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Perspectivas xamânicas sobre as artes da
cena: Um diálogo cosmopolítico com as
culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Para citar este artigo:
GUIMARÃES, Carlos Henrique. Perspectivas xamânicas
sobre as artes da cena: Um diálogo cosmopolítico com
as culturas ameríndias.
Urdimento
Revista de Estudos em
Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0114
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Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
1
Carlos Henrique Guimarães
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Resumo
Considerações teórico-práticas a respeito da performatividade ritual do/a
xamã ameríndio/a e as possíveis aproximações com o campo expandido das
artes cênicas, confrontando entendimentos sobre os conceitos:
contemporâneo, modernidade e arcaico. Diálogo artístico-filosófico crítico
entre as bases do pensamento ocidental de matriz kantiana e as metafísicas
canibais sul-ameríndias. Aferições acerca das concepções sobre natureza,
arte, estética da existência, representação, teatralidade, espetáculo, afeto,
alteridade, corpo, cosmopol
í
tica, espiritualidade e sonho.
Palavras-chave
: Artes C
ê
nicas. Xamanismo amer
í
ndio. Ontologia.
Cosmopol
í
tica. Filosofia da Arte.
Shamanic perspectives on the performing arts:
A cosmopolitical dialogue with Amerindian cultures
Abstract
Theoretical-practical considerations about the ritual performativity of the
Amerindian shaman and the possible approximations with the expanded field
of the performing arts, confronting understandings about the concepts:
contemporary, modernity and archaic. Critical artistic-philosophical dialogue
between the foundations of Western Kantian thought and the cannibalistic
South American metaphysics. Measurements about conceptions about
nature, art, aesthetics of existence, representation, theatricality, spectacle,
affection, alterity, body, cosmopolitics, spirituality and dream.
Keywords
: Performing Arts. Amerindian shamanism. Ontology. Cosmopolitics.
Philosophy of Art.
1
Revisão ortográfica e gramatical realizada por Ingrid Cruz do Nascimento. Doutoranda em Linguística
(Proling/UFPB). Mestra em Linguística (Proling/UFPB) e graduada em Letras/Português (UFPB).
http://lattes.cnpq.br/0864213710288556
2
Doutor e Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGAC/UNIRIO).
Licenciado em Educação Artística com Habilitação em Artes Cênicas pela Universidade Estadual Paulista
(IA/UNESP). Professor Adjunto do Departamento de Artes Cênicas da Universidade Federal da Paraíba
(DAC/UFPB). Ator, performer, diretor, escritor. carlos.henrique.guimaraes@academico.ufpb.br
http://lattes.cnpq.br/5651913037096669 https://orcid.org/0000-0001-5464-6614
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Perspectivas chamánicas sobre las artes escénicas:
Un diálogo cosmopolítico con las culturas amerindias
Resumen
Consideraciones teórico-prácticas sobre la performatividad ritual del chamán
amerindio y las posibles aproximaciones con el campo ampliado de las artes
escénicas, confrontando comprensiones sobre los conceptos:
contemporáneo, modernidad y arcaico. Diálogo crítico artístico-filosófico
entre los fundamentos del pensamiento occidental de matriz kantiana y la
metafísica sudamericana caníbal. Mediciones sobre concepciones sobre la
naturaleza, el arte, la estética de la existencia, la representación, la
teatralidad, el espectáculo, el afecto, la alteridad, el cuerpo, la cosmopolítica,
la espiritualidad y los sueños.
Palabras clave
: Artes escénicas. Chamanismo amerindio. Ontología.
Cosmopol
í
tica. Filosofía del Arte.
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Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
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Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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Se o Brasil foi desindigenizado em suas interpreta
çõ
es mais c
é
lebres, se
seus habitantes ind
í
genas foram por longo per
í
odo condenados ao
desaparecimento, esse movimento passa a conhecer nos
ú
ltimos tempos
o seu rev
é
s. [...] Viveiros de Castro ressalta que o Brasil est
á
se
reindigenizando, ou melhor, a sua porç
ã
o ind
í
gena porç
ã
o minorit
á
ria
est
á
deixando o fundo para compor a figura. [...] o que j
á
era ind
í
gena
e permanecia encoberto por um verniz crist
ã
o e moderno passa agora a
se manifestar sem pudor, com mais orgulho. E nesse movimento de
‘desenvernizamento’
é
toda a sociedade brasileira que se descobre
ind
í
gena.
(Sztutman, 2008 apud Viveiros de Castro, 2008, p.17-18)
O presente trabalho é parte de uma travessia de investigações por trilhas de
um outro teatro
3
, sob uma perspectiva que transita entre concep
çõ
es amer
í
ndias
acerca da performatividade cênica dos/as pajés/xamãs em di
á
logo com alguns
preceitos da filosofia ocidental que ecoam na contemporaneidade. Giorgio
Agamben considera a contemporaneidade “uma singular relaç
ã
o com o pr
ó
prio
tempo” (Agamben, 2009, p.59) e indica a pertinência de se manter sobre a
é
poca
uma certa distância, para se entrever sua
í
ntima obscuridade” (Agamben, 2009,
p.64). Cassiano Quilici (2015) questiona o uso da express
ã
o contemporâneo como
um sucedâneo da arte moderna, anunciando mercadorias culturais que alimentam
um p
ú
blico
á
vido por novidades – r
ó
tulo de um tipo de produto de determinados
circuitos sociais, produzindo uma esp
é
cie de aura. Friedrich Nietzsche (1999)
valorizava a relaç
ã
o de combate com a
é
poca em que se vive e a necessidade de
sentir-se estrangeiro do pr
ó
prio tempo, percebendo-se extemporâneo, deslocado
daquilo que se apresenta como atualidade, habitando as margens do tempo para
saber experimentar o presente sem uma ades
ã
o imediata e autom
á
tica ao atual,
podendo ser atravessado por outras
é
pocas e engendrar outros devires.
Este estudo também está referenciado em concepções que dizem respeito
a
um campo expandido
das artes cênicas, que encara a teatralidade como “um
discurso e uma estrat
é
gia que atravessa o teatro e o transcende, possibilitando
inclusive a expans
ã
o e o deslocamento dos limites do teatral e do art
í
stico”
(Di
é
guez, 2014, p.125). Procuro estabelecer aqui um di
á
logo cr
í
tico e extemporâneo
3
Conforme Ligiéro, "outro teatro
é
a defini
çã
o aplicada às performances art
í
sticas e culturais que envolvem
narrativas, dan
ç
as, cantos e elementos cenogr
á
ficos, utilizadas principalmente pelas tradi
çõ
es africanas,
asi
á
ticas e amer
í
ndias que se tornaram conhecidas para o mundo das artes c
ê
nicas atrav
é
s de diretores de
vanguarda no s
é
culo XX" (Ligiéro, 2018, p.15).
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entre princípios da pajelança ameríndia e premissas conceituais da modernidade,
no que diz respeito ao estado da arte, a fim de poder ver e contar como quem
acaba de voltar de uma viagem xamânica um pouco da
íntima obscuridade
do
nosso presente, discutindo potencialidades do arcaico na contemporaneidade,
entendendo algumas maneiras da arte poder penetrar, distintamente de outros
saberes, na intimidade de nossa época.
Frente
à
s diferentes tradiç
õ
es agrupadas sob o nome de
xamanismo
termo
adotado em meados do s
é
culo XX em referência aos poetas-curandeiros
siberianos (Eliade, 2002) é importante que eu faça um recorte espec
í
fico, que
trata de certas pr
á
ticas xamânicas
amer
í
ndias
. A nomenclatura
xam
ã
, em geral,
é
aplicada
a los especialistas que practican ritos parecidos [...], que entran en trance,
de manera pasiva o bien de forma desenfrenada, con el fin de curar a los
enfermos, causar los cambios de tiempo deseados, predecir el futuro,
controlar los desplazamientos de los animales y conversar con los
esp
í
ritus y los animales-esp
í
ritu (Clottes, Lewis-Williams, 2010, p.13).
De acordo com Mircea Eliade, xam
ã
tamb
é
m
é
um mago e um
medicine-man
: a ele se atribui a compet
ê
ncia de curar,
como os m
é
dicos, assim como a de operar milagres extraordin
á
rios,
como ocorre com todos os magos, primitivos e modernos. Mas, al
é
m
disso, ele
é
psicopompo e pode ainda ser sacerdote, m
í
stico e poeta. [...]
Contudo, o xam
ã
é
sempre a figura dominante, pois em toda essa regi
ã
o,
onde a experi
ê
ncia ext
á
tica
é
considerada a experi
ê
ncia religiosa por
excelência,
é
o xam
ã
, e apenas ele, o grande mestre do êxtase. Uma
primeira defini
çã
o desse fen
ô
meno complexo, e possivelmente a menos
arriscada, ser
á
: xamanismo =
t
é
cnica do êxtase
(Eliade, 2002, p.16).
Peter Furst também ressalta o êxtase como fator t
é
cnico preponderante no
xamanismo:
No centro da religi
ã
o xamanista sobressai a personalidade do xamane e
da sua experi
ê
ncia ext
á
tica, que lhe
é
exclusiva, no seu papel
fundamental de advinha, vidente, m
á
gico, poeta, cantor, artista, profeta
da ca
ç
a e do tempo, guardi
ã
o das tradi
çõ
es e curandeiro das doen
ç
as do
corpo e do esp
í
rito [...]
é
sobretudo o guardi
ã
o do equil
í
brio f
í
sico e
ps
í
quico do seu grupo, por quem intercede na confronta
çã
o directa com
as for
ç
as sobrenaturais do “c
é
u” e do “inferno”, cujas geografias m
í
sticas
se tornaram segredos privados dele atrav
é
s de crises iniciat
ó
rias, da
pr
á
tica e de transes ext
á
ticos (Furst, 1976, p.18).
