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Atuar-atuado: cena, pajelança e uma possível
rotação de perspectiva
Katia Brito
Para citar este artigo:
BRITO, Katia. Atuar-atuado: cena, pajelança e uma possível
rotação de perspectiva.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0116
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Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
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Atuar-Atuado: cena, pajelança e uma possível rotação de
perspectiva
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Katia Brito
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Resumo
“Atuado” é o termo usado na Pajelança Cabocla de Pena e Maracá para se referir ao
corpo em performance da pajé. Este artigo trouxe a proposição de uma aproximação
dessa prática e algumas reflexões sobre os possíveis diálogos da noção de
atuado
com a contemporaneidade das artes cênicas e performativas. Para tanto, partiu-se
da hipótese de que esse cruzamento oferece elementos com valor de fertilidade
para uma cena que ensaia novos modos de pensar e ver os mundos. A proposição
se origina do encontro da autora deste artigo com a memória da própria avó, pajé
cabocla de pena e maracá, e imbricou trabalhos de campo no Marajó com questões
das Artes da Cena e pensamentos que discutem e desdobram o conceito de
perspectivismo ameríndio.
Palavras-chave
: Pajé. Corpo. Artes da Cena. Antropologia.
Act-be acted: scene, pajelance and a possible perspective rotation
Abstract
"Atuado" is the term used in
Pajelança Cabocla de Pena and Maracá
to refer to the
body in pajé performance. This article brought the proposition of an approximation
of this practice and some reflections on the possible dialogues of the notion of
actuated with the contemporaneity of performing and performing arts. To this end,
it was hypothesized that this crossing offers elements with fertility value for a scene
that rehearses new ways of thinking and seeing the worlds. The proposition came
from the meeting of the author of this article with the memory of her grandmother,
a pajé cabocla de pena and maracá
, and imbriced fieldwork in the Marajó with
questions of the Arts of Scene and thoughts that discuss and unfold the concept of
Amerindian perspective.
Keywords
: Pajé. Body. Performing Arts. Anthropology.
1
Revisado por Francine Natasha Alves de Oliveira (graduada em Letras pela Universidade Federal de São João
del-Rei; mestre em Teoria Literária e Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São João del-Rei;
doutora em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora).
2
Atriz, performer e encenadora. Doutoranda em Arte Cênicas na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (ECA/USP). Mestre em Artes Cênicas pela UNIRIO. Graduada em teatro pela Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Foi aluna de Klaus Vianna. Em 2020, iniciou o
processo de criação da palestra performance Corpo Atuado, em que é roteirista, diretora e atriz.
regina-katia@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/3362019703590679 https://orcid.org/0000-0001-8974-8493
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Actuar-ser actuado: escena, pajelance y una posible rotación de
perspectiva
Resumen
“Actuado" el término utilizado en la Pajelança Cabocla de Pena y Maracá para
referirse al cuerpo ejecutante del chamán. Este artículo trajo la proposición de una
aproximación a esta práctica y algunas reflexiones sobre los posibles diálogos de la
noción de actuado con la contemporaneidad de las artes escénicas. Para ello,
partimos de la hipótesis de que este cruce ofrece elementos con valor de fecundidad
para una escena que ensaya nuevas formas de pensar y ver los mundos. La
propuesta surgió del encuentro de la autora de este artículo con la memoria de su
propia abuela, chamán cabocla de pena e maracá, y trabajo de campo imbricado en
Marajó con cuestiones de las Artes Escénicas y pensamientos que discuten y
despliegan el concepto de perspectivismo amerindio.
Palabras clave
: Chamán. Cuerpo. Las artes escénicas. Antropologia.
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O Corpo Atuado, o Encantado e a ideia de uma economia da
corporalidade
Meu dom é pajé. Olha, ser pajé é se atuar em índio, aves, peixe, todos
seres encantados (Pajé Roxita).
Nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América,
enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para
pesquisar se os indígenas tinham ou não uma alma, estes últimos
dedicavam-se a imergir brancos prisioneiros, a fim de verificar, após uma
vigília prolongada, se seu cadáver estava ou não sujeito à putrefação
(Lévi-Strauss, 1993 [1973], p.334).
O arquipélago do Marajó
3
, milhares de anos, é palco para a prática da
pajelança, como atesta a arte da cerâmica marajoara. A cerâmica produzida no
Marajó no período entre 400 e 1400 d.C. carrega em suas peças e ruínas muito da
memória do ritual. A arqueóloga Denise Pahl Schaan observa:
[...] produziam toda uma variedade de objetos rituais tais como
banquinhos para os pajés e chefes, estatuetas usadas em rituais de cura,
pingentes, ornamentos para lábios e orelhas, assim como frascos e uma
espécie com um canudo para ingestão de drogas alucinógenas. [...] Para
transmitir ideias transcendentais ou cosmológicas e realizar a ponte entre
o natural e o sobrenatural (Schaan, 2005, p.27).
