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A arte de desarmar: corpo, escrita e
dispositivos performativos em tempos
sombrios
Cassiano Sydow Quilici
Para citar este artigo:
QUILICI, Cassiano Sydow. A arte de desarmar: corpo, escrita
e dispositivos performativos em tempos sombrios.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas,
Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0108
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Cassiano Sydow Quilici
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
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A arte de desarmar: corpo, escrita e dispositivos performativos em
tempos sombrios
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Cassiano Sydow Quilici
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Resumo
Dispositivos que articulam exercícios de atenção, escrita e práticas
performativas foram meios de investigação de hábitos perceptivos, que
desencadearam a invenção de linguagens e formas de compartilhamento,
envolvendo ambientes artísticos e educacionais, na perspectiva de uma cena
expandida. Ao lado dos procedimentos propriamente ditos, desenvolveu-se
uma reflexão sobre o atual contexto de crises, em que se inserem atividades
artísticas e formativas, especialmente no Brasil. As proposições dialogaram
com saberes tradicionais, artísticos e acadêmicos, conectando dimensões
sensoriais, perceptivas, afetivas e cognitivas, para a construção de ambientes
e experiências coletivas. O artigo integra procedimentos da pesquisa na sua
forma, intercalando reflexões teóricas com relatos curtos e “imagens”, que
dialogam indiretamente com os temas abordados.
Palavras-chave
: Percepção. Corpo. Escrita. Performance. Crise.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Raquel Valente de Gouvêa. Doutorado em Educação,
mestrado em Artes e bacharelado em Filosofia, toda a formação acadêmica na Universidade Estadual de
Campinas UNICAMP, SP. gouvearaquel@gmail.com
2
Pós-doutorado em Artes Cênicas pelo Centro de Estudos Teatrais da Universidade de Lisboa, Portugal (2019).
Professor livre-docente na área de Teorias do Teatro e da Performance pelo Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (2002). Mestrado em Antropologia Social no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp - 1992). Bacharelado em Ciências
Sociais na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp - 1981). Desde 2004 é professor da graduação e
da pós-graduação em Artes Cênicas, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
cassianosyd@uol.com.br
http://lattes.cnpq.br/4947462947102900 https://orcid.org/0000-0003-0042-5378
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The art of disarming: body, writing and performative devices in dark
times
Abstract
Devices for developing exercises of attention, writing and performative
practices are presented here as means of investigating habits of perception,
stimulating the invention of languages and forms of sharing, and engaging
with artistic and educational spaces, within the perspective of an expanded
scene. Alongside the presentation of the procedures themselves, reflections
are developed in relation to the context of crises within which artistic and
educational activities are inserted today, particularly in Brazil. The
propositions presented dialogue with traditional, artistic and academic
knowledge, connecting sensorial, perceptual, emotional and cognitive
dimensions in order to construct collective spaces and experiences. The
paper integrates, in its very form, the procedures of the research, interweaving
theoretical reflections with short accounts and images that converse
indirectly with the themes approached.
Keywords
: Perception. Body. Writing. Performance. Crisis.
El arte de desarmar: cuerpo, escritura y dispositivos performativos
en tiempos oscuros
Resumen
Dispositivos que articulan ejercicios de atención, escritura y prácticas
performativas se presentan aquí como medios para la investigación de
hábitos perceptivos, desencadenando la invención de lenguajes y formas de
compartir, involucrando ambientes artísticos y educativos, en la perspectiva
de una cena expandida. Junto a la presentación de los procedimientos, se
desarrolló una reflexión sobre el contexto de crisis en el que se insertan las
actividades artísticas y formativas, hoy, especialmente en Brasil. Las
propuestas presentadas dialogan con saberes tradicionales artísticos y
académicos, conectando dimensiones sensoriales, perceptivas, afectivas y
cognitivas, para la construcción de ambientes y experiencias colectivas. El
artículo también integra, en sus aspectos formales, procedimientos de la
investigación, intercalando reflexiones teóricas con breves narrativas e
imágenes que dialogan indirectamente con los temas abordados.
Palabras clave
: Percepción. Cuerpo. Escritura. Performance. Crisis.
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Introdução
Neste artigo, compartilho elementos de uma pesquisa sobre escritas
performativas e práticas de atenção/percepção, que envolveram um pós-
doutorado realizado na Universidade de Lisboa, no segundo semestre de 2019
3
. Na
forma do texto, incorporo procedimentos elaborados durante a investigação,
intercalando o exercício teórico-reflexivo com “imagens” (pequenas histórias que
criam pausas e suspensões), que deslocam o leitor para diferentes modos de
apreensão dos temas tratados. Adoto o termo “imagem” apoiando-me na
proposição de Walter Benjamin (2013) sobre as “imagens de pensamento”. Como
se sabe, por vezes, este autor investiu numa escrita fragmentária, rompendo a
cadeia de deduções como única forma de exposição do pensamento filosófico. Ao
invés disso, exercita o que chamou de “arte da interrupção”, incorporando ao texto
relatos de experiências e ficções, como recurso para não enclausurar o discurso
teórico na universalidade do conceito. Desse modo, cria mosaicos e constelações
em que imagens tensionam a reflexão, valorizando a singularidade do vivido.
