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Entre
como poética do acontecimento teatral
Angelene Lazzareti
Para citar este artigo:
LAZZARETI, Angelene.
Entre
como poética do
acontecimento teatral.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 2, n. 44, set. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573102442022e0107
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do acontecimento teatral
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Resumo
O presente texto reflete sobre a noção de
entre
como poética do
acontecimento teatral. A partir das artes cênicas e da filosofia, o
entre
é
compreendido neste trabalho como trama dos corpos e do acontecimento
artístico, agindo como força relacional. O
entre
se apresenta como conflito e
contágio, mas também como ponte extensiva e lugar tanto para os corpos
(de atores e de espectadores), quanto para o acontecimento teatral.
Palavras-chave
:
Entre
. Acontecimento teatral. Poética. Filosofia do Teatro.
Artes Cênicas.
In-between as a poetic of the theatrical event
Abstract
This article reflects the notion of in-between as the poetics of the theatrical
event. From the performing arts and philosophy, the in-between is
understood in this work as a web of bodies and the artistic event, acting as a
relational force. The in-between is presented as conflict and contagion, but
also as an extensive bridge and place both for the bodies (of actors and
spectators) and for the theatrical event.
Keywords
: In-between. Theatrical event. Poetics. Theater Philosophy.
Performing Arts.
1
Este artigo resulta em 88% de partes de minha tese de doutorado denominada:
E N T R E: A trama dos
corpos e do acontecimento teatral. Instituto de Artes
, Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019. Os trechos selecionados para este artigo são as principais
reflexões construídas na pesquisa e a composição dos pensamentos conforme apresentada neste texto
objetiva proporcionar uma leitura mais concisa e acessível das passagens fundamentais da tese.
2
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Margarida Pontes, formação acadêmica: graduação
em Letras, mestrado em Teoria Literária e doutorado em Estudos Linguísticos na Universidade Estadual
Paulista (Unesp). margapontes@yahoo.com.br.
3
Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Mestrado em Artes Cênicas (UFRGS). Graduação em Artes - Bacharelado em Teatro Interpretação
na Fundação Universidade Regional de Blumenau (FURB). Profa. Dra. da Universidade Federal da Integração
Latino-Americana. angilazzareti@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/6452639474485467 https://orcid.org/0000-0002-1539-7843
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El entre como poética del acontecimento teatral
Resumen
El presente texto refleja la noción de entre como poética del acontecimiento
teatral. Desde las artes escénicas y de la filosofía, el entre se entiende en este
texto como la red de los cuerpos y del hecho artístico, actuando como una
fuerza relacional. El entre se presenta como conflicto y contagio, pero
también como una extensa puente y un lugar tanto para los cuerpos (de
actores y espectadores) como para el acontecimiento teatral.
Palabras clave
: Entre. Acontecimiento teatral. Poética. Filosofía del teatro
Artes Escénicas.
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Sou atriz, agora, no meio da cena, durante a ação. Ao mesmo tempo em
que tudo transcorre em conformidade com a trajetória projetada da
encenação, existe outro. Um outro espaço dentro deste acontecimento,
enquanto ele acontece. Uma camada que me suspende. Espaço ‘entre’,
onde chove. Os pingos da chuva caem sobre mim não apenas de cima,
mas de todos os lados, de frente, de costas e também de baixo. Ao
mesmo tempo. Vêm ora leves e espaçados como garoa, ora intensos
em fortes rajadas. Meu corpo agora é água, sendo tocado por água. As
ondulações que cada gota causa ao cair me mantêm em movimento.
Fluido. Fluxo incessante que eu não domino. Entretanto, percebo nítida
e violentamente quando as gotas me atingem e formam ondas
circulares espalhando-me, transformando a água em rio, em oceano.
Transbordo, alastro, escorro incontrolavelmente por todo o espaço. Meu
corpo: levitação e confronto, volto à órbita! De repente, é como se de
mim saíssem os pingos da chuva. Dos meus olhos são lançadas as gotas,
de minha boca e de cada um dos meus poros, em todas as direções,
destinadas a tudo e a todos que ali estão. Lanço-me sem saber se me
terei de volta. Há um eu nesse instante, sendo invadido e invadindo em
mútua contaminação. Devastação de água que não é água (mas também
é). Juntos na inundação, nós todos que ali estamos formamos um único
tornado. Tornar em comum, tornar-me, tornar-nos: nós. Após as marcas
da devastação, deixei de ser aquela e passei a ser esta. Mas, sem ponto
de parada, novamente deixei de ser, fui, sou outra, serei ainda. Daqui
a pouco, a próxima ação. Outra tempestade, outro ‘entre’.
4
Entre
?
A presente reflexão atua
entre
5
as artes cênicas e a filosofia, desejando
enxergar e escutar o
entre
dos corpos uns com os outros no encontro operado
pelas artes da cena. Primeiramente, apresento alguns pensamentos do campo da
filosofia sobre a noção de
entre
e, em seguida, exponho a partir do campo das
artes cênicas a possibilidade de pensar a noção como uma poética do
acontecimento teatral.
