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Danças familiares pretas:
Notas sobre a aprendizagem da Dança de
São Gonçalo de Amarante
Victor Hugo Neves de Oliveira
Para citar este artigo:
OLIVEIRA, Victor Hugo Neves de. Danças familiares pretas:
Notas sobre a aprendizagem da Dança de São Gonçalo de
Amarante.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0102
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Victor Hugo Neves de Oliveira
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-21, set. 2022
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Danças familiares pretas
1
: Notas sobre a aprendizagem da Dança
de São Gonçalo de Amarante
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Victor Hugo Neves de Oliveira
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Resumo
Este artigo buscou compartilhar reflexões sobre a aprendizagem das danças
familiares pretas. Para tanto, observou-se o processo de ensino-
aprendizagem da Dança de São Gonçalo de Amarante, espécie de
manifestação familiar produzida no povoado quilombola da Mussuca em
Laranjeiras, Sergipe Brasil. Partiu-se da questão “como as crianças
aprendem a dançar a Dança de São Gonçalo no contexto familiar da
Mussuca?”. Considerou-se que os fundamentos relativos à aprendizagem da
Dança de São Gonçalo se baseiam em processos vinculados à prática
empírica, à repetição e à experiência familiar. Além disso, estabeleceu-se
apontamentos para a definição das danças familiares pretas e discutiu-se as
práticas relacionadas à aprendizagem destas danças através de um estudo
focado na Dança de São Gonçalo de Amarante.
Palavras-chave
: Danças familiares pretas. Aprendizagem. Cultura.
Ancestralidade.
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Este trabalho contou com apoio financeiro da Chamada 03/2020 Produtividade em Pesquisa
PROPESQ/PRPG/UFPB código do projeto de pesquisa no SIGAA PVJ13529-2020.
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Ingrid Cruz do Nascimento. Doutorado em Linguística
(UFPB, em curso), Mestrado em Diversidade e Mudança Linguística (UFPB, 2020). Graduação em Letras
Português (UFPB, 2017). ingridcruznascimento@gmail.com
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Doutor em Ciências Sociais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com estágio doutoral em
Antropologia da Dança, na Université Paris X (2016). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal
Fluminense (UFF - 2011). Graduação em Dança pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ 2008).
Professor do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba e do Mestrado Profissional
em Artes (PROFArtes/UFPB). dolive.victor@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0747191487082208 https://orcid.org/0000-0003-2622-1277
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Dances of Black Families: Notes on learning the São Gonçalo de
Amarante Dance
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Abstract
This article aims to share reflections on the studies of Dances of Black
families. To achieve this, the process of teaching-learning of São Gonçalo de
Amarante Dance, a kind of family manifestation produced in the Quilombola
settlement of Mussuca in Laranjeiras, Sergipe Brazil, was observed. We
started with the question "how do children learn to dance the São Gonçalo
Dance in the family context of Mussuca?". It was considered that the
fundamentals concerning the learning of the São Gonçalo Dance are based
on processes linked to empirical practice, repetition and family experience.
Furthermore, notes were established for the definition of Black family dances
and the practices related to the learning of these dances were discussed
through a study focused on the São Gonçalo de Amarante Dance.
Keywords
: Dances of Black families. Learning. Culture. Ancestry.
Danzas familiares negras: Notas sobre el aprendizaje de la Danza
de São Gonçalo de Amarante
Resumen
Este artículo buscó compartir reflexiones sobre el aprendizaje de las danzas
familiares negras. Para ello, se observó el proceso de enseñanza-aprendizaje
de la Danza de São Gonçalo de Amarante, un tipo de manifestación familiar
producida en el asentamiento quilombola de Mussuca en Laranjeiras, Sergipe
- Brasil. Partimos de la pregunta “¿cómo aprenden los niños a bailar la Danza
de São Gonçalo en el contexto familiar de Mussuca?”. Se consideró que los
fundamentos relativos al aprendizaje de la Danza de São Gonçalo se basan
en procesos vinculados a la práctica empírica, la repetición y la experiencia
familiar. Además, se establecieron notas para la definición de las danzas
familiares negras y se discutieron las prácticas relacionadas con el
aprendizaje de estas danzas a través de un estudio centrado en la Danza de
São Gonçalo de Amarante.
Palabras clave
: Danzas familiares negras. Aprendizaje. Cultura. Ancestralidad.
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Revisão ortográfica e gramatical da tradução do resumo (versão em inglês) realizada por Eldar Iskandarov.
eliskandarov@gmail.com
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Introdução
Este texto é uma reflexão sobre as danças familiares pretas. Trata-se de um
estudo sobre os modos a partir dos quais as crianças de ascendência africana têm
aprendido a dançar no contexto familiar. Defendo a ideia de que as danças
familiares pretas expressam modos de ensino-aprendizagem que se constroem
na experiência com as pessoas mais velhas da família.