De modo similar, os fragmentos teóricos aqui apresentados são
interrompidos por narrativas curtas, criando uma composição que chamarei
“ideogrâmica”, inspirando-me nos estudos de Campos (1977) sobre os ideogramas
chineses e como eles criam sentidos a partir da composição de imagens
sensoriais. Por exemplo, no chinês antigo a ideia de tristeza é formada pela
combinação do ideograma “coração” com o ideograma “cinzas”. Tais composições
enfatizam a experiência sensível como sustentação de ideias abstratas. Do mesmo
modo, ao inserir pequenos relatos ficcionais, interrompendo o discurso teórico,
proponho deslocamentos da leitura para outras formas de cognição e
sensibilidade, que apoiam o desenvolvimento do pensamento. Assim, afirmo o
desejo de entrelaçar a experiência sensível e corporal aos desdobramentos
reflexivos e vice-versa, estabelecendo uma espécie de circulação entre o sentir, o
3
O projeto de pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Lisboa, Escritas performativas e práticas
perceptivas: estudos para uma cena expandida”, foi financiado por uma Bolsa de Pós-doutorado no exterior
PD/FAPESP, no período de setembro a dezembro de 2019. O artigo faz referência também a uma pesquisa
mais abrangente financiada pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa PQ do CNPq, entre os anos 2019-
2021.
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perceber, o pensar e o intuir.
Imagem 1: A arte de desarmar
Quando lhe falei que certas artes marciais poderiam ser vistas como dança,
me olhou de um jeito estranho. Ele gostava de “treinar forte”, como costumava
dizer. Interessava-se pela dimensão ética das práticas dos antigos guerreiros,
personagens que idealizava. Entusiasmava-se especialmente por aspectos ligados
à ordem, à limpeza, à disciplina, aos protocolos. O mundo andava por demais
caótico e aquilo parecia acalmá-lo. Um dia, não sei bem por que, pedi-lhe para
fazer uma cena solo, sem “quarta-parede”, em contato direto com o pequeno
público de nossas reuniões. Entre nervoso e excitado, acabou aceitando. Primeiro,
apresentou-nos uma sequência de movimentos marciais, executada com
correção. Nossa indicação foi que repetisse o exercício inserindo uma interrupção
dos movimentos e um texto que lhe aprouvesse. Tempo se passou e finalmente
a cena veio: os mesmos movimentos agora eram suspensos num determinado
ponto e, na pausa, ele nos oferecia um poema sobre a morte. Nesse momento,
seu rosto tenso desmanchou-se e as lágrimas brotaram caudalosas. Silêncio no
espaço. Alguma coisa acontecia ali. Poderia ser um bom começo, pensei, mas
aquilo não vingou. Logo ele se afastou de nós, cortando qualquer laço. Soube que
retomou seu antigo círculo de amigos. Tempos depois, vi uma foto sua com uma
camisa verde e amarela. O quão difícil é a arte de desarmar.
A reconfiguração dos hábitos
Pequenos acontecimentos em sala de aula, grupos de pesquisa, ensaios e
oficinas podem revelar aspectos fundamentais dos saberes envolvidos nos
processos de criação e formação das artes performativas. Cada um de nós é
constituído por hábitos físicos e mentais desenvolvidos ao longo da própria
trajetória existencial e social; traços que marcam um modo de ver e de se
relacionar com o mundo e consigo. Nesse sentido, as circunstâncias coletivas e o
contexto histórico são elementos constitutivos das subjetividades. Então, é
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possível pensar o trabalho formativo-criativo como um processo de tomada de
consciência dessas propensões e automatismos, de modo a ganhar discernimento
e liberdade em relação aos estados psicofísicos que experimentamos
corriqueiramente. A partir daí, é possível liberar a energia que anima tais padrões,
recanalizando-a para outras formas de viver.
Os impulsos na direção desses processos nem sempre são plenamente
conscientes. Por vezes, se manifestam como um vago mal-estar, que pode variar
de intensidade mas sempre sinaliza uma inadaptação ao mundo conformado, ao
lado do sentimento de urgência em relação à necessidade de buscar outros
caminhos. Tais propensões podem configurar práticas artísticas de caráter
micropolítico em diferentes ambientes, visando abrir espaços para outras
qualidades de percepção, cognição e relação, enquanto modos de resistência a
uma situação de crise. Em momentos de tensão, atividades artísticas e
educacionais oferecem um tipo de refúgio, no qual vínculos mais amistosos e
solidários são estabelecidos, tornando-se um importante lugar de cuidado para a
sobrevivência psíquica e a sustentação de uma experiência de pertencimento e de
acolhimento.