O
entre
pode ser pensado em relação aos
entre-lugares
que pulsam em
nosso próprio corpo a partir do cruzamento
entre
memórias, saberes, culturas,
4
Diário de bordo: relato escrito por mim em 2013, sobre percepções relativas a uma ação cênica do Espetáculo
B612, apresentado em Blumenau - SC. Desde então, sigo investigando o
entre
como artista, educadora e
pesquisadora. O tema foi objeto de minha tese de doutorado realizada na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e é o centro de minhas investigações no projeto de pesquisa “Poéticas do ENTRE: Corpo,
Escuta e Criação Artística”, que coordeno na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, onde
sou docente adjunta.
5
Opto por marcar a palavra
entre
com a formatação em itálico para que o foco da reflexão seja reforçado.
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elementos orgânicos e subjetivos – o corpo é a relação
entre
suas diversas partes.
Mas também pode ser refletido em relação aos espaços-tempos, movimentos e
forças que pulsam
entre
os corpos uns com os outros
entre
um corpo e outro,
entre
você e eu,
entre
nós –, compreendendo que esse entre plural compõe os
corpos singulares. O
entre
não se deixa enfocar, fixar, definir nada pode ser
apropriado ou conservado por conta da efemeridade dos elementos envolvidos –
esse é o motor estrutural em questão nesse tema. O
entre
produzido pelos corpos
no ato das relações é dependente desses sujeitos, não se deixa captar como
elemento isolável de seus suportes ou produtores: existe distinto em cada ato de
relação. Segundo o estudioso do
entre
, o filósofo chileno Ivan Flores Arancibia
(2017, p.21): “o entre se transformou no esquema que condensa e faz inteligíveis
os fenômenos e acontecimentos que impregnam nossa época. Ao mesmo tempo,
sem dúvida, inexiste como tal”.
A partir daí, a premissa desta reflexão é apresentar o
entre
como trama.
Arancibia investigou o
entre
a partir das obras de inúmeros filósofos, resgato aqui
seu apontamento sobre essa questão no pensamento de Hannah Arendt. A filósofa
alemã estabelece dois tipos distintos de
entres
. “O primeiro se refere, diz Arendt,
ao ‘entre’ como algo mobiliado por ‘conteúdos objetivos’, os assuntos do ‘mundo
das coisas’.” (Arancibia, 2017, p.242). Nesse caso, no qual se encontram a maioria
dos discursos a respeito do
entre
, trata-se daquilo que está
entre
as pessoas e
que pode vinculá-las ou separá-las de forma explícita ou objetiva (uma mesa, por
exemplo, pode estar
entre
nós).
Mas há, argumenta Arendt, outro entre (in-between) que não é tangível,
posto que não objetos tangíveis nos quais possa solidificar-se; o
processo de atuar e falar pode não deixar resultados e produtos finais.
Sem dúvida, apesar de sua intangibilidade, este entre não é menos real
que o mundo das coisas que visivelmente temos em comum. A esta
realidade chamamos a “trama” (web) das relações humanas (Arancibia,
2017, p.243).
É sobre essa trama de relações humanas, operante
entre
invisibilidades e
visibilidades que a presente reflexão é tecida. Mas como pensar no
entre
se, no
momento mesmo em que o focalizamos, os corpos que o produziram se
modificaram no tempo? Se não como paralisar os processos dinâmicos de
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relações que fundam o
entre
? Se o
entre
pode ser tão efêmero quanto o
acontecimento teatral? A hipótese lançada nesse ponto é a de que o
entre
desemboca nos corpos que produzem-no, o
entre
se converte neles. Assim, ao
olhar para os corpos, talvez seja possível perceber rastros do
entre
.
A proposta deste artigo é movimentar-se nas camadas de interação
entre
os
sujeitos, procurando pelas marcas deixadas como vestígios, rastros sentidos nos
corpos e pelos corpos que produzem o
entre
e são pelo
entre
afetados. Pensando
a palavra: “entre” é também um convite. O
entre
propõe que, seguido dele, haja
uma abertura, ou um lugar onde entrar. Essa reflexão, portanto, parte de um corpo
que está aberto e de um espaço que está aberto. No entanto, é sabido que a
palavra
entre
está geralmente acompanhada de elementos que o fundam,
utilizamo-la para referenciar o espaço
entre
“um” e “outro”,
entre
“essa” coisa e
“aquela”: “Sem esta complementaridade, o
entre
fica interrompido no meio da
boca ou abandonado no branco deserto da página” (Arancibia, 2017, p.199). A
palavra
entre
, quando aparece sozinha, gera falta, incompletude. Será que o
entre
(se pensado sozinho e sem complemento) gera falta e incompletude nos corpos
também? Segundo Arancibia:
Desprovida da segurança epistêmica ou da estabilidade de um campo,
do caráter estrutural ou paradigmático, a sombra do entre projeta ao
redor de todas as coisas uma sombra operativa (operative Verschattung)
na qual confluem a sintaxe invariante do pensamento, um aparato
discursivo sobre o entre que abandona os motivos metafísicos da
continuidade e da integridade, da unidade e da substância, do consistente
e sólido em benefício de conjunções e disjuntivas, rachaduras
anacrônicas, heterogêneas e indecidíveis, realidades borrosas,
fragmentadas ou irregulares; disseminadas, virtuais, inconsistentes,
singulares; a multiplicidade, os fluxos, os quiasmos, pregas e rupturas; as
antiformas e o informe; o imaterial, o intensivo, espectral e incorpóreo; o
quase-nada, os quase-objetos e hiperobjetos; o micrológico, abjeto e
secundário. [...] Um mundo assim sacode e desenraiza o verbo ser. Um
mundo assim não é um mundo de entes ou de coisas; não é um mundo
sólido. As entidades são efeitos de entridades. (Arancibia, 2017, p.34-35).