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Compreendendo o xamanismo como atividade ancestral que envolve arte,
êxtase, cura, magia, rito, relaç
õ
es diferenciadas com o tempo e o espaço e uma
comunicaç
ã
o especial com a natureza e os esp
í
ritos ações performativas,
portanto destaco caracter
í
sticas
transespec
í
ficas
das/os xam
ã
s sul-
amer
í
ndias/os, tais como as habilidades de transitar por diferentes
perspectivas/mundos e de viajar e retornar para narrar/cantar o que viram e
viveram:
O xamanismo amer
í
ndio pode ser definido como a habilidade [...] de
cruzar deliberadamente as barreiras corporais entre as esp
é
cies e adotar
a perspectiva de subjetividades estrangeiras, de modo a administrar as
rela
çõ
es entre estas e os humanos. Vendo os seres n
ã
o-humanos como
estes se veem (como humanos), os xam
ã
s s
ã
o capazes de assumir o
papel de interlocutores ativos no di
á
logo transespec
í
fico; sobretudo, eles
s
ã
o capazes de voltar para contar a hist
ó
ria, algo que os leigos
dificilmente podem fazer. O encontro ou o interc
â
mbio de perspectivas
é
um processo perigoso, e uma arte pol
í
tica uma diplomacia (Viveiros
de Castro, 2015, p.49).
Entre os Marubo, Pedro Cesarino indica que o nascimento dos paj
é
s ocorre a
partir do “n
é
ctar da ayahuasca” (2011, p.109-111); a inicia
çã
o xam
â
nica entre eles
requer abstinências de substâncias e comportamentos e um cont
í
nuo consumo
de rap
é
, ayahuasca e outros psicoativos cultivados pelos paj
é
s Marubo,
respons
á
veis pelo
á
rduo treinamento dos futuros xam
ã
s, at
é
que seu “sangue seja
fortificado e seu pensamento/vida seja capaz de memorizar cantos e conquistar
diversos poderes e esp
í
ritos auxiliares” (Cesarino, 2011, p.116).
Ao falar em xamanismo sul-amer
í
ndio ainda transitamos sobre um vasto e
diverso campo de culturas; entretanto, caracter
í
sticas comuns fazem com que
seus modos de vida se assemelhem. Uma elaboraç
ã
o bastante presente entre as
etnias ameríndias diz respeito ao
man
á
4
com que interagem e
à
maneira com que
o ser humano participa da composiç
ã
o desse conjunto de forças, fazendo parte
ativa e passivamente, agindo e reagindo aos reveses dos m
ú
ltiplos
interesses/perspectivas que povoam os mundos impercept
í
veis aos olhos
dos/as humanos/as comuns, especialmente aqueles/as de culturas n
ã
o-
4
Man
á
é
a energia espiritual presente em tudo; “todas as coisas t
ê
m um man
á
, assim como as plantas, os
homens, os mortos, os alimentos, etc. [...]. Toda a passagem de um estado a outro o nascimento, a morte,
o casamento, as inicia
çõ
es a certas categorias de idade faz vacilar energias que os ritos libertam e utilizam.
É
assim que os feiticeiros e os xam
ã
s ocupam um lugar
à
parte na sociedade” (Gil, 1997, p.19).
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xam
â
nicas. Tal cosmovis
ã
o sugere um campo interespec
í
fico de relaç
õ
es,
revelando estrat
é
gias da/o paj
é
para lidar com diferentes seres/perspectivas;
admitem uma profus
ã
o de esp
í
ritos, planos de realidades simultâneos e
sobrepostos no tempo e no espaço, pautando o cotidiano de suas existências a
partir da relaç
ã
o com
esses/as outros/as
.
O xamanismo amer
í
ndio, no geral, reúne pr
á
ticas de
negociaç
õ
es
entre os
planos da realidade material e o da realidade m
í
tica (Viveiros de Castro, 2015). A
noç
ã
o de planos de realidades sobrepostos e polifônicos perpassa o modo
amer
í
ndio de ser e de viver. Muitas vezes a diferença temporal entre passado,
presente e futuro e a diferença espacial do aqui e do acol
á
n
ã
o se d
ã
o da mesma
maneira que os/as ocidentais entendem. Justamente por haver sobreposiç
õ
es
espaciais e temporais
é
que o aqui e o agora re
ú
nem diversos
aquis
e
agoras
,
cabendo
à
s pessoas se capacitarem por meio de t
é
cnicas xamânicas (Eliade, 2002)
para se tornarem aptas a dialogar com as diferentes realidades sobrepostas.
Essa
é
uma das bases do xamanismo amer
í
ndio: existem m
ú
ltiplas realidades
convivendo o tempo inteiro. A/O paj
é
é
uma dessas pessoas capacitadas para
interagir, negociar e trabalhar sobre essas distintas realidades, sabendo ultrapassar
as fronteiras que, como um fino v
é
u, escondem n
í
veis de realidades que se
sobrep
õ
em uns aos outros; o/a paj
é
tamb
é
m sabe retornar para contar as
hist
ó
rias, muitas vezes de modo performativo, por meio de cantos, danças,
dramatizaç
õ
es, entre outras ferramentas art
í
sticas do êxtase xamânico (Eliade,
2002). O trabalho da/o paj
é
configura-se, dessa maneira, como uma
ã
o
performativa e diplom
á
tica (Viveiros de Castro, 2015), se dando em três etapas (por
vezes simultâneas)
ver, viver e narrar
(Gardel, 2019), congregando cenicamente:
poesia falada e cantada, corpos adornados e dançantes e instrumentos musicais
de poder, comunicando o que vive na realidade do plano m
í
tico e executando,
diplomaticamente, contratos espirituais que estabelecem dinâmicas culturais para
o seu povo.
No exerc
í
cio de transpor terminologias acadêmicas e teatrais para tratar de
traços culturais amer
í
ndios, certamente cometemos deslizes. De antem
ã
o,
reconheço os prov
á
veis equívocos e peço minhas escusas por saber que tal falha
adv
é
m da dificuldade inerente à l
ó
gica ocidental em nomear e compreender o
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pensamento amer
í
ndio;
é
fundamentalmente um problema de
traduç
ã
o
. Termos
geralmente aceitos em referência aos povos origin
á
rios, aparentemente
inofensivos, tais como
í
ndio, esp
í
rito, xamanismo, pajelança, s
ã
o carregados de
significâncias ocidentais e insuficientes para traduzir o pensamento e os modos
de vida desses povos. Cometerei certas prolixidades na intenç
ã
o de um di
á
logo
mais fiel ao que tenho compreendido dessas culturas, tentando me afastar do
v
í
cio da antropologia de enquadrar o outro em referenciais eurocêntricos, o que
comumente resulta em uma antropologia narcisista sobre si e n
ã
o sobre o outro
(Viveiros de Castro, 2015).
Certas lacunas de compreens
ã
o vêm sendo reduzidas por trabalhos como
dos/as p
ó
s-estruturalistas (Eduardo Viveiros de Castro, Tania Stolze Lima, Bruce
Albert, Pedro Cesarino, entre outros/as), que buscam traduzir para a linguagem
ocidental saberes tradicionais. Traduç
ã
o arriscada (pois toda tradução corre o risco
da traição), por
é
m tem contribu
í
do com a reduç
ã
o de estere
ó
tipos sobre os
ancestrais povos do Brasil; etnias sobreviventes vêm sendo estudadas com um
pouco mais de respeito e
é
tica, se comparado aos estudos da antropologia clássica
narcisista. Viveiros de Castro (2015) insiste na necessidade de outra antropologia,
sugerindo a ideia de um
anti-Narciso
: contemplar o/a outro/a sendo
outro/a
e estar
aberto às trocas, aos afetos dos diferentes encontros e perspectivas. Essa
alteridade
é
o motor da antropofagia amer
í
ndia: transformar-se a partir do contato
com a/o outra/o devorar o/a outro/a para digerir a alter-potência, sem tom
á
-
lo/a como objeto-mercadoria, mas como potência de afetos, alianças,
subjetividades e provocaç
õ
es que possam levar a transformaç
õ
es.
Din
â
micas de alteridade s
ã
o de import
â
ncia fulcral a esta investiga
çã
o;
perceber, observar, trocar, conhecer, aproximar, distanciar, s
ã
o qualidades de
rela
çã
o que soam como
alian
ç
as afetivas
, como aponta a liderança ind
í
gena Ailton
Krenak (2016, p.170):
alian
ç
a na verdade
é
um outro termo para troca. Eu andei um pouco
nessa experimenta
çã
o at
é
que consegui avan
ç
ar para uma ideia de
alian
ç
as afetivas em que a troca n
ã
o sup
õ
e s
ó
interesses imediatos.
Sup
õ
e continuar com a possibilidade de tr
â
nsito no meio das outras
comunidades [...] nas quais voc
ê
pode oferecer algo seu que tenha valor
de troca. E esse valor de troca sup
õ
e continuidade de rela
çõ
es.
É
a
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constru
çã
o de uma ideia de que seu vizinho
é
para sempre.
Ademais, sob uma ótica ameríndia, a/o outra/o n
ã
o
é
apenas a/o humana/o,
mas todas/os as/os
vizinhas/os
:
á
rvore, rocha,
á
gua, bicho, temperatura, sons,
forças, cheiros que afetam nossos corpos, que funcionam como
r
á
dio
, captando
e transmitindo sinais em tr
â
nsito. A/O paj
é
é
uma espécie de r
á
dio que comunica
o que captura; n
ã
o um r
á
dio desprovido de inten
çã
o, mas um eco das vozes com
as quais dialoga, um ressonador das energias com as quais negocia, corporificando
artisticamente os
cont(r)atos
que estabelece extaticamente. O paj
é
/xam
ã
Davi
Kopenawa Yanomami tamb
é
m sugere a imagem do r
á
dio na prática xamanística
de seu povo:
É
assim que os xam
ã
s revelam aos que as desconhecem as coisas que
viram em estado de fantasma, acompanhando o v
ô
o de seus esp
í
ritos.