No Brasil, o fenômeno do xamanismo é também conhecido como pajelança
(Langdon, 1992, p. 65). O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro assim define o
xamanismo amazônico:
O xamanismo amazônico pode ser definido como a habilidade manifesta
por certos indivíduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e
adotar a perspectiva de subjetividades aloespecíficas, de modo a
administrar as relações entre estas e os humanos. Vendo os seres não
humanos como estes se veem (como humanos) os xamãs são capazes
de assumir o papel de interlocutores ativos no diálogo transespecífico:
sobretudo eles são capazes de voltar para contar a história, algo que os
leigos dificilmente podem fazer (Viveiros de Castro, 2002, p.310).
3
O arquipélago do Marajó está localizado ao norte do estado do Pará, Brasil, na foz do Rio Amazonas. É
banhado ainda, ao sul, pelo verde-escuro das águas mornas e salobras do Rio Pará e, ao norte, pelo azul
profundo das águas salgadas do Oceano Atlântico.
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Na Ilha de Marajó é possível encontrar, ainda hoje, uma diversidade e
quantidade significativa de pajelanças, de forma que, sempre que mencionar a
pajelança ao longo do artigo, estarei me referindo especificamente
à pajelança
cabocla de pena e maracá
, que acontece na cidade marajoara de Soure. Essa
pajelança pertence ao universo do caboclo marajoara. Segundo o folclorista
Câmara Cascudo, o termo “caboclo” vem de “caboco”: caa, “mato, monte, selva”,
e
boc
, “retirado, saído, provindo do mato” (Cascudo, 1993, p.165). Esse termo revela
duas imagens, a do mato e a da retirada de algo ou alguém que, sendo originário
do mato, foi habitar outro território. Tendo em vista a etimologia da palavra, é
possível pensar o caboclo como um compósito de povo da floresta e da cidade
4
.
A pajé cabocla de pena e maracá Roxita
5
, que acompanhei em trabalho de campo
e sobre quem me deterei mais adiante –, explica que um dos diferenciais da
pajelança cabocla de pena e maracá, em relação a outras pajelanças caboclas
praticadas na Ilha de Marajó, é a ausência do tambor e o protagonismo do maracá,
que reina absoluto no ritual. O maracá é um corpo precário, extremamente leve,
oco, que contém sementes ou pedrinhas, fragmentos de vida, com som instável,
titubeante, frágil.
O maracá, como “recipiente e caminho”, é uma noção que faz parte do
discurso da cultura dos povos Waiãpi, destacado no trabalho da antropóloga
Dominique Tilkin Gallois. Essa ideia contribui para uma aproximação da pajelança
cabocla de pena e maracá:
Como todos os elementos ligados ao
paie
, o chocalho é ao mesmo tempo
“recipiente” e “caminho”, ou seja, via de acesso das e às entidades
xamanísticas. Os chocalhos estabelecem esse tipo de comunicação
apenas em circunstâncias muito específicas, quando são manuseados
por pessoas autorizadas que sabem “chamar” pelo caminho do sopro, do
tabaco e do canto as forças que virão se abrigar na cabaça. Fora dessas
circunstâncias, o chocalho é um objeto qualquer: os xamãs guardam-no
em suas casas, fora do alcance das crianças, mas não lhe atribuem
4
Neste artigo, detenho-me à pajelança cabocla de pena e maracá que acontece em Soure, na Ilha de Marajó.
Podemos encontrar um estudo aprofundado sobre pajelanças caboclas no trabalho do antropólogo Heraldo
Maués (1995; 1999).
5
Entrevista concedida por Roxita à autora em agosto de 2017, no âmbito da pesquisa de mestrado
Corpo
Atuado: aparições xamânicas na Amazônia Marajoara
(Brito, 2019), defendida no Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). A conversa ocorreu no
barracão em que trabalha realizando sessões xamânicas, localizado dentro da mata, em um sítio no bairro
de Tucumanduba, na cidade de Soure, Ilha do Marajó, Pará.
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respeito especial (Gallois apud Langdon, 1996, p.44).
Ao presenciar sessões de pajelança no contexto de trabalho de campo, entre
2017 e 2020 inicialmente no âmbito do mestrado e, depois, do doutorado
6
–,
passei a entender que os maracás, assim como os pajés, são corpos ambíguos
que transitam em uma condição de sagrado e não sagrado. O maracá, quando
parado, estável, é um instrumento qualquer que fica em cima de um móvel na
casa da pajé, assim como faz o povo Waiãpi. Para estar sagrado é indispensável
que a condição de seu corpo seja alterada, ou seja, que de estável se torne instável,
que o equilíbrio ceda ao desequilíbrio provocado pela ação da pajé, que vibra o
maracá, ação que implica também que o maracá vibre a pajé.
