A arte de desarmar: corpo, escrita e dispositivos performativos em tempos sombrios
Cassiano Sydow Quilici
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-19, abr. 2022
Ao mesmo tempo, os compartilhamentos dos materiais não envolvem
somente a composição com palavras, pois, mesmo numa simples leitura de texto,
sempre há uma dimensão corporal e performativa implicada. A situação da leitura,
o local, os objetos, as distâncias, as presenças físicas, os gestos e movimentos, as
sonoridades, cores, entre outros elementos, configuram uma “atmosfera”, uma
vibração singular do acontecimento não associada a um elemento em particular,
mas à constelação que se forma entre eles. Ficher-Lichte (2019), ao explorar o
conceito de “atmosfera” proposto por Gernot Böhme (2013 apud Ficher-Lichte,
2019), assinala a sua relação com a irradiação das presenças das coisas, suas
combinações, bem como ao modo como são percebidas pelos sujeitos. Nesse
sentido, a atmosfera não é um fenômeno exclusivamente objetivo ou subjetivo. Há
algo de animista no conceito na medida em que objetos e coisas não são
elementos mortos e inertes, pois atuam no espaço através de suas qualidades
formais e vibracionais, contracenando com os seres humanos.
A ideia da escrita performativa demanda a criação de compartilhamentos que
incluem a composição de elementos verbais e corporais, humanos e não
humanos. São verdadeiras instalações textuais, mesmo quando compostas de
elementos simples, mas que estão cuidadosamente dispostos. Costumo nomear
essas composições de “oferendas”, em alusão ao sentido ritualístico que carregam.
Transformar um material em oferenda implica oferecê-lo generosamente, não
como produto ou mercadoria, mas como dádiva, colocando o artista na posição
daquele que zela e cultiva. Da mesma forma que artistas tradicionais realizam
oblações aos deuses e ao invisível antes de desempenharem suas danças e peças,
entendo que esses dispositivos de compartilhamento ajudam a criar uma
determinada atitude em relação ao fazer artístico, recuperando algo do sentido
ritualístico na contemporaneidade.
Por fim, quando convidamos um público externo para participar, estamos
elaborando o que a teoria dos rituais chama de “fase da reagregação”
. Após a
intensidade do período liminar, em que os participantes se engajam nas práticas
e processos de criação, abre-se o trabalho para outro tipo de participante, que
Segundo Turner (2015), as três fases que compõem os ritos de passagem nas sociedades tradicionais são
“separação”, “margem ou liminaridade” e “reagregação”.