Reconheço que as danças familiares pretas são diversificadas. Também,
possuem peculiaridades e particularidades em seus processos de ensino-
aprendizagem. Por isso, para o desenvolvimento deste artigo, trato de uma dança
familiar preta específica: a Dança de São Gonçalo de Amarante, produzida no
povoado quilombola da Mussuca, na cidade de Laranjeiras, em Sergipe – Brasil.
Parto dos dados obtidos nas experiências de pesquisa de campo
desenvolvidas na Mussuca, entre os anos de 2007 e 2016, para responder à
questão: “Como as crianças aprendem a dançar a Dança de São Gonçalo no
contexto familiar da Mussuca?”. Suponho, à guisa de hipótese, que esta
aprendizagem se constrói por meio de princípios estéticos compartilhados no
contexto familiar ou comunitário.
Conforme Silva
et al
. (2020), compreendo que esta pesquisa parte de um
complexo campo de experiências vividas e é decorrente não somente da
verificação de hipóteses, mas também de uma intensa e duradoura imersão no
campo. Apoio-me, portanto, na ideia de que os saberes aqui organizados são
confluências advindas de percepções e reflexões construídas a partir de
pressupostos teóricos e, igualmente, da própria experiência do corpo como
cultura.
Nesse contexto, considero que os fundamentos relativos à aprendizagem da
Dança de São Gonçalo se baseiam em processos educacionais e socioculturais
vinculados à prática empírica, à repetição e à experiência familiar. Por isso, meu
objetivo é estruturar possibilidades de identificar e conhecer os procedimentos
que compõem as práticas de aprendizagem da Dança de São Gonçalo de
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Amarante, gerando, com isso, discussões sobre processos educacionais no
contexto das danças familiares pretas.
Acredito que a proposição da temática dos processos de ensino-
aprendizagem das danças produzidas em contextos familiares pretos é de
fundamental importância para desmistificarmos a ideia equivocada de que, em
situações específicas, a dança expressa um fenômeno hereditário ou natural. Isso
porque o estudo sobre os modos a partir dos quais a aprendizagem das danças
familiares se constitui, no caso específico da Dança de São Gonçalo da Mussuca,
aponta, necessariamente, para a realidade da dança como um processo cultural,
historicamente constituído e acionado nas interações humanas.
Desse modo, pretendo chamar a atenção para a dimensão das danças
familiares pretas como representações familiares, ancestrais e culturais. Afirmo,
entretanto, que, ao tratar do processo de ensino-aprendizagem da dança como
cultura, não me interesso pela questão do desenvolvimento da personalidade na
infância e sua relação com as formas culturais estabelecidas. Proponho-me a
investigar os modos pelos quais o ensino da dança se estrutura como forma de
pensamento familiar sobre a dança e como essa forma tradicional de pensar é
estendida e atualizada pelas pessoas mais jovens.
Entendo que essas danças representam uma atitude anticolonial que
organiza experiências existenciais baseadas em lógicas ancestrais e estabelecem
relações entre convenções e invenções como arenas de resistência ao
colonialismo, ao eurocentrismo e à dominação racial. Por isso, a seguir, interesso-
me, sobretudo, em apresentar a definição e a conceituação das danças familiares
pretas e em compartilhar notas sobre as práticas de ensino-aprendizagem dessas
danças, no caso específico, a Dança de São Gonçalo de Amarante da Mussuca.
Por um conceito de danças familiares pretas
No campo dos Estudos em Dança, a noção de danças populares têm
expressado, de modo geral, um debate sobre manifestações coreográficas
produzidas em ambientes não-urbanos, de ascendência africana ou indígena. A
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meu ver, essa forma de entender o conjunto de danças identificadas como
populares expressa uma política de dominação e representa uma perspectiva
cognitiva que reproduz o eurocentrismo, o colonialismo e o racismo na área das
Artes da Cena. É sabido que o conceito de danças populares manifesta dicotomias
que partem das distorções coloniais sobre “natural-social”, “coletivo-individual”,
“tradicional-moderno” e tem sido associado à ideia de estéticas espontâneas e
homogêneas.
Essa percepção tem estimulado esvaziamentos de significados cuturais ou
poéticos e fomentado hierarquias nos modos de experimentar e de aprender
danças. Por isso, conforme Oliveira (2018), se faz necessário elaborarmos reflexões
sobre a dança como cultura, problematizando categorias historicamente
determinadas por meio das desigualdades estruturadas pelo colonialismo, pelo
racismo e pela modernidade. Parece-me ser urgente desaprender o modo como
aprendemos a tratar esses conjuntos complexos e diversificados das poéticas
culturais.
Tem-se pensado, equivocadamente, a noção de danças populares a partir de
sentidos associados ao natural, homogêneo, totalizador, espontâneo, não reflexivo
e não autoral, ou seja, como uma prática que é concebida pela coletividade como
um todo, o que resulta num apagamento do artista e na produção do seu
anonimato (Price, 2000). Também, nota-se as inconsistências do que é
amplamente difundido como danças populares quando se observa que os
fundamentos que pretendem expressar o conceito de dança popular são
ambíguos (Kealiinohomoku, 1982).
