1
A proposição cosmopolítica na obra de
Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Para citar este artigo:
BENJAMIN, Flaviana. A proposição cosmopolítica na obra
de Jaider Esbell e Bernal.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0115
Este artigo passou pelo Plagiarism Detection Software | iThenticat
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
2
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
1
Flaviana Benjamin
2
Resumo
Esse material descreve a passagem do artista Jaider Esbell (1979-2021) e de
sua parceira, Bernal (1945 - 2020), no ano de 2019, pelo Projeto “Rios, roças
e redes” do evento Jardinalidades, produzido pelo SESC/SP. Pretende-se
investigar se as ações propostas pelos artistas podem compor com o
pensamento sobre cosmopolítica (Stengers, 2018), como elo de
responsabilidade entre humanos e não humanos a partir de experiências
simbólicas pertinentes ao campo da arte.
Palavras-chave
: Povo Macuxi. Jaider Esbell. Bernal. Cosmopolítica.
Performance.
The cosmopolitical proposition in the work of Jaider Esbell and
grandmother Bernal
Abstract
This material describes the passage of the artist Jaider Esbell (1979-2021) and
his partner, grandmother Bernal (1945 - 2020), in the year 2019, through the
“Rios, roças e redes” Project of the Jardinidades event, produced by SESC/SP.
It is intended to investigate whether the actions proposed by the artists can
compose with the thought on cosmopolitics (Stengers, 2018), as a link of
responsibility between humans and non-humans from symbolic experiences
pertinent to the field of art.
Keywords:
Macuxi people. Jaider Esbell. Grandmother Bernal. Cosmopolitics.
Performance.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Regiane da Silva Oliveira. Mestra em língua francesa
Paris 3 La Sorbonne Nouvelle, graduada em Letras pela Faculdade de Ciências e Letras (UNESP/ASSIS) e
Tarcísio Moreira Mendes, doutor e mestre pelo PPGE/FACED/UFJF e bacharel em artes cênicas.
2
Doutoranda (UNICAMP/USP). Mestra em História do Teatro pela Escola de Comunicações e Artes, da
Universidade de São Paulo (ECA/USP). Bacharelado em Direção Teatral pelo Instituto de Filosofia, Arte e
Cultura da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). flabenjamin@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/5658710529721091 https://orcid.org/0000-0003-3717-1658
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
3
La proposición cosmopolítica en la obra de Jaider Esbell y la
abuela Bernal
Resumen
Este material se describe en un viaje del artista Jaider Esbell (1979-2021) y su
pareja, la abuela Bernal (1945 - 2020), en 2019, por el Proyecto “Ríos, jardines
y redes” del evento Jardinalidades, producido por SESC /SP. Se pretende
indagar si las acciones propuestas por los artistas pueden componer con el
pensamiento sobre cosmopolítica (Stengers, 2018), como lanzamiento de
responsabilidad entre humanos y no humanos a partir de experiencias
simbólicas relevantes para el campo del arte.
Palabras clave
: Pueblo Macuxi. Jaider Esbell. Abuela Bernal. Cosmopolítica.
Performance.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
4
A floresta é para nós como uma grande mãe. Cada um dos meus parentes,
amigos e conhecidos a tratam assim. Isso aprendemos desde que nascemos.
Os velhos dizem que nada do que temos pode ser nosso; tudo nos é
emprestado pelo Grande Espírito criador. Um dia, devolvemos isso para as
novas gerações. Recebemos bonito de nossos antepassados e temos a
obrigação de entregar bonito aos que vêm depois.
(Daniel Munduruku, 2008, p.69)
Por isso é preciso ficar atento ao surgimento de “outras narrativas”, talvez
um anúncio de novos modelos de resistência, que recusam o esquecimento
da capacidade de pensar e de agir conjuntamente exigido pela ordem pública.