Ao mesmo tempo, o mal-estar que está na origem desses projetos, ao ser
encarado em profundidade, nos leva a horizontes mais amplos de investigação,
colocando em xeque significados cristalizados de termos como “arte” e
“formação”. Para que a arte se torne um lugar de recriação das formas de vida, é
importante que ela se articule com outros saberes, acadêmicos e tradicionais,
ajudando-nos a redefinir suas funções e práticas. Assim, não se trata de submetê-
la a uma teoria exterior como uma sobredeterminação, mas de descobrir lugares
e dispositivos que agenciem outras perspectivas de entendimento e atuação, na
imanência de seus procedimentos.
É necessário elaborar uma compreensão da constituição e transformação
dos nossos hábitos, como questão fundamental que emerge em processos
criativos e educacionais. A princípio, hábitos são formas solidificadas de habitar o
mundo. Eles produzem territórios e ambientes familiares que nos fornecem
alguma estabilidade. Mais do que uma coleção de atividades, posturas, modos de
sentir e de perceber, os hábitos estão ligados à nossa aclimatação ao mundo, à
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criação de atmosferas que nos fazem “sentir em casa”. Nossos territórios não são
anteriores às formas de agir, mas são criados por práticas que se repetem,
agenciando elementos diversos e heterogêneos. Um hábito não é apenas uma
atividade, mas uma composição de elementos que se agregam e contracenam:
tomar um café, naquela hora do dia, num determinado local, mobilizando uma
série de objetos e gestos, tudo isso cria um pequeno mundo que pontua o
cotidiano, esculpindo a nossa relação com a passagem do tempo, imprimindo-nos
um ritmo e uma respiração.
Tais territórios, constituídos por um agenciamento de elementos físicos e
mentais, humanos e não-humanos, formam uma espécie de esfera, espaço
relativamente ordenado e previsível, fundamental para a estruturação primeira do
ser humano como um ser vulnerável e dependente. A própria situação uterina é
bastante eloquente sobre a necessidade de envoltórios protetores, que sustentam
formas incipientes de vida
4
. Esses ambientes se prolongam até o domínio familiar
que, bem ou mal, constitui parte significativa das referências básicas de proteção
e previsibilidade, internalizadas por meio de padrões relacionais adquiridos desde
os primeiros anos.
A porosidade do primeiro espaço protetor assinalará a qualidade de nossas
relações com o “fora”, que poderá ser vivido como mais ou menos desorganizador
ou até como ameaça perigosa. De qualquer forma, a abertura para além dos
limites da esfera protetora inicial é sempre um processo que envolve certo grau
de risco e ousadia. Romper a casca implica uma postura afirmativa, de quem
amplia seu território existencial. Por isso, nas sociedades tradicionais, os “ritos de
passagem” são marcados por provas que desenvolvem qualidades latentes nos
neófitos, conduzindo-os a uma transformação ontológica
5
. Daí a metáfora do
guerreiro ser frequentemente evocada para nomear essa disposição. Cabe
ressaltar que a imagem pode gerar distintas formas de compreensão,
comportando tanto a rigidez militar como a flexibilidade do dançarino.
Interessam-me processos de transformação que não demandam apenas
4
Sobre a noção de “esfera” como bolha protetora na infância, ver Sloterdijk (2016).
5
Sobre a experiência liminar nos ritos de passagem, ver Turner (2005).
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qualidades ativas, mas outros tipos de saber ligados ao perceber e ao lidar com
acontecimentos que nos desfazem como sujeitos fixos, expondo nossa
instabilidade e vulnerabilidade. A figura marcial se enrijece num estereótipo
quando não nenhuma porosidade para a alteridade, que passa a ser
dimensionada como um inimigo a ser combatido. A aversão às experiências que
podem provocar alguma desorganização revela uma estrutura frágil, tanto do
ponto de vista afetivo como cognitivo. A incapacidade de lidar com situações que
não correspondam a uma ordenação prévia, bloqueia a reconfiguração da
subjetividade em bases mais complexas e abrangentes. Tal estreiteza de
perspectivas pode se expressar como couraça, física e emocional, a qual reage às
forças que poderiam desequilibrá-la.