Esse pensamento sobre o
entre
como fenômeno espectral funda desvios que
buscam por vestígios e rastros. Como pensar o
entre
? Onde é preciso estar para
pensá-lo? Olhando para qual ponto, falando qual língua? É possível dizer que o
entre
sempre esteve e está presente como constituinte de todas as relações e das
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possibilidades de entrarmos em relação. Logo, talvez, seja possível supor que o
foco sobre as coisas em si retardou o ato do pensar o
entre
em si (guardadas as
especificidades de cada si). Talvez estejamos diante de um deslocamento do foco
que antes observava O sujeito, A coisa, O mundo, A arte (incluindo, nos estudos
das artes cênicas, o foco sobre O ator, O espectador, O texto, O diretor etc.), para
a observação do espaço e do tempo
entre
o sujeito e a coisa,
entre
a multiplicidade
dos sujeitos e, ainda,
entre
a multiplicidade dos sujeitos e a multiplicidade das
coisas. O
entre
também se apresenta como fracasso, mas, nesse caso, como
fracasso da ontologia tradicional, ao fazer falhar a proposição de unidade
delimitada e isolada dos sujeitos. O
entre
abre os sujeitos ao fora, ao outro,
expondo o fato de que esses mesmos sujeitos estão sempre
entre
, são feitos de
relações e produzidos em e a partir de relações. Segundo o filósofo francês Jean-
Luc Nancy (2015, p.108):
Trata-se igualmente e talvez ainda mais de uma ontologia do “entre”, do
afastamento ou da ex-posição somente pela qual qualquer coisa como
um “sujeito” pode se dar. Um sujeito, que assim terá dois caracteres
fundamentais: de não ser substância e de estar exposto aos demais
sujeitos.
Qualquer orientação de si e do mundo com o processo de elaboração de
sentidos se como fruto das relações
entre
os sujeitos. Para o filósofo, surge,
assim, outra existência fora do “eu mesmo”, na qual participam “tu e eu” não em
relação de comunhão, mas de (inter)atuação, de modo que a relação com o outro
faz parte da orientação sobre si. Assim, as relações nos constituem ao mesmo
tempo em que nos destituem, incessantemente.
O ser ou o entre compartilha as singularidades de todos os surgimentos.
A criação tem lugar em todas as partes e sempre mas não é esse o
único acontecimento, o advento, senão a condição de ser cada vez o que
é, ou de não ser o que é mais que “cada vez”, surgindo singularmente a
cada vez (Nancy, 2006, p.32).
Prosseguindo com a reflexão, ao tratar sobre a herança deixada por
Aristóteles nas nossas formas de pensamento, Arancibia diz: “Nossa palavra
‘entre’, diferente do between ou do zwischen, tem sua origem na palavra latina
inter, cuja proveniência remota é ‘o lugar de transformação que possuem os
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corpos’. No inter ressoam os ruídos interiores do entre” (Arancibia, 2017, p.97).
Aristóteles pensa a transformação a partir de sua meditação sobre a sensação da
temporalidade, na qual o
entre
é pensado, justamente, como tempo o que
denota diferença
entre
um tempo e outro, fazendo do ser, presença no presente.
O
entre
, como motor alterador dos estados no tempo será, portanto,
necessariamente conflituoso, pois ele está “na contrariedade onde se
transformam os elementos” (Arancibia, 2017, p.106). Para que ocorra uma
transformação é necessário atrito
entre
diferentes estados em movimento de
passagem de um estado para outro, alterações anímicas e ações. Se a ideia de
permanência é pacífica, a mutação é conflituosa, e o
entre
está justamente no
lugar do conflito em que a transformação dos elementos. Ou melhor, o
entre
se dá como conflito.
O
entre
é ainda a ação de entrar em contato, “a carne é o entre do tato”
(Aristóteles apud Arancibia, 2017, p.105). Nessa perspectiva, todo contato é duplo,
externo e interno ao mesmo tempo. Trata-se de uma trama membranosa que, ao
mesmo tempo em que coloca os corpos em relação, opera transformações neles:
A pergunta final que articula o problema do entre em Aristóteles é a
seguinte: qual é o efeito do entre? se dirá que esta é talvez a pergunta
mais simples: a sensação. [...] A membrana, o antro do entre, produz a
distorção, transfiguração, transformação ou variação das formas
(µetaschµatizestai). Escassamente utilizado no corpus aristotétlico, o
termo µetaschµatizestai se encontra definido na Física: µetaschµatizestai
constituiu um dos modos em que se diz (ou se manifesta) o “chegar a
ser”, o “devir”, a “mudança a um novo estado” (gignesqai) (Arancibia, 2017,
p.107).
Dessa forma, o
entre
acontece como uma passagem efêmera que ocorre a
cada vez, no ato do contato das relações, acontece como alteridade sensível,
realização das diferenças
entre
os estados do corpo. Para Jean-Luc Nancy, todo
contato é uma relação de tato e de toque:
O mundo é tecido pelos toques dos corpos o ar, o som, os sensores,
aromas e todas as outras modulações da matéria que tecem
incessantemente o tecido do espaço. Corpos entre si partilhando o seu
entre (Nancy, 2015, p.46).
