecipados e possíveis de
serem assegurados. Depois, se entendemos que a “ferramenta” do/a ator/atriz é o
corpo, ou seja, o/a ator/atriz usa o corpo para um determinado fim, não estamos
mais uma vez cindindo o corpo, conferindo a ele uma dimensão funcional e
utilitária que contraria a perspectiva de “corpo sensível” trabalhada na residência?
Ainda que não seja um imperativo e os termos em questão possam ser
contextualizados de outros modos, não é perigoso usá-los, uma vez que fazemos
parte de uma civilização que tende a otimizar todos os aspectos da vida através
de noções como “controle”, “eficiência” “velocidade”, “produtividade”?
Fico no aguardo do seu retorno, curioso em relação à sua perspectiva do que
foi aqui tratado e ao próximo passo a ser dado nesta nossa reflexão.
de Itaipava, Petrópolis, às vésperas de um Natal estranhamente frio para
o padrão brasileiro, desejo a você e à sua família boas festas!
Um forte abraço,
Vitor
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Carta 04 - Astúrias, 31/12/21
De Tiago Porteiro para Vitor Lemos
Caríssimo Vitor,
Impõe-se uma justificação pelo meu atraso: o período de festas tem
dificultado a escrita, pois encontro-me com a família numa casa na montanha.
Esta tem sido também uma oportunidade para estar com a nova sobrinha, a
Magnólia. Quando, dois anos, recebi a informação do seu nascimento estava
nesta mesma casa. Estar aqui com ela tem um quê de ritual. Será isto influência
do último livro que li Byung-Chul Han,
Do desaparecimento dos rituais?
Refere
o autor que, nos dias de hoje, o tempo é cada vez mais vivido de forma linear e
serial (sem o experimentar da duração) e que isso provoca o desaparecimento de
momentos simbólicos onde a vivência em comum induz à renovação. Explicita a
determinada altura do texto, que “os rituais geram um saber e uma memória
corpórea, uma identidade corporalizada, uma ligação corporal” (Han, 2020, p.20-
21). Tem sido muito extraordinário conhecer melhor a Magnólia, acompanhar as
suas conquistas, descobertas e aprendizagens! Esta convivência faz-me renovar o
que refiro várias vezes nas minhas aulas: grandes referências para o/a ator/atriz
são as crianças e os animais. Não são mais do que referências simbólicas
idealizadas que querem senão evidenciar o facto de elas/eles responderem a
quase tudo de forma sensorial e intuitiva. Na realidade, salienta-se a prevalência
de uma atenção aguçada, a curiosidade e mesmo o instinto de sobrevivência à flor
da pele.
Espero que possas perceber a dificuldade que tenho tido para me sentar em
frente do computador para contigo conversar.
A partir do momento em que recebi a tua carta surgiram-me muitas ideias,
e isso criou-me uma certa ansiedade. Até porque as questões que estamos a
abordar são complexas e demandam uma acuidade no trato. Talvez seja esse o
medo a que fazes referência! A imprevisibilidade não será o “ingrediente” que
condimenta também o prazer da superação? Parece-me acutilante repetir aqui a
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tua “máxima”: “Manifestar o meu receio é um modo de aceitá-lo”. E de superá-lo,
acrescentaria eu!
Volto ainda ao nosso posicionamento diferenciado em
Entoar o corpo
sensível
eu o “fazedor” e tu o “observador” para partilhar contigo outras
dimensões da questão que, entretanto, me surgiram: interessam mais as
interseções entre dois “estatutos” do que, propriamente, entendê-los enquanto
entidades opostas. As diferentes posturas não serão mais, em termos de
conhecimento, do que pontos de vista que se devem articular, pois observar não
é um ato passivo e distanciado, relativamente a um objeto fixo e estável. Observar
com acutilância não é, além disso, um processo que se cinge à modalidade visual,
implicando igualmente o envolvimento de outros sentidos, como o escutar e o
sentir. Enfim, para que o pedagogo consiga partilhar um conhecimento “incarnado”
é fundamental que seja afetado pela experiência; e isso não se opõe ao que referi
na carta anterior: a necessidade de existir uma certa distância para podermos
verbalizar e tornar consciente aquilo que fazemos. Existem, portanto, diferentes
modalidades de conhecimento, e é essa pluralidade que me parece importante
salientar. E será, justamente, na interseção dessas diferentes modalidades que
alicerçamos a especificidade do nosso percurso equilibrismo instável entre o
pedagogo, o investigador e, em alguns momentos, o/a ator/atriz-criador/a.
Vitor, nesta carta, e de forma mais incisiva, vou procurar direcionar a minha
atenção para aspetos mais específicos da residência Entoar o corpo sensível por
exemplo, eventuais diferenças entre Simioni e Brodt em termos de modelos de
“corpo cénico”. Mas sempre questões de procedimento e colaterais que se
atravessam no caminho e que me parecem também interessantes para partilhar.
Por exemplo, quando começo a pensar na Residência surges-me como
imagem no lugar habitual que ocupavas, junto a uma das janelas, ora sentado
numa cadeira ora diretamente no chão, como que dissimulado por entre os sacos
que trazíamos para a sala e que ali colocávamos para deixar todo o restante
espaço desprovido de qualquer outro “ruído”. Por que terás escolhido aquele
posicionamento? Para mim eras, naquela sala, uma presença-ausência, e sendo o
teatro o lugar de onde se vê, tu jogavas o papel do observador/espectador. Quando,
por instantes, entravas no meu campo de atenção, ativava-se em mim uma
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tomada de consciência de um “olhar” exterior, ou seja, em mim produzia-se um
qualquer “distanciamento” onde uma reflexão incorporada tinha lugar. Tudo isto
me lembra de uma outra também uma “máxima”: na sala de ensaios deveremos
sempre integrar a presença do público, mesmo que de forma imaginária.
Sendo esta nossa conversa igualmente um relato, às informações de
enquadramento que avanças na tua anterior carta quero acrescentar outros
dados. Começo por sinalizar algumas características do espaço da residência, pois
penso que essa dimensão é relevante na qualidade do trabalho que efetuamos.
Ao entrar no Palácio Pancas Palhas senti um cuidado especial no modo como tudo
se apresentava, apesar da “patine” que sobressai devido ao estado de conservação
da casa. Depreende-se uma dinâmica artística.