Suas palavras, inumer
á
veis, possuem valor muito alto.
É
por isso que eles
as d
ã
o a ouvir por tanto tempo [...]. Ao verem suas imagens, evocam as
palavras dos ancestrais tornados animais no primeiro tempo, as da gente
do c
é
u e do mundo subterr
â
neo e as palavras de
Omama
, que deu os
xapiri
5
ao seu filho, o primeiro xam
ã
. Essas falas dos esp
í
ritos se parecem
com as palavras das r
á
dios, que d
ã
o a ouvir relatos vindos de cidades
remotas, do Brasil e de outros pa
í
ses. Quem as escuta pode ent
ã
o pensar
direito e dizer a si mesmo:
É
verdade! Esse homem virou mesmo esp
í
rito!
Desconhecemos realmente as palavras que seus cantos revelam!”
(Albert, Kopenawa, 2015, p.168).
Trata-se de uma
filosofia relacional amer
í
ndia
e o processo de alteridade
xam
â
nico sempre desloca o sujeito, at
é
ele ser basicamente deslocamento; essa
filosofia pr
á
tica implica em processos cognitivos e epistemol
ó
gicos espec
í
ficos,
baseados na transforma
çã
o permanente do sujeito-m
ú
ltiplo, distintos dos
par
â
metros cient
í
ficos ocidentais de tradi
çã
o kantiana. Viveiros de Castro sintetiza
a concep
çã
o m
ú
ltipla da filosofia amer
í
ndia e, partindo dos estudos de Stolze Lima
(2002b), organiza o conceito de
perspectivismo amer
í
ndio
, basilar para
compreender as din
â
micas xam
â
nicas sul-americanas:
Se o multiculturalismo ocidental
é
o relativismo como pol
í
tica p
ú
blica (a
pr
á
tica complacente da toler
â
ncia), o perspectivismo xam
â
nico
5
Xapiri, conforme a cultura Yanomami, são os povos-espíritos da natureza que habitam/visitam os corpos
dos xamãs, assim como alguns locais da floresta Amazônica.
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amer
í
ndio
é
o multinaturalismo como pol
í
tica c
ó
smica (o exerc
í
cio
exigente da precau
çã
o). O xamanismo
é
um modo de agir que implica um
modo de conhecer, ou antes, um certo ideal de conhecimento. Tal ideal
est
á
, sob certos aspectos, nas ant
í
podas da epistemologia objetivista [...].
Os sujeitos, tanto quanto os objetos, s
ã
o concebidos como resultantes
de processos de objetiva
çã
o: o sujeito se constitui ou reconhece a si
mesmo nos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando
consegue se
ver de fora
, como um
isso
. Nosso jogo epistemol
ó
gico se
chama objetiva
çã
o; o que n
ã
o foi objetivado permanece irreal e abstrato.
A forma do Outro
é
a coisa. O xamanismo amer
í
ndio
é
guiado pelo ideal
inverso: conhecer
é
personificar
, tomar o ponto de vista daquilo que deve
ser conhecido. Ou antes, daquele; pois a quest
ã
o
é
a de saber “o quem
das coisas” (Guimar
ã
es Rosa) (Viveiros de Castro, 2015, p.49-50).
O conceito de
perspectivismo amer
í
ndio
é
um dos eixos da metaf
í
sica
aut
ó
ctone brasileira, conforme explica Sztutman:
metaf
í
sica que imputa um valor primordial
à
alteridade e, mais do que
isso, que permite comuta
çõ
es de ponto de vista, entre eu e o inimigo,
entre o humano e n
ã
o-humano. Isso n
ã
o seria um atributo exclusivo dos
povos tupi-guarani, podendo ser reconhecido como um modo amer
í
ndio
de pensar e viver. Eis ent
ã
o o que foi chamado, a partir de um longo
mergulho na bibliografia americanista, de perspectivismo amer
í
ndio.
Perspectivismo
é
um conceito antropol
ó
gico, parcialmente inspirado na
filosofia de Gilles Deleuze e Felix Guattari, elaborado em um di
á
logo com
Tania Stolze Lima dedicada ao estudo do conceito yudj
á
de ponto de
vista [...]
é
extra
í
do de um conceito ind
í
gena, porque
é
“a antropologia
ind
í
gena por excel
ê
ncia”. Antropologia baseada na ideia de que, antes de
buscar uma reflex
ã
o sobre o outro,
é
preciso buscar a reflex
ã
o do outro
e, ent
ã
o, experimentarmo-nos outros, sabendo que tais posi
çõ
es eu e
outro, sujeito e objeto, humano e n
ã
o-humano s
ã
o inst
á
veis, prec
á
rias
e podem ser intercambiadas. As ontologias e epistemologias amer
í
ndias
incitam-nos, assim, a repensar as nossas pr
ó
prias ontologias e
epistemologias. Tarefa que n
ã
o est
á
jamais imune ao perigo j
á
que
submete nossas certezas ao risco. “Se tudo
é
humano, tudo
é
perigoso”,
conclui Viveiros de Castro [...]. Se todos os seres podem ser sujeitos,
podem ocupar a posi
çã
o de sujeito, j
á
n
ã
o
é
mais poss
í
vel estabelecer
um s
ó
mundo objetivo. Em vez de diferentes pontos de vista sobre o
mesmo mundo, diferentes mundos para o mesmo ponto de vista”
(Sztutman, 2008 apud Viveiros de Castro, 2008, p.14).
A din
â
mica de personifica
çã
o do xamanismo amer
í
ndio opera como uma
epistemologia subjetivista, deslocando o sujeito e sua maneira de objetivar as
coisas e assumindo a perspectiva de quem se deseja conhecer. H
á
nessa din
â
mica
subjetivista uma
proposi
çã
o decolonial
6
sobre si, sobre o/a outro/a e sobre a
6
Movimento te
ó
rico-metodol
ó
gico da escola de pensamento latino-americana denominada
Estudos
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
11
comunidade;
é
poss
í
vel absorver outros man
á
s, abrindo espa
ç
os a novas
possibilidades
é
ticas e est
é
ticas, novos entendimentos sobre o estado da arte,
tanto no
â
mbito da cria
çã
o quanto dos processos pedag
ó
gicos, expandindo
alternativas extra-ocidentais de exist
ê
ncia.
Alian
ç
as afetivas
(Krenak, 2016) estabelecidas a partir das diferentes
qualidades de consci
ê
ncia e de alteridade permitem-nos viver mais como
murta
do que como
m
á
rmore
7
, nos dando oportunidade de experimentar o devir mutante
das pessoas
múltiplas
(Cesarino, 2011). A experi
ê
ncia do
ê
xtase xam
â
nico
amer
í
ndio est
á
intrinsecamente ligada aos diferentes corpos/duplos da pessoa
m
ú
ltipla, de modo que o/a xam
ã
percorre diferentes mundos em sua jornada
espiritual através dos corpos/duplos e dos esp
í
ritos aliados (Albert, Kopenawa,
2015), negociando com as diferentes esp
é
cies de pessoa (Viveiros de Castro, 2015).
Uma pessoa pode ser compreendida como um ente ou uma
singularidade, mas n
ã
o como um indiv
í
duo: um “bicho”, assim como um
humano ou uma
á
rvore,
é
a rigor uma configura
çã
o ou composi
çã
o
espec
í
fica de elementos que o determinam e diferenciam. “Animal” e
“humano” s
ã
o entidades multifacetadas e devem ser entendidas com
cuidado tamb
é
m. O que chamamos de animal
é
compreendido pelo
pensamento marubo como uma configura
çã
o composta, por um lado, de
“seu bicho”, “sua carca
ç
a” ou “seu corpo” e “sua carne” e, por outro, de
“sua gente/pessoa”, isto
é
, o “seu duplo”, que
é
o dono de seu
bicho/carca
ç
a/corpo (Cesarino, 2011, p.33-34).
um embate no que diz respeito ao lugar do eu entre as culturas ocidentais
e ameríndias; o pensamento amer
í
ndio a respeito é antrop
ó
fago, perspectivista e
fundamentalmente coletivo, enquanto o ocidente busca a emancipa
çã
o do sujeito
diante do coletivo, provoca um desejo no sujeito de se destacar diante de seus
pares; as culturas xamânicas ameríndias tomam a pessoa sempre em relaç
ã
o a
Decoloniais
; estrutura-se a partir do Grupo Modernidade/Colonialidade e atualmente leva o nome de Grupo
Modernidade/Colonialidade/Decolonialidade (Amaral, 2015).
7
Refer
ê
ncia ao ensaio
O m
á
rmore e a murta
de Viveiros de Castro (2013), em que o autor retoma compara
çõ
es
de Padre Vieira entre ind
í
genas e europeus, utilizando as imagens do
m
á
rmore
e da
murta
. Viveiros retoma
a alegoria de Vieira para pensar o contraste entre as civiliza
çõ
es: os ideais europeus de solidifica
çã
o de
valores, deuses, religi
õ
es, leis, assemelham-se
à
s constru
çõ
es de esculturas em
m
á
rmore,
que t
ê
m a
intenç
ã
o de eternizar sua cultura; j
á
o comportamento de civiliza
çõ
es amer
í
ndias assemelham-se
à
murta
,
que pouco tempo ap
ó
s ser podada e receber uma forma, transforma-se novamente, conforme a a
çã
o da
natureza sobre ela, reassumindo sua forma em tr
â
nsito, em devir, n
ã
o permanecendo rigidamente sobre
valores imut
á
veis e eternos da
í
o jogo entre o m
á
rmore ocidental e a murta amer
í
ndia.