Nas sessões de pajelança que presenciei antes de o maracá chegar à mão da
pajé, ela vibra seu corpo e faz um movimento com a mão, como se estivesse
com o chocalho. Quando ele chega à sua mão, através do assistente, tenho a
sensação de ver a materialização de um corpo que estava ali; assisto a uma
ausência que vira presença diante de meus olhos.
A qualidade do movimento de vibrar faz com que o maracá e o corpo da pajé
irradiem uma energia, uma imagem sonora, uma materialidade feita de som e
movimento. Antes de conectar a pajé cabocla de
pena e maracá
ao maracá, a
assistente defuma ambos, purificando seus corpos com as plantas. São ervas,
raízes e resinas que, ao serem maceradas ou passarem por processos de
combustão, liberam substâncias que purificam e expandem os canais de
percepção e atuam como recipiente e caminho para o sagrado. É possível pensar
o maracá e a pajé como um só corpo, criado a partir da sobreposição de estados
e propriedades heterogêneas que, ao vibrarem, às vezes chocalham como os
guizos de uma cobra cascavel e às vezes parecem emitir uma música feita com
grânulos de cristal.
Na pajelança de
pena e maracá
, como o nome indica, além do maracá, não
pode faltar a pena. A pena, ou o penacho, é um amarrado de penas de pássaros
que às vezes se encontra acoplado ao maracá, às vezes separado dele. As penas
6
Pesquisa de mestrado intitulada
Corpo Atuado: aparições xamânicas na Amazônia Marajoara
(Brito, 2019),
defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO). A pesquisa de doutorado, que tem como título Atuar-Atuado: cena e pajelança, está em
curso na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP).
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de pássaros têm um papel relevante para o acontecimento do ritual, ao
contribuírem para que a pajé possa viajar para outros mundos. No entanto, é
notável que participam do acontecimento da pajelança as penas oriundas de
aves que estão vivas e em liberdade. As relações entre as penas e o voo da pajé
acontecem com a condição de que esses elementos tenham origem em pássaros
que continuam a voar.
A pajé cabocla de pena e maracá Roxita conta
7
que, há décadas, usa no ritual
as penas que caem da passarada que voa livre durante o dia e à noite, na vastidão
das praias, campos e matas da Ilha de Marajó. Há, ali, uma imensidão de pássaros
de todas as cores e tamanhos. Para além do simbolismo ascensional, as penas
têm a função de cura, purificação e, quando “espanam” o sujeito ou o ambiente,
conferem a eles as qualidades do pássaro do qual se originam. Aqui, torna-se
evidente que, como o maracá, a qualidade da pena é ativada quando oscila,
quando chacoalha.
Roxita explica que, ao espanar as penas azuis e amarelas da arara, abre os
caminhos para que a alegria e a eloquência da ave possam contaminar o ambiente
e os presentes. Quando sacode as penas vermelhas, traz a força e a potência do
guará e, ao vibrar as penas alvas da garça, distribuem-se pureza e leveza aos
corpos, os atributos da ave. Ademais, “ave” é um dos termos usados na pajelança
cabocla de pena e maracá para se referir ao pajé atuado. O termo assim aparece
no texto do escritor Dalcídio Jurandir:
Tremia o maracá espanado com rabo de ararauara
8
. [...] Orminda enxugou
o suor do rosto, dinlindandan, ardiam-lhe os olhos com fumo, um cheiro
de raízes queimadas e cachaça dominou a penumbra. Alguém lhe
estendeu uma cuia com bebida que ela apenas provou. Curvada, olhou
de soslaio, a feiticeira que ofegava numa espécie de delírio, os olhos
cerrados, a boca retorcida com uma parturiente em transe. A ave, a
pessoa atuada pelo caruana
9
cantou, numa voz fanhosa (Jurandir, 1978,
7
Entrevista concedida por Roxita à autora em agosto de 2017 no barracão localizado no sítio Dois Irmãos, no
bairro do Tucumanduba, Soure, no Pará.
8
A ararauara é uma ave semelhante à garça.
9
O historiador das religiões e antropólogo Heraldo Maués explica que “caruanas” é uma outra forma de se
referir aos encantados, acrescentando que são esses os encantados que se manifestam nos trabalhos dos
pajés (Maués, 1995). Segundo a pajé Zeneida Lima, “caruanas são energias viventes sob as águas, conforme
a concepção da Encantaria cultuada pelos índios marajoaras. Eles manifestam-se no pajé, que se torna um
instrumento da natureza e pode servir às ações de quem o procura” (Lima, 2002, p.231).