(Isabelle Stengers, 2009, p.96)
Em passagem pela cidade de São Paulo, para ministrar a oficina Produção de
raladores e tinta de jenipapo e realizar a performance Txaismo & outros feitiços
para salvar a Raposa Serra do Sol, programada no ano de 2019, pelo Projeto Rios,
roças e redes, do evento Jardinalidades, ocorrida no Sesc Parque Dom Pedro II, o
artista Jaider Esbell
3
, da etnia Macuxi, nascido na Terra Indígena Raposa Serra do
Sol, em Roraima, apresenta um rico material sobre o fazer arte e a compreensão
das relações entre humanos e não humanos.
Em consonância com o pensamento da filósofa Isabelle Stengers sobre a
“proposição cosmopolítica” (2018) que diz em intercambiar posições, ou seja,
colocar inquietação nas vozes políticas, ao passo que explicite um pavor que nos
faz questionar “o que estamos fazendo? “– este material busca pistas a partir
de saberes indígenas para construção potente em arte e possível composição de
outros mundos. Dessa maneira, a performance dos artistas e o uso do jenipapo
pode tensionar reflexões sobre como causar questionamento em torno do que
criamos. Além disso, a obra dos artistas também se abre à luz de como “adiar o
fim do mundo” (Krenak, 2019) e faz criar possibilidades de fissuras no cotidiano.
Assim, irei dividir este material em três partes. A princípio, tratarei do material em
vídeo Provocações
4
(2017), apresentado e realizado pelo artista Jaider Esbell em
3
Jaider Esbell (1979-2021). Esse material foi desenvolvido antes do falecimento do artista e reformulado na
tentativa de deixar registrado as diversas contribuições de seu percurso para o fazer arte em todas as
linguagens. Um registro em memória a grandeza de sua trajetória para a arte.
4
Disponível em: http://www.acervocal.unb.br/acervo/videoarte-19/. Acesso em: 12 dez. 2021.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
5
parceria com a Universidade de Brasília (UNB). Em sequência, abordarei a busca
por materiais descartados no lixo para feitura de raladores e tinta de jenipapo. E
na última etapa, olho para a performance como ação resposta e implicação dos
observadores na relação entre natureza e povos originários sob o efeito da arte
como multiplicação de responsabilidade no pacto entre artistas e observadores a
partir da relação com a tinta de jenipapo.
Provocações
Em um cenário natural do estado baiano entre cerrado e caatinga o artista
cria, em seu vídeo, um contexto de relações entre indígenas, pecuária e lixo. Na
perspectiva da pecuária, o processo de desenvolvimento do animal (boi) e todo
impacto gerado na natureza são ambientados na relação do artista com o rio.
uma longa narrativa de Esbell frente a nascente sobre a relação dos povos
originários da etnia macuxi na tratativa da natureza como categoria política. A
hierarquia de humanos e não humanos não existe, segundo Esbell, na cultura de
seu povo.
Ailton Krenak (2019) pontua que, para seu povo, o Watu (conhecido como rio
Doce) não é um recurso, como classifica os economistas, mas um avô, ou seja,
uma relação parental. Para o autor, o pensamento de que somos humanidade foi
um artificio para justificar o “assalto que fazem a nossa ideia de natureza“(Krenak,
2019, p.16) e todo processo de alienação corrobora para ignorar que fazemos parte
da Terra e, quando não a percebemos, valida-se o pensamento cindido entre
humanos e não humanos. Acrescenta: “Eu não percebo onde tem alguma coisa
que não seja natureza. Tudo é natureza. Tudo que eu consigo pensar é natureza”
(Krenak, 2019, p.17). Segundo o autor, o maior dilema político para a comunidade
indígena seria (ainda) a disputa por espaços em que a natureza seja profícua.
Stengers (2018) apresenta o desafio de distinguir proposições nomeadas
como ecologia política, ou seja, pensamentos positivos ou práticas relacionadas às
coisas. Dito de outra forma, as proposições poderiam satirizar as autoridades a
elas associadas. Nesse sentido, faz menção a personagem filosófica à luz de
Deleuze o idiota – em empréstimo de Dostoiévski (1821-1881) como mediador da
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
6
proposição cosmopolítica. Por não dominar a linguagem grega, a personagem
idiota fica fora da comunidade civilizada e suas principais linhas de atuação são a
desaceleração e o silencio do “não saber” (Stengers, 2018, p. 444). A personagem,
o idiota, nos provoca pensar sobre o que sabemos em um silêncio que pode ser
apreendido como interstício. Uma personagem com inclinação à perfeição inserida
em um mundo vil e que consegue ver possibilidades de transgredir como as
crianças o que, segundo ela, os adultos não alcançam.