Por isso, a partir da compreensão dos problemas relacionados ao uso da
categoria “danças populares” e consciente de que esse conceito homogeneíza e
invisibiliza formas diversas de produções coreográficas, busco exercitar um modo
sensível de perceber os contextos a partir dos quais as danças, que constituem
meu interesse de pesquisa, são realizadas. Por consequência, verifico algo em
comum nessas danças: são manifestações familiares pretas, ou seja, danças
produzidas em contextos de unidades familiares ou comunitárias, de ascendência
africana, cuja aprendizagem se constrói na experiência com as pessoas mais
velhas. São movimentações que resistem ao colonialismo e articulam relações
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entre corpo, família e ancestralidade; são poéticas e expressões culturais que
remetem à experiência dos quilombos e, portanto, à luta e à vida.
Sabe-se que uma das mais bem sucedidas operações combativas ao regime
colonial no Brasil foram os quilombos, cujas ações contínuas, vinculadas às
sociabilidades afrodiaspóricas e indígenas, representavam um espaço de oposição
aos projetos de dominação colonial. Historicamente, conforme Nascimento (1982;
2006), o fenômeno quilombo caracteriza-se por uma unidade de resistência étnica
e política, cuja origem remonta aos povos de origem bantu, os imbagalas, que
denominavam de kilombo os ritos de passagem através dos quais incorporavam
jovens de várias linhagens à sua sociedade.
No Brasil, a primeira referência a quilombos em documentos oficiais data de
1559. Mas somente em 1740 as autoridades portuguesas passam a usar o termo
como referência para as habitações de pessoas pretas fugidas que passassem de
cinco integrantes. Percebo que essa definição, organizada pelos impositivos
coloniais, é espúria por apresentar a fuga como elemento fundamental da
formação dos quilombos (Oliveira, 2020).
As danças familiares pretas são poéticas e expressões culturais que remetem
à experiência dos quilombos. Entretanto, a experiência de aquilombamento à qual
me refiro não se vincula à ideia de fuga, mas ao encontro, à existência, à vida
partilhada. Pretendo defender, assim como Moura (1988), a passagem da ideia da
fuga, de pertinência branca e colonial, para a consciência da pessoa preta que faz
do seu corpo, da sua ancestralidade e da sua arte uma expressão de protesto
radical. Aqui, aquilombar-se é existir e criar relações familiares por meio de um
movimento social, artístico e transgressor.
Nesse sentido, compreendo que cada família preta em nosso país pode,
potencialmente, representar um quilombo, contrariando os modos de dominação,
opressão e colonialismo racial instituídos, historicamente, no panorama da vida
social. Por isso, de modo contrário à noção de danças populares, a ideia das danças
familiares pretas expressa poéticas de resistência colonial ou étnico-racial e, ao
passo que aprofunda um debate político e histórico sobre os efeitos do
colonialismo no campo dos Estudos em Dança, orienta uma discussão para a
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interdependência entre corpo, família e ancestralidade no contexto de algumas
danças específicas.
A definição não parte de um eixo categórico, mas de uma constatação
contextual. As danças familiares pretas são dinâmicas, passam por processos de
interrupções, abandonos, transferências, desterritorializações e se praticam
enquanto produzidas por membros e membras de uma ou algumas famílias. As
danças familiares pretas operam com o sentido de família expandida por meio da
noção de convivialidade e ancestralidade dispersa, ou seja, por meio de uma
unidade transfamiliar.
Parto do pressuposto da noção de família expandida como um movimento
de reterritorialização afetiva em que se verifica a expansão dos vínculos de
parentesco para além da consanguinidade. Afinal, no âmbito da coletividade
afrodiaspórica, quer no passado, quer no presente, como uma forma de restituição
e de reconfiguração do princípio da ancestralidade, durante e após a escravidão,
pelo engendramento de novos vínculos dos quais deriva a constituição de uma
linhagem familiar mais ampla –, o africano ou a africana e seus descendentes
passaram a congregar em comunidades de pertencimento e de ajuda mútua,
performada no âmbito das Casas, dos terreiros de Candomblé, nos festejos dos
Reinados ou dos santos e nos inúmeros outros modos de recomposição da
herança e da memória africanas transcriadas nos territórios americanos (Martins,
2021).
As danças familiares pretas são, portanto, transcriações que se dão nos
terreiros, nos quintais, nas casas, nas vizinhanças, nas ruas, nas encruzilhadas e
possuem relações históricas com as pessoas que dançam. Elas se recriam na
inventividade dos contextos e nas situações culturais em que se estabelecem, ou
seja, a partir dos seus usos convencionais e da criatividade das pessoas. São
saberes incorporados que revelam um contexto que se constrói, muitas vezes, por
meio de relações entre a convenção e a invenção como práticas de temporalidade
ancestral e espiralar.