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p.114).
Figura 1 Pajé cabocla de pena e maracá Roxita trabalhando em espaço aberto
na cidade de Soure, Ilha de Marajó
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2017. Foto: Paulo Furtado
O contato inicial com essa pajelança aconteceu pelo encontro com a memória
de minha avó paterna, Benvinda, uma pajé cabocla de pena e maracá que nasceu
nos anos 1920 em um lugar desconhecido da Ilha de Marajó. Muito do que se refere
a ela é nebuloso, mas é certo que ela se fez pajé
10
.
Na tentativa de me aproximar de Benvinda, o primeiro rastro chega a mim por
10
Trata-se de um feito que implica ser continuamente refeito. É importante ressaltar que não se é pajé e, sim,
se está pajé.
A palavra vem de paie
: “Assim, o próprio significado da palavra pajé, nos idiomas Tupi, está
ligado ao conceito de possuidor de poder” (Langdon, 1996, p.27).
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meio da memória de seu filho meu pai –, uma memória de vestígios, partida,
deteriorada. Aos dezessete anos, a jovem Benvinda migrou do Marajó em direção
ao continente; como tantas e tantos, foi em busca de trabalho para arriscar lograr
mais que a subsistência. Na mala de papelão levou o maracá, o penacho, os cantos
e as práticas de suas ancestrais. Não tenho informações de como ela viveu os seus
primeiros anos na capital paraense, apenas sei que conquistou a posição de
enfermeira e se manteve pajé. Sete anos depois, pôde buscar o filho para viver
com ela em Belém. Quando tinha possibilidade, a enfermeira-pajé andava por dias
na Belém-cidade-floresta, acompanhada unicamente da criança, até chegar a
lugares velados, cabanas no caminho que a mata perdia, para cantar, dançar,
fumar, beber, viajar para outros mundos,
atuar-se
no Outro. Mas essas práticas
aconteciam nos intervalos do seu trabalho no hospital. Na maioria das vezes,
confinava os atos da pajelança em um ínfimo quarto na casa em que vivia.
Benvinda morreu aos trinta e seis anos de uma doença que a asfixiou; morreu
por não conseguir mais respirar. A pajé deixou uma dor, mas também uma
presença construída pela ausência e pelo silêncio, e uma voz que se torna audível
e volumosa cada vez que se une a tantas outras vozes de mulheres pajés,
anônimas como ela, que, por meio da prática da pajelança, desestabilizam
instituições e paradigmas muitas vezes forjados em imaginários opressivos, que
consideram ilegal o corpo que existe em
diferença.
O termo “atuado”, ouvido por mim em trabalho de campo, instigou a pesquisa
e as imbricações dessa prática com as Artes da Cena.
Está atuada
, é assim que
diz o caboclo marajoara ao se referir à condição da pajé cabocla de pena e maracá
no momento em que seu corpo em performance cruza as barreiras corporais,
altera-se e sobrepõe perspectivas, como é possível observar na fala da pajé
Zeneida Lima: “Rodopiou, oscilou o corpo e mudou o ritmo respiratório. Estava
atuado” (Lima, 2002, p.174).
A pajé é aquela que, no contexto caboclo e ameríndio, está mais capacitada
a transitar por entre modos de existir, inclusive interespécies, a ver com outros
olhos o visível e o invisível, a escutar com os ouvidos do Outro, a falar as palavras
do Outro. Uma possível leitura para a noção de “Outro”, presente neste artigo,
corresponde à ideia de que o “Outro” é o sujeito ativado por um ponto de vista
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distinto daquele ocupado por “Eu”, noção depreendida do perspectivismo
ameríndio, tal qual pensado pelos antropólogos Eduardo Viveiros de Castro (2002)
e Tania Stolze Lima (2011). Viveiros de Castro, para pensar o conceito de
perspectivismo ameríndio, observa que a perspectividade é a capacidade de
ocupar um ponto de vista, ressaltando que este não é, senão, diferença, que, para
o ameríndio, é dada pela especificidade dos corpos: “[...] ali onde estiver o ponto
de vista, também estará a posição de sujeito. [...] o perspectivismo ameríndio
procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito; será sujeito
quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista” (Viveiros de Castro,
2002, p.323).
Roxita, uma das pajés que acompanhei em trabalho de campo na cidade
marajoara de Soure, no período entre 2017 e 2020, apresenta uma habilidade
incontestável na arte de passar de uma perspectiva a outra. A pajé, registrada
como Irandilva, nasceu com os lábios roxos e, por esta particularidade, logo virou
Roxita, e assim é conhecida por todos no Marajó e em alguns lugares fora da ilha.