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Estamos sempre expostos aos outros, nos tocando direta e indiretamente,
eis a materialidade das relações. Segundo Nancy, sentir alguma coisa é sempre,
antes, experimentar o que é (para esse corpo, neste momento), sentir. O toque,
dessa forma, ocorre sempre em sentido duplo. E, na perspectiva da estrutura
corpórea que se experimenta como estrutura quando é exercitada, eu me toco
enquanto estou tocando: minha escuta se toca como escuta quando escuta algo
– essa é a condição para que eu possa escutar. Quando tocamos algo, sentimos o
toque a partir de dentro (do movimento que o toque realiza de dentro para fora:
“estou tocando”) e de fora (do movimento que o fora causa no tocante ao tocar:
“estou sendo tocado”). São nossas exterioridades junto às interioridades que
tocam, um dentro que se sente fora e um fora que se sente dentro. Por isso, se
relacionar com o mundo é sempre se relacionar consigo. Estar
entre
outros é
sempre estar, também, em relação a si mesmo. Nancy colabora para a
compreensão de que o corpo é o que sente e o que é sentido de uma só vez.
Se pensarmos no
entre
como ação de entrar em contato, mas também como
fenômeno de transformação dos estados, o
entre
se apresenta como o lugar tanto
do vínculo, quanto da diferença. O
entre
vincula e diferencia os corpos. E, se
pensássemos o
entre
como ponte, como seria? Arrisco dizer que essa ponte teria
de ser necessariamente provisória, surgindo como efemeridade, um habitat de
indeterminação e de criação. As pontes permitem vincular lugares (colocar
diferentes espaços em relação de contato) e permitem também atravessar
espaços (alterar o lugar onde estou, ir de um lugar para o outro).
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como poética do acontecimento teatral
Contribuindo para o aprofundamento das questões no campo das artes
cênicas, o pesquisador argentino Jorge Dubatti concebe seus estudos
caracterizando-os no âmbito de uma filosofia do teatro. Isso permite pensar as
artes da cena a partir das especificidades de seu acontecimento, considerando a
efemeridade intrínseca dos elementos e agentes produtores/produzidos nele. “A
filosofia do teatro concebe o teatro como um acontecimento ontológico no qual
se produzem entes” (Dubatti, 2010, p.32-33).
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O autor projeta um pensamento filosófico sobre o teatro na medida em que
teatro e filosofia se integram
entre
operação de pensamento e objeto do pensar.
A partir de referências filosóficas diversas, o autor faz pensar o teatro não como
teatro em si, disponível em si, mas como ser do/no mundo, radicado no seu ato
provisório de estar e acontecer que é sempre relacional e contextual (corporal,
espacial e temporalmente). Dubatti propõe aos pesquisadores do campo das artes
cênicas uma reflexão de cunho ontológico sobre o teatro (e em que ele consiste)
ao considerá-lo em relação com o mundo e a sua efemeridade. O pensamento do
autor é importante para essa reflexão, pois defende que o teatro é acontecimento,
que só pode ser pensado como acontecimento, e não como bem disponível para
análise a partir de sistematizações a priori ou de definições tradicionais de
dicionários da Teatrologia.
A filosofia do teatro afirma que o teatro é um acontecimento.
Acontecimento que produz entes em seu acontecer, ligado à cultura
vivente, à presença aurática dos corpos, e, a partir dessa proposição,
elabora argumentos fundamentais que questionam o reducionismo da
definição semiótica do teatro (Dubatti, 2010, p.28).
Corroborando as formas expandidas de pensar o teatro, a performer e
professora brasileira Eleonora Fabião elucida que a cena não é o que acontece no
palco ou nos espaços restritos aos artistas. O acontecimento teatral é, segundo a
autora, o que ocorre justamente no encontro e no atrito
entre
artistas e
espectadores, em
entre-lugares
que podem ser reconhecidos e potencializados
como forças:
Se a cena for, de fato, o espaço conectivo entre aqueles que veem e se
sabem vistos, um sistema de convergências, a ação cênica acontece fora
do palco, entre palco e plateia, fora dos corpos, no atrito das presenças.
A cena, portanto, não se dá “em”, mas “entre”, ela funda um entre-lugar.
Ação cênica é co-labor-ação. Neste sentido, a famigerada “presença do
ator”, longe de ser uma forma de aparição impactante e condensada,
corresponde à capacidade do atuante de criar sistemas relacionais
fluidos, corresponde a sua habilidade de gerar e habitar os entrelugares
da presença (Fabião, 2010, p.323).
No acontecimento teatral, são criadores tanto os artistas, quanto os
espectadores. laços pulsantes
entre
eles, que formam pontes como um lugar
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possível, tangível e sem delimitações fixas. Reafirmo aqui, que este lugar não é
pacífico e tranquilo, o
entre
e o acontecimento teatral expõem, de formas sutis a
extremas, corpos em atrito, camadas em contradição e linhas em confronto.
Segundo a diretora teatral e professora brasileira Patrícia Fagundes, para haver
encontro, também é necessário que se admita o desencontro:
A colaboração criativa demanda uma lógica contraditorial, que conceba
uma dinâmica de convivência de heterogeneidades e contradições, que
celebre as diferenças, as conexões entre múltiplos pontos de vista:
autonomia e acoplamento coexistindo em um sistema autopoiético de
relações. A renúncia à ideia de unidade perfeita não significa o
abandono da ideia de cumplicidade e encontro no processo criativo,
ao contrário: podemos nos encontrar ao admitir o desencontro,
podemos ser cúmplices ao aceitar diferenças, podemos
trabalhar em grupo reconhecendo a autonomia e a singularidade de
cada um, e então estar aberto ao outro (Fagundes, 2009, p.37).