13
Por entre escadas e corredores
chega-se à sala ampla onde as sessões iriam decorrer. As paredes trabalhadas
refletem uma vivência passada. As duas grandes portas envidraçadas que se
observa em frente dão acesso ao que terá sido um jardim. Durante as sessões, o
canto de um pássaro, os sinos de uma igreja ou a buzina de um navio ecoavam,
por vezes, naquele espaço. Eram tonalidades que se acrescentavam a toda aquela
atmosfera e que tornavam aquele espaço ainda mais propício à experiência
sensorial e à transformação incorporada. Durante sete dias ali trabalhámos, à
razão de 4 horas diárias. No último dia, por razões logísticas, a apresentação
pública do trabalho teve lugar num outro espaço.
14
Relativamente aos
participantes: uns com um percurso mais ligado à dança, outros ao teatro (a
maioria), e ainda alguns outros (em menor número) à música e ao canto. As idades
e os percursos eram também diversos: uns com uma carreira mais consolidada,
outros com um percurso em desenvolvimento; uns mais ligados à pedagogia e à
investigação, outros exclusivamente dedicados à carreira artística. Tu e eu éramos
dos mais velhos. Às diferentes heterogeneidades juntou-se a mescla cultural
(Brasil, Portugal e Equador). Conhecia alguns dos participantes, nomeadamente os
que já tinham sido meus alunos. Fiquei com a sensação de que uma grande parte
das pessoas tinham tido uma qualquer ligação ao trabalho do Simioni, senão
13
O Palácio acolhe, atualmente, a Companhia de dança contemporânea https://www.olgaroriz.com, que, ela
própria, tem uma escola de formação. O mesmo edifício é partilhado por outra escola,
https://www.nbacademia.pt..
14
Casa do Coreto, Carnide.
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mesmo ao trabalho de outros elementos do LUME, e que poucos, conheciam o
trabalho do Stephane, como era o meu caso. Além disso, talvez eu fosse o único
participante que se encontrava geograficamente deslocado.
Decidi aqui partilhar estas informações, nomeadamente pormenores sobre o
espaço onde as sessões decorreram, porque para mim essa dimensão influencia,
e significativamente, a qualidade do trabalho a desenvolver. Haverá pessoas mais
ou menos sensíveis a estes aspetos, mas todos sabemos que as sessões não
começam no preciso momento em que entramos numa sala! O mesmo se passa,
por exemplo, com o material de comunicação que antecipadamente lemos, ou
seja, expetativas que daí resultam e vão influenciar o modo como recebemos
o trabalho proposto. Vejamos o caso desta Residência Artística Internacional, título
que encontrei no folheto de divulgação e que me incentivou a apresentar a
candidatura: ao termo “residência” associei uma situação em que todos os
participantes iriam viver num determinado espaço durante um determinado
período de tempo e que iríamos também, partilhar vivências quotidianas, tais
como cozinhar, comer, conversar, conviver... Se assim fosse, o trabalho iria
expandir-se para além da sala, esbatendo, desse modo, as fronteiras entre arte e
vida. Mas o que, na realidade, aconteceu foi que a maior parte dos participantes
iam “às suas vidas” depois das sessões. A opção tomada em termos de
comunicação poderá ter estado condicionada pelas fontes de financiamento.
15
Referir este aspeto é também um modo de chamar a atenção, e mesmo de
revindicar, a necessidade de existirem contextos e tempos mais longos para se
poder experimentar, em conjunto e de forma convivial, no campo das artes
performativas. Poder usufruir desse tempo de qualidade é uma situação que, nos
dias de hoje, escasseia. Até porque vivemos numa sociedade alicerçada sobre a
produção, onde a dispersão é cada vez mais desmesurada. O caso do APA -
Ateliê
de Pesquisa do Ator
, onde foi possível a Simioni e a Brodt cruzar e aprofundar um
trabalho em conjunto, é um bom exemplo de como essas condições podem dar
bons frutos! Pergunto-te outra vez: modelos de (des)educação não podem ser
pensados a partir destes outros contextos de ação/experimentação artística? Uma
vez que criaste o estúdio O Canto do Bode com o intuito de teres um espaço-
15
Neste caso, a estrutura Iberescena (http://www.iberescena.org).
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tempo de qualidade para desenvolveres uma investigação no âmbito dos
processos do/a ator/atriz, o que terás tu a dizer sobre tudo isto?
Sirvo-me ainda do título
Residência Artística Internacional
para questionar
um outro aspeto que associamos a essa situação: um espaço-tempo onde a
dimensão de criação, mais propriamente dita, seja a matéria nuclear do encontro.
Constatei, no entanto, que nos dois últimos dias é que o plano da criação foi
dominante, por termos consagrado mais tempo, tanto à construção de uma
pequena sequência cénica, como à interpretação. Havia o compromisso de se
fazer uma apresentação pública do trabalho. Agenciaram-se as canções
“tradicionais” que cada um de nós trouxe
16
, atendeu-se à qualidade da nossa
interpretação e articularam-se essas dimensões com algumas ações de
movimentação cénica. Mas o grosso do trabalho, na maioria das sessões, foi
centrado na transmissão de uma metodologia que revelasse o Entoar o corpo
sensível.
Habitualmente, as sessões organizavam-se em duas partes: a primeira,
liderada por Simioni, destinada à ativação de uma visão expandida da corporeidade
(meu vocabulário), e a segunda, liderada por Brodt, predominantemente voltada
para a exploração vocal.
Como vivenciei estas duas proposições de trabalho?
Na minha exposição terei por base a experiência subjetiva vivenciada, e que
não poderá ser, senão, parcelar, tendo em conta o longo trabalho de
experimentação e de sistematização que os dois artistas-pedagogos têm
desenvolvido.
A proposta estruturada por Carlos Simioni tornou-se operativa através de um
conjunto de exercícios, e que foram apresentados com uma progressão
determinada. Às dinâmicas processuais colocadas em jogo, Simioni atribui um
vocabulário específico. Entre outros:
camadas
,
níveis
,
portal
,
campos magnéticos
.
Conhecendo eu o trabalho de base do LUME
17
, o que, em primeiro lugar, me
16
Antecipadamente, foi-nos solicitado que chegássemos à residência com a proposta de uma canção, tanto
quanto possível, do cancioneiro popular do país de proveniência.