Os tempos da luta e da criação devem aprender a se conjugar sem
confusão, por revezamento, prolongamentos e aprendizados recíprocos
da arte de ter cuidado, sob pena de se envenenarem mutuamente e
deixarem o campo livre para a barbárie que se aproxima (Stengers, 2009,
p.52).
Ao passo que a autora apresenta a proposição cosmopolítica, Krenak (2019),
na iminência da violação e destruição da natureza, visualiza a criação de
paraquedas coloridos. O prazer e a diversão na criação de uma estratégia que
suaviza a queda fazem com que a arte se transforme em um veículo que sustenta
simbolicamente tempos remotos ocasionados pela interferência cruel do humano
na natureza.
As imagens criadas por Krenak e a menção da personagem idiota trazidas
pela autora são artifícios para compreender o poder da criação no tempo de
violação de direitos e destruição desenfreada do meio ambiente. Nesse sentido, a
compreensão simbólica dos efeitos da personagem literária de Dostoievski e os
paraquedas coloridos de Krenak podem ser entendidos como uma disputa sobre
a realidade que cada artista /escritor produz para ampliar o debate sobre temas
concernentes em relação às vidas.
Retomando ao vídeo, em outra passagem de aproximadamente 7 minutos,
Esbell se metamorfoseia de boi. O uso da cabeça de gado, descartado pela
indústria pecuarista, é usado pelo artista como máscara e confundi o que por ora
aparece como boi e, por outra, como um ser encantado. Esse embaralhamento
cênico alude à precariedade dos povos originários frente à indústria da carne que
ameaça a vida de indígenas para a construção de pastos em território de natureza
profícua. A cabeça de boi, descartada nos lixões, reúne dezenas de catadores que
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
7
veem nesses restos de carne animal uma maneira de sobrevida. Segundo Esbell,
em vídeo, diante dos aterros sanitários, é possível mensurar a destruição da
natureza. Toda produção do capital está descartada nesses locais. Esta é a marca
de um sistema que não se relaciona com a natureza. É a prova de que
consumismo e natureza não podem coexistir.
Durante o vídeo, caracterização de homem sertanejo identificado pelo uso
de chapéu de vaqueiro alusão às trocas de cabeças indígenas pela criação de
gado pelo artista. A brevidade de animais e do povo indígena causada pela
indústria pecuarista (não somente) aparece na caracterização do artista (indígena
e vaqueiro) nas cenas como
quick motion
5
. A rápida troca de caracterização usada
por Esbell, em vídeo, trata da rapidez em alocar animais (bois) em terras indígenas
ou em áreas verdes para expandir o agronegócio. Por imagens e caracterização
(vaqueiro/indígena) dessa triste realidade, o criador abre um amplo debate sobre
áreas verdes usadas para interesses econômicos que favorecem pequenos grupos
e que provoca grande impacto ambiental que, por vezes, é irreversível.
É a partir do vídeo que o artista vincula sua ação central durante a oficina
(segunda etapa): procurar materiais do/no lixo para (re)elaboração de artefatos de
uso comum e transformar em material simbólico. A conexão do vídeo com a ação
de busca por materiais e reuso é a peça-chave para o desdobramento do ato e
aliança em prol da natureza.
Ruas e rios
Outra artista presente nessa oficina foi Bernal
6
(1945-2020) apelido
carinhoso dito várias vezes por Esbell que também foi propositora da oficina. Na
etapa de busca por materiais de confecção de raladores e suportes para tinta de
jenipapo, Bernaldina esteve conosco percorrendo a cidade em busca de
materiais recicláveis.
5
Quick motion
(movimento rápido) é uma linguagem cinematográfica que indica movimento acelerado e/ou
câmera rápida.