Em se tratando da criação operadora do acontecimento teatral, o
entre
se
apresenta como conflito, mas também como ponte extensiva e lugar tanto para
os corpos (de atores e de espectadores), quanto para o acontecimento artístico. A
partir da inspiração em Hanna Arendt, que reflete o
entre
como trama, penso que
o acontecimento teatral é composto de diversas linhas: cada elemento que
compõe o acontecimento age como uma linha na tessitura da cena. São linhas as
ações corporais e vocais, as palavras, as sonoridades, os objetos, as luzes, os
personagens, os corpos, as presenças, as ausências
6
, os gestos, os sentidos, os
silêncios, os textos, os subtextos, os espaços e tempos, as sensações, os
pensamentos, os desejos: elementos que se entrelaçam de forma dinâmica na
criação poética do acontecimento cênico.
Segundo o poeta, homem de teatro e filósofo francês Antonin Artaud, o teatro
manifestado no espaço revela elementos em crise e atritos múltiplos: de sons
contra ações, de expressões contra músicas, de atitudes falhas contra impulsos,
de ruídos contra luzes, de corpos contra palavras, de timbres contra gestos, de
ossos contra músculos, de olhos contra mãos, de detalhes insignificantes contra
6
Acredito que somos constituídos não apenas de presenças, mas também de ausências. E acredito que
quando nos encontramos não são apenas nossas presenças que se encontram. Em cada encontro, nossas
ausências também se encontram.
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personagens inteiros fazendo surgir uma guerra como uma orquestra de
conexão única de contágio pestífero
entre
os elementos, que termina por violentar
as ordens do pensamento e por criar uma difusão de lampejos. “Entre um e outro
meio de expressão criam-se correspondências e níveis” (Artaud, 1993, p.91).
Não haverá, desse modo, mundo puro, seguro, a salvo de contaminações,
mas uma múltipla desconexão contraditorial que funda uma conexão (ou uma
reconexão) como um retorno a outro tipo de unidade que não a da hierarquia
cêntrica ou a da separação
entre
dualidades (como duas unicidades distintas).
Artaud trabalhou sobre ideias desejantes de uma espécie de conexão em rede
feita da multiplicidade de elementos desmembrados, vivenciando contágio, atrito,
conflito, criação, devir e caos que conformam “correspondências com relação a
todos os órgãos e em todos os planos. [...] Elas podem criar uma espécie de
equação apaixonante entre o Homem, a Sociedade, a Natureza e os Objetos”
(Artaud, 1993, p.86).
Temos ainda: “o espaço teatral será utilizado não apenas em suas dimensões
e em seu volume, mas, por assim dizer, em seus subterrâneos” (Artaud, 1993, p.
123). De acordo com o poeta, é preciso pensar na expressão do espaço em suas
camadas tanto ocultas quanto aparentes, pois, para ele, o teatro se relaciona,
sobretudo, com a ação de tornar material o invisível e o não criado, e imaterial o
visível e o construído.
Cultura no espaço quer dizer cultura de um espírito que não para de
respirar e de sentir-se vivo no espaço, que chama a si os corpos do
espaço como os próprios objetos de seu pensamento, mas que, enquanto
espírito, se situa no meio do espaço (Artaud apud Virmaux, 1978, p.317).
O teatro, segundo o artista, pode fazer o espaço falar, isso porque age com,
no, contra e
entre
o espaço por conta da força de ocupação e materialização que
possui: “Ocupando o espaço, ele acua a vida e a força a sair de seus refúgios. Ele
é como a cruz de seis braços, que espalha sobre as muralhas de certos templos
mexicanos uma geometria oculta” (Artaud apud Virmaux, 1978, p.318). Fortalecendo
a ideia da trama a partir dos aportes de Artaud, o acontecimento teatral manifesta
linhas tangíveis que realizam cruzamentos no espaço, podendo revelar nessa
operação a vida que pulsa invisivelmente nesses mesmos espaços, fazendo
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aparecer uma espécie de memória do ar. Trata-se de uma ação dupla: os corpos
fazem o espaço (ocupam-no, desenham formas no espaço) e o espaço faz os
corpos (ocupa-os, o espaço atua no teatro e nos corpos desenhando formas neles
e manifestando pulsões
entre
eles). Poderíamos dizer que, ao se materializar como
teatro no espaço, o acontecimento teatral faz com que se manifeste também
aquilo que virtualmente habita o espaço: “Essa linguagem do espaço por sua vez
age sobre a sensibilidade nervosa, faz amadurecer a paisagem descortinada abaixo
dele” (Artaud apud Virmaux, 1978, p.318).
As linhas lançadas pelo acontecimento teatral como trama formam cruzes
que revelam como o processo de visibilização das forças pode ocorrer, fazendo
do jogo
entre
materialidade e imaterialidade uma questão da ação teatral. Essa
reflexão se relaciona com a ideia de
entre
trabalhada neste artigo, pois almeja
perceber as linhas que pulsam ou que restam no espaço e desembocam no corpo.
Pois além do mais, eu penso que existe uma harmonia nessas linhas, uma
espécie de geometria essencial que corresponde à imagem de um ruído.