17
Ver no cv on-line as relações estabelecidas com o LUME - http://cehum.ilch.uminho.pt/researchers/36
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surpreendeu foi o facto da proposta não se alicerçar numa forte dinâmica de
movimento físico que, habitualmente, exige um significativo dispêndio energético
e que, por conseguinte, conduz a um acentuado estado de exaustão. O primeiro
plano de trabalho que Simioni propôs foi a aprendizagem de uma “gramática”
(minha terminologia) de pequenas ações psicofísicas, que não implicam grande
deslocação no espaço (os pés encontram-se fixos), mas que, em contrapartida,
solicitam um forte engajamento da atenção e da perceção. Ações essas que se
materializam num jogo de
camadas
ou
níveis
(4) de transposição do corpo em
diferentes direções do espaço (frente, trás, esquerda e direita; a estas acrescentou,
mais tarde, a direção vertical e a descendente). A escala com diferentes níveis
define-se a partir da linha habitual da verticalidade (
nível
1- linha de referência) e
culmina no 4, o limite máximo da inclinação antes da queda e da perda do
equilíbrio. Os
níveis
intermédios (2 e 3) encontram-se entre estes dois extremos.
A passagem de um
nível
ao outro desencadeia-se por comando verbal, emitido
por aquele que orienta a sessão. Deste modo, ativa-se em cada participante a
alavanca
corporal propulsora do deslocamento do corpo no espaço. Em cada um
dos 4
níveis
e nas 6 direções, os braços devem agir livremente e em conformidade,
como se fossem prolongamentos de todo o corpo. Em traços gerais, esta foi a
“gramática biomecânica” partilhada, mas o que nela me pareceu ser o mais
inovador foi o enlace que Simioni propõe entre
níveis
e “estados percetivos”, mais
ou menos específicos, correspondentes a cada um dos níveis. O 4, por exemplo,
corresponde a uma atenção que se estende para das paredes da sala e no plano
do infinito, e no 2 a atenção deve circunscrever-se ao espaço próprio e que vai do
centro do corpo à periferia dos braços. Ao longo das sessões fomos explorando
os detalhes e as subtis implicações da sua proposta, ao mesmo tempo que o
pedagogo-artista foi introduzindo outros planos de complexificação, como sejam
as relações paradoxais entre níveis e “estados perceptivos”. Passar, por exemplo,
do
nível
3 ao 1 no plano físico permanecendo, no entanto, na camada percetiva do
nível
de onde se vem (3).
Em todo este jogo de passagens de um
nível
a outro, mudanças de vetores
direcionais, interações paradoxais entre
níveis
e estados, assinalo os elementos
que foram, para mim, os mais mobilizados e conscientes, tendo em conta as
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tarefas processuais propostas e que implicavam, entre vários parâmetros da
perceção, como que uma simultaneidade de sinergias: consciência dos
alinhamentos corporais em movimento; perceção do espaço que envolve
mudanças entre proximidade e distância; perceção do corpo próprio
(proprioceção) a partir de processos subtis de transferência do peso (ao nível dos
pés) e que se conjugam com constantes mecanismos de equilibração de toda a
globalidade corporal. Saliento que, neste caso, o processo coloca em jogo uma
fina tomada de consciência da interação de informações processuais entre
recetores sensitivos endógenos (próprios) com recetores exógenos (externos,
nomeadamente da visão). Em suma, nesta “gramática”, que procura fazer emergir
um
Corpo Sensível
, a correspondência e a interação que Carlos Simioni estabelece
entre
níveis
e “estados percetivos” foi o que mais inovador descortinou, como
antes referi. Se assim não fosse, a sua abordagem poderia assemelhar-se a uma
prática de “escalas” geométricas de movimento que, por exemplo, fazem parte da
formação técnica de base do
Mimo Corporal Moderno
, e que foram concebidas há
décadas atrás por E. Decroux. Tendo por base algumas aproximações realizadas a
este “sistema” (práticas e reflexivas), ao longo do meu percurso formativo,
considero que a proposta de Simioni reformula, de forma significativa, os seus
pressupostos, ou seja, distancia-se de uma visão de corpo que o entende
enquanto entidade em si mesmo e passa a perspetiva-lo enquanto instância
relacional, expandida e continuada, entre ti e o meio do qual fazes parte. Desde
modo, a sua “gramática” prioriza dimensões que vão muito para além da ativação
do corpo físico sem, no entanto, deixar de mobilizar a estrutura músculo-
esquelética. Em suma, o modelo de corpo que alicerça a sua proposta não o
concebe enquanto entidade única e isolada, mas antes como corporalidade
expandida, subtil ou sensível ou, para usar os seus termos, Corpo Sensível –,
que nos faz tomar consciência da “pulsação de vida que circula em cada um de
nós” (Clavel e Legrand, 2018, p.41).
18
Transmutar para esse
Corpo Sensível
implica,
para além do mais, entramos num desses “estados” com caraterísticas muito
particulares, mas cuja definição resiste, a maior parte das vezes, à utilização de
um vocabulário preciso. Arrisco, no entanto, dizer-te, caro Vítor, o que a ele posso
18
[...] ressenti de la vie qui circule en nous. (Tradução: Tiago Porteiro).
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associar a partir das minhas vivências: uma sensação de consciência
tridimensional de habitar o espaço; um estado subtil de conexão e de relação com
tudo o que me envolve e que me permite abertura, receção e reatividade aos
diferentes estímulos existentes; a emergência de uma acuidade diferenciada e que
interconecta uma atenção em constante movimento e outra em que predomina
uma certa clareza e serenidade. Nesse “estado”, identifico ainda um ser/estar mais
consciente da minha presença no mundo. Enfim, “entrar” nesse “estado” implica
sentir-me/integrar um campo de forças que produz dinâmicas de “individuação,
de devir, de criação ou de reorganização de si, acolhendo a diferença, o
distanciamento, o descentramento” (Vadori-Gauthier, 2018, p.72)
19
, e onde, a cada
instante, é possível “saborear” a sensação de interligação.
Estas frases que aqui exponho, e que me ajudaram a dar nome à minha
experiência, encontrei-as num dos livros que acabo de ler, e que muito me tem
ajudado a clarificar aquilo que sinto, penso e procuro
Écosomatiques
.
Penser
l’écologie depuis le geste
(Bardet, Clavel e Ginot, (Org.), 2018). Trata-se de uma
obra, com contributos de vários autores, que tem como referência as práticas
somáticas
20
, entendidas como “espaços de produção de subjetivação, tanto
individuais como coletivos”, e que têm “poder de ação sobre os nossos modos de
vida”, orientando assim os nossos imaginários “e a sua realização numa direção de
novos horizontes de perceção, do ressentir e de invenção do quotidiano” (Bardet,
Clavel e Ginot, (Org.), 2018, p.18)
21
. Por me parecer importante, sublinho ainda o
facto de as perspetivas
ecossomáticas
procurarem definir-se enquanto
abordagens “que tomam em linha de conta as relações de coconstrução e de
coinvenção entre gestos e contextos, entre perceções, pensamentos e afetos”
(Bardet, Clavel e Ginot, (Org.), 2018, p.15)
22
.