6
Vó Bernal virou encantada no ano de 2020, vítima da covid-19. Este material faz menção a ela em memória
e a Jaider Esbell. Dessa maneira, peço licença aos povos e seres da Floresta para deixar esse registro de
percurso por meio de minhas palavras.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
8
Figura 1 - Na imagem, vó Bernal, com auxílio de um martelo e prego, faz furos em um
pedaço de lata descartado na cidade. Foto: Vilma de Paiva
No centro da cidade, região de descarte e compra de alimentos e insumos,
a coleta de materiais para feitura de utensílios revelou o abandono desenfreado
nas ruas. Alertou para enorme produção de lixo da população e também para a
falta de políticas públicas e responsabilidade estatal que trate com seriedade a
questão do meio ambiente. Diante do impacto urbano, Bernal, ao se deparar
com um rio poluído em meio a cidade ensurdecida pelo barulho de carros, inicia
seu canto para reavivar o rio morto (poluído).
O canto da anciã Macuxi, em meio à natureza soterrada pela construção da
cidade de São Paulo, exigiu sensibilidade, pois mesmo sobre pedras, arquitetura e
trânsito intenso, a passagem da natureza por baixo da cidade foi reconhecida pela
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
9
anciã. O rio Tamanduateí
7
, que passa pela grande metrópole, encontra-se em sua
maior parte canalizado, mas foi responsável por abastecimento local de indígenas
e portugueses durante longos séculos após a colonização.
O choque de hábitos da metrópole em contraste ao olhar da indígena sobre
a destruição da natureza em prol da construção e permanência urbana ficou
evidente nas palavras do canto Macuxi. A sensibilidade da anciã ao se colocar
frente ao rio, cantar e dançar em meio à agitação da cidade foi repentino, sensível
e relacional entre ela e a natureza machucada.
Figura 1 - Frame de vídeo: Vilma de Paiva. Na imagem, Vó Bernal está de frente
para o rio Tamanduateí, na região central da cidade de São Paulo
8
7
Fonte: https://acervo.estadao.com.br/noticias/lugares,rio-tamanduatei,8349,0.htm. Acesso em: 04 jan. 2022.
8
Disponível em: https://youtu.be/qo2NbJLIm7M.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
10
Para Kambeba (2020), a cultura, para os povos originários, é um processo
dinâmico que flui internamente como o tronco das árvores, mas que necessita de
cuidado e, para isso, a educação, a leitura, a escuta e o aprendizado são
necessários. Tomando isso como aporte, podemos verificar no canto Macuxi a
dinâmica intrínseca das práticas de adoração e valorização da natureza quando a
anciã se depara com o rio em meio à cidade. A autora acrescenta que o corpo
indígena é como uma tela ou livro que contém conhecimentos fundamentais para
a comunicação visual e oral do meio social.
Diferente da prática de olhar o espaço e reconhecer a natureza como o modo
operativo de Vó Bernal, os participantes da oficina, como eu, se preocupavam em
encontrar material descartado na cidade de maneira irresponsável e desenfreada.
A austeridade de ver a natureza se deteriorando parece fazer parte de pessoas da
cidade que já não se impactam com a poluição.
Sobre isso, Stengers pontua:
Nós herdamos de uma destruição, os filhos daqueles que, expropriados
de seus
commons
9
, foram a presa não apenas da exploração, mas
também das abstrações que faziam deles qualquer um, temos que
experimentar o que pode recriar fazer pegar novamente, como se diz
das plantas a capacidade de pensar e agir juntos (Stengers, 2009, p.75).
Para a filósofa, a experiência em torno de honrar Gaia, como a autora nomeia,
está em “aceitar mudar de vida” (Stengers, 2009, p.76). Nessa perspectiva, a
experiência está ligada à luta política que não passa por produção de repercussão,
mas na construção de “caixas de ressonância” (Stengers, 2009, p.78) que
propiciem outras formas de agir e ouvir. Decerto, não se trata de substituir uma
cultura por outra, mas da (re)construção de mundos, de composição. Assim, o
canto Macuxi vida à ressonância da natureza que caminha precariamente na
cidade em um som irreconhecível pela população local. Esses sons estão
presentes nos rios (visíveis ou cobertos pelas grandes construções), nos pássaros,
no balanço das árvores etc.