Há, no entanto, um caminho a ser percorrido para que formas de existência
consolidadas, mesmo as geradoras de sofrimento, possam ser reconhecidas,
trabalhadas e transformadas. Uma pessoa não pode abdicar de uma hora para
outra de posturas e atitudes que estruturaram o seu estar-no-mundo. O processo
de “des-educar-se” e reconstituir-se é gradativo, demandando um ambiente que
suporte às delicadas operações que esse trabalho exige. Constituir espaços
adequados, que abriguem esses manejos, é fundamental. São brechas que
forjamos, muitas vezes, em meio a forças reativas de natureza micro e
macropolítica, que podem empurrar os sujeitos para posições regressivas.
Nos últimos anos, reativou-se no Brasil um processo de militarização da
política, que contaminou a vida social e abriu espaço para a emergência de
fantasmas não superados no processo de redemocratização do país. Traços
autoritários, atitudes reativas, paixões irracionais contaminaram espaços
cotidianos, atingindo também o ambiente artístico e educacional. A evocação da
“ameaça esquerdista”, das “guerras culturais”, da “dissolução dos valores”,
expressões comuns nas redes sociais, apela ao medo e a um sentimento de
insegurança, cujas causas complexas envolvem a precarização, econômica e
social, e a falta de condições culturais para a elaboração das recentes
transformações da sociedade brasileira. Numa perspectiva meramente reativa, o
fantasma do caos social e psíquico é evocado para justificar discursos extremistas,
como as ameaças de intervenção, o armamento da população, a nostalgia da
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ordem imposta pelos regimes autoritários, fazendo uso de uma linguagem
agressiva, que contribui para a instauração de uma atmosfera bélica.
Ao mesmo tempo, experimentamos uma crise mundial desdobrada em
múltiplas frentes - sanitária, ecológica, política, educacional, social, cultural -, que
podem ser compreendidas como sintomas do esgotamento das formas de vida
humana que se espalharam pelo planeta, especialmente, a partir da revolução
industrial. Discussões em torno do “Antropoceno” (Latour, 2020) enfatizam a
lentidão das sociedades contemporâneas para darem respostas eficazes aos
processos de degradação, que podem se tornar irreversíveis. Transformar modos
de existência profundamente arraigados exige um trabalho que conecta a
dimensão microscópica dos nossos hábitos a ações coletivas e macropolíticas de
longo alcance.
Então, como processos artísticos e de formação podem contribuir para
lidarmos com a urgência dessa situação? O conceito de "arte em campo
expandido” traz algumas contribuições. Derivado de uma discussão sobre a
hibridização dos gêneros na arte contemporânea (Quilici, 2014), o termo serve
também para colocar em questão as fronteiras que definem o lugar da arte na
vida social, nomeando uma série de estratégias de ação, intervenção, formação,
criação de ambientes e situações, que não se restringem à produção de
espetáculos. A “cena expandida” opera nas interfaces entre a arte e campos da
vida social - educacional, terapêutico, político, ecológico, filosófico etc. -,
reinventando seu poder de atuação em diálogo com outras práticas, situações e
formas de conhecimento.
Trata-se de desenvolver proposições em diferentes situações e ambientes,
que agreguem grupos heterogêneos de artistas, estudantes, pesquisadores e
interessados, de instituições educacionais, universitárias, culturais, laboratoriais e
comunitárias. Tudo isso não exclui operarmos com a “forma-espetáculo”,
entretanto, ela não é necessariamente o foco principal dos esforços, uma vez que
a atividade artística passa a ser pensada como criação de espaços liminares, que
abriguem investigações e experiências que possam se adensar, contribuindo, de
modo consistente, para o enfrentamento de questões públicas.
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Imagem 2 Estufa
“Ó tédio, ó nojo! Isto é um jardim abandonado cheio de ervas daninhas,
invadido pelo veneno e o espinho um quintal de aberrações da natureza. Que
tenhamos chegado a isso...” (Shakespeare, 2012, p.23). O jardineiro, então, afina o
olhar para o terreno. Discerne, cuidadosamente, o lixo do húmus. Começa o
paciente trabalho: separação das substâncias e qualidades, limpeza do campo,
produção dos adubos. Circunspecto, cuida diariamente das condições de
semeadura. O tempo estava fora do eixo e mutações atmosféricas imprevisíveis
exigiam algo a mais: um ambiente artificial capaz de filtrar a luz e manter o calor
em níveis aprazíveis, estabelecendo o ritmo vital, além de prover a necessária
umidade. Depois de pronta a estufa, aquele que ali entrasse teria dificuldades de
reencontrar o jardineiro, absorto em trabalho sutil e discreto, quase invisível.
Porém, o visitante que caminha pelos corredores, cercado de vasos e plantas,
poderia, de repente, sentir-se observado por raras orquídeas. Memórias da terra e
do céu se casam no aroma das rosas. À noite, quem sabe, ele sonhe com a “sólida
carne evaporando-se” até, por fim, “dissolver-se no orvalho”.