19
[...] d’individuation, de devenir, de création ou de organisation de soi, accueille la différence, l’écart, le
centrement. (Tradução: Tiago Porteiro)
20
Termos definido por Thomas Hanna durante os anos 70. Constitui hoje um campo de estudos e de práticas
que se encontra nos interstícios entre arte, ciência, educação e terapia e que entende os domínios sensoriais,
percetivos, cognitivos, motores, afetivos, sociais, políticos e espirituais nas suas sinergias.
21
[...] sont des espaces de production individuels et collectifs de subjectivités [...] un pouvoir d’agir sur nos
manières de vivre [...] et sa alisation vers de nouveaux horizons de perceptions, de ressentis et d’invention
du quotidien. (Tradução: Tiago Porteiro)
22
[…) prenant en compte les relations de coconstruction et de coinvention entre gestes et contextes, entre
perceptions, pensées et affects. (Tradução: Tiago Porteiro)
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21
Explicitado o modelo de “corpo cénico” que senti ativar-se através da prática
proposta por Simioni, quero agora dizer-te que foi no seio desta visão que
encontrei também alguns elementos que me ajudaram a responder à pergunta
que me colocaste relativamente à adequação, ou não, do uso dos conceitos de
“técnica” e “ferramenta” no quadro das propostas que aqui estamos a procurar
analisar. “Ferramenta” não será, definitivamente, o conceito que melhor se
enquadra na transmissão da abordagem
Corpo Sensível
que procurei caraterizar.
Isto porque a visão de corpo que busquei definir atrás não o entende enquanto
objeto ou matéria pré-determinada que possa ser como que “modelada”, mas sim
como interface de passagem entre ti e o mundo, ou seja, essa aceção transmite-
te a sensação de “fazer parte de um todo e de estar/ser um todo”. (Clavel e
Legrand, 2018, p.42)
23
Deste ponto de vista, a aprendizagem de uma técnica não
poderá ser entendida como “ferramenta” que se possa adquirir
independentemente da relação que se estabelece, em cada instante, com os
diferentes contextos onde habitamos. Procurando explicitar melhor: será na
tomada de consciência acerca das relações que, a cada momento, estabelecemos
com o contexto que se vislumbra encontrar alguma proficiência. Talvez possamos,
mesmo assim, falar de uma técnica que se consubstancia na qualidade a-
tensional e inter-relacional e que, por isso, será mais apropriado denominá-la de
antitécnica.
Ao expor o que em mim “ecoou” da metodologia desenvolvida por Simioni,
deixei de parte o que poderá ser um segundo plano da sua abordagem, e que foi
apresentada depois das primeiras sessões:
portal
. Trata-se de uma ‘zona-estado’
da perceção onde, do ponto de vista da ação do ator-atriz, se solicita que reduza
o domínio do voluntário. Uma vez que ‘entras’ ou ‘mergulhas’ no
portal
, Simioni
desafia-te, verbalmente, com indicação de sementes que mais não são do que
sugestões imagéticas ficcionais (deitar-se; ajoelhar-se; a flor; a tristeza; entre
outras) e às quais deves “deixar” que ajam sobre ti.
23
[... de se sentir faire partie d’un tout et d’être un tout. (Tradução: Tiago Porteiro)
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22
Do ponto de vista processual, como o ator-atriz deve ‘dialogar’ com essas
sementes
, tendo em conta os processos de atuação e que visam conduzir a um
qualquer tipo de transformação?
Existem aspetos processuais que foram referidos por ti e que, entre outros,
talvez se encontrem em jogo nessa situação “controlo”
vs
. “não controlo”,
“identificação”
vs
. “representação”. Pergunto-te, assim: poderão esses “conceitos”
ajudar-nos a pensar os processos de atuação quando nos encontramos no
“território” do
portal
? E tendo em conta que considerei dois planos da sua
metodologia o primeiro respeitante à “gramática” de ações e o segundo às
dinâmicas no seio do portal –, gostaria igualmente de te perguntar: o que te apraz
dizer e considerar sobre esta divisão? Consideras, por exemplo, que a primeira
poderá ser entendida como técnica de “base” e que a outra entra mais no domínio
da “interpretação”? Bem sei que uma das tuas grandes referências é o trabalho
desenvolvido por Stanislávski, e por isso te pergunto se esta divisão que faço
poderia ter ressonâncias na divisão de planos que existe no sistema construído
pelo reformador russo:
o trabalho sobre si e o trabalho sobre a personagem
. Que
articulações poderemos fazer entre esses mesmos planos? Reconheço que te
coloco demasiadas e complexas questões...
Caro Vitor, esta carta já vai demasiado longa, mas não queria terminá-la sem
deixar de partilhar algumas considerações relativamente às outras questões que
me lançaste. Eis o que posso dizer em tom telegráfico:
Comparação entre modelos de corpo que possam estar na base das
propostas apresentadas pelos dois artistas-pedagogos: caber ao Simioni orientar
a primeira parte da sessão deve-se, em meu entender, ao facto de o seu trabalho
visar uma “expansão” da corporalidade que permite a revelação de uma outra
qualidade/“estado” de presença. Depois de um curto intervalo, ao Stephane
competia entoar esse dito
corpo sensível
que já estaria ativado. A sua abordagem
pelo menos a que foi explorada nas sessões de trabalho – partia de uma visão
do corpo organizada em quatro “centros energéticos” (soalho pélvico, plexo solar,
boca, cimo do crânio) que se situam ao longo do eixo central do corpo. Tendo
como referência cada um desses centros, ele propunha uma exploração sonora:
1) produção de um som, normalmente o “ah!”; 2) o mesmo som, mas prolongado
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23
de acordo com o volume de ar de uma respiração; 3) balbucios que exploram a
articulação; 4) palavra. Progressivamente, de baixo para cima, realizávamos essa
sequência em cada um dos 4 “centros” ou “canais”. Entendi esse trabalho como
fase de “abertura” da voz e/ou de “limpeza” desses mesmos “centros” ou para
tornar possível, posteriormente, uma circulação sonora-energética entre o “canal
central” que, entretanto, teria sido “desobstruído”? chegados, estaríamos em
condições de desenvolver “improvisações” vocais, quer individualmente quer em
conjunto. Mas esse outro “degrau” não foi senão timidamente explorado. Importa
considerar que a minha experiência na abordagem de Brodt não foi tão reveladora,
razão pela qual me inibo de analisá-la com mais propriedade e de forma mais
detalhada e consequente. Poderei, no entanto, especular a partir de indícios:
parece-me que na sua visão de corpo predomina uma conetividade com “matérias
líquidas” e que, através dos processos vocais, se ativam fluxos energéticos. É num
corpo alicerçado em “fluidos energéticos” que me parece que a sua proposta se
funda; e que daí resultará uma maior probabilidade de se mobilizarem zonas mais
“inconscientes” da corporalidade. Que ressonâncias terá isto em ti? A partir do que
foi referido, que diferenças e/ou complementaridades poderão existir entre estas
duas abordagens?