Para o teatro uma linha é um ruído, um movimento é uma música, e o
gesto que emerge de um ruído é como uma palavra precisa numa frase
(Artaud apud Virmaux, 1978, p.319).
O acontecimento teatral pode ser investigado sob essa perspectiva, ao
incluirmos o
entre
como lugar do espaçamento
entre
o início e o final de uma
linha e também como lugar da extensão e comunicação das diferentes linhas
entre
si. Cada linha corresponde a um dos elementos múltiplos dos quais o
acontecimento teatral é feito: ações, sons, luzes, ruídos, cores, palavras,
sensações, memórias, emoções. Os corpos do acontecimento podem ser
imaginados como fontes de linhas e elementos entrelaçáveis nas linhas
concebidas por outras fontes.
Os gritos das entranhas, os olhos que reviram, a abstração contínua, os
ruídos de galhos, os ruídos de cortar e arrastar madeira, tudo isso no
espaço imenso dos sons espalhados e que são vomitados por várias
fontes, tudo isso concorre para fazer levantar-se em nosso espírito, para
cristalizar como que uma nova concepção, concreta, eu ousaria dizer, do
abstrato (Artaud, 1993, p.60).
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Essa concepção concreta do abstrato também se aproxima do desejo de
tratar do
entre
. A questão pulsa quando os corpos se tornam os suportes das
forças abstratas que produzem ou pelas quais são afetados. Para Artaud, trata-se
de espacializar gestos, movimentos e ruídos no ar teatral, concretizar as palavras
no espaço como se fossem objetos pontiagudos: de tornar materiais os elementos
invisíveis, de torná-los extensos como corpos, que são tanto corpos, quanto
espaço. Nos escritos do poeta, encontro seu desejo por concretizar em cena
lugares transparentes, sons que produzem ecos, corpos que desaparecem,
elementos entrelaçados a partir da relação
entre
diversas linhas.
E às vezes uma personagem pressentido o invisível que está ao redor
dela parece ter o interesse em não permanecer menos invisível que os
outros. E apenas nomeados seus próprios espectros acorrem, aparecem,
pronunciando palavras de carne (corpo) estranhamente ligadas a todas
as partes concretas do drama (Artaud, 2014, p.60-61).
A questão do Duplo nos textos e cartas de Artaud também se relaciona com
o
entre
no tocante aos seus sentidos espectral e corporal: “É sobre esse duplo
que o teatro influi, essa efígie espectral que ele modela, e como todos os espectros
esse duplo tem uma grande memória” (Artaud, 1993, p.130). Acredito que essa
grande memória da qual trata o autor é habitante do
entre
e pode ser percebida
se abrirmos nossas escutas de/do corpo. Ao tratar sobre o corpo do ator, o poeta
discorreu sobre um trabalho de investigação no qual fosse possível localizar onde
fisicamente se alojam os sentimentos, memórias e sensações. Uma forma de
musculatura afetiva foi pensada, no intuito de: exercitar na carne a fusão
entre
corpo e espírito; corporificar o abstrato; territorializar a imaterialidade da memória,
dos sentidos e das emoções considerando o corpo um hieróglifo; e fazer do corpo
o lugar de encontro e produção das forças invisíveis e visíveis.
Nancy também recorre a Artaud para pensar essa questão: “é com efeito pela
Criação com maiúscula que Artaud deduz, se posso dizer, o teatro” (Nancy,
2015, p.77). Na leitura do filósofo sobre Artaud, o teatro realiza o Duplo por colocar
em confronto a realidade humana e a inumana, a visível e a invisível, que compõem
os tempos da Criação. Nesse processo criador as forças abstratas se tornam
matéria, e a matéria se torna força abstrata, havendo passagens dinâmicas de um
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universo a outro, em que habitamos, justamente, os trajetos
entre
esses universos
– trajeto
entre
o silêncio e a palavra vocalizada; trajeto
entre
a palavra vocalizada
e o silêncio; trajeto
entre
a atmosfera de uma sensação e o gesto concretizado;
trajeto
entre
o gesto concretizado e a atmosfera de uma sensação.
Segundo a artista brasileira Edith Derdyk, todo ato criador se faz de um
emaranhado de forças em acontecimento, a partir do cruzamento
entre
estados
invisíveis e imateriais que se conformam concretamente nos pesos e volumes dos
corpos. Assim, no ato da criação, a carne é ocupada por elementos invisíveis, e o
espaço é habitado pelas peles. São feitos de permeabilidade os
entres
que, ao
desembocarem em nossos corpos, fazem deles lugares de atravessamentos.
Tudo parece concorrer para a evidência de um espaço e um tempo em
aberto entre o que existe em potencial vagando e pulsando em algum
lugar de nosso ser a vontade, o desejo, a necessidade e o embate
corporal com a matéria e suas circunstâncias efêmeras almejando uma
perenidade (Derdyk, 2001, p.12).
A partir das provocações sobre a ideia de Criação exemplificada, é possível
acrescentar que no
entre
do acontecimento teatral uma operação
fundamental: a poética. Segundo Derdyk, a palavra poética convoca um campo
historicamente profundo:
O que aqui se deseja vislumbrar é uma noção mais próxima do sentido
originário da palavra poética. O radical grego poiein aponta para uma
direção que se aproxima da origem da própria palavra fazer: um fazer em
comunhão com uma especificidade espiralada onde o corpo espelha e
reflete outras modalidades para o fazer, abolindo as molduras prévias do
ser para mergulhar numa conjugação dos tempos dos infinitivos (Derdyk,
2001, p. 26).