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
12
uma rede infinita de forças/man
á
s com as quais interage e
seu eu
que é uma
pessoa m
ú
ltipla – n
ã
o
é
individualizado como na cultura ocidental; pelo contr
á
rio:
é
resultante das dinâmicas coletivas e das negociaç
õ
es diplom
á
ticas
cosmopol
í
ticas
.
Conceber o mundo como espaço-tempo povoado por diferentes
perspectivas exige relaç
õ
es que no xamanismo amer
í
ndio traduz-se como uma
pol
í
tica c
ó
smica, chamada por Viveiros de Castro de cosmopol
í
tica. Isabelle
Stengers tamb
é
m desenvolve uma teoria
cosmopol
í
tica
, distante do discurso
kantiano acerca da unidade do
cosmos
e da
paz perp
é
tua
:
o atrativo kantiano pode induzir
à
ideia de que se trata de uma pol
í
tica
visando a fazer existir um “cosmos”, um “bom mundo comum”. Ora,
trata-se justamente de desacelerar a constru
çã
o desse mundo comum,
de criar um espa
ç
o de hesita
çã
o a respeito daquilo que fazemos quando
dizemos “bom”. [...] n
ã
o designa um projeto que visaria a englob
á
-los
todos, pois
é
sempre uma m
á
ideia designar um englobante para aqueles
que se recusam a ser englobados por qualquer outra coisa. O cosmos, tal
qual ele figura nesse termo, cosmopol
í
tico, designa o desconhecido que
constitui esses mundos m
ú
ltiplos, divergentes, articula
çõ
es das quais
eles poderiam se tornar capazes, contra a tenta
çã
o de uma paz que se
pretenderia final, ecumênica, no sentido de que uma transcendência teria
o poder de requerer daquele que
é
divergente que se reconhe
ç
a como
uma express
ã
o apenas particular do que constitui o ponto de
convergência de todos (Stengers, 2018, p.446-447).
Ambos pensadores transitam sobre a ideia de cosmo m
ú
ltiplo e divergente,
contrapondo-se
à
concepç
ã
o universalista de Kant, que pretende uma paz
perp
é
tua, falsa e colonialista. Portanto, trabalho em companhia da concepç
ã
o
cosmopol
í
tica amer
í
ndia
antropof
á
gica, guerreira, multinaturalista e
perspectivista – lidando fundamentalmente com a
diferença
.
O resultado da troca/devora
çã
o/alian
ç
a permanente dos significantes
flutuantes
8
é
o que leva ao signo,
à
forma mutante e ao conhecimento xam
â
nico.
Para os Yanomami, os
xapiri
colocam suas redes na casa dos esp
í
ritos do xam
ã
(seu corpo m
ú
ltiplo), habitada por infind
á
veis
xapiri
(Albert, Kopenawa, 2015, p.156-
8
Jos
é
Gil, no cap
í
tulo A comunica
çã
o e o corpo, de seu livro
As metamorfoses do Corpo
(1997), trata do
significante flutuante a partir de conceitos desenvolvidos por L
é
vi-Strauss; refere-se
à
exist
ê
ncia de uma
superabund
â
ncia de significantes em rela
çã
o aos significados dos c
ó
digos, mais especificamente sobre a
zona de significado que se d
á
no espa
ç
o que separa os c
ó
digos nas fronteiras da ordem social, linguística,
existencial; uma energia de passagem, n
ã
o codificada.
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
13
173); a cada retorno do xapiri se produz novo significante flutuante, pois sua forma
se desfaz e refaz, devido
à
s novas emana
çõ
es no jogo das rela
çõ
es entre o xam
ã
e seus
xapiri
, implicando metamorfoses, transformando a si e aos outros.
O inef
á
vel
é
pr
ó
prio da linguagem dos man
á
s; destarte, a/o paj
é
é
necessária/o para traduzir a linguagem espiritual. Ela/e realiza uma transposi
çã
o
daquilo que
é
inef
á
vel
à
sua comunidade por meio de sua performatividade cênica,
atrav
é
s de seu corpo – territ
ó
rio onde se efetivam os trabalhos da/o xam
ã
e da/o
artista da cena. Eis uma das principais fun
çõ
es da/o paj
é
: dar corpo/voz ao
significante flutuante, traduzindo a linguagem dos man
á
s. Tal din
â
mica contribui
para um entendimento sobre o papel xam
â
nico da/o artista da cena, pois esta/e
tamb
é
m sabe acessar conte
ú
dos inef
á
veis, tem chaves para adentrar distintas
camadas do tempo-espa
ç
o, negocia com
deuses
e
dem
ô
nios
e compartilha
performaticamente suas jornadas
à
comunidade, como mediador/a das
transforma
çõ
es de si e dos/as outros/as, com formas de comunica
çã
o em
tr
â
nsito, em devir.
Diversos/as artistas da contemporaneidade têm questionado a finalidade e a
natureza de seus trabalhos; buscam, por meio de suas obras, a realizaç
ã
o de
acontecimentos, procurando reaproximar as instâncias da arte e da vida,
performando a experiência do existir
, fazendo da pr
ó
pria vida a narrativa e o
suporte de sua arte, pr
ó
ximo
à
quilo que Nietzsche (1999) vislumbrou enquanto
est
é
tica da existência
. Conforme estudos de Gilles Deleuze sobre a filosofia
nietzscheana, a arte afirma a vida e a vida se afirma na arte como uma “justifica
çã
o
est
é
tica da exist
ê
ncia, observando no artista como a necessidade e o jogo, o
conflito e a harmonia se casam para gerar a obra de arte” (Deleuze, 2018, p.47-48).
No campo expandido das artes (Krauss, 1979), percebe-se uma mobilizaç
ã
o
de criadores em torno de experimentos que buscam escapar de formas e
linguagens artísticas conhecidas, trilhando outros caminhos, afastando-se de
conceitos normativos sobre arte e vida; durante o século XX
as artes experimentaram cada vez mais as hibridaç
õ
es e impurezas, de
maneira que aquilo inicialmente sugerido como “outro teatro”
é
, na
realidade, o reconhecimento da teatralidade como um campo expandido
(Di
é
guez, 2014, p.128).
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
14
Quilici entende que
é
poss
í
vel encarar a arte como
ato filos
ó
fico
no exerc
í
cio
do campo expandido; para o pesquisador, esses conceitos
pretendem nomear proposi
çõ
es que extrapolam uma
á
rea art
í
stica
espec
í
fica, borrando as fronteiras que separam teatro, performance, artes
visuais, dan
ç
a, v
í
deo, etc. [...] trata-se de fazer transbordar as pr
á
ticas
art
í
sticas para fora dos circuitos e dos sentidos que lhe s
ã
o
habitualmente atribu
í
dos, inserindo-as em lugares insuspeitos,
articulando-as com outras formas de saber e fazer, colocando em
cheque categorias que se encarregavam de situar a arte em um campo
cultural nitidamente definido. O velho tema da intensificação das
relaç
õ
es entre arte e vida, que alimentou boa parte dos
empreendimentos vanguardistas, reaparece aqui numa nova situaç
ã
o,
exigindo ser repensado a partir das condiç
õ
es espec
í
ficas do contexto
contemporâneo (Quilici, 2014, p.12-13).
Permanece no atual cen
á
rio renovados trânsitos entre diversas
á
reas de
pesquisas, culturas, ontologias e epistemologias, provocando revis
õ
es de antigos
paradigmas do ensinar e do fazer art
í
stico, trazendo novas abordagens sobre a
criaç
ã
o/apreciaç
ã
o est
é
tica; contribuiç
õ
es transdisciplinares têm emergido nos (e
dos) m
ú
ltiplos espaços de formaç
ã
o, de criaç
ã
o e de apresentaç
ã
o art
í
sticas, no
Brasil e no mundo. A conhecida cis
ã
o entre arte e vida continua sendo revista. Os
experimentos das vanguardas históricas dilu
í
ram fronteiras entre linguagens
artísticas e apontaram caminhos distintos daqueles dos cânones tradicionais
(representaç
ã
o como imitaç
ã
o, personagens, narrativa ficcional, ilusionismo,
dentre outros), apontando alternativas para a cena contemporânea que
aproximassem arte e vida em um mesmo tempo e espa
ç
o, menos como
representaç
ã
o mim
é
tica
e mais como acontecimento (Fischer-Lichte, 2008)
compartilhado entre artistas e espectadores, gerando experiências que
ultrapassam a ficç
ã
o.
Alguns dos pontos basilares da arte de vanguarda do século XX (decorrentes
da abertura às culturas dos povos originários) foram a recuperação da dimens
ã
o
orgânica da vida, da magia (Fischer, 1983) e de um contexto sens
í
vel de percepç
ã
o
enquanto problemas est
é
tico-existenciais de construç
ã
o
é
tica, questionando a
tendência mercadol
ó
gica de transformar a arte em um (sub)produto
espetacular
do capitalismo (Debord, 2003), caracterizada pela
coisificaç
ã
o
da vida. As
vanguardas possibilitaram aos criadores mergulhar suas investiga
çõ
es em
á
guas
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
15
outras
:
á
guas da co-criaç
ã
o, de maior troca transdisciplinar, na contram
ã
o da
especializaç
ã
o e da espetacularizaç
ã
o mercadol
ó
gica.
A
crise da representaç
ã
o
que a arte do ocidente enfrentou durante o s
é
culo
XX impulsionou caminhos alternativos aos movimentos vanguardistas e seus
continuadores, fazendo com que deles surgissem novas maneiras de fazer e
pensar arte; a
performance art
é
um exemplo desse giro pr
á
tico-conceitual. A
expans
ã
o da interação entre as linguagens art
í
sticas (conforme suas fronteiras
foram sendo borradas) favoreceu o surgimento de m
ú
ltiplas experimentaç
õ
es,
muitas vezes em di
á
logo com culturas tradicionais que viviam ou vivem em
sistemas sociais n
ã
o-industriais, a exemplo das culturas ameríndias.