De forma muito sintética, diria: no trabalho inicial predomina uma ativação a
partir das extremidades e numa relação de interface com o meio, enquanto na
abordagem vocal a exploração se produz a partir do centro do corpo, de dentro
para fora; e como tal, esse corpo será mais entendido como entidade “separada”
e, portanto, menos concebido enquanto entendida relacional de interface com o
meio. Será a voz essa “interface”?
Como vês tu estas diferenças e complementaridades que aqui identifico?
Sobre a pergunta que me colocas no sentido de se poder opor este “corpo
cénico”
sensível
a um certo “corpo quotidiano”: não me parece que seja esse o
caminho mais profícuo. Talvez a diferença que se possa encontrar se situe mais a
nível da tomada de consciência e também no exercício da intencionalidade. Senão
vejamos: no nosso quotidiano uma variedade significativa de “estados” de corpo
que emergem, quer seja porque nos acontece discutir, veemente, com alguém que
se atravessa no nosso caminho, quer seja por nos encontrarmos fraternalmente
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entre amigos. Nesse contexto somos induzidos pela situação pois o nosso enfoque
não se situa na tomada de consciência que estamos a agir/jogar para um “público”
que se encontra para observar/presenciar a nossa prestação. Em sentido
inverso, em situação de jogo o/a ator/atriz produz um deslocamento ao nível da
intencionalidade com o intuito de se dar a ver. Este será, para mim, o deslizamento
mais fundador do corpo cénico. Em termos de poéticas, poderemos depois
privilegiar a predominância de uma corporalidade mais ou menos “dilatada”, mais
ou menos intensa, mas essas várias “qualidades” podem ser sempre
experimentadas, quer em cena quer no nosso dia-a-dia.
Entoar o corpo sensível
,
que almeja ativar um certo “estado” específico de presença, não poderá ser senão
uma opção específica de entender o “corpo cénico”, ou seja, ela nunca será uma
visão “universal”. Para neste discurso situar-me, digo-te, por exemplo, que
atualmente uma das minhas linhas de interesse procura acontecimentos
performativos, entendidos enquanto encontros de convivialidade, como refere
Jorge Dubatti. Estamos, assim, perante uma poética que visa esbater fronteiras
entre arte e vida, ou seja, interessa-me poder olhar para o nosso dia-a-dia em
termos das suas potencialidades estéticas do com-viver. Ao ator/atriz-performer
que é colocado em jogo nesta situação, solicita-se outras competências ao nível
da sua corporalidade, nomeadamente, porque entre ele e o público se procura o
estabelecimento de uma relação, onde a troca e a proximidade se privilegiam. É
por tudo isto, Vítor, que eu acho que não técnicas “neutras” pois, cada uma
delas está sempre marcada por uma certa visão de corpo cénico e por uma
determinada poética e estética de entender a cena.
Não sei o que te dizer para terminar. Assim ficamos.
Que o novo ano seja desafiante e que nos alimente também esta partilha.
Um caloroso abraço,
Tiago Porteiro
Carta 05 - Rio de Janeiro, 09/01/22
De Vitor Lemos para Tiago Porteiro
Caro Tiago,
A.part.tir da Residência de criação Entoar o corpo sensível:
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25
É sempre um prazer ler as suas cartas. Entre outros aspectos, me
impressionou, nesta última, o modo minucioso com que você descreveu a
residência. O cuidado e o alcance de sua descrição vai, de fato, muito além de um
registro documental detalhado. Quando inseridas em um universo mais
abrangente, as propostas trazidas por Simioni e Stephane deixam de ser um
“produto” autônomo às circunstâncias em que elas acontecem. Se entendemos a
criação do/a ator/atriz como uma ação viva é porque a ação não apenas realiza
circunstância, mas também é por ela realizada. A circunstância viva precisa
considerar a vida em sua mais abrangente perspectiva possível e este foi o
exercício que você me presenteou com a sua descrição. Digo por mim: como é
fácil desprivilegiar as circunstâncias que não interferem objetivamente no
processo de criação/investigação da/o atriz/ator; como é fácil, apesar da convicção
em contrário, esquecer que o saber do/a ator/atriz não é impermeável ao conjunto
de inúmeros fatores que fazem da experiência algo irrepetível.
Enquanto escrevo, vem à minha memória uma passagem daquele nosso
primeiro encontro no
Diálogos para o actor
.
24
Durante a conversa com os
participantes do evento que seguiu a sua sessão, você fez referência a uma aranha
que estava ali tecendo uma teia que não existia no dia anterior. Quantas outras
maravilhas teriam acontecido naquela sala, de um dia para o outro, que não
percebemos por não parar para perceber? Foi bonito ver a sua conexão com a
vida agindo no espaço e triste constatar a minha desconexão. Por mais que eu
tenha a convicção de que a ação viva é efeito de uma circunstância dinâmica e
delicada, ainda caio nas armadilhas que reduzem o real ao capturado por uma
percepção demasiadamente automatizada.
São momentos como o da leitura do seu relato, que volto a me espantar com
o imenso e complexo desafio que representa o trabalho
sobre si mesmo
que a
criação performativa demanda por parte daquele que faz e daquele que observa.
Só posso concordar com você: um trabalho desta natureza, que demanda outros
modos de percepção, é possível em espaço-tempo não ordinário. É o que busco
alcançar n’
O Canto do Bode
. Tarefa também complexa, pois os obstáculos são
imensos, muitos deles de difícil solução. Ainda assim, consigo no estúdio, um
24
Este evento, ocorrido em Lisboa, em 2019, foi contextualizado na carta do dia 05 de dezembro.