Parto da premissa de que as danças familiares pretas são construídas por
meio de encontros estabelecidos entre passado e presente, organizando tensões
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espiralares entre convenção e invenção como potências ancestrais. Trato a noção
de convenção nas danças familiares pretas como aquilo que as pessoas mais
velhas das famílias identificam como tradição, uma determinada qualidade de
movimento que remonta à dança de “antigamente”. Compreendo que a convenção
desenha um tipo de estrutura na dança cujos padrões de movimentos são
idealizados como tipicamente antigos ou tradicionais. Por sua vez, apreendo a
noção de invenção a partir das categorias que apontam para as alterações desse
modelo estrutural. Assim sendo, a invenção na dança se relaciona ao processo de
abandono ou releitura de alguns traços, gestos e/ou objetos tradicionais. Em nível
de movimento, a invenção expressa uma notável atualização que caracteriza
transformações visíveis na dança (Oliveira, 2016).
Depreendo, portanto, que a ideia da convenção nas danças familiares pretas
é marcada pelos aspectos que caracterizam a prática da dança num outro tempo
[geralmente, organizada por meio das experiências narrativas das pessoas mais
velhas da família ou da comunidade]. A convenção desenha um conceito de
movimento estruturado que é, em suma, o movimento reconhecido como
tradicional. Por isso, o tema da tradição nas danças familiares pretas se relaciona
com a convenção. Já a esfera da invenção é tipicamente associada às mudanças.
A invenção cria um tipo de movimento vivido que se associa ao tema das
transformações.
O pensamento sobre a convenção como fenômeno relacionado à invenção
longe de se estruturar como uma prática estanque e estática possui dinâmicas e
produz temporalidades espiralares, articuladas às ideias e às expressões das
pessoas mais velhas ou dos dançadores e das dançadoras anteriores. A convenção
é criativa e se reinventa organizando modos culturais em contextos familiares de
dança. Por isso, não considero as estruturas da convenção como ambiências
dadas, preexistentes e alheias à atividade criativa e ao interesse individual das
pessoas. A estrutura convencional nas danças familiares pretas foi criada pelas
invenções de um tempo anterior e é tão criativa quanto a ação individual porque
ambas, estrutura e agência, se relacionam no panorama da vida social e familiar
das pessoas pretas por meio de um tempo não linear, não progressivo e não
partido pelo modelo ocidental moderno, mas curvo e reversível, que retorna e
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transforma (Martins, 2021).
Dessa maneira, observo que a convenção e a invenção são processos
simultâneos que não se excluem, mas se relacionam nas tônicas da temporalidade
espiralar. Por isso, no contexto das danças familiares pretas não existe um
constructo unificado de dança, mas várias danças interpretadas e vividas de
modos singulares a representar o papel da invenção individual na elaboração e na
modulação do comportamento.
Assim, ao mesmo tempo em que reconheço que o movimento de uma
determinada dança possui uma composição criativa de caráter estrutural, histórico
ou convencional, percebo que ele também é portador de um conteúdo estilístico
que determina heterogeneidades e diz respeito ao modo como padrões estruturais
incorporam-se nas ações individuais à guisa de inovações; afinal, de acordo com
Martins (2021), o estilo artístico reflete a síntese máxima do refinamento de um
estilo de vida, de um modo particular de viver.
Trato essa forma de inserir aspectos motores e poéticos particulares em um
conjunto de padrões de movimento como estilo, porquanto, segundo Kaeppler
(2013), o estilo é a forma de executar, ou seja, de realizar ou incorporar a estrutura.
Assim, embora algumas séries de movimentos sejam ou pareçam ser primeira
vista] estruturalmente as mesmas, as maneiras como são executadas, por cada
indivíduo, são muito diferentes. O estilo é uma qualidade criativa dos padrões
coreográficos, uma dimensão estética individual na dança, uma espécie de
assinatura, diferenciação ou autoria artística em cada movimento.
Identificar o estilo do movimento como lugar de diferenciação e individuação
dos esquemas coreográficos, estruturados pela prática ou pela convenção familiar,
engendra provocações sobre o pensamento da técnica corporal; afinal, pode-se
compreender novos modos de perceber a dança a partir de seus contextos,
situações culturais e a partir do fenômeno da técnica como experiência particular
e vivida. O movimento nas danças familiares pretas, portanto, é um lugar de
produção de conhecimento familiar e ancestral, estruturado a partir de um
conjunto de técnicas corporais (Mauss, 2011) que expressam maneiras por meio
das quais as pessoas organizam poéticas inventivas baseadas em convenções
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ancestrais.
Dança de São Gonçalo: olhares familiares
O conceito de danças familiares pretas diz respeito àquelas práticas
coreográficas organizadas em contextos de famílias e ancestralidades de
ascendência africana. A expressão das danças familiares pretas não se encontra
relacionada à classificação das danças em si, mas aos contextos a partir dos quais
essas danças são experienciadas, produzidas e ensinadas ou aprendidas.