Ao contrário de muitos pajés que recebem seus ensinamentos de outros pajés, as
primeiras orientações que Roxita recebeu vieram por meio da voz do vento,
quando tinha sete anos e estava no
tempo
– que no Marajó significa estar em um
espaço descoberto, ao ar livre. Desde então, quando vai ao
tempo
, ouve vozes,
canções, orações e receitas de banhos e chás de ervas, conhecimentos de outros
mundos e de outros tempos, transmitidos pelo vento. São saberes que nunca mais
esquece, graças a uma memória prodigiosa, que permitem a ela, orgulhosa, fazer
qualquer operação matemática “de cabeça” e aprender, escutando uma vez,
qualquer texto ou canção. Tem trinta e dois filhos, sendo cinco deles biológicos,
além de netos e bisnetos. Cuida também de uma creche, que atende a cerca de
cento e cinquenta crianças. Hoje, com cerca de setenta anos, essa mulher de mais
ou menos um metro e sessenta, pele cor de barro molhado, musculatura forte,
lenta, silenciosa, que olha de revés, atua-se em peixe, pássaro, criança, índio,
vaqueiro. Eles cantam, dançam, falam e percebem, por meio do corpo em
performance da pajé, em companhia de um público predominantemente
constituído pela comunidade em que ela vive, a qual é composta de existentes
visíveis e invisíveis, humanos e não-humanos, e pelos reinos vegetal, animal e
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mineral.
A postura e a atitude corporal da pajé Roxita quando atuada em quase nada
lembram a bisavó que é possível encontrar diariamente nas ruas de Soure.
Presenciei a pajé se atuar com maestria no peixe Jacundá, na cobra Caninana, no
pássaro Carapirá, no índio Pena Verde, no índio Tabajara, no vaqueiro Boa Ventura,
no pescador Mané Antônio, no peixe Tralhoto, na árvore Jurema, na índia Mayara.
Sua habilidade vem sendo construída ao longo de seis décadas de trabalho e por
saberes de seus antepassados indígenas sedimentados por séculos. Parte de seu
público é formado por pescadores sem peixe, advogados com casos insolúveis,
vaqueiros desenganados por mordidas de cobra, fazendeiros que sofrem de
impotência, mulheres caranguejeiras que não conseguem engravidar, crianças com
mau-olhado, políticos que querem votos, jovens ribeirinhos sem esperança,
médicos com tumores. Todos querem que Roxita vibre seu corpo e seu maracá
em torno de seus corpos, que os envolva com a fumaça de seu charuto e os
acalante com sua voz que, com a força e suavidade do vento, sopra suas feridas.
A pajé Roxita enuncia:
Meu dom é pajé. Olha, ser pajé é se atuar em índio, aves, peixe, todos
seres encantados. Encantado é aquelas, é, vamo dizê, o peixe, [pausa] eu
tenho um encantado que se chama, é, [tempo] o tralhoto. É um peixe. O
tralhoto. Ele vem ele canta, ele fala. Tenho o Jacundá é um peixe. Tem o
seu bem-te-vi é um pássaro. E outros e outras assim. São encantados.
Olha, tem... na encantaria tem de tudo. É um mundo como o nosso aqui.
Nós vivemos nesse mundo com várias pessoas, vários animais, é como
no fundo. Têm tipo assim o mundo da encantaria, é tipo uma cidade.
tem todos aqueles seres que viveram e que hoje são encantados. [...]
Eles aparecem nesse mundo através da pajelança, do pajé. Às vezes, tem
pessoas que um pássaro e diz assim, desconfiando daquele
pássaro. o pássaro é um bem-te-vi, mas tem alguma coisa diferente, não
é um bem te vi normal. Que o bem-te-vi encantado ele passeia muito no
nosso mundo aqui, mas ele é do outro mundo. Do outro mundo tem uma
diferença. Pra quem conhece, quem sabe, têm visão e pode ver que
qualquer pássaro que vem da encantaria é diferente. O pajé ele tem visão,
tem ouvido, ele ouve o tempo, o vento, coisas da encantaria, enquanto
uma pessoa que não tem o dom (Roxita, 2017
11
).
Como é possível depreender do relato da pajé Roxita, uma das principais
11
Entrevista concedida à autora em agosto de 2017 na residência da pajé, localizada na Sexta Rua, bairro da
Macaxeira, centro da cidade de Soure, Ilha do Marajó, Pará.
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características dos Encantados na pajelança cabocla de pena e maracá é que eles
não morrem, encantam-se. O antropólogo Heraldo Maués observa: “[...]
Não sendo
espíritos
, são pensados como pessoas de carne e osso, compostas de espírito e
matéria, que não desencarnaram (morreram) como o comum das pessoas, mas
se encantaram” (Maués, 1995, p.196 grifo nosso). O termo “espírito”, usado por
Maués (1995), merece atenção, pois tem várias acepções e muitas vezes é
empregado pela falta de um vocabulário que corresponda à ideia que se quer
colocar em jogo. Kopenawa esclarece: “Espírito não é uma palavra de minha língua.