Ailton Krenak provoca com acidez o pensamento normativo do ocidente no
que tange
à
concep
çã
o da arte e do lugar que ela ocupa na vida cotidiana das
culturas capitalistas, um contraste impressionante com os modos de vida e de
produ
çã
o de subjetividade dos amer
í
ndios.
A separa
çã
o entre viver e fazer arte, eu n
ã
o percebo essa separa
çã
o em
nenhuma das matrizes de pensamento de povos origin
á
rios que conheci.
Todo mundo que eu conhe
ç
o dan
ç
a, canta, pinta, desenha, esculpe, faz
tudo isso que o Ocidente atribui a uma categoria de gente, que s
ã
o os
artistas. S
ó
que em alguns casos s
ã
o chamados de artes
ã
os e suas obras
s
ã
o chamadas de artesanato, mas, de novo, s
ã
o categorias que
discriminam o que
é
arte, o que
é
artesanato, o que
é
um artista, o que
é
um artes
ã
o. Porque a hist
ó
ria da arte
é
a hist
ó
ria da arte do Ocidente.
Quando Picasso foi
à
Á
frica e se contagiou com a vis
ã
o de arte que os
povos da
Á
frica traziam, ele transp
ô
s para sua obra, para a sua cria
çã
o,
muitas daquelas vis
õ
es, e todo mundo admite e aceita isso. E ele n
ã
o viu
ali, naquela cria
çã
o, nada menor do que a arte dele. A arte dele por
excel
ê
ncia n
ã
o
é
o que tem de mais bacana no Ocidente? Agora, os
cretinos, que querem demarcar fronteiras entre mundos, esses acham
que os povos ind
í
genas produzem artefatos, e que um artista ou algu
é
m
que ganhou esse t
í
tulo produz arte (Krenak, 2016, p.182).
A filosofia de Nietzsche (1999) elaborada na segunda metade do s
é
culo XIX
questiona os caminhos tomados pela modernidade. O pensamento nietzscheano
se conecta com as ideias pr
é
-socr
á
ticas de Her
á
clito de
É
feso – que compreende
o
devir
como a dinâmica pr
ó
pria da existência – e com a vis
ã
o de Espinosa (1979)
que entende que
Deus
é
natureza
. Rastreando as ra
í
zes das concep
çõ
es
ocidentais de arte, religi
ã
o, economia,
é
tica e pol
í
tica, encontramos ecos do
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
16
conflito entre natureza e cultura, que busca uma abstrata reconciliaç
ã
o junto ao
hipot
é
tico mundo essencial, monote
í
sta e universal, afastando-se da
multiplicidade que comp
õ
e a natureza, cumprindo, dessa maneira, um dos erros
capitais do violento gesto ocidental colonialista para com as demais culturas do
mundo: a incans
á
vel luta por tentar fazer do outro um reflexo de si, cometendo
etnogenoc
í
dios por todo o globo no intuito de querer encaixar a multiplicidade dos
povos na unicidade kantiana do pensamento europeu, agindo de modo a impor
sobre o mundo suas concepç
õ
es a respeito da vida, da morte e dos modos de
existir.
Com essa tr
í
ade de filósofos (Her
á
clito, Espinosa e Nietzsche), o
m
ú
ltiplo
é
compreendido como o
uno
, o uno afirmando-se do m
ú
ltiplo, distanciando-se da
ideia de universalidade c
ó
smica que se impõe a todos; na segunda metade do
s
é
culo XX, Gilles Deleuze e F
é
lix Gattari apresentam a ideia do
uno subtra
í
do ao
m
ú
ltiplo, na f
ó
rmula n-1
, vinculando-se
à
linha de pensamento dessa tr
í
ade,
conferindo, junto a outros fil
ó
sofos, uma an
á
lise renovada sobre as proposiç
õ
es
filos
ó
ficas nietzscheanas (Deleuze, 2018). Nietzsche vê a arte como uma “feiticeira
salvadora com seus b
á
lsamos” (1999, p.31) a nos livrar dos perigos do mundo; sua
noç
ã
o da natureza como entidade m
ú
ltipla e da arte como afirmaç
ã
o da vida, se
aproximam das filosofias pr
á
ticas amer
í
ndias.
Nos campos da arte e da filosofia ocidentais têm havido mudanças na
maneira de encarar as cl
á
ssicas cis
õ
es do pensamento ocidental (f
í
sica e
metaf
í
sica, divindade e humanidade, corpo e espírito, natureza e cultura); a
respeito da antropologia, Viveiros de Castro considera que
a distinç
ã
o cl
á
ssica entre Natureza e Cultura artigo primeiro da
Constitui
çã
o da disciplina, em que ela faz seu voto de obedi
ê
ncia
à
velha
matriz metaf
í
sica ocidental n
ã
o pode ser utilizada para descrever [...]
cosmologias n
ã
o ocidentais sem passar antes por uma cr
í
tica etnol
ó
gica
rigorosa (2015, p.42).
Tal giro epistemol
ó
gico adv
é
m de uma revis
ã
o ontol
ó
gica, oriunda de bases
que n
ã
o as da tradiç
ã
o kantiana, e vem afetando gradativamente o pensar e o
fazer art
í
stico. A antropologia se transformou bastante ao longo dos s
é
culos XIX,
XX e XXI, atravessando algumas fases no amadurecimento de suas pr
á
ticas (Narby,
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
17
2018, p.21-24); seu olhar inaugural esteve carregado de etnocentrismo (com bases
darwinistas e eugenistas) e foi utilizada como instrumento expl
í
cito de catalogaç
ã
o
e dominaç
ã
o de povos n
ã
o-ocidentais pelas potências colonialistas da Europa.
Com pouco mais de um s
é
culo de estudos, a antropologia estabeleceu-se como
ciência conferindo
à
s culturas uma ordem estruturada (e estruturante) e um dos
principais expoentes desse movimento foi o antropólogo Claude L
é
vi-Strauss,
considerado o fundador da antropologia estruturalista.
Uma das principais críticas ao estruturalismo surge na segunda metade do
s
é
culo XX, em diálogo direto com este e ficou conhecida como antropologia
p
ó
s-
estruturalista.
Eduardo Viveiros de Castro, também partindo do
estruturalismo
de
Lévi-Strauss, participa dessa crítica ironizando a antropologia cl
á
ssica com a ideia
de um
Anti-Narciso
(Viveiros de Castro, 2015), provocando-a a escapar da auto-
projeç
ã
o sobre o outro e de seu caracter
í
stico etnocentrismo. Da
í
a chamada
virada ontol
ó
gica
9
, que sugere interpretar o mundo partindo de concepç
õ
es extra-
ocidentais acerca da existência, tais como as amer
í
ndias, configurando-se como
uma
ontologia da diferença
.
Ao esmiuçar potentes características das tradiç
õ
es dos povos origin
á
rios das
Am
é
ricas, Viveiros de Castro observa que n
ã
o divis
ã
o entre arte e vida, natureza
e cultura, corpo e esp
í
rito; com teorias elaboradas a partir das filosofias pr
á
ticas
dos povos ind
í
genas, o antropólogo questiona a supremacia branca do
pensamento ocidental (que insiste em colonizar) e retoma, em outros termos, a
intui
çã
o po
é
tica do Manifesto Antrop
ó
fago (Andrade, 1978). Renato Sztutman
aponta que h
á
um s
é
culo, Oswald de Andrade j
á
recusava os modelos
est
é
ticos,
é
ticos e pol
í
ticos forjados pelo mundo ocidental-moderno,
(vislumbrando) essa
revoluç
ã
o cara
í
ba
capaz de reverter o vetor colonial
e indigenizar nosso imagin
á
rio (Sztutman, 2008, p.12).
Davi Kopenawa, em sua incans
á
vel atuaç
ã
o
cosmopol
í
tica
e performativa,
tem chamado atenção
à
situaç
ã
o de extrema urgência pela qual passa o planeta
9
Conforme Uchôa (2017), a
virada ontol
ó
gica
é
um conjunto de teorias no caminho de uma metaf
í
sica outra,
oposta
à
matriz kantiana, configurando-se como uma
ontologia da diferen
ç
a
. Inclui-se metaf
í
sicas
amer
í
ndias que, em contraposi
çã
o
à
divis
ã
o entre Natureza e Cultura, apresentam um
multiverso
de
naturezas cujas associa
çõ
es expressam um mundo ontologicamente plural (Uchôa, 2017).
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
18
Terra (e todos nós, por consequência), denunciando os ataques a seu povo
Yanomami e à floresta amazônica, resultado da forma como os brancos se
relacionam com a natureza (Vincent, 2017, p.656). Em sua antológica narrativa
A
Queda do C
é
u
10
, Kopenawa fala do risco a que estamos nos expondo com o
insistente modelo extrativista e destrutivo da natureza em prol do capital
financeiro transnacional, principalmente por meio da mineraç
ã
o, do
desmatamento e do garimpo; no entendimento de seu povo, essas pr
á
ticas
acarretam em devastadoras doenças e em um irrevers
í
vel desequil
í
brio ambiental,
pois os brancos estão retirando do fundo da terra os minérios que formam as
estruturas que sustentam o mundo, o que pode provocar a
queda do c
é
u
, quando
j
á
n
ã
o houver mais xam
ã
s nem esp
í
ritos
xapiri
para manter os pilares que o
sustenta (Albert, Kopenawa, 2015).
Ailton Krenak fala da “obsess
ã
o ocidental em controlar a natureza e a
paisagem, impossibilitando que se estabeleça relaç
õ
es de afeto e partilha com
outros seres, com a
á
gua, a terra, as montanhas” (Krenak apud Vincent, 2017,
p.656). Frente aos desafios impostos pela civilizaç
ã
o capitalista do antropoceno,
mais uma vez somos provocados a escutar as vozes das florestas para
resistir
e
re-existir
!