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ambiente de criação/investigação que não acredito alcançar nos ensaios com
estreia marcada, nem nas salas de aula, pela velocidade e pelo pragmatismo que
normalmente vigoram nesses espaços.
Voltando à residência: mesmo estando ali para observar, eu não seria capaz
de uma descrição tão precisa das práticas propostas e experimentadas quanto foi
a sua. Minha memória é naturalmente fraca, mas eu tinha os instrumentos para
lidar com ela: caneta, caderno e as condições para tomar nota do que acontecia
no momento em que acontecia. Mas não foi o que eu fiz e justifico: é um bom
modo de começar a responder a sua questão quanto ao meu posicionamento na
sala. Quando eu me inscrevi na residência e pedi para ser um observador, tinha a
intenção de assistir a dois artistas-pedagogos do meu respeito trabalhando sobre
questões que também são caras a mim: o “corpo sensível”. Apontei muito do que
se passou, mas privilegiei o registro das ideias, imagens, conexões, inspirações, que
iam surgindo em decorrência do que eu assistia. Enquanto mero registro, entendo
que o meu caderno seja insuficiente. As práticas estão descritas até o limite do
que me pareceu necessário para futuras apropriações.
Estou inteiramente de acordo quando você diz que uma determinada prática
está carregada não apenas de “uma visão do corpo cénico”, como também, de
“uma determinada visão estética da cena”. Logo, minha posição ali era a de um
ladrão que roubava o que me parecia importante para uma circunstância própria
de investigação. “Ladrão” é uma palavra que pode sugerir alguma desonestidade
de minha parte, mas não é disso que se trata: creio ser mais desonesto aquele
que replica o legado dos grandes mestres, do passado e do presente, sem
adaptações ao contexto singular de sua realização artística. Uma prática resulta
de perguntas lançadas a um determinado contexto histórico, cultural, social,
político, econômico, ético, estético, etc. Estranhas são as práticas que não
recebem adaptações quando experimentadas em outros contextos. Como não
lembrar do conselho de Stanislávski a Joshua Logan, quando este último
apresenta o seu plano de levar aos Estados Unidos os modos de trabalho que
conheceu no Teatro de Artes de Moscou?
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25
Nosso método nos serve porque somos russos, porque somos este determinado grupo de russos aqui.
Aprendemos por experiências, mudanças, tomando qualquer conceito de realidade gasto e substituindo-o
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Voltando à sua questão: o local de onde observei foi sugerido por Simioni e
Stephane. Você o descreve como o lugar onde todos os participantes deixavam os
pertences inúteis à prática, livrando o restante da sala “de um outro qualquer
‘ruído’”. É verdade. Penso que o mesmo se aplica a mim. Um observador - que não
o pedagogo-encenador-investigador - não é uma presença estranha, ainda que
consentida? Diante da vulnerabilidade de um/a ator-atriz em processo de criação,
Brook se sente responsável em estabelecer regras que valorizem a proteção
desses artistas.
26
Não teria sido justamente esta a intenção de Simioni e Stephane
ao escolherem aquele espaço para a minha observação? Provavelmente, se a
escolha fosse minha, ela teria recaído sobre o mesmo local pelo meu desconforto
em ser esse “olhar externo”.
Desde a sua primeira carta, você vem enfatizando o quanto, em sua
perspectiva, “fazedor” e “observador” não são instâncias opostas, mas “esferas
complementares que importa saber articular”. No entanto, percebo, assim como
Brook, que o lugar de quem observa é menos vulnerável do que o lugar daquele
que faz. Se concordarmos com Novarina que o/a ator-atriz “é o único lugar onde
tudo aquilo acontece e é só” (2009, p.20), então é preciso mesmo resguardar o seu
espaço de criação com certos cuidados. Fundamentalmente, a articulação
“fazedor” e “observador” deve se dar sobre acordos muito bem estabelecidos e
laços de confiança. No caso de nossa residência, eu não conhecia pessoalmente
Simioni e Stephane, não conhecia a maior parte dos artistas inscritos, não houve
oportunidade para apresentações. Muitos vieram a mim, no decorrer dos dias da
residência, perguntar porque eu não participava em ação. Se eu tivesse a certeza
que todos veriam em mim uma presença-oportunidade a participar dos
ajustamentos das práticas em suas investigações, tal como você me viu e detalhou
em sua última carta, penso que teria ficado mais relaxado. Estarei sendo eu
exagerado ao condicionar a saudável relação observador-observado à pertinência
para todos de uma “presença externa”? Quanto ao fato de alternar minha
por alguma coisa nova, algo cada vez mais próximo da verdade. Vocês devem fazer o mesmo. (Stanislavski,
1970, p.07)
26
Percebi que a presença até mesmo de uma única pessoa em algum lugar no escuro atrás de mim é uma
distração contínua e fonte de tensão. Um observador pode até ser uma tentação para que o diretor se exiba,
intervenha onde deveria ficar calado, por medo de parecer ineficiente, desapontando assim o visitante.
(Brook, 2016, p.80)
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observação, ora sentado na cadeira, ora no chão, não outro motivo que não o
cansaço de ficar numa mesma posição durante as longas e ininterruptas horas de
trabalho.
Gostaria de fazer aqui um comentário sobre este “equilíbrio instável” que
sustenta a relação “fazedor” e “observador”. Sim, Tiago, concordo absolutamente,
que observar é uma disposição para a escuta e ela começa na desistência em
adequar aquilo que se vê, que se ouve, que se percebe, ao mundo que trazemos
conosco. No entanto, me parece ainda comum (e esta é outra armadilha que está
sempre rondando a minha observação) a figura do pedagogo-encenador-
investigador que se coloca e é reconhecido como “o que sabe”, o que é capaz de
assegurar caminhos e que chancela resultados. A relação se desequilibra se o/a
ator-atriz concentra os seus esforços sobre as expectativas daquele que o assiste.
“Fazedor” e “observador”, quando em criação/investigação, estão juntos numa
zona com parâmetros de verificação e análise precários. Sabemos, nós
observadores, o quanto é comum nos seduzirmos por ações adequadas a modelos
consagrados que se disfarçam em ações vivas. Cabe ao observador fazer uso da
criação do/a ator/atriz para também se arriscar: se abrir para o estranho,
desestabilizar suas convicções, rever um gosto que pode estar automatizado.