Dispositivos e operações
As proposições desenvolvidas no âmbito da pesquisa “Escritas performativas
e práticas perceptivas” sempre começam com a criação de um lugar, implicando
em rearranjo de elementos dados no cotidiano. No âmbito das oficinas e salas de
aula, a princípio, trata-se de reconhecer como um espaço está organizado e como
pode ser reconfigurado a partir de algumas operações simples. Uma proposta é a
“limpeza” do ambiente, prática inspirada em treinamentos do Teatro e das artes
marciais, em que os participantes passam panos úmidos no chão, em posições e
manobras específicas, como uma espécie de aquecimento corporal
6
. A retirada e
o reposicionamento dos objetos, que estão no ambiente, ajudam a circunscrever
o lugar em que se darão os trabalhos, de modo análogo à constituição de um
6
Conheci os procedimentos de limpeza do local de trabalho através dos artistas Toshi Tanaka e Ângela Nagai,
ambos pesquisadores e atores do teatro
, no Brasil.
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espaço ritual.
Mesmo numa cultura secular, é possível operar com práticas de diversas
“tradições” para estabelecer o ambiente onde se dará o trabalho. A criação de uma
atmosfera de cuidado favorece a concentração e o engajamento dos participantes
na medida em que os separa provisoriamente do mundo cotidiano, inserindo-os
numa espécie de microcosmos. Da mesma forma em que os neófitos são
separados do mundo profano nos períodos de passagem, o espaço liminar criado
pelas artes pode jogar um papel semelhante
7
. Durante a pesquisa, cunhei o nome
“estufa” para designar esse ambiente, que sustenta as atividades.
A efetiva ativação desse espaço, no entanto, se dará apenas com as ações
iniciais do grupo. Tenho utilizado movimentos e exercícios introdutórios do
Tai Chi
Chuan
e do
Yoga
8
por serem práticas que conectam ações corporais, respiração e
uma atitude de atenção ao que acontece no organismo, na mente e no ambiente.
Então, a conexão entre estados corporais e mentais começa a ser investigada. Tais
práticas também refinam a percepção do ambiente e do outro, criando uma
espécie de "sintonia coral" a partir da execução coletiva e simultânea. A ênfase na
coordenação entre os movimentos do corpo e a respiração sintoniza os
participantes com um sentido ampliado de pulsação e ritmo, fundamental para a
concentração e a estabilização da atenção. Trabalhos de pesquisadores como
Zarrilli (2009) sobre o uso dessas práticas em processos de treinamento e criação,
foram importantes na estruturação desses exercícios.
O desdobramento do treinamento de corpo-respiração nas práticas
relacionadas à voz é parte do processo que denomino “criação do espaço
vibratório”, em que utilizo técnicas básicas derivadas da música clássica indiana,
denominadas
Alankar
, que trabalham com sete sílabas ligadas às notas musicais
(Sa, Re, Ga, Ma, Pa, Dha, Ni). Esses exercícios me foram transmitidos pela
professora e artista indiana Meeta Ravindra
9
e são tradicionalmente usados como
7
Sobre algumas similaridades entre os ritos de passagem em sociedades tradicionais e os processos artísticos
modernos e contemporâneos, ver Turner (2015).
8
Os exercícios introdutórios de Tai Chi Chuan foram aprendidos com os professores Liu Pai Lin, Lucia Lee e
Eduardo Fukushima. Os exercícios introdutórios de Yoga fazem parte dos ensinamentos do monge budista
Bhante Rahula.
9
Meeta Ravindra mora no estado de o Paulo e oferece ensinamentos sobre sica clássica indiana e outros
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aquecimento para o trabalho com canções devocionais e ragas. Proponho também
exercícios simples e introdutórios que sensibilizam o corpo à vibração das vogais
emitidas durante movimentos e posturas. O uso de cânticos tradicionais e
populares como finalização dessa etapa cumpre o importante papel de convocar
os participantes como coro, corpo coletivo que vibra e ocupa o espaço vital do
trabalho, a partir de sons e palavras essenciais.
A etapa preparatória pode culminar nos exercícios considerados o coração
de todo o trabalho. Trata-se de adaptações de práticas meditativas provindas do
Budismo do Sul (
Theravada
), tradição que pesquiso muitos anos
10
. Digo
“adaptações” porque as proponho dentro de ambientes laicos e artísticos, distintos
dos centros budistas e meios monásticos em que normalmente são transmitidas.