9
A autora expõe
commons
(comum) como essencial para a vida nas comunidades camponesas. Em sua
reflexão o comum se traduziria como usuário na concepção de que juntos podemos pensar, criar, imaginar
ao passo que cada um realiza o que é importante para o outro.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
11
Ao buscar, pela cidade, materiais de uso comum (latas grandes, garrafas pets,
baldes e ripas de madeira), reconhecemos as palavras de Esbell sobre o abandono
e consumo desenfreado de objetos desenvolvidos pela indústria e descartados de
modo deliberado. O caos desses objetos no meio ambiente passa despercebido,
pois o despojo e o alto consumo parece ser comumente aceito. Não um
impacto visual e de responsabilidade. Diferente do impacto do rio morto detectado
pelo olhar da anciã, muitos não indígenas veem essas cenas de forma natural.
Depois de coletar os materiais necessários para dar início à feitura dos
raladores, retornamos para o local com os materiais em mãos e iniciamos a
limpeza. Reformulamos as funções de uso dos materiais encontrados para criar
os raladores.
(Re)uso
Depois de limpar todo material encontrado nas ruas da cidade, Esbell e nós
participantes, iniciamos o pensamento sobre a reutilização dos materiais de uso
comum. O corte da madeira e das latas determina a quantidade de jenipapos que
podem ser ralados com rapidez e precisão. Os desenhos, diretamente ligados à
etnia Macuxi, com pontilhados feitos com prego e martelo, exigiram paciência,
criatividade e funcionalidade. Visto que os raladores precisavam ser úteis para
rapar os jenipapos e dar sequência às atividades da oficina. Na condução da
criação, Esbell conversou com cada participante. A construção do ateliê foi
colaborativa, pois cada participante recebeu orientação sobre o que pretendia
construir com os materiais, embora todo acabamento tenha se dado pelos
próprios artistas. Depois disso, houve um longo tempo dedicado a ralar os
jenipapos. Esta parte foi realizada pela anciã Vó Bernal
10
e, majoritariamente neste
10
Notório ressaltar que esse material toma como aporte a publicação de A. Seeger, R. da Matta e E. Viveiros
de Castro (1979) sobre as terras baixas da América do Sul ou Amazônia que, mesmo reconhecendo a
contribuição dos estudos de ecologia cultural, frisaram que tais estudos não são capazes de gerar conceitos
antropológicos para a descrição de comparação dos fenômenos de organização social. Nesse sentido,
aderiu-se a noção de pessoa para equacionar as sociedades indígenas da Amazônia. Assim, entendo, a partir
da contribuição de Strather (2006), que a construção de gênero como fenômeno de
dominação/subordinação não se aplica a determinadas sociedades. In: A. Seeger e et al. “A constru
çã
o da
pessoa nas sociedades indígenas brasileiras”.
Boletim do Museu Nacional
, Rio de Janeiro, no 32, 1979, p. 2-
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
12
dia, por mulheres. Não é um trabalho fácil. Ao longo do processo um
esgotamento físico notável, mas a anciã não se mostrou abatida, pois durante todo
trabalho ela cantava e falava de seu povo.
Figura 3 - No centro da imagem, vó Bernal, à direita, eu e, à esquerda, outra participante
da oficina. No fundo, um outro trabalhador varria o chão. Foto: Vilma de Paiva
O jenipapo é uma fruta que também é utilizada para pintura corporal. O uso
da fruta não madura produz o efeito azulado da tinta que permanece no corpo
durante dias ou semanas. O impacto da cor na pele aparece depois de algumas
19. Sobre gênero: Marilyn Strathern.
O gênero da dádiva: problemas com as mulheres e problemas com a
sociedade na Malanésia
. Campinas, Editora da Unicamp, 2006.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
13
horas. Inicialmente, pode confundir os participantes mais despreparados.
A anciã raspava levemente os jenipapos e depois dividia entre participantes.
Os raladores feitos eram usados nessa etapa. De cor esverdeada, o jenipapo não
revela inicialmente sua cor profunda e penetrante. Depois, é necessário torcer
cada porção ralada e aproveitar o caldo que será usado como tinta.