As chamadas formas
arcaicas
de pensar e agir das tradiç
õ
es amer
í
ndias
revelam-se como fontes de provocaç
ã
o
à
s transformaç
õ
es que o mundo
contemporâneo precisa viver, pois expõem a
íntima obscuridade
(Agamben, 2009)
de nossos tempos. Alguns expoentes das
ú
ltimas geraç
õ
es de intelectuais e
artistas parecem estar mais atentos às potências ontológicas amer
í
ndias,
permitindo-se afetar por elas; pesquisas voltadas
à
s culturas tradicionais têm-se
deslocado de um lugar de superioridade (t
í
pico da antropologia tradicional e das
muitas missões religiosas), buscando relaç
õ
es menos impositivas.
Richard Schechner, em seus estudos sobre
performance
, analisa tradiç
õ
es e
ritos espalhados por todos os continentes (Ligiéro, Schechner, 2012); influenciado
pelo pensamento de Victor Turner (1982) a respeito da relação entre teatro e ritual,
sugere alternativas às renovaç
õ
es do fazer e do pensar as artes cênicas do tempo
10
Obra que também oferece as bases para o filme documentário de longa-metragem
A Última Floresta
,
dirigido por Luiz Bolognesi, lançado em 2021.
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
19
do
agora.
Para Schechner,
performance
é
um termo inclusivo. Teatro
é
somente um ponto num
continuum
que
vai desde as ritualizaç
õ
es dos animais [...],
à
s performances na vida
cotidiana celebraç
õ
es, demonstraç
õ
es de emoç
õ
es, cenas familiares,
pap
é
is profissionais e outros, por meio do jogo, esportes, teatro, dança,
cerimônias, ritos e
à
s apresentaç
õ
es espetaculares (Ligiéro, Schechner,
2012, p.18).
A noç
ã
o de
liminaridade
desenvolvida por Turner (1969) é também bastante
pertinente ao estudo das performatividades cênicas (cotidianas e rituais) dos
povos originários; nas palavras de Armindo Bi
ã
o, trata-se
da qualidade do que est
á
ao n
í
vel do limiar, ou dito de outra forma, o que
est
á
entre duas manifest
õ
es. Ora, o teatro reunindo jogo e vida, e o
transe, reunindo divindade e humanidade, s
ã
o bem o dom
í
nio da
ambiguidade e da liminaridade (Bi
ã
o, 2017, p.7).
Schechner tamb
é
m trabalhou sobre o conceito de
liminaridade
em diálogo
com o antropólogo Victor Turner; este, por sua vez, partiu do pensamento
inicialmente elaborado por Gennep (2011) sobre os rituais e sugeriu alguns
desdobramentos:
Arnold van Gennep (1873-1957) tamb
é
m reconheceu as dinâmicas
teatrais do ritual. Em seu estudo dos “ritos de passagem”, van Gennep
prop
ô
s uma estrutura de tr
ê
s fases da aç
ã
o ritual: a preliminar, a liminar
e a p
ó
s-liminar. Ele aponta que a vida
é
uma sucess
ã
o de passagens de
uma fase a outra, e que cada passo no caminho
é
marcado por um ritual.
Na d
é
cada de 1960, Victor Turner desenvolveu o pensamento de Gennep
em uma teoria do ritual que tem grande importância para os estudos da
performance. [...]. A fase central
é
a liminar um per
í
odo de tempo em
que uma pessoa est
á
“estranha e entre” categorias sociais ou identidades
pessoais.
É
durante a fase liminar que o trabalho real dos rituais de
passagem toma lugar. Nesse momento, ocorrem as transiç
õ
es e
transformaç
õ
es [...]. Existem v
á
rias formas de realizar a transforma
çã
o.
As pessoas podem fazer juramentos, aprender tradi
çõ
es, vestir roupas
novas, performar a
çõ
es especiais, serem sacralizados ou circuncidadas.
[...] a fase de prepara
çã
o da composi
çã
o da performance
é
an
á
loga
à
fase
liminar do processo ritual. [...]. Um
limen
é
um limiar ou um peitoril, uma
fina faixa, nem dentro, nem fora de uma constru
çã
o ou sala, ligando um
espa
ç
o a outro.
É
mais uma passagem/corredor/via do que um espa
ç
o
em si mesmo. Em performances rituais e est
é
ticas, o espa
ç
o sutil do
limen
é
expandido em um amplo espa
ç
o, de forma real, bem como
conceitual. O que, normalmente,
é
apenas um “estar entre”, torna-se o
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
20
local da a
çã
o. E, no entanto, essa a
çã
o permanece, para usar a frase de
Turner,
betwixt and between
(o intermedi
á
rio). Ela
é
ampliada no tempo
e no espa
ç
o e ainda mant
é
m a sua qualidade peculiar de passagem ou
temporalidade (Ligiéro, Schechner, 2012, p.58-64).
Eleonora Fabi
ã
o considera esse
entre
como um espa
ç
o-tempo de
indetermina
çã
o
.
“Entre” n
ã
o
é
l
á
, nem c
á
; n
ã
o
é
antes, nem depois; [...] “entre” n
ã
o
é
, pois
acontece como espa
ç
o-tempo de indetermina
çã
o, como campo de
rela
çã
o, como corpo em transi
çã
o. Estar “entre”, sugiro,
é
a pr
ó
pria
condi
çã
o do corpo vivo. Estamos vibrando entre nascimento e morte.
Estamos formando e sendo formados por for
ç
as sociais e hist
ó
ricas, por
cada uma e todas as rela
çõ
es que vivemos. Estamos em permanente
movimento (Fabi
ã
o, 2013, p.XIII).
O
entre
est
á
na
liminaridade
e sugere o devir, a mistura, o significante
flutuante, a passagem de um estado a outro. Experi
ê
ncias contempor
â
neas
transitam sobre concep
çõ
es da
n
ã
o-forma
na arte e para al
é
m dela; discuss
õ
es
sobre g
ê
nero, ra
ç
a, nacionalidade, cultura, classe social, tecnologia, sexualidade,
espiritualidade e criatividade s
ã
o recorrentes temas
em transi
çã
o
. Tempo em que
paradigmas r
í
gidos est
ã
o em vias de transforma
çã
o, de antigos entendimentos
sobre o mundo para o que est
á
por vir, reconsiderando pilares que sustentaram
as hegem
ô
nicas rela
çõ
es socioculturais at
é
a virada do s
é
culo XXI, em direção a
esse devir outro, que ainda n
ã
o sabemos o que
é
, justamente por estarmos
vivendo esse gigantesco hiato que caracteriza os tempos atuais.
A troca de pele
11
m
í
tica, bastante presente nas tradi
çõ
es amer
í
ndias, indica a
n
ã
o-forma
das coisas, o
liminar
dos ritos de passagem, a morte e o renascimento
fundamento primordial das dinâmicas xamanísticas pot
ê
ncia que leva
à
experi
ê
ncia do
outramento
12
: um deslocamento daquilo que era em dire
çã
o ao
desconhecido devir,
à
percep
çã
o de que tudo dan
ç
a e se transforma, troca de pele
e vira outro, em luta constante de perspectivas. Dessa maneira, as
performatividades cênicas do xamanismo ameríndio participam da tecitura de um
11
Tania Stolze Lima (2002) trata do tema da troca de pele no xamanismo dos Juruna, povo tupi do rio Xingu,
em seu estudo sobre a concep
çã
o de corpo naquele povo.
12
Outramento
é
uma express
ã
o criada por Fernando Pessoa e diz respeito ao processo de diferencia
çã
o de
si, de se tornar outro (
outrar-se
) a partir do encontro com a alteridade (Esperandio, 2011, p.425).
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Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
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21
outro teatro
que conjuga metaf
í
sicas da
preda
çã
o canibal
, em uma concep
çã
o
po
é
tica
antropof
á
gico-perspectiv
í
stica
, como sugere Gardel (2019, p.2-5):
o teatro brasileiro pode ser configurado segundo uma luta de
perspectivas entre duas metaf
í
sicas e modos de produ
çã
o inventiva [...].
As pot
ê
ncias em luta s
ã
o, por um lado, a filosofia da representa
çã
o
ocidental, plat
ô
nico-aristot
é
lica, direcionada para o Uno e para o Mesmo,
a partir de princ
í
pios mim
é
ticos de grada
çõ
es de originalidade e
autenticidade, de c
ó
pia e simulacro de modelos; e, por outro, a metaf
í
sica
da preda
çã
o canibal, cuja rela
çã
o sujeito/alteridade constr
ó
i a pr
ó
pria
realidade, por meio de uma multipolaridade de perspectivas
entredevorantes, em constante metamorfose. [...] De um lado, a
coralidade dos ritos tribais e as pe
ç
as-performances-poemas xam
â
nicas,
impulsionadas por uma complexa metaf
í
sica canibal; de outro, a
metaf
í
sica ocidental estruturada nas formula
çõ
es de representa
çã
o do
Uno, expressa no teatro catequ
é
tico de tese teol
ó
gica e raiz
é
pica
anchietano, centrado na devora
çã
o que anula a alteridade em nome do
mesmo.