Neste sentido,
o trabalho sobre si mesmo
que é parte dos processos de criação
do/a ator/atriz precisa ser assumido também por aquele que participa da
criação/investigação de fora da cena. Trata-se de um compromisso ético
impossível de ser descartado do pacto de confiança a que me referi acima. Sem
esta disposição, o exercício de análise e de observação pode desorientar o
exercício crítico daquele que realiza.
Passo então, caro Tiago, a partilhar com você alguns pontos que chamaram
a minha atenção naquela semana de observação. no primeiro dia, Simioni pediu
aos participantes que trabalhassem as práticas como “busca do desconhecido em
si”.
27
Vejo com imensa simpatia esta outra relação com a prática que não é mais
explorada para a aquisição de competências. Se alguma competência a ser
alcançada, ela é justamente a disposição à diferença. Grotowski tem um texto
inspirador chamado “O que foi”, transcrição de uma palestra conferida no Festival
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Apontamento no caderno de notas.
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da América latina, Colômbia, 1970, em que ele retoma o sentido dos exercícios
experimentados no Teatro Laboratório. Segundo Grotowski (2007, p.200), “nenhum
training
é capaz de se transformar no ato”. O “ato humano” a que ele se refere é a
ação relacional, não produzida por um logos controlador, impossível nos exercícios
quando encarados como “ginástica criativa”. Se algo que os exercícios devem
proporcionar ao/à ator/atriz é a descoberta por parte de quem se exercita, “a seu
modo e a seu risco”, dos meios para a “superação do impossível”. E o caminho
para esta descoberta seria o desconhecido, pois é ali que a natureza se manifesta
e se encarrega de descobrir o que pode ser descoberto. Logo, a questão aqui deixa
de ser o “como fazer” e se torna o como “não hesitar frente ao desafio”.
Posto o problema desse modo, concordo com você que não é profícuo
enfrentar a questão do corpo cênico através da mera oposição “corpo sensível” e
“corpo cotidiano”. Mais do que não ser profícua, esta oposição é uma abordagem
reducionista do problema. Vejo com alguma frequência, atores e atrizes investirem
em posturas e movimentações abstratas, estranhas, que nada mais são do que a
substituição dos clichês do corpo cotidiano pelos clichês do corpo não-cotidiano.
Acredito, como você, que há algo no campo intensivo que diferencia esses corpos.
E penso que este pode ser um modo de abordar transversalmente as práticas por
mim observadas, retirando delas algumas pistas que se tornaram interessantes de
serem levadas para a investigação.
Para falar dessas pistas, voltarei a comentar a perspectiva de “corpo sensível”,
agora através de adjetivos coletados nos comentários dos pedagogos: corpo-
pensamento, desautomatizado, atento, reagente, em fluxo, perfurado e
intensificado por sua suscetibilidade em ser atravessado pelas intensidades. Trata-
se de uma perspectiva avessa àquela do corpo-máquina, voltada para produção
objetiva e orientada por noções logocêntricas de funcionamento. É uma
perspectiva que remete ao corpo sem órgãos preconizado por Artaud e, mais
tarde, retomado por Deleuze e Guattari. Relacionar o corpo aos órgãos é entendê-
lo como unidade funcional. O problema, portanto, não são os órgãos, mas o
organismo como noção de organização.
28
Desfazer o organismo não levaria à
28
“Percebemos pouco a pouco que o CsO não é de modo algum o contrário dos órgãos. Seus inimigos não
são os órgãos. O inimigo é o organismo. O CsO não se opõe aos órgãos, mas a essa organização de órgãos
que se chama organismo”. (Deleuze e Guattari, 2012, p.24)
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morte, mas a um corpo disposto à desorganização. E, dirá José Gil, desde que
exista “desorganização de uma ordem ou desagregação de uma estrutura, vêem-
se surgir forças livres, desligadas” (Gil, 1997, p.19).
Tudo isso, meu amigo, para lhe dizer que as práticas por mim assistidas
estavam marcadas, como estratégia fundamental, pela tentativa de regenerar os
corpos através de sua desorganização. A começar pelo apelo por um fazer menos
logocentrado: Simioni disse, em certa altura, aos praticantes, que eles não
deveriam se perguntar o que fazer com as práticas, mas verificar o que as práticas
estariam fazendo com eles. Stephane diz o mesmo, de outro modo, ao orientar
uma improvisação em que uma luz se movimentava por todo o corpo, fazendo
vibrar cada uma das partes por onde ela passava. Foi solicitada a atenção dos
praticantes para o fato de que não eram eles que moviam a luz, mas a luz que os
moviam e os faziam vibrar.
Parece-me que as práticas propostas por Simioni buscaram desconstruir
corpos através de outros esforços e tensões musculares que não se justificam
pela lógica do corpo funcional. O acionamento de musculaturas esquecidas ou
pouco usadas pelos afazeres da vida cotidiana podem ser percebidas na
valorização da musculatura abdominal como ponto de partida de
alavancas
geradoras dos movimentos; os braços, que deixam de ser apêndices do corpo e
se tornam extensão do abdómen; do apoio dos pés que empurram o chão nas
alavancas; a relação com a pressão da massa atmosférica, que exerce uma força
contrária a todo e qualquer movimento; acionamento de pequenas musculaturas
que trazem a consciência da tridimensionalidade. Acrescentaria ainda, o trabalho
com as
camadas,
descrito por você em sua última carta, em que o corpo
imaterial é projetado em diferentes volumes no espaço, acompanhado de um
olhar correspondente.
nas práticas de Stephane, chamou a minha atenção o trabalho de
desorganização corporal realizado pela improvisação comentada acima. Além
de levar a atenção do participante às pequenas partes do corpo, muitas delas
esquecidas pelo uso ordinário, o fato dela ganhar um protagonismo através de sua
vibração, obriga ao corpo um novo ajustamento entre as partes. Verifica-se que,
quanto mais o corpo se disponibiliza aos novos ajustamentos, menor é a sua
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resistência aos fluxos que a errância da luz pelo corpo provoca. Durante a prática,
Stephane, assim como fazia Simioni na sua condução, recorrentemente pedia a
atenção dos praticantes para as sensações que impregnavam as novas
organizações corporais.
Caro amigo, lamento não poder ir mais longe, mas, de fato, esta carta já está
longa e o bom senso me recomenda parar. Sei que poderia desenvolver outros
temas que a sua carta me inspira e lamento ter deixado sem resposta algumas de
suas perguntas.
