Atuar-atuado: cena, pajelança e uma possível rotação de perspectiva
Katia Brito
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
evoco a imagem narrada por Davi Kopenawa (Kopenawa; Albert, 2015) referente ao
xamanismo Yanomami, ao explicar que os sonhos dos
xapiris
deslizam pela corda
da rede para entrar nos xamãs, e que, sem as cordas, os sonhos se perderiam; é
impossível ser xamã sem sonhar longe e de forma inesgotável. Kopenawa
(Kopenawa; Albert, 2015, p. 315) compara as cordas das redes por onde passa o
xapiri às antenas por onde os sonhos descem, e conta que, por isso, os xamãs
sonham rápido e alcançam terras distantes como se vissem imagens de televisão.
Assim, é possível pensar a cinta na pajelança como um elemento que
possibilita à pajé se lançar ao infinito de fora e, ao mesmo tempo, a mantém atada
ao ínfimo de dentro, como o cabo forte que liga o astronauta a uma nave espacial
e evita que seu corpo seja atraído pelo vácuo quase absoluto do espaço
.
Atuar-atuado: cena e pajelança
Tendo em vista os pressupostos de que a prática do corpo atuado, em busca
do centro no encontro com o Outro, conjura a hierarquização dos seres e cria
aberturas nas fronteiras ontológicas, é possível colocar a prática em diálogo com
o perspectivismo ameríndio. Nesse sentido, Tania Stolze Lima observa
:
Diferentemente da tríade hierárquica cristã, totalizadora, garantia da
identidade humana e de sua precedência opositiva sobre os outros
animais, na tríade ameríndia a posição do meio pertence a todo aquele
que a ocupa, enquanto a ocupa; ela é por isso aberta. O ponto de vista
não é propriedade de x. Não creio, porém, que pudéssemos caracterizar
os regimes indígenas como igualitários. Restituamos, portanto, à frase de
Rosa o seu x, que sempre esteve lá para assinalar, ao modo de um
“índice”, a assimetria irredutível à forma-Estado do Um (à Identidade, ao
Todo). Ele serve para representar graficamente não só a especificidade
do ponto de vista contra a hierarquia como a dimensionalidade fractal do
Uma leitura mais aprofundada sobre a noção de cinta na pajelança cabocla de pena e maracá encontra-se
na dissertação
Corpo Atuado: aparições xamânicas na Amazônia Marajoara
(Brito, 2019).
A frase de Guimarães Rosa evocada por Lima está no livro do autor Ave Palavra, de 1978. A partir dela, a
autora introduz suas reflexões sobre as tríades cristã e ameríndia: “‘O macaco está para o homem como o
homem está para x’ (ROSA, 1978). Cega para a destreza dialética de Rosa, troquei, certa madrugada, x por
Espírito, sem dúvida imaginando algo provavelmente como uma escala do ser. Do macaco a Deus, passando
pelo homem, obtém-se uma ordenação hierárquica orientada de um mínimo a um máximo de espírito, por
meio da distribuição desigual de um valor. Mas quase instantaneamente não ficou menos evidente que a
leitura cristã não era a única permitida. Os Yawalapíti, por exemplo, que dizem que gente é macaco de onça,
poderiam ser tentados a trocar x por onça. Como deveríamos distinguir essas permutações, senão por seu
regime de diferenças, por sua política da diferença? A onça é indiferente à diferença entre o macaco e o
homem: somos macacos como os demais macacos. O macaco, por sua vez, é indiferente à diferença entre
a gente e a onça: somos onças como as demais onças” (Lima, 2011, p.622).