Muito daquilo que hoje chamamos de artes c
ê
nicas j
á
existia entre as culturas
pr
é
-colombianas: eram praticadas de variadas formas e carregavam m
ú
ltiplos
sentidos e significados, s
ó
n
ã
o eram nomeadas e entendidas da mesma maneira
como faziam os europeus com seu teatro. De acordo com as teorias arqueol
ó
gicas
mais aceitas a respeito das migra
çõ
es paleomesol
í
ticas para o Novo Mundo – que
sustentam a ancestralidade xam
â
nica eurasi
á
tica dos amer
í
ndios (Furst, 1976) –,
desde que os primeiros povos chegaram para habitar o continente, praticaram
seus ritos, mitos, festas, dan
ç
as, cantos, contos, lutas e jogos, elaboraram seus
instrumentos musicais, adere
ç
os e adornos corporais, sistemas simb
ó
licos de
pinturas sobre seus corpos e cavernas e todo um
complexo xam
â
nico de pr
á
ticas
c
ê
nicas
(Furst, 1976) que cumpria variados pap
é
is entre os povos antigos, como o
de ensinar, proteger, cultuar, antever, curar, negociar, divertir, treinar, agregar,
consagrar, socializar, festejar, vingar, entre outros.
Tais reflexões sobre as artes da cena e da/o xam
ã
, considerando que ambas
est
ã
o presentes em culturas de todo o mundo, levam, por conseguinte, a
compreensões múltiplas quanto ao tema. Ator/atriz e xam
ã
sugerem
entendimentos t
ã
o variados que se faz necess
á
rio estabelecer recortes
espec
í
ficos. No entendimento de Margot Berthold, existe uma similaridade entre
as fun
çõ
es culturais do/a xam
ã
e aquelas dos/as artistas da cena:
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
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Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
22
O xam
ã
que
é
o porta-voz do deus, o dan
ç
arino mascarado que afasta os
dem
ô
nios, o ator que traz a vida
à
obra do poeta todos obedecem ao
mesmo comando, que
é
a conjura
çã
o de uma outra realidade, mais
verdadeira (Berthold, 2001, p.1).
Richard Schechner demonstra not
á
vel simpatia por culturas xam
â
nicas ao
discutir o trabalho dos int
é
rpretes e o sentido das artes c
ê
nicas; aponta evid
ê
ncias
hist
ó
ricas e estruturais que conectam teatro e xamanismo na Gr
é
cia, China, Jap
ã
o,
Índia, Coreia e em culturas onde identifica cerim
ô
nias
proto-teatrais
na Europa,
Oriente M
é
dio e Am
é
ricas, aproximando ator/atriz e xam
ã
no que entende ser
substancial para ambas as figuras, a
transforma
çã
o
:
Um xam
ã
é
o transformador = aquele que
é
transformado = o substituto
= o elo = aquele que conecta diferentes dom
í
nios da realidade = aquele
que facilita a mudan
ç
a incorporando a mudan
ç
a = aquele que, mudando
a si mesmo, ajuda os outros a mudar. O xam
ã
é
um transformador
profissional e muito parecido com o ator de teatro
13
(Schechner, 1973,
p.180).
Em seu trabalho como ator, pesquisador e professor, Mark Olsen repousa um
olhar sobre a arte do ator/atriz a partir de uma perspectiva espiritual e xam
â
nica:
na antiguidade, o ator esteve abertamente vinculado aos processos
espirituais. No Egito, na Gr
é
cia, na P
é
rsia, na Sum
é
ria e, virtualmente, em
todas as religi
õ
es tribais xaman
í
sticas, o trabalho do ator era sagrado e
uma contribui
çã
o inquestion
á
vel para a eleva
çã
o da alma. Isto
permanece como uma potencialidade at
é
hoje, sendo que apenas o seu
v
í
nculo foi obscurecido por uma s
é
rie de fatores, n
ã
o sendo, por
é
m, o
menor deles as no
çõ
es err
ô
neas sobre o que, atualmente, significa o
trabalho espiritual (Olsen, 2004, p.4).
Gilberto Icle, em
O Ator como Xamã
(2010), confere um foco distinto sobre o
qual eu trabalho; para ele, as aproxima
çõ
es entre ator/atriz e xam
ã
se d
ã
o
enquanto met
á
fora. Segundo o autor, a ideia do/a xam
ã
resume sua tese, na qual
discute a “diversidade de configura
çõ
es que a consci
ê
ncia humana
é
capaz de
produzir para constituir, dar-se conta e repetir comportamentos espetaculares
13
A shaman is the transformer = the one who is transformed = the surrogate = the link = the one who connects
different realm of reality = the one who facilitates change by embodying change = the one who by changing
himself helps others change. The shaman is a professional transformer, and very much like the theater
performer. (Tradução nossa)
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
23
sistematizados” (Icle, 2010, p.XIII), mas ele n
ã
o apresenta uma defini
çã
o sobre
xam
ã
, nem sobre a que cultura xam
â
nica se refere, nem quais
ferramentas/técnicas do êxtase que o/a int
é
rprete da cena poderia eventualmente
utilizar. O livro discute mais oficinas de
clown
e a psicopedagogia piagetiana, do
que a rela
çã
o entre ator/atriz e xam
ã
; fundamenta-se em concep
çõ
es
exclusivamente ocidentais a respeito da consci
ê
ncia humana e traz uma erudita
vis
ã
o sobre o palha
ç
o (inclusive utiliza o termo
clown
14
), n
ã
o apresentando
qualquer concep
çã
o xam
â
nica acerca dos estados da mente nem sobre o
palha
ç
o
sagrado
(presente em diversas tradi
çõ
es xam
â
nicas). Diferencia estados cotidianos
dos extra-cotidianos
15
, com uma ideia
sobre altera
çã
o
da consci
ê
ncia e de tr
â
nsito
entre mundos que permitem trazer aos humanos comuns, hist
ó
rias m
í
ticas de
outro tempo e espa
ç
o. O xamanismo amer
í
ndio n
ã
o trabalha com essas divis
õ
es
estanques ao tratar dos mundos interpenetrantes e do tempo m
í
tico, que n
ã
o
é
cristalizado mas pass
í
vel de ser alterado pela atividade da/o xam
ã
.
Interesso-me por uma rela
çã
o mais
í
ntima, experiencial e concreta entre as
figuras do/a ator/atriz e do/a xam
ã
, tangenciando o "binômio teatro e
espiritualidade, o ato artístico devocional; a atuação canalizada, iluminada; a
ritualidade que proporciona o transe consciente o êxtase, a cura" (Keiserman,
2021, p.3). Minha busca se d
á
por meio de uma concep
çã
o de teatro mais
expandida e performativa, n
ã
o-mim
é
tica, extra-ocidental e xam
â
nica; investigo
outras po
é
ticas da cena e outros sentidos da arte, diferentes do olhar que coisifica
tudo e faz da arte uma mercadoria (Debord, 2003). Esforço-me por encontrar rotas
de fuga
à
s vis
õ
es de teatro enquanto atividade circunscrita
à
prepara
çã
o de uma
obra em que se inclui o trabalho do/a autor/a, diretor/a, equipe t
é
cnica e
int
é
rpretes para que uma hist
ó
ria seja comunicada a um p
ú
blico; dialogo com
14
O
clown
segue a tradi
çã
o europeia de m
á
scaras, remontando
à
comedia dell’arte
, fundamentalmente
popular em sua origem e posteriormente desenvolvida de modo erudito por diretores-pedagogos de teatro
no s
é
culo XX (Copeau, Decroux, Lecoq e Gaulier), chegando ao Brasil atrav
é
s do trabalho (dentre outros) de
Luis Ot
á
vio Burnier (UNICAMP).
Comedia dell’arte
é
resultado de s
é
culos de movimentos culturais n
ô
mades,
de rua, que mesclou uma infinidade de refer
ê
ncias sobre a utiliza
çã
o ritual de m
á
scaras, presente em toda
a Europa medieval e que nascia de misturas entre aspectos animais e humanos, dos tipos de personalidades
e de extratos sociais caracter
í
sticos daquela
é
poca. Certamente aquelas m
á
scaras ancestrais remontam a
costumes xam
â
nicos, no entanto, as conex
õ
es entre o
clown
contempor
â
neo com sua ancestralidade
xam
â
nica n
ã
o s
ã
o t
ã
o evidentes e f
á
ceis de se demonstrar, vide o esfor
ç
o de Gilberto Icle.
15
Mantém com isso uma discuss
ã
o tipicamente capitalista sobre a vida, segmentando-a, distinguindo o
exerc
í
cio cotidiano da arte (presente em comunidades tradicionais) do lugar destacado que a arte ocidental
mercadológica se propõe a ter, desvinculada do cotidiano (Debord, 2003).
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
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Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
24
conceitos
expandidos
sobre a cena (Krauss, 1979; Quilici, 2014) e com estudos da
performance/ritual de diferentes povos (Schechner, 1973; Artaud, 1985; Bi
ã
o, 2017;
Cesarino, 2011; Ligiéro, 2012; Bauman, 2014; Graham, 2018).
Retomo a etimologia da palavra grega
theatron
(lugar de onde se v
ê
), pois
entendo que observar o outro agindo em situa
çã
o de autoexposi
çã
o j
á
se configura
potencialmente como teatro. Peter Brook (2002), de maneira simples e potente,
sintetiza o fen
ô
meno teatral como o ato de uma pessoa observar outra em a
çã
o
em algum espa
ç
o por um tempo determinado, alargando sobremaneira as
possibilidades c
ê
nicas.
Ao escrever sobre os aborígenes australianos, Schechner (1973) explica que
quando o jovem
é
convocado a participar dos ritos ancestrais, preparam-se para
performar
dan
ç
as e cantos tradicionais que est
ã
o habituados desde crian
ç
as,
podendo sonhar com novas dan
ç
as e cantos e com mestres antigos vindo
iniciar
as crian
ç
as, n
ã
o as
ensaiar
. Isso se diferencia bastante da forma e do sentido de
ensino e prática das artes que temos, em geral, no Ocidente:
Entre os abor
í
gines australianos, n
ã
o h
á
necessidade de ensaiar ou
executar oficinas. Quaisquer apresenta
çõ
es que os pequenos bandos
abor
í
gines, amplamente dispersos, realizem, s
ã
o realizadas por si
mesmas; falando corretamente, n
ã
o h
á
audi
ê
ncia. E n
ã
o h
á
necessidade
de fazer nada de especial em ensinar os passos da dan
ç
a ou as m
ú
sicas.