Figura 4 - F. À esquerda da imagem, Jaider Esbell e, à direita, vó Bernal. Ambos estão com
martelo e prego furando latas para confeccionar raladores. Foto: Vilma de Paiva
Performance: Txaismo & outros feitiços para salvar a Raposa
Serra do Sol
Segundo Josette Féral (2015), a performance nos anos de 1970 não apenas se
apresentava como gênero, mas como função política e podia pertencer às práticas
de diferentes manifestações artísticas. Sobretudo, a distinção entre gênero e
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
14
função permite compreender que, na atualidade, a performance difere do passado
e sua função tem por efeito despertar, provocar, insistir nas relações diferentes
entre obra e público. Acrescenta que fazer performance, hoje, não é priorizar
função, mas permite que o artista declare um discurso “primeiro sobre o mundo
e acessoriamente sobre a arte” (Féral, 2015, p.176).
Quase no final do dia, depois da feitura dos raladores e da tinta de jenipapo,
o artista se colocou numa performance relacional.
Jaider Esbell, indaga: “– O que vem a ser o Txaismo?”. Seu trajeto de reflexão
parte do questionamento a partir da relação de animais e plantas da Amazônia.
Em sua revelação, há indicativos de que tudo aparece de forma dúbia e plural. Em
uma passagem em seu site, Esbel descreve Txaismo como cenário de humor entre
as árvores antigas “falando” sobre a questão. O riso parece ser, antes de tudo, um
princípio de reflexão: “rir da magia, rir da cor, rir da putaria, rir da ciência, rir da
colocação, rir do Curriculum lattes, [...] sorrindo todos os bichos estavam pois
talvez o Txaismo seja uma forma extravagante de felicidade descabida”( Esbell,
2018)
11
.
Esbell pontua que
Txaismo
também é assunto de gente, mas de tanta
suspensão evaporou no aquecimento global. Seu retorno acontece por meio da
miçanga, escultura, pelos livros e pela arte.
A ideia de
Txaismo
não se trata de entendimento único, mas da polissemia
rica e complexa. São taxonomias que não se fixam, mas que se (re)significam a
cada relação.
Para Almeida (2018), o Txaismo trata de um exercício de contrastes, sem
classificação definida, pensada pelos próprios indígenas e relacionada a processos
demarcatórios. No Acre, por volta de 1970, pensava-se em reservas indígenas
como lotes e não havia perspectiva de território, isso denominava “rondonismo”
12
.
11
Fonte: http://www.jaideresbell.com.br/site/2018/08/13/o-txaismo-os-txaistas-e-os-ismos/. Acesso em: 12
dez. 2021.
12
Almeida (2018) acrescenta que o rondonismo desenhava as terras indígenas como lotes e não como território
e sua principal articulação pressupunha uma persona de mediação forte (pioneiro, decidido e regulador). Era
uma figura inspirada no catecismo positivista que forçou um ‘indigenismo”, que em sua radicalidade, definiu
até as vestes dos indígenas.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
15
A ideia de território trazida pela “vilaboaismo”
13
, era de um parque indígena, sob a
ótica construída de fora por um mediador com argumentação em relação às
tratativas do Estado. Nesse sentido, o
Txaismo
foge desse modus operandi e se
pela autonomia de indígenas em relação ao território. Além da experiência do
Acre, o
Txaimo
constitui-se como mapas produzidos pelos próprios indígenas por
meio do conceito de terras tradicionalmente ocupadas.
Assim, pode se observar que Txaismo pode trazer incômodos, sobretudo
porque inverte alguns entendimentos tradicionalmente compreendidos do que
vem a ser território.
As pistas deixadas por Esbell sobre o incômodo dos humanos ao escutar a
palavra
Txaismo
, sinaliza uma retomada para algo que, ao longo do tempo, sofreu
um desvio de atenção.