A técnica nas danças familiares pretas é um processo histórico, vivido e
diversificado por meio das intenções do indivíduo que dança e, simultaneamente,
das convenções e contextos com os quais o indivíduo se encontra relacionado. Por
isso, me interesso em compreender como se constituem os processos de ensino-
aprendizagem das danças em contextos familiares pretos. Reconheço, entretanto,
que as danças familiares pretas possuem peculiaridades e particularidades em
seus processos de ensino-aprendizagem. Dessa maneira, neste artigo, trato de
uma dança familiar preta específica: a Dança de São Gonçalo de Amarante,
produzida no povoado quilombola da Mussuca, em Laranjeiras – Sergipe, Brasil.
A Dança de São Gonçalo é tradicionalmente vinculada à devoção de um santo
católico conhecido como São Gonçalo de Amarante e encontra-se intimamente
associada à noção de brincadeira, categoria amplamente utilizada pelos devotos e
pelas devotas quando se referem à prática da dança e à sua experiência como um
ato de celebração. Em geral, o termo “brincadeira” significa a própria dança, e a
ação de brincar representa, por consequência, a ação de dançar (Acselrad, 2013;
Oliveira, 2016).
O grupo de São Gonçalo da Mussuca, expressão nativa utilizada para
identificar os indivíduos que participam de modo expressivo da elaboração da
dança, é formado por um conjunto de pessoas que possuem funções diferentes.
Eles são os dançadores, também conhecidos como figuras; os tocadores; a
cantora; a mariposa e o patrão. Os membros do grupo são, de modo geral, pessoas
da mesma família e escolhidas pelo patrão. O patrão é o líder da dança: o homem
que coordena as ações do grupo e a organização coreográfica dos dançadores cujo
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número pode variar de oito a doze pessoas.
Na execução da dança, os dançadores contam com a participação de três
músicos dentre os quais dois tocam violão sete cordas e um, cavaquinho. Além
disso, integram o grupo a cantora que entoa as jornadas, músicas cantadas
durante a dança, e a mariposa, mulher que conduz a imagem de São Gonçalo em
quase todas as apresentações. Tradicionalmente, a mariposa é a esposa do patrão.
No povoado Mussuca, a Dança de São Gonçalo de Amarante é vista como
uma manifestação familiar vinculada ao catolicismo popular. A dança é realizada
como uma ação religiosa em que se dança e se canta como forma de pagamento
de promessas feitas e atendidas pelo santo. De acordo com Cascudo (2012), as
promessas para São Gonçalo são geralmente feitas por moças casadouras com
noivos distantes, arredios ou problemáticos e também por pessoas doentes. É
certo dizer, porém, que para além da maneira tradicional de dançar, a partir da
promessa, no contexto da Mussuca observa-se uma outra forma a partir da qual
os dançadores rendem homenagens ao santo. Essa forma é identificada pela
categoria nativa de “representação” ou “folclore”.
Segundo Bomfim (2006), os interesses que levaram diferentes agentes
externos a procurarem a Mussuca e suas expressões culturais ou danças
familiares, tal como o São Gonçalo, passou a ser despertado a partir da
participação do grupo de São Gonçalo nos festejos de homenagens aos Santos
Reis, na cidade de Laranjeiras, no ano de 1972. Nesse momento, em que o grupo
passou a brincar para um público diferenciado daquele que, tradicionalmente,
acompanhava a brincadeira e que se encontrava vinculado à devoção ao santo, se
tem origem aquilo que denomino de folclorização.
Chamo de folclorização, portanto, o movimento de formalização estética que
envolve os devotos de São Gonçalo de Amarante no desdobramento da
brincadeira dos terreiros da comunidade quilombola para os palanques dos
eventos da cidade. A folclorização expressa um ato que produz tanto processos
de reformulação das práticas rituais quanto novos campos de interesses entre os
devotos. Observa-se a implementação de diversas mudanças no panorama da
dança em decorrência da folclorização, dentre as quais destaco os modos como
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os processos de ensino-aprendizagem da dança vinham sendo historicamente
determinados.
Verifico que a inserção da comunidade quilombola em circuitos culturais fez
com que a Dança de São Gonçalo da Mussuca, anteriormente executada apenas
por homens adultos, passasse, desde o ano de 2008, a ser executada por jovens
e crianças. Atualmente, o que se tem são três grupos: o grupo dos veteranos, o
grupo jovem e o grupo infantil. Essa estratégia teve como motivação a arrecadação
de maiores proventos por parte das famílias envolvidas na brincadeira, assim
como a preservação da tradição pela inserção das crianças na dança. Desse modo,
a presença das crianças e dos jovens na brincadeira é um fenômeno recente,
criado a partir de interesses múltiplos e variados que se relacionam com diversos
fatores responsáveis pela produção da dança como folclore ou representação.
A criação desses grupos levou as pessoas mais velhas a pensarem em
estratégias de ensino-aprendizagem diferenciadas para as crianças do povoado.