É uma palavra que aprendi e que utilizo na língua misturada que inventei (para
falar das coisas de brancos)” (Kopenawa; Albert, 2015, p.620).
Figura 2 Pajé Roxita momentos antes de atuar seu corpo
Fonte: Arquivo pessoal da autora, 2017. Foto: Paulo Furtado.
Sobre o papel fundamental da pajé, o xamã Davi Kopenawa informa: “Sem o
trabalho dos xamãs, voltaria ao caos depressa. A chuva e a escuridão, a raiva dos
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trovões e do vendaval não cessariam nunca” (Kopenawa; Albert, 2015, p. 201). Para
se
atuar
, a pajé passa, primeiro, por uma alteração no corpo. Ao intuir um
movimento de asas que se aproxima, tem a sensação das penas tocando em sua
pele; ela começa a inflar e se experimenta leve. A percepção da pajé é que, à
medida que seu corpo se expande, ela se acosta no Encantado e as capacidades
deste vão se superpondo às suas. Se é o Mestre Bem-Te-Vi, ela se torna vaporosa
e ágil, adquire uma movimentação com valor de voo e as competências de extrair
a doença, o mal, o perigo, pois se vale da propriedade do bico fino e envergado do
bem-te-vi que, tal qual uma pinça, chega até onde o mal está arraigado.
Essa é uma prática que vem sendo trabalhada ininterruptamente,
milênios, em busca de ampliar as capacidades dos corpos de afetar as forças do
mundo e serem afetados por elas, conforme ecoado na observação de Viveiros de
Castro:
[...] A Bildung ameríndia incide sobre o corpo antes que sobre o espírito:
não mudança espiritual que não passe por uma transformação do
corpo, por uma redefinição de suas afecções e capacidades. O caráter
performado mais que dado do corpo (Viveiros de Castro, 2002, p.310).
Tendo em vista que esse ritual é regido pela comunicação
predominantemente corporal, é plausível sugerir que outra de suas características
é a de que não se almeja uma perspectiva significante como final, conforme
lembra o antropólogo Gregory Bateson: “[...] nesse negócio de comunicação
corporal você não necessita transmitir sinais ativamente a fim de que sejam
apanhados por outras pessoas. Você pode somente ser [...]” (Bateson, 2018, p.478).
A pajé não tem presença, como é comum se dizer do ator, ela está presente; corpo
imerso no ambiente, basta, à pajé, ser.
O centro fora do corpo
Para a pajé se atuar, ir ao encontro do Encantado, o primeiro movimento
empreendido é bater as costas em uma superfície. Esse gesto a impulsiona para
fora do centro de gravidade do corpo em relação à linha de gravidade
perpendicular ao chão e o desestabiliza. Bater as costas é um movimento
Atuar-atuado: cena, pajelança e uma possível rotação de perspectiva
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imprescindível para o ato de virar outro, tanto que a pajé cabocla de pena e maracá
também é conhecida no Marajó como “pajé Bate-Costas”.
No espaço em que acontece o ritual é imprescindível que haja uma superfície
a partir da qual o corpo da pajé possa se impulsionar para ir em direção ao exterior.
Pode ser uma parede, uma porta, o tronco de uma árvore, ou mesmo, como
relatou a pajé Roxita
12
, o corpo do assistente, que faz uma parede com as mãos
para que a pajé possa usar dessa superfície para se catapultar. A pajé Bate-Costas
se impõe constantemente o desafio de se desprender em busca do centro fora
do corpo, um centro sempre provisório, fabricado no encontro com o Outro.
Ao realizar o procedimento de bater as costas em uma superfície, lançando-
se para fora do centro de gravidade do corpo em relação à linha de gravidade
perpendicular ao chão, a pajé se coloca à disposição para suportar a alteridade.
Estar
atuado
implica na habilidade de perceber, agir e reagir a partir da percepção
do corpo-Outro. Roxita relata:
[...] Eu sinto que aquilo se aproxima de mim e me transforma. Eu sinto
meu corpo grande, eu sinto meu, assim... meu andar pesado, a minha voz
muda. Quando Seu Bem-Te-Vi se aproxima, eu digo, assim, que eu crio
asas, parece, assim, que eu fico com o corpo cheio. Tem vezes que antes
de eu me atuar nele, eu começo a me passar a mão, eu sinto uma coisa
estranha. Parece que meu corpo cresce, cheio. A minha mãe dizia,
se é as penas do Bem-Te-Vi (Roxita, 2017
13
).