O riso debochado da natureza e a amplitude do termo podem ser entendidos
como um empate entre humanos e não humanos. Para tanto, o artista explora a
figura da criança como ponte da questão sobre o que é
Txaismo
. A criança
questiona o adulto e o incômodo do adulto resulta na negligência de se
responsabilizar pelos efeitos nocivos à natureza. A dificuldade em modificar
hábitos prejudiciais ao meio ambiente reflete-se na política da morte de sua
própria descendência. O incômodo da palavra aparece na arte, na ambivalência
belo/grotesco como signos de desconstrução. Um olhar meticuloso sobre o que
virá com a decadência da relação dos humanos com a Terra.
Durante a performance, o artista faz uma longa explanação sobre
Txaismo
frente a uma cuia com a tinta fresca de jenipapo. Informa que o jenipapo é um
artifício em que o povo indígena fica irreconhecível e nenhuma máquina pode
captar. Isso se dá, pois em contato com a pele (mãos e corpo), o jenipapo, em seu
princípio ativo de cor azulada, não possibilita que máquinas identifiquem a digital
dos dedos das mãos. Com isso, a identificação pela digital, caso necessária, se
torna impossível com os princípios ativos da fruta não madura.
Ao tocar inicialmente o caldo azul da fruta nada acontece. Passado algumas
13
O vilaboaismo, para Almeida (2018), defendia a gerência dessas terras por funcionários que ficavam
encarregados em criar mapas e também tinha como atributo um mediador externo com poder de
convencimento frente ao Estado e austeridade na relação com indígenas.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
16
horas, o azul penetrante toma conta do corpo. Depois de molhar suas mãos e
proferir sobre
Txaismo
, ele convida os atuantes da oficina e os espectadores a
molhar as mãos (caso queiram) numa tentativa de
reaproximação/responsabilização. Digo isso, pois dias depois, caminhando pela
cidade, muitas pessoas desconhecidas me perguntavam sobre o que tinha em
minhas mãos. Dizia que era uma performance ritualística do povo Macuxi e
contava um pouco da ação que tinha participado. Nesse momento, percebi que a
ideia de reaproximação/responsabilização, mesmo estando longe de Esbell e
Bernal, continuava. Parece que tinha um desdobramento em narrar um pouco de
seu povo para outres que não tiveram contato com a performance e
desconheciam ritos latentes dos povos originários. Embora não tenha contado
sobre a etnia Macuxi, pois não era este o propósito, mesmo a tendo citado, sinto
que existe uma tentativa de marcar, por meio do jenipapo, uma narrativa de
deslocamento pela cor das mãos em azul.
Existiu um processo de elo de responsabilização entre indígenas e não
indígenas em olhar para a cidade, para a natureza e para as nossas relações
humanas e não humanas na tentativa de criar novas maneiras de se relacionar.
Para Pereira (2020), o corpo tem uma dimensão simbólica que estabelece
expressividade e intencionalidade individual ou comunitária no seu fluxo. Ela
defende que a expressividade pode ser um modo de aproximar grupos por meio
da tradição. À vista disso, o conhecimento simbólico e também os conhecimentos
culturais são trazidos por meio de sentidos sensíveis que incorporam
possibilidades de saberes sobre o corpo a partir da narrativa fenomenológica. Essa
narrativa fenomenológica se renova ao mesmo tempo que nos localiza no
contexto histórico de origem, numa tentativa de destacar a tradição e questão
simbólica dos povos originários.
Nessa perspectiva, a performance proposta pelos artistas cria uma aliança
entre indígenas e não indígenas por meio do campo simbólico da arte. O
participante da ação carrega consigo a responsabilidade do elo de novas alianças
que podem trazer à tona outras visões de mundos a partir do olhar para as práticas
e vivências das sociedades indígenas.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
17
Considerações Finais
Ao trazer a proposta de realizar três etapas de um processo plural e rico,
Esbell e Bernal conseguiram tensionar um “espírito de reconhecimento”
(Stengers, 2018, p.463). Assim, a aliança em prol de algo em comum estaria no
campo simbólico da arte que, pela experiência trazida pelos Macuxis, nos direciona
“para ver com os olhos do outro” (Stengers, 2018, p.463). Para Stengers (2018), essa
arte estaria mais próxima da magia negra que poderia conduzir pessoas a lutar,
não por interesses gerais, mas em maneiras de constituir a sobrevida da própria
humanidade.