Ao mesmo tempo, não vinculo os exercícios que proponho às práticas de
mindfulness
, que ganharam enorme popularidade no Ocidente nas últimas
décadas, inclusive no Brasil. Certamente, vários pesquisadores sérios dessa
versão da meditação, mas interessa-me reconhecer os contextos tradicionais em
que as práticas contemplativas são transmitidas e as tensões que estabelecem
com a sociedade contemporânea. Por isso, tenho defendido que é possível
estabelecer outros tipos de diálogo com o Budismo no campo das artes
performativas, sem enquadrá-lo a priori no conhecido formato das técnicas de
mindfulness
.
Trabalho com uma versão curta de dois elementos fundamentais da prática
meditativa budista: a estabilização da atenção e a investigação da impermanência
dos fenômenos, tomando o corpo como foco privilegiado. Partindo da posição
sentada, de relativa imobilidade e silêncio, o praticante conecta-se inicialmente
com a sensação do peso e a sustentação da coluna vertebral, relaxando as tensões
mais evidentes e mantendo, ao mesmo tempo, o tônus da postura. Em seguida,
focaliza sua atenção nas inalações e expirações, de maneira contínua. O
aprofundamento dessa etapa pode conduzir a uma experiência mais sutil do
aspectos da cultura tradicional.
10
Meu engajamento como praticante do Budismo Theravada iniciou em 1991, desde então, tive contato com
uma série de monges dessa linhagem, além de ter participado da fundação de um centro leigo dessa
linhagem em São Paulo - a Casa de Dharma. Destaco os ensinamentos de Bhante Henepola Gunaratana,
Bhante Rahula e Bhante Buddharakita, todos participantes do Bhavana Society, fundamentais para a
estruturação de minha prática.
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corpo, ligada às sensações do fluxo respiratório. Então, é possível investigar com
maior acuidade o corpo como um fenômeno em constante mutação
11
, cultivando-
se uma atitude mais lúcida em relação à impermanência e às vulnerabilidades de
nossa condição.
Mesmo que os participantes tenham dificuldade para avançar por terem de
lidar com incômodos físicos, impaciência, agitação etc., o exercício sempre
fortalece, em algum grau, a “escuta” do que surge e desaparece na experiência,
sejam sensações, percepções, pensamentos, memórias, atmosferas mentais. É
importante que, também no contexto artístico, a meditação seja apresentada
como uma atividade que tem uma finalidade própria, independente das
expectativas de instrumentalizá-la para outros objetivos. Sem isso, os desejos de
se obter algo com ela impedem que se abra o espaço de reconhecimento e
investigação daquilo que surge no corpo-mente.
Nessa proposta, o trabalho de criação apoia-se no cultivo da atenção,
reconhecimento e discernimento das qualidades dos estados físicos e mentais
que experimentamos continuamente. Pretende-se, com a prática diária, que o
exercício meditativo aos poucos consolide a capacidade do praticante de perceber
a qualidade dos estados que surgem e desaparecem, investigando-os. A escrita
aparece como uma nova etapa, um exercício realizado a partir do cultivo
intensificado de uma qualidade de atenção. Nesse momento, o desafio é encontrar
a linguagem que se aproxima de experiências nem sempre nítidas ou
convencionais. A prática meditativa, ao abrir a possibilidade de percepções pouco
habituais, coloca desafios ao ato de escrever. Como, então, captar a experiência
sem reduzi-la ao conhecido? Pode-se fazer uma analogia com a tentativa de narrar
um sonho, cheio de imagens e sensações fugidias.
Denominei o dispositivo proposto para essa etapa de “escrita fluida” ou
“escrita água viva”
12
. Depois da prática meditativa, durante um tempo
predeterminado, o participante desenvolve uma escrita contínua e calma a partir
11
Para uma compreensão teórica dessas práticas, a partir da experiência de mestres qualificados e de um
estudo rigorosos da literatura canônica na língua
pali
, ver Analayo (2003) e Gunaratana (1994).
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Utilizo-me da expressão “água viva em referência ao livro homônimo de Clarice Lispector. Na obra, a
escritora tenta alcançar a palavra que capta o instante fugidio.
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do que lhe ocorre no momento presente, sem preocupações gramaticais ou
estéticas. Importante frisar que não se trata de exercício de “escrita automática”,
como o desenvolvido pelos surrealistas, pois não se deseja necessariamente
quebrar a lógica ou a censura, para dar vazão à expressão do subconsciente. Ao
contrário, o exercício meditativo preliminar direciona o praticante a um estado de
atenção distinto da sonolência ou semiconsciência. Também não se trata de
relatar ou falar “sobre” o que foi vivido na meditação, mas de transferir a qualidade
de percepção alcançada ao ato de escrever, como quem pesca algo que está nas
entrelinhas dos pensamentos...