Um forte abraço, com votos de saúde e felicidades,
Vitor Lemos
Carta 06Guimarães, 11/02/22
De Tiago Porteiro para Vitor Lemos
Caríssimo Vitor,
São, efetivamente, diversos os temas de conversa que as nossas cartas têm
levantado. O conceito de imprevisibilidade surge em algumas delas. Para rematar
proponho conversarmos frente-a-frente, via uma das plataformas digitais. Sugiro
deixarmos fluir as ideias a partir do tema do dossier. O fim será encontrado, tendo
em conta o limite dos caracteres que temos de respeitar.
Com amizade,
Tiago
Remate - Para baralhar as cartas13/01/22
Encontro on-line entre Tiago Porteiro e Vitor Lemos
VL Estive, de novo, a ler a sinopse do dossiê. Destaco a relação intrínseca que
devemos estabelecer entre corpo cênico e o universo da (des)educação.
TP – Visar a noção de (des)educação parece-me um bom ponto de partida.
VL O que, em primeiro lugar, me vem à cabeça: o desafio de formar atores e
atrizes. É difícil pensar a formação do/a ator/atriz dentro dos modelos vigentes
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pois sinto que existe uma certa desadequação; vamos buscar a outras disciplinas
modelos que não se adequam ao universo da atuação. Venho pensando o saber
do/a ator/atriz como um saber sensível, que fere concepções conteudistas do
saber e que não são assegurados por modos previamente estabelecidos para fins
claros e objetivos. A ideia de (des)educação traz esta dimensão contrária: modos
conscientes de desorientação para se chegar ao que é desconhecido.
TP Ao que referes, associo a ideia de não produtividade. Nessa linha de
pensamento, a arte encontrar-se-ia mais próxima de uma qualidade de estar do
que na produção de objetos e de espetáculos. Nessa perspetiva, o espaço artístico
da investigação pode surgir como idealização de um estar/viver em
experimentação. Ao explorar territórios do não-saber, não poderemos encontrar
mais facilmente a ideia de (des)educação? Quando estamos em situação de
investigação e sem a obrigatoriedade de produzir um qualquer objeto artístico
transacionável, valorizam-se formas de conhecimentos que não são,
propriamente, separadas das lógicas do viver. Assim sendo, são as redes de afetos
que são colocadas como ativadoras das provo-ações. Entendamos aqui afetos,
não como sentimentos, mas como ações ou forças que determinam o modo de
estar, de fazer, de conhecer e de com-viver.
VL Você tocou num ponto interessante. A palavra educação me remete às
escolas. Todas elas, do ensino básico ao universitário, são, mais ou menos, uma
preparação para o mercado de trabalho. Adequação a uma lógica que impera, que
é a da produção e consumo. Acho feliz pensar a arte a partir de uma lógica outra.
Você citou Byung-Chul Han em uma de suas cartas. Ele tem um livro chamado
A
Salvação do Belo
em que a arte é vista como acesso ao inteiramente
desconhecido, ao que desconforta, ao que abala, ao que tenciona com os nossos
modos automáticos de
sobreviventes
. Penso que fomos todos capturados pela
compreensão da vida enquanto lógica de “produção e consumo”; também nos
capturou enquanto professores, estudantes, investigadores e artistas.
TP – É verdade que os afetos há muito que foram, também eles, capturados pelo
sistema do capital! Talvez estejamos à procura de modos de salientar a
importância do “não saber”, do encontro, do “não trabalho”…
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VL Um espaço de criação no sentido mais amplo da palavra; criar outros modos
de viver, de sentir, de pensar, de agir…
TP Nesse sentido, a visão mais comum do campo artístico, expande-se. Nas
nossas cartas exploramos oposição/interação entre fazer, observar, corpo, sentir,
refletir, escrever, … talvez será mais adequado pensarmos todas essas dimensões
nos seus mecanismos de sustentabilidade e de retroalimentação. Estaremos
assim alicerçados numa lógica ecológica onde tudo interage com tudo.
(Des)educação poderá ser, então, esse campo fértil onde o que controlamos e o
que não controlamos entre o sensível e o racional não se opõem.
VL Acho que o trabalho do Stephane e do Simioni é um trabalho de
(des)educação. Você se sentiu desafiado neste lugar?
TP Tendo em conta o que expus nas cartas, estou plenamente de acordo contigo.
um outro plano onde poderemos entender a (des)educação e que, de algum
modo, surgiu na nossa análise: pensar na aprendizagem não como aquisição de
competências, mas antes como processo de “limpeza” daquilo que nos
condiciona. Deste modo, aprender será mais uma noção de desafazer e de não-
posse.
VL E de autonomia. Quando você diz que inseriu por sua conta a minha presença
observadora na sua investigação parece que ali uma escolha própria de alguém
que está em investigação de si mesmo, que faz as escolhas para se desafiar nesse
lugar.
TP Terá a ver com uma certa atitude de estudo no seio do estúdio; estudar as
possibilidades de se deixar atravessar por outros “estados” de corporalidade; um
se sentir em devir na relação com os outros. Jogar tem uma dimensão de
incerteza, de imprevisibilidade que também gera o medo, gera a dúvida e o desafio.
Tu salientaste a importância do medo enquanto grande força motriz e essencial à
vida. Essa valorização da dúvida e do medo será ainda um “ingrediente” que pode
ser útil associar à ideia de (des)educação.
VL Elementos que propulsam o desenvolvimento de conhecimentos singulares
e intransferíveis. O que você acessa a partir dessas experiências, aquilo que
acontece em você, é em você e em você. aqui nos processos de investigação
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e formação do/a ator/atriz uma espécie de saber que não pode ser aplicado a
outro. Haverá aí qualquer coisa que não se ensina.
TP - Descoberta de um corpo/ser relacional.
VL – Absolutamente relacionais. Não é um trabalho individual, mas singular. Negri
faz uma distinção que eu gosto entre individualidade e singularidade. A
individualidade existe naquele que se fecha sobre si, enquanto a singularidade
existe na relação com o outro.
TP Esta nossa troca/conversa foi muito prazerosa, Vitor. Foi muito bom sentir-
me acompanhado nesta jornada de escrita. Nesta nossa investigação dialógica,
procurámos modos de nos (des)educar?
VL – Procurámos em conjunto possibilidades de nos (des)educarmos.
TP Exatamente. Procuramos até outros registos, outros territórios e outros
conhecimentos que possam ser aceites em meio académico por via da
investigação artística.
VL Sem dúvida. Que a dimensão do afeto que circulou entre nós prevaleça em
experimentações futuras.
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Recebido em: 15/01/2022
Aprovado em: 19/02/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br