As etapas direcionadas por Esbell e Vó Bernal (vídeo, coleta de materiais nas
ruas e performance) suscitam a possibilidade de recriar manejos de ação frente a
tempos difíceis. Não bastando estar inserido na ação, mas refletindo sobre o
impacto das escolhas ao realizar ações artísticas que estejam em diálogo com o
meio ambiente. Dessa maneira, as pistas deixadas pelos artistas não apenas
apontam para a responsabilidade de artistas com os mundos, mas ativa, no
espectador/participante, uma ação multiplicadora. Isso pode ser evidenciado pela
curiosidade das pessoas sobre a cor azulada em minhas mãos dias depois do
evento.
Nesse sentido, o interesse de outrem (re)conectava a floresta, o povo Macuxi
e também trazia uma referência do uso de frutas nacionais em processos
ritualísticos de ancestrais da terra.
Notório ressaltar a importância da ação, sobretudo de grandes artistas como
Jaider Esbell e Bernal, em nos permitir, em vida, que tal produção fosse possível
antes de seus encantamentos. O percurso exemplar de ações que tensionam uma
possibilidade à luz da cosmopolítica foi possível graças a esse feliz encontro de
arte e vida oportunizado pelo povo Macuxi.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
18
Referências
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno de. Nova Cartografia Social: territorialidade
específicas e politização da consciência das fronteiras. In.
Cartografia social
catálogo povos comunidades tradicionais 1
, 2018.
Disponível em: https://issuu.com/matsu.cash/docs/cartografi_social_-_catalogo-
povos- Acesso em: 24 nov. 21.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor.
O idiota
. São Paulo: Editora 34, 2014.
FÉRAL, Josette.
Além dos limites: teoria e prática do teatro
. São Paulo: Perspectiva,
2015.
KAMBEBA, Márcia Wayna.
Saberes da floresta
. São Paulo: Jandaíra, 2020.
KRENAK, Ailton.
Ideias para adiar o fim do mundo
. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
MUNDURUKU, Daniel.
Todas as coisas são pequenas
. São Paulo: Arx, 2008.
PEREIRA, Arliene Stephanie Menezes.
Aninhá vaguretê: corpo e simbologia no ritual
do Torém dos índios Tremembé
. Curitiba: Appris, 2020.
STENGERS, Isabelle.
No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima
.
São Paulo: CosacNaify, 2009.
STENGERS, Isabelle. A proposição cosmopolítica.
Revista do Instituto de Estudos
Brasileiros
, [S. l.], n. 69, p. 442-464, 2018. DOI: 10.11606/issn.2316-901X.v0i69p442-
464. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/145663. Acesso em: 13 jan. 2022.
Vídeo
Vó Bernal
https://youtu.be/qo2NbJLIm7M
Arquivo pessoal de Jaider Esbell
https://web.facebook.com/jaider.esbell/videos/2485066561606906
https://web.facebook.com/jaider.esbell/videos/2485530708227158
https://web.facebook.com/jaider.esbell/videos/2487750921338470
https://web.facebook.com/jaider.esbell/videos/2485459461567616
Sites
Jaider Esbell
http://www.jaideresbell.com.br/site/2018/08/13/o-txaismo-os-txaistas-e-os-
ismos/ Acesso: 25 nov. 20.
A proposição cosmopolítica na obra de Jaider Esbell e Vó Bernal
Flaviana Benjamin
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
19
http://www.acervocal.unb.br/acervo/videoarte-19/. Acesso em: 12 dez. 2021.
Terra Indígena Raposa Serra do Sol
https://terrasindigenas.org.br/pt-br/terras-indigenas/3835
Cimi
https://cimi.org.br/2019/10/raposa-serra-do-sol-como-esta-a-terra-indigena-
apos-uma-decada-da-historica-decisao-do-stf/
Instituto Sócio Ambiental – ISA
https://www.socioambiental.org/pt-br/tags/raposa-serra-do-sol
Recebido em: 15/01/2022
Aprovado em: 07/03/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br