Nessa etapa da escrita, não compromisso de compartilhamento dos
textos, o que garante certo relaxamento para o praticante. Tenho observado que
muitas pessoas carregam uma pesada autocrítica ao escreverem. Acentuo a
função da linguagem no estabelecimento de uma conversa consigo mesmo, uma
espécie de escuta interior traduzida em palavras. A ausência de modelos
preestabelecidos nos desafia a encontrar a forma adequada à experiência. Após
um tempo determinado, interrompe-se a ação e, em seguida, o escritor lê o texto
em voz baixa para si mesmo. Essa é a primeira passagem do registro escrito para
o registo oral, que mobiliza outro tipo de corpo e de performatividade na relação
com a palavra.
A prática da “escrita fluida” ganha densidade quando repetida regularmente,
de preferência todos os dias. A confecção de diários, além de produzir um material
bruto que depois poderá ser utilizado, desenvolve a confiança na escuta e no fluxo
da experiência, ligando o praticante às "águas subterrâneas"
13
, que irrigam a vida
mental e corporal, para aprender a reconhecê-las com maior facilidade. Nesse
sentido, incentiva-se a anotação dos sonhos, que intensifica a conexão com
percepções menos nítidas, desafiando-nos a encontrar formas de desdobrar essas
experiências em palavras. O treinamento constitui-se como prática pessoal
desenvolvida individualmente, que expressa uma dimensão do trabalho do artista
sobre si mesmo. A continuidade da prática pode fazer florescer
insights
e/ou
memórias significativas.
13
Goldberg (2016) usa a imagem do “lençol freático” (
water table
) para designar o contato com um fluxo menos
consciente, que a prática contínua da escrita livre pode conduzir.
A arte de desarmar: corpo, escrita e dispositivos performativos em tempos sombrios
Cassiano Sydow Quilici
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
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Imagem 3: Espreita
Ia e voltava a da escola. Pelo caminho, praças arborizadas e casas
protegidas por cachorros. Os latidos assustavam. Dentes arreganhados. O mundo
e seus perigos. Naquele dia, na volta, parou na praça, perto da escola. Súbito, o
silêncio. Sem pensar, começou a repetir baixinho o próprio nome. Assim, para si
mesmo. Seu nome, velho conhecido, o mesmo que seus pais lhe tinham dado.
Conforme progredia no exercício, a palavra tornou-se in-cômoda, estrangeira. Ele
pensava: “meu nome é esse, mas bem poderia ser outro”. Mais do que isso, havia
algo ali, nebuloso, não cabendo no som. E o fato é que a repetição produzia uma
espécie de deleite. Diferente. Sensação de liberdade. Ele não era apenas “ele”.
Havia algo ali, sim, além do próprio nome, escondido atrás do som. Foi assim que
se iniciou na arte de espreitar a partir do centro vazio, que carregava sem saber e
que começava a desabrochar.
Compartilhamentos e oferendas
Inicialmente, o compartilhamento desses materiais se deu com o grupo de
participantes das oficinas/processos e envolvia a escolha e a reescritura dos
primeiros textos. Nesse momento, o próprio autor seleciona e trabalha com aquilo
que julga ter alguma importância pública, que seja uma contribuição para o
coletivo. A passagem do treinamento pessoal para a exposição e a partilha
demanda decisão e lapidação da linguagem. O texto gerado pela “escrita fluida”
passa agora por um processo de elaboração, no sentido da condensação poética
da linguagem e do enriquecimento das significações possíveis, em contraposição
à redundância e ao empobrecimento que observamos, muitas vezes, na
comunicação cotidiana, inclusive nas redes sociais. Acentua-se, assim, a dimensão
ética do trabalho poético, preservando a riqueza da linguagem como meio
fundamental de estabelecermos vínculos potencializadores e de fazermos circular
ideias e afetos. O aspecto micropolítico torna-se mais claro em períodos como o
atual, no Brasil, em que a palavra é por vezes utilizada como instrumento de
guerra, corroendo a possibilidade do pensamento, do diálogo e da democracia.
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Ao mesmo tempo, os compartilhamentos dos materiais não envolvem
somente a composição com palavras, pois, mesmo numa simples leitura de texto,
sempre uma dimensão corporal e performativa implicada. A situação da leitura,
o local, os objetos, as distâncias, as presenças físicas, os gestos e movimentos, as
sonoridades, cores, entre outros elementos, configuram uma “atmosfera”, uma
vibração singular do acontecimento não associada a um elemento em particular,
mas à constelação que se forma entre eles. Ficher-Lichte (2019), ao explorar o
conceito de “atmosfera” proposto por Gernot Böhme (2013 apud Ficher-Lichte,
2019), assinala a sua relação com a irradiação das presenças das coisas, suas
combinações, bem como ao modo como são percebidas pelos sujeitos. Nesse
sentido, a atmosfera não é um fenômeno exclusivamente objetivo ou subjetivo.
algo de animista no conceito na medida em que objetos e coisas não são
elementos mortos e inertes, pois atuam no espaço através de suas qualidades
formais e vibracionais, contracenando com os seres humanos.