Essas crian
ç
as v
ê
em e ouvem desde o nascimento. Ou eles t
ê
m sonhos
que revelam a forma e as palavras de novas dan
ç
as e m
ú
sicas. Ou,
quando as cerim
ô
nias est
ã
o pr
ó
ximas, os homens levam os meninos para
um local isolado e mostram-lhes as dan
ç
as, ensinam-lhes os c
â
nticos,
educam-nos na tradi
çã
o da tribo. Os meninos s
ã
o iniciados, n
ã
o
ensaiados: juntam-se aos homens naquilo que os homens h
á
muito
tempo sabem e fazem. [...] Assim, uma fun
çã
o da prepara
çã
o
é
manter o
contato com a tradi
çã
o, o passado, os Ancestrais, o Tempo dos Sonhos:
O Presente Eterno. Essa fun
çã
o hist
ó
rica [...]
é
especialmente importante
em culturas n
ã
o alfabetizadas, onde o passado n
ã
o pode ser depositado
em livros. Prepara
çã
o = tradi
çã
o-em-a
çã
o
16
(Schechner, 1973, p.175-176).
16
Among the Australian aborigines there is no need to rehearse or run workshops. Any performances the
widely scattered, small aborigine bands do are done for themselves; properly speaking there is no audience.
And there is no need to do anything special about teaching the dance steps or songs. These the children see
and hear from birth. Or they have dreams that reveal the shape and words of new dances and songs. Or,
when the ceremonies are near, the men take the boys to a secluded spot and show them the dances, teach
them the songs, educate them in the lore of the tribe. The boys are initiated, not rehearsed: They join the
men in what the men for a long time have known and done. [...].Thus, one function of preparation is to keep
the contact with tradition, the past, the Ancestors, the Dream Time: The Eternal Present. This historic
function [...] is especially important in non-literate cultures where the past cannot be deposited in books.
Preparation = tradition-in-action. (Tradução nossa)
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
25
Os sonhos também ocupam um lugar especial nas tradições ameríndias,
conforme relata Ailton Krenak:
queria comunicar a voc
ê
s um lugar, uma pr
á
tica que
é
percebida em
diferentes culturas, em diferentes povos, de reconhecer essa institui
çã
o
do sonho n
ã
o como experi
ê
ncia cotidiana de dormir e acordar, mas como
exerc
í
cio disciplinado de buscar no sonho as orienta
çõ
es para nossas
escolhas do dia a dia. Para algumas pessoas, a ideia de sonhar
é
abdicar
da realidade,
é
renunciar ao sentido pr
á
tico da vida. Por
é
m tamb
é
m
podemos encontrar quem n
ã
o veria sentido na vida se n
ã
o fosse
informado por sonhos, nos quais pode buscar os cantos, a cura, a
inspira
çã
o e mesmo a resolu
çã
o de quest
õ
es pr
á
ticas que n
ã
o consegue
discernir, cujas escolhas n
ã
o consegue fazer fora do sonho, mas que ali
est
ã
o abertas como possibilidades. [...] uma disciplina relacionada
à
forma
çã
o,
à
cosmovis
ã
o,
à
tradi
çã
o de diferentes povos que t
ê
m no
sonho um caminho de aprendizado, de autoconhecimento sobre a vida e
a aplica
çã
o desse conhecimento na sua intera
çã
o com o mundo e com
as outras pessoas [...] como experi
ê
ncia de pessoas iniciadas numa
tradi
çã
o para sonhar. Assim como quem vai para uma escola aprender
uma pr
á
tica, um conte
ú
do, uma medita
çã
o, uma dan
ç
a, pode ser iniciado
nessa institui
çã
o para seguir, avan
ç
ar num lugar do sonho. Alguns xam
ã
s
ou m
á
gicos habitam esses lugares ou t
ê
m passagem por eles. S
ã
o lugares
com conex
ã
o com o mundo que partilhamos; n
ã
o
é
um mundo paralelo,
mas que tem uma pot
ê
ncia diferente (Krenak, 2019, p.51-67).
A compreens
ã
o simb
ó
lica e espiritual dos sonhos
é
conquistada de forma
gradual, explicam Bruce Albert e Davi Kopenawa (2015); ela se d
á
em linguagem
po
é
tica e oracular, exigindo treinamentos xamânicos para aprender a decifrar sua
comunica
çã
o. Os que se dedicam a estudar o
tempo do sonho
n
ã
o s
ã
o como
aqueles que dormem como
machados largados no ch
ã
o de uma casa. Enquanto isso, no sil
ê
ncio da
floresta, n
ó
s, xam
ã
s, bebemos o p
ó
das
á
rvores
y
ã
koana hi
, que
é
o
alimento dos
xapiri
. Estes ent
ã
o levam nossa imagem para o tempo do
sonho. Por isso somos capazes de ouvir seus cantos e contemplar suas
dan
ç
as de apresenta
çã
o enquanto dormimos. Essa
é
nossa escola, onde
aprendemos as coisas de verdade (Albert, Kopenawa, 2015, p.76-77).!
Laura Graham trabalhou por uma d
é
cada com o povo Xavante na aldeia
É
t
é
nhiritipa, em especial sobre as
performances de sonhos
que os paj
é
s realizam
coletivamente com os moradores da comunidade; uma tradi
çã
o mantida desde
que os long
í
nquos ancestrais os ensinaram a ritualizar os sonhos m
í
ticos, muito
antes de qualquer contato com a civiliza
çã
o branca e sua forma de entender e de
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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fazer teatro, evidenciando uma linguagem c
ê
nica pr
ó
pria dos Xavante. Graham
descreve que pela manh
ã
, de tempos em tempos, quando percebem que
é
chegada a hora, os xam
ã
s mais velhos se re
ú
nem em uma clareira aberta pelos
jovens rec
é
m-iniciados, para contarem-cantando os sonhos m
í
ticos que tiveram,
com suas polif
ô
nicas vozes sobrepostas, tecendo coletivamente o enredo on
í
rico.
O sonho ancestral
é
ritualizado na pra
ç
a central da aldeia, com a participa
çã
o de
toda comunidade, por meio de m
ú
sicas, dan
ç
as, narrativas, personagens,
celebra
çã
o, adornos, pinturas corporais, gestos e outras ferramentas c
ê
nico-rituais
que borram a no
çã
o de tempo, misturando o presente e o tempo da cria
çã
o,
compondo o m
í
tico e on
í
rico
teatro do povo
Xavante (Graham, 2018).
Um teatro-ritual que n
ã
o
representa
o enredo sonhado, mas
atualiza
o mito
revelado nos sonhos dos paj
é
s, em que os envolvidos na
performance
(praticamente todos os que vivem na aldeia, pois n
ã
o h
á
divis
ã
o entre artistas que
fazem e
p
ú
blico
que assiste) estar
ã
o
co-criando
tanto o sonho quanto o mito, pois
ser
ã
o canal das for
ç
as/man
á
s dos ancestrais imortais (respons
á
veis pela cria
çã
o
Xavante), trazidas pelos paj
é
s para comunicar ritualisticamente seus saberes e
educar a comunidade por meio do rito, da arte e dos sonhos performados. Os
paj
é
s-sonhadores decidem quais padr
õ
es gr
á
ficos de pinturas corporais ser
ã
o
utilizados na
performance do sonho
, pois dever
ã
o ser os mesmos que cobriam os
corpos dos ancestrais nos sonhos, para que os participantes possam vir a ser os
pr
ó
prios ancestrais e n
ã
o
represent
á
-los
na performance ritual do sonho coletivo
dos paj
é
s. Assim, para a cultura Xavante, sonho, mito e rito participam de um
complexo xam
â
nico de pr
á
ticas c
ê
nicas
de co-cria
çã
o coletiva que confere
significados e significantes outros ao exerc
í
cio performativo.
Seja diante de um espet
á
culo tradicional de raiz europeia que encontrou
seu apogeu no Neoclassicismo franc
ê
s do s
é
culo XVIII, em que o seleto p
ú
blico se
mantém em sil
ê
ncio e im
ó
vel na poltrona, dentro de uma sala fechada, pronto
para receber a hist
ó
ria que
brota
diretamente dos/as atores/atrizes no palco –, ou
diante de um ritual amer
í
ndio em que a/o paj
é
narra-canta-dan
ç
a suas
perip
é
cias diplom
á
ticas no plano m
í
tico mut
á
vel, emprestando seu corpo/voz a
diferentes consci
ê
ncias e perspectivas, reafirmando o permanente devir
à
comunidade que participa ativamente do ritual e reage ao que a/o paj
é
compartilha
Perspectivas xamânicas sobre as artes da cena:
Um diálogo cosmopolítico com as culturas ameríndias
Carlos Henrique Guimarães
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-30, abr. 2022
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de sua viagem ext
á
tica –, nos deparamos, em ambos os casos, com modos
distintos de comunica
çã
o por meio da presentifica
çã
o corporal na
performatividade cênica, em que inventam, cada povo
à
sua maneira, significantes
e significados. No caso das po
é
ticas c
ê
nicas amer
í
ndias, muitas vezes a a
çã
o da/o
xamã ocorre em meio ao cotidiano de sua comunidade, sem necessariamente
algum v
í
nculo com rituais, pois a frequência das vibrações psíquicas da/o xam
ã
se
mantém expandida, sem a divis
ã
o estanque entre arte e vida, mat
é
ria e esp
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rito,
natureza e cultura, cotidiano e extra-cotidiano, um caminho do qual, o teatro
praticado pela tradi
çã
o erudita euro-americana, começa a trilhar.
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