Por isso, segundo Oliveira (2016), atualmente, pode-se perceber dois modos de
aprendizagem da Dança de São Gonçalo no contexto familiar da Mussuca: um é
anterior à geração do grupo infantil; outro, posterior à sua formação.
Anteriormente, a aprendizagem da dança se encontrava vinculada a um
conjunto de circunstâncias informais que derivavam da aproximação, do aspirante
à dançador, da brincadeira. Esse modo de aprendizagem possuía como principal
forma de organização a observação da brincadeira e o acompanhamento do grupo.
Iniciava-se quando o futuro dançador demonstrava interesse pela dança,
observando a brincadeira, acompanhando os outros dançadores nos pagamentos
de promessas ou nas apresentações culturais, aprendendo a dançar, até que, por
fim, o aspirante era convidado pelo patrão a integrar o grupo. Posso dizer que a
constante visualização e o acompanhamento da brincadeira representavam a
síntese desse processo de aprendizagem.
Por sua vez, a criação do grupo infantil gerou uma demanda associada a um
contexto de aulas e ensaios com o objetivo de compartilhar, por meio de
processos de repetição e execução do movimento, as técnicas corporais
referentes à prática da dança. Esse formato de aprendizagem, portanto, encontra-
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se relacionado com as propostas de ensino desenvolvidas para o grupo infantil e,
por isso, reflete a presença das crianças na brincadeira.
Em certa medida, esse processo de ensino-aprendizagem substitui o anterior
porquanto, com o passar do tempo, as crianças se transformam em jovens, os
jovens se tornam homens adultos e, com isso, estabelece-se uma mudança de
status em que integrantes de um grupo são transferidos para o outro. Por isso, tal
fenômeno dificulta que indivíduos que não passaram por esse conjunto de
vivências encontrem facilidades para ingressar diretamente no grupo adulto, o que
leva a um abandono do modo mais convencional da aprendizagem.
Dessa maneira, acredito que a presença das crianças na brincadeira
representa uma nova forma de pensar e produzir a dança em diálogo com a
tradição familiar. Afinal, a existência do grupo infantil é o fenômeno responsável
pela estruturação de uma forma de ensino e pelo compartilhamento de
informações acerca do movimento que diz respeito, sobretudo, às transformações
vividas no panorama da dança. Isso me leva a perceber que, se antigamente os
dançadores eram os homens devotos que acompanhavam o santo e aprendiam a
brincadeira enquanto assistiam à devoção, atualmente os dançadores são, cada
vez mais, aqueles meninos que passaram por um processo de aprendizagem, dos
modos de execução do movimento, a partir de abordagens de ensino diretivas.
Aprendendo danças familiares pretas
Durante o mês de março de 2015 realizei entrevistas com algumas crianças
e jovens da Dança de São Gonçalo de Amarante, da Mussuca. Meu objetivo, na
ocasião, era compreender como se organizava o aprendizado da brincadeira, se
existia alguém responsável pelo ensino da dança e como esse processo se
estabelecia. Neste texto, compartilho dados obtidos na pesquisa de campo, a
partir de uma dessas entrevistas, realizada de modo coletivo com Andreilton dos
Santos, nascido em 28 de abril de 1998, e Henrique dos Santos, nascido em 13 de
julho de 2003, conhecidos carinhosamente como Nino e Riquinho. Os meninos são
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primos, netos de Mestre Sales e Dona Santana
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.
Ambos se encontravam extremamente desajeitados diante das câmeras, um
tanto temerosos e tímidos. Por isso, apresentei a eles as questões que seriam
formuladas antes de iniciar a gravação. De acordo com os relatos, Nino começou
a participar da Dança de São Gonçalo de Amarante com sete anos de idade.
Naquela ocasião, ele integrava o grupo mirim. Atualmente ele é figura do grupo
jovem e, por vezes, participa do grupo adulto. Seu aprendizado se deu no ambiente
da própria casa, onde seu avô, Mestre Sales, lhe apresentou os primeiros passos
da dança. Em seu depoimento, Nino afirmou que aprendeu a dançar com o auxílio
do seu avô, com a colaboração do seu irmão e dos seus primos: - “Aí, eu pegava o
passo e aprendia” (Santos A., 2015). Segundo a entrevista, sua primeira experiência
pública com a dança foi no Encontro Cultural de Laranjeiras, no ano de 2008.
Entretanto, relata que começou a dançar, de fato, aos sete anos de idade no
contexto familiar: aprendendo os movimentos, organizando gestualidades,
compreendendo espacialmente a brincadeira, conhecendo histórias sobre a
dança, dançando com Gonçalo no circuito familiar da Mussuca.