É possível arriscar que um
entre
poético se no acontecimento teatral
operando o fazer como uma pulsão: fazer criação, fazer abertura nos corpos, fazer
o nascimento da presença, fazer o encontro das ausências, fazer camadas de
relações, fazer confronto, fazer a perda, fazer construção, fazer o acontecimento
teatral. Nesse ato de fazer, o tempo e o espaço cotidianos são ocupados e
substituídos pela produção de tempos e espaços poéticos.
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Trata-se de um deslocamento de contextos e da abertura para a criação de
outros habitats de existência e de percepção. “Imagino a poética criadora como
um lugar atemporal onde algum eu possa estar, ser e fazer” (Derdyk, 2001, p.31). O
impulso do fazer poético é trabalhado, segundo a artista, a partir dos vãos do
entre
:
E é deste vão existente entre o que se observa e o que se absorve, entre
o que se pensa e o que se fala, entre o que se imagina e o que se deseja,
entre o que se lembra e o que se esquece, é neste vão instalado no
espaço de tempo entre a intenção e a realização que o impulso de fazer
no corpo do ser se faz (Derdyk, 2001, p.26).
A poética da criação teatral, a partir da inspiração nos estudos de Derdyk, é
constituída de tramas que têm como função o fazer: fazer a criação como a
instauração de uma existência criada no encontro
entre
atores e espectadores,
portanto, criação em comum que reverbera na construção do acontecimento e
nos próprios corpos. Jorge Dubatti reflete sobre essa ideia a partir da filosofia do
teatro, na qual a poética (como disciplina de estudo) trabalha sobre a poiesis. A
poiesis cênica traz uma complexidade ontológica à discussão por unir dimensões
de produção, de recepção e de convívio. A poiesis lança a alteridade na realidade
cotidiana, fazendo a produção de algo novo (um ente poético) que se separa do
cotidiano, mas que não preexiste a ele. Essa operação, próxima da ideia de
acontecimento, segundo Dubatti, possui um caráter efêmero, imprevisível e
irrepetível.
O ente poético possui outro regime de funcionamento, relações,
produção de sentido e valores em relação à realidade cotidiana, e
contrasta com os dela. A poiesis não é regida pelo senso comum da
experiência cotidiana; ela segue radicalmente em outra direção: instala
um regime de oposição, um conflito, uma negação radical. A partir de sua
alteridade, a poiesis é autônoma e soberana e exige saberes específicos
para sua intelecção. [...] A função primária da poiesis não é a comunicação
nem a geração semiótica de sentidos ou, ainda, a simbolização cultural,
mas a instauração ontológica: fazer um mundo existir, fazer nascer (ou
renascer com variações em cada encontro) um novo ente, fazer um
acontecimento e um objeto/diversos objetos existirem no mundo
(Dubatti, 2016, p.51-52).
Segundo esse pensamento, produções poéticas realizadas de distintas
formas: o fazer poético do acontecimento teatral, o fazer poético dos elementos
criados no acontecimento e o fazer poético dos corpos implicados também como
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entes poéticos em criação. A poiesis acontece no corpo de atores e de
espectadores de formas individuais e coletivas, excedendo os campos de
produção e recepção ao conformar uma poética como convívio, na qual o fazer se
como criação de partilha (criação do acontecimento teatral, que reverbera na
“co” ou na “re” criação dos próprios corpos). O princípio poético do
entre
teatral,
assim como na noção de poiesis apresentada, desestrutura as lógicas
preestabelecidas sobre a conduta e a identidade dos corpos e dos contextos
sociais, culturais e políticos do cotidiano. A poética aparece como pulsão de
possível, movendo contextos regulamentados e fundando uma trama
criativamente subversiva nos conhecimentos instituídos e vigentes no cotidiano.
Na costura das linhas da trama teatral:
Além de furar e cortar, ligar é condição. Estabelecimento de vínculos
entre os dois furos: frente e trás, antes e depois, passado e futuro,
memória e projeção. O vínculo é a ponte, a linha que liga o que é. [...] A
linha ocupa um espaço entre (Derdyk, 2010, s/p).
Quando as linhas da trama da cena costuram, abrem vetores, esparramam-
se, essa costura atravessa os tecidos do espaço cotidiano. A linha que costura
poeticamente faz dos corpos no acontecimento teatral também agulhas:
perfuradoras e esburacadas, conquistadoras de formas e escavadoras de matérias,
corpos que afetam e são afetados uns pelos outros em estado de encontro.
Prosseguindo com a inspiração do
entre
como trama, as experiências singulares
testemunhadas a partir da memória dos corpos se tornam linhas plurais que
tramam tempos, histórias, lugares, desejos, gestos, dores. Essas linhas, além de
constituírem o acontecimento teatral, também se tornam matérias poéticas que
passam a vagar autônomas pelo
entre
. Das fontes corporais de cada uma dessas
linhas apenas rastros e, de repente, percebemos que uma história nossa
renasce na boca do outro. De repente, somos tocados por matérias e partes de
outros corpos que circulavam pelo ar. Quando escutamos o
entre
, percebemos as
matérias invisíveis que restam no espaço, e a pulsação desses elementos gera
pequenas turbulências em algumas regiões (dentro e fora de nós).