A ideia da escrita performativa demanda a criação de compartilhamentos que
incluem a composição de elementos verbais e corporais, humanos e não
humanos. São verdadeiras instalações textuais, mesmo quando compostas de
elementos simples, mas que estão cuidadosamente dispostos. Costumo nomear
essas composições de “oferendas”, em alusão ao sentido ritualístico que carregam.
Transformar um material em oferenda implica oferecê-lo generosamente, não
como produto ou mercadoria, mas como dádiva, colocando o artista na posição
daquele que zela e cultiva. Da mesma forma que artistas tradicionais realizam
oblações aos deuses e ao invisível antes de desempenharem suas danças e peças,
entendo que esses dispositivos de compartilhamento ajudam a criar uma
determinada atitude em relação ao fazer artístico, recuperando algo do sentido
ritualístico na contemporaneidade.
Por fim, quando convidamos um público externo para participar, estamos
elaborando o que a teoria dos rituais chama de “fase da reagregação”
14
. Após a
intensidade do período liminar, em que os participantes se engajam nas práticas
e processos de criação, abre-se o trabalho para outro tipo de participante, que
14
Segundo Turner (2015), as três fases que compõem os ritos de passagem nas sociedades tradicionais são
“separação”, “margem ou liminaridade” e “reagregação”.
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ainda não viveu seu processo interno. Na perspectiva da cena expandida, o público
não desempenha necessariamente um papel igual ao que lhe é destinado nos
espetáculos convencionais. Outros jogos podem se estabelecer. No caso da
abertura do trabalho realizado, em 2019, na Cooperativa PenhaSco
15
, em Lisboa, os
convidados percorriam um itinerário que começava dentro da sede do coletivo, se
estendia pelas ruas da vizinhança e retornava ao local de origem, integrando os
diferentes ambientes construídos por eles. Ao final, como parte da performance,
havia uma conversa informal entre todos. Importante dizer que cada processo
vivido na etapa liminar pode gerar uma forma distinta de jogo com o público, que,
de certa forma, é demandado pelo próprio material.
A saída da “estufa” coloca questões muito importantes sobre as relações com
o “fora”, que merecerão reflexões futuras. No momento, é importante destacar a
necessidade dessas experiências ganharem consistência e continuidade,
articulando-se em colaboração com processos semelhantes, que compartilham
de objetivos próximos. Somente com a constituição de redes e de outras formas
de associação entre artistas, pesquisadores e educadores, tais experiências serão
aprofundadas e conectadas a movimentos mais amplos de transformação das
formas de vida - processo tão necessário nos tempos sombrios em que vivemos.
Imagem 4: Não há cadeiras
Ela começou a jogar fora. Não sabia exatamente o porquê. Sentia que devia.
Às vezes doava também. No princípio, coisas pequenas. Sapatos? Por que ela tinha
tantos? E o guarda-chuva? O mundo andava seco e entulhado. Os objetos olhavam
para ela. Queriam circular. Vestidos. Livros. Dinheiro. Ela prosseguia e ninguém
notava. Diziam apenas que estava um pouco diferente. Falava menos. Afinal, havia
conversas em demasia. Gostava de ficar só. Sempre discreta. Uma blusa, uma
cadeira. Doava seu tempo também. Foi vista ouvindo uma pessoa deitada na rua.
Quando passaram depois, ainda estava lá. Ouvindo. Então, sumiu coisa maior. A TV
que ela tinha comprado. Aí, o clima mudou. O marido desconfiou da empregada.
15
A Cooperativa PenhaSco localiza-se em Lisboa e reúne artistas de várias áreas, que propõem projetos
interdisciplinares de caráter formativo e artístico. A coordenação é da dançarina Julia Salem.
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Lembrou que a tinham despedido. Era a crise. As notícias espalharam. Vizinhos
sussurravam no elevador: “teve um surto comunista”. Os descolados debatiam:
“será uma performance?” Mas tudo tem limites. Domingo de manhã, o marido. Foi
escovar os dentes. “Onde está o meu espelho?” Sem pestanejar, procurou o amigo
psiquiatra. Exigiu providências. Os dois voltaram ao apartamento com dois
enfermeiros. Quando abriram a porta, o choque. “Não cadeiras”, disse o médico.
Ela estava lá, sentada no chão, no centro da sala vazia, contemplando as
tranqueiras desse mundo, na Terra devastada.
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Do ritual ao teatro: a seriedade humana do brincar
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Psychophysical acting: an intercultural approach after
Stanislawski
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Recebido em: 14/01/2022
Aprovado em: 19/02/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
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