Por sua vez, Riquinho identifica, igualmente, o ano de 2008 como marco da
aprendizagem; afinal, como ele declarou: - “Eu aprendi a dançar foi com quatro”
(Santos H., 2015), o que situa o ano de 2008 como o início das atividades dos
meninos no Encontro Cultural de Laranjeiras, o lugar onde os dois começaram a
dançar para uma espécie de plateia. Além disso, ambos declararam que antes de
aprender a Dança de São Gonçalo, dançavam nas festas da família e da
comunidade. Nino afirmou gostar de dançar pagode, arrocha e forró, e Riquinho
declarou gostar de samba. Quando perguntados se a Dança de São Gonçalo que
eles fazem, tem um pouco dessas outras danças, Nino respondeu com muita
certeza: - “Tem. Tem um pouco do reggae no passo, tem o pulando. Só” (Santos
A., 2015). Perguntei a eles o que seria um dançador estiloso. Riquinho riu e Nino
respondeu: - “É o cara que pula mais, que rebola mais, que faz mais gracinha, é
isso” (Santos A., 2015). Questionei, então, se eles copiavam algum modelo de dança,
se existia algum dançador que eles admiravam e copiavam o tipo de brincar. Nino
5
No período da pesquisa, Mestre Sales era o patrão da Dança de São Gonçalo de Amarante e Dona Santana,
sua esposa, era a mariposa. Infelizmente, Mestre Sales faleceu em 2016. O posto de patrão foi sucedido por
seu neto, Mestre Neilton.
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respondeu que não e Riquinho, por sua vez, afirmou que também não. Com o
intuito de provocar, eu disse que havia ouvido falar na Mussuca que Riquinho
dançava muito parecido com seu avô e perguntei se, quando ele dançava, pensava
em copiar o modelo de Mestre Sales. Ele afirmou, prontamente: - “Não, é meu
jeito” (Santos H., 2015).
Desse modo, esses breves trechos retirados da entrevista realizada com Nino
e Riquinho organizam determinadas ideias sobre o processo de ensino-
aprendizagem da Dança de São Gonçalo no contexto familiar da Mussuca; afinal,
ao afirmar que “aí, eu pegava o passo e aprendia”, Nino declara que existe uma
lógica do passo, uma lógica pautada na repetição-atualização para a formulação da
dança. A lógica do pegar o passo faz uma alusão ao aprendizado da estrutura do
movimento e, simultaneamente, à incorporação do seu padrão individual.
Isso me leva a crer que o ensino da brincadeira gera contextos nos quais o
corpo de quem aprende passa a ser o corpo que aprende. Nesse corpo que
aprende, a pessoa que dança pode desenvolver seu próprio sentido para a prática
da dança, gerando estilos particulares e habilidades improvisacionais. Além disso,
o fato de Nino reconhecer que as danças que ele realiza fora do contexto da
brincadeira de louvor ao santo amarantino organizam sua forma de praticar a
Dança de São Gonçalo [em que aspectos do reggae, por exemplo, se situam no
âmbito de execução da dança], deflagra o campo de relações interdependentes
entre a convenção e a invenção nas danças familiares pretas.
Os pulos da dança são, na perspectiva de Nino, heranças do reggae e são
atributos de um bom dançador, ou melhor, de um dançador estiloso, que é aquele
que pula mais, que rebola mais, que faz mais gracinha. Assim, o estilo é abordado
como “aquele algo a mais” que um dançador possua; algo que se relaciona tanto
com os aspectos cinestésicos no plano de execução da dança, tal como o pulo e o
rebolado, quanto com os aspectos da representação e da encenação, por meio do
atributo da gracinha.
O conceito de “gracinha”, portanto, se encontra arraigado ao conceito de
“estilo”, como aquilo que representa uma determinada autoria, um modo de
comportamento e atributo pessoal, uma espécie de elegância individual, o que
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aponta que o estilo individual é algo extremamente valorizado pelos dançadores.
Por isso, ao serem questionados sobre o fato de copiarem ou não a dança executada
por outros dançadores, ambos afirmaram que não copiavam ninguém e, ao ser
provocado pelas semelhanças presentes entre a sua forma de brincar e a de seu
avô, Riquinho respondeu com veemência: “é meu jeito”.
Esse jeito particular de dançar é apreendido, portanto, como uma espécie de
autoria do movimento que vem sendo cada vez mais valorizada entre os
dançadores da Dança de São Gonçalo, porque consiste em uma construção eficaz
de si mesmo: uma construção com estilo. O estilo é tanto uma forma de executar
e incorporar a estrutura, quanto um modo de aprender atualizando os
conhecimentos da tradição. Conforme Gonçalves (2008), o estilo é um modo
próprio de desempenhar a dança e construí-la, inventivamente, como ancestral.
Por isso, a importância de não copiar ninguém. De certa maneira, o
desenvolvimento artístico na dança corresponde ao processo definidor de um
estilo próprio, uma possibilidade de atualização da estrutura do movimento ou de
desdobramento das convenções gestuais, que identificam a dança como campo
de conhecimentos. É a noção da brincadeira como conhecimento que legitima o
espaço da dança como cultura e desdobra o processo de ensino-aprendizagem
como o fortalecimento de redes familiares e comunitárias.