Assim, Roxita sente o bem-te-vi se aproximando e, pássaro-mulher, ela voa,
voa para fora da fixidez das instituições, da domesticação da casa, da rigidez do
salão da igreja; voa para as matas, para o céu, para o infinito de fora. Para voar
como o bem-te-vi ou se arrastar como a cobra é necessário, contudo, que a pajé
se mantenha presa à condição humana. Para que isso ocorra, um elemento
essencial é a cinta, uma faixa de tecido confeccionada com algodão ou croatá. A
cinta, na pajelança, amarra e separa, é proteção e conexão, segurança e caminho.
Para me aproximar um pouco mais da concepção da cinta na pajelança cabocla,
12
Entrevista concedida por Roxita à autora em agosto de 2017 no barracão em que trabalha realizando sessões
xamânicas. O barracão está localizado dentro da mata em um tio no bairro de Tucumanduba, na cidade
de Soure, Ilha do Marajó, Pará.
13
Entrevista concedida à autora em agosto de 2017 na residência da pajé, localizada na Sexta Rua, bairro da
Macaxeira, centro da cidade de Soure, Ilha do Marajó, Pará.
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evoco a imagem narrada por Davi Kopenawa (Kopenawa; Albert, 2015) referente ao
xamanismo Yanomami, ao explicar que os sonhos dos
xapiris
deslizam pela corda
da rede para entrar nos xamãs, e que, sem as cordas, os sonhos se perderiam; é
impossível ser xamã sem sonhar longe e de forma inesgotável. Kopenawa
(Kopenawa; Albert, 2015, p. 315) compara as cordas das redes por onde passa o
xapiri às antenas por onde os sonhos descem, e conta que, por isso, os xamãs
sonham rápido e alcançam terras distantes como se vissem imagens de televisão.
Assim, é possível pensar a cinta na pajelança como um elemento que
possibilita à pajé se lançar ao infinito de fora e, ao mesmo tempo, a mantém atada
ao ínfimo de dentro, como o cabo forte que liga o astronauta a uma nave espacial
e evita que seu corpo seja atraído pelo vácuo quase absoluto do espaço
14
.
Atuar-atuado: cena e pajelança
Tendo em vista os pressupostos de que a prática do corpo atuado, em busca
do centro no encontro com o Outro, conjura a hierarquização dos seres e cria
aberturas nas fronteiras ontológicas, é possível colocar a prática em diálogo com
o perspectivismo ameríndio. Nesse sentido, Tania Stolze Lima observa
15
:
Diferentemente da tríade hierárquica cristã, totalizadora, garantia da
identidade humana e de sua precedência opositiva sobre os outros
animais, na tríade ameríndia a posição do meio pertence a todo aquele
que a ocupa, enquanto a ocupa; ela é por isso aberta. O ponto de vista
não é propriedade de x. Não creio, porém, que pudéssemos caracterizar
os regimes indígenas como igualitários. Restituamos, portanto, à frase de
Rosa o seu x, que sempre esteve para assinalar, ao modo de um
“índice”, a assimetria irredutível à forma-Estado do Um (à Identidade, ao
Todo). Ele serve para representar graficamente não a especificidade
do ponto de vista contra a hierarquia como a dimensionalidade fractal do
14
Uma leitura mais aprofundada sobre a noção de cinta na pajelança cabocla de pena e maracá encontra-se
na dissertação
Corpo Atuado: aparições xamânicas na Amazônia Marajoara
(Brito, 2019).
15
A frase de Guimarães Rosa evocada por Lima está no livro do autor Ave Palavra, de 1978. A partir dela, a
autora introduz suas reflexões sobre as tríades cristã e ameríndia: “‘O macaco está para o homem como o
homem está para x’ (ROSA, 1978). Cega para a destreza dialética de Rosa, troquei, certa madrugada, x por
Espírito, sem dúvida imaginando algo provavelmente como uma escala do ser. Do macaco a Deus, passando
pelo homem, obtém-se uma ordenação hierárquica orientada de um mínimo a um máximo de espírito, por
meio da distribuição desigual de um valor. Mas quase instantaneamente o ficou menos evidente que a
leitura cristã não era a única permitida. Os Yawalapíti, por exemplo, que dizem que gente é macaco de onça,
poderiam ser tentados a trocar x por onça. Como deveríamos distinguir essas permutações, senão por seu
regime de diferenças, por sua política da diferença? A onça é indiferente à diferença entre o macaco e o
homem: somos macacos como os demais macacos. O macaco, por sua vez, é indiferente à diferença entre
a gente e a onça: somos onças como as demais onças” (Lima, 2011, p.622).
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perspectivismo indígena (Lima, 2011, p.623).