Desse modo, percebo que, embora exista constantemente um enfoque nas
narrativas sobre a aprendizagem, construído a partir da ideia de passo, pode-se
compreender que dançar, no contexto familiar da Dança de São Gonçalo da
Mussuca, é mais do que realizar passos. Dançar é contextualizar, relacionar,
conviver, conhecer e representa uma espécie de imersão profunda na cultura
familiar.
Considerações Finais
Este artigo estabeleceu uma reflexão sobre as danças familiares pretas.
Busquei apresentar um breve estudo sobre as danças familiares pretas e sobre os
modos a partir dos quais as crianças de ascendência africana têm aprendido a
dançar no contexto familiar. Para tanto, defendi a ideia de que as danças familiares
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pretas expressam modos de ensino-aprendizagem que se constroem na
experiência com as pessoas mais velhas e apresentei considerações sobre os
modos de aprender a Dança de São Gonçalo de Amarante no povoado quilombola
da Mussuca.
Além disso, apresentei algumas questões vinculadas às relações
estabelecidas entre o conceito de danças populares e o colonialismo, apontando
a importância de se pensar a dança como cultura a partir de contextos específicos
e refletindo sobre convenção e invenção como estruturas dinâmicas, criativas e
espiralares. As observações sobre as práticas da aprendizagem buscaram revelar
os modos como se operam as relações entre convenção e invenção na
composição das danças familiares pretas. Por isso, considerei relevante situar uma
breve contextualização sobre a brincadeira como pagamento de promessa, assim
como pontuar as transformações e inovações implementadas na prática da
aprendizagem da dança a partir dos processos de folclorização.
Como foi dito, indiquei o aprendizado da dança como um processo de
transcriação, reconhecendo a Dança de São Gonçalo de Amarante como uma
dança familiar preta, cuja prática consiste em um repertório aberto,
constantemente repetido e atualizado, pelos processos e acionamentos
individuais que apontam a dança como cultura. O espaço do debate sobre a dança
como cultura pôde ser identificado por meio da prática da dança, a partir de
processos interpretativos, ou seja, processos correspondentes ao exercício de
aprendizagem da estrutura gestual e, igualmente, por meio de processos criativos
responsáveis pelas modulações de estilos individuais e das formas particulares de
executar o movimento.
Vale ressaltar que as narrativas apontaram para uma questão interessante
que faz parte do conjunto de fatores que produzem a dança e que são recorrentes
quando se conversa sobre o ensino da Dança de São Gonçalo de Amarante para
as crianças: a aprendizagem dos passos. Assim, pude perceber que o ensino da
brincadeira obedece a uma lógica a da reprodução que orienta os processos
de aprendizagem da estrutura da dança.
Constatei que, diferentemente do que se estabelecia antigamente como
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modalidade de aprendizado, em que ninguém ensinava de modo diretivo algo ao
aspirante a dançador [ao contrário: este, a partir da observação atenta e da
assimilação dos passos realizados pelos mais velhos, pouco a pouco, se integrava
à brincadeira], atualmente as crianças podem contar com uma prática de ensaios
e aulas, ou seja, sessões destinadas ao aprendizado ou ao aprimoramento dos
iniciantes antes das apresentações públicas. Aparentemente, portanto, a
reprodução se torna cada vez mais legítima como processo de aprendizagem.
De modo semelhante, verifiquei que a passagem de status entre as crianças
ou os jovens no grupo apresenta conteúdos substancialmente importantes.
Antigamente, os homens passavam do status de observador para dançador,
aproximando-se da prática da dança e envolvendo-se com a brincadeira. Eles
admiravam a dança, eram devotos do santo, aproximavam-se dos dançadores em
suas apresentações e eram convidados a participar do grupo. Atualmente, o grupo
adulto vai sendo, pouco a pouco, constituído de jovens rapazes que iniciaram suas
atividades na brincadeira, a partir de um processo de ensino-aprendizagem
quando ainda eram crianças, por meio da abordagem diretiva da reprodução dos
passos.
A meu ver, entretanto, a reprodução é um aspecto que não está vinculado
aos propósitos da imitação. A reprodução parece exigir um determinado grau de
atualização da prática, o que estabelece uma distinção entre quem se preocupa
com as regras que organizam as várias partes do corpo ou seus movimentos e
quem domina a técnica e é capaz de coordenar a ação do próprio corpo em uma
síntese pessoal, criando seu próprio estilo.
Por fim, pude observar que os dançadores desenvolvem uma sensibilidade
para as ocorrências da dança que dizem respeito aos aspectos éticos e estéticos
que a compõem. Por isso, eles se recusam a declarar que copiam algum
determinado estilo, embora muitas das vezes admirem as danças produzidas
pelas pessoas mais velhas. A criação de uma estética pessoal indica um campo
de apreciação refinada da dança, o que diz respeito aos fatores éticos da
brincadeira e à relevância das recriações continuadas nas danças familiares pretas.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
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