Considerando que o Encantado, esse corpo Outro em quem a pajé se
atua
,
pode ser qualquer habitante do cosmos, é plausível sugerir que a noção de
atuado
forja e é forjada por múltiplos imaginários e comportamentos perceptivos. Quando
empregada no campo das Artes da Cena, coloca à disposição da
contemporaneidade das artes cênicas e performativas a possibilidade de rotação
de perspectiva na relação entre o Eu e o Outro, rotação esta que pode ser
iluminada pela observação de Antonin Artaud sobre os índios mexicanos
Tarahumaras:
E nosso eu quando interrogado reage sempre da mesma forma: como
alguém que sabe que é ele que está respondendo e não outro. Para o
índio não é assim. Nunca um europeu aceitaria pensar que aquilo que ele
sentiu e percebeu em seu corpo, que a emoção que o afetou, que a ideia
estranha que acabou de ter e o entusiasmou por sua beleza não são seus,
e que um outro sentiu e viveu tudo aquilo em seu próprio corpo, ou então
ele se acharia louco e dele pensaríamos que se tornara um alienado.
O Tarahumara, pelo contrário, distingue sistematicamente o que é dele e
o que é do Outro em tudo aquilo que ele sente, pensa e produz. Mas a
diferença entre um alienado e ele é que sua consciência pessoal foi
aumentada [...] (Artaud, 2020, p.12).
Após observações em trabalho de campo, passei a entender que a prática do
corpo atuado dialoga com esse modo de existir observado por Artaud. Aquilo que
a pajé sente e percebe em seu corpo, a emoção que a afeta, a ideia estranha que
acabou de ter e a entusiasmou por sua beleza não são elementos completamente
seus; um Outro pode ter sentido e vivido tudo aquilo em seu próprio corpo. A pajé
trabalha ininterruptamente não em função de distinguir o que é dela daquilo
que é do Outro, mas no modo como irradiar essa diferença. É plausível supor que
esse modo de atuação, que não se subordina ao princípio de identidade, às
relações de causa e efeito e coloca em evidência a permanente tensão entre
dentro e fora, contribui para pensar questões prementes de determinada cena
contemporânea.
Essas questões dizem respeito a uma cena que busca o translado de uma
composição cênica antropocentrada para uma composição que pode ser chamada
“cosmocêntrica”. Trata-se de um translado que pode provocar, é possível supor,
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uma desconstrução de um sistema hierárquico, assim como a conjuração da ideia
de uma cena que almeja uma perspectiva significante como final. O foco de uma
rotação de perspectiva de uma composição cênica antropocêntrica para uma não
antropocêntrica, não seria, é importante ressaltar, eliminar a perspectiva
significante, assim como não pretende eliminar o ator, mas descontruir posições
cristalizadas e clausuras. Assim, torna-se possível, por exemplo, uma
simultaneidade de perspectivas, outros padrões de imagem e um
(des)adestramento da imaginação. O professor Luiz Fernando Ramos, ao tratar do
trabalho do encenador italiano Romeu Castellucci, ressalta a importância de
problematizar os padrões correntes de administração de imagem e de
adestramento da imaginação humana:
a alternativa mais política para a cena, no sentido de ser a mais
revolucionária, por pretender alterar completamente os padrões
correntes de administração da imagem, dinamitando a plataforma visual
das operações mercantis e de adestramento da imaginação humana.[...].
Ensaiam-se novos modos de ver e de pensar o mundo a partir da
constituição material e emergente de reais irreconhecíveis, capazes de
arrebatar pelos olhos, bocas, narinas e ouvidos (Ramos, 2014, p.41).
Em conclusão, é plausível sugerir que, na condição de artista da cena,
colocar-se à escuta do
corpo atuado
propicia o contato com outros modos de
estar junto, de perceber, trocar e se deixar contaminar por outras epistemologias
e paradigmas Outras imagens, imaginário e imaginação –, elementos que
contribuem para pensar alternativas poéticas e políticas para a cena
contemporânea. É também se colocar em relação com um modo de existir que
trabalha pela fratura do fixo e da cristalização da Unidade, pela multiplicação das
perspectivas; um modo que entende a presença como
qualidade relacional
, tal
como é possível depreender da conversa que presenciei entre a pajé e seus
assistentes sobre a relação entre as Velas e os outros corpos da pajelança:
Vamos começar a enxergar, minha gente! Olha, chegaram essas pessoas,
não é à toa. Têm que ver tudo, as velas, elas estão mostrando, olha como
esta aqui queima rápido, como a outra chora, tem que decifrar qual a
imagem que a vela derretida faz. Tem gente que pensa “ah! só apagou...”,
mas, não é assim, nada é à toa (Roxita, 2020)
16
.
16
Sessão de pajelança realizada em março de 2020, no barracão da pajé, no sítio São José, no bairro do
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PPGT
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