Somos chamados a escutar com o corpo todos os rastros deixados, criados,
expelidos, e, de alguma forma, somos tocados pelos corpos que os produziram –
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assim damos lugar a eles, em nós. Pressinto que, quando o
entre
infiltra nos
corpos, ele também rasga parte de nossos contornos. Mas, ao realizar esse
processo, o
entre
como força relacional mobiliza também aquilo que vaga nos
espaços intersticiais. Dessa forma, o
entre
não entra sozinho. Ele faz entrar junto
de sua entrada aquilo que se abre nele. Quando o
entre
está, o que pulsa no
entre
também está. O que pode ser encontrado nos espaços e tempos que não tem
nome próprio, dono e data? Fagundes reforça que: “O teatro acontece sempre
entre, entre pessoas, entre elementos, objetos, espaços, tempos, entre- ocupa
interstícios, vazios temporários que oferecem mundos a explorar” (Fagundes, 2016,
p.164).
Costuras são tramadas quando linhas estranhas atravessam nossos corpos-
agulha como entes poéticos do acontecimento teatral. A poética do
entre
pulsa
junto das marcas que restam no
entre
. A criação que se faz é tão pública quanto
íntima, tão nossa quanto dos outros. Perceber o
entre
é considerar ser penetrado
pelos restos que pulsam nele, é arriscar que algo de nossos corpos fuja em direção
a ele e passe a restar no
entre
também. De acordo com Fabião, “a cena mostra,
amplifica e acelera metamorfose, pois intensifica a fricção entre corpos, entre
corpo e mundo, entre mundos” (Fabião, 2010, p. 322). Seria o caso de dizer aqui,
que essa intensiva relação não apenas oferece mundos, mas cria mundos, que a
poética do
entre
no acontecimento teatral se refere justamente à possibilidade
operacional de criar mundos, corpos e mirantes.
Também para Artaud, a dimensão poética, aliada ao preceito da ideia de
poesia, não pode ser pensada ou produzida pelos parâmetros organizados da
razão, ela incita uma forma de pensar desconhecida, planta buracos e fendas nas
conexões racionais instituídas. Artaud recorre à poesia para construir sua ideia
poética de acontecimento teatral por entender o princípio de desordem presente
nela, o qual subverte as relações
entre
as coisas e seus significados, funções e
deveres habituais.
Compreende-se assim que a poesia é anárquica na medida em que põe
em questão todas as relações entre os objetos e entre as formas e suas
significações. É anárquica também na medida em que seu aparecimento
é a consequência de uma desordem que nos aproxima do caos (Artaud,
1993, p.37).
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O acontecimento teatral seria, justamente, a poesia em ação no espaço, a
poética em questão se refere à possibilidade de refazer o teatro e de refazer o
corpo, propósitos almejados por Artaud. O ato de fazer, enraizado na noção de
poética, torna possível que outros possíveis sejam criados. Isso porque Artaud
lutou incansavelmente contra a regulamentação do possível, uma vez que,
segundo as denúncias realizadas pelo mestre, todas as nossas possibilidades de
existência e de ação no mundo estão previamente regulamentadas e instituídas
pela ordem vigente.
Os modelos de sujeito, os modelos de arte, os modelos de comportamento
aceitável, os modelos de normalidade, os modelos de saudável, os modelos de
relação, todos eles estão instituídos e instituem as formas como nos é permitido
existir. A ação poética, ao contrário, permite que sejam criadas e experienciadas
outras formas de existência corporais e artísticas que não as pré-estabelecidas
pela ordem vigente. A poesia e a experiência poética são acontecimentos
soberanos distintos da vida organizada e controlada, fazem a linguagem trair a si
e destituem o seu poder sobre o significado e o funcionamento das coisas, dos
corpos e dos saberes.
A operação poética violenta os significados e formatos fixos, violenta as
imagens estabelecidas sobre modelos de conhecimento e de sujeito. Trata-se de
uma violência a favor de nós, que não faz vítimas para exemplo de castigo, mas
desestabiliza agressivamente as convenções instituídas e subverte os domínios do
pensamento. Segundo Artaud, a poesia liga o teatro com a magia que, se partilhada
entre
ator e espectador, cria um estado poético capaz de materializar no espaço
criações que podem subverter, como mágica, as convenções mais estruturais de
nossa razão. Para o artista, o teatro ocidental entrou em decadência a partir do
momento em que rompeu com o espírito de anarquia que constitui o princípio
operatório da poesia.
O teatro continua a viver acima do real, a propor ao espectador um
estado de vida poética que, se impelido ao extremo, conduziria a
precipícios, mas assim mesmo preferível à vida psicológica simples sob
a qual sufoca o teatro de hoje em dia. Este é o grau em que o teatro usa
da magia da natureza, permanece marcada por uma coloração de tremor
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de terra e de eclipse, onde os poetas fazem falar a tempestade, onde o
teatro enfim se contenta com o lado físico acessível da alta magia
(Artaud, 2014, p.75).
Artaud, que também trata da questão poética no teatro como uma violência
necessária, deseja em seu teatro uma desordem que repercuta como
desorganização do corpo como estrutura organizada e domesticada. Isso porque
a operação poética desorganiza o cotidiano estruturado para a reorganização
criativa de outro mundo. Essa desorganização necessária no contexto cotidiano
para a construção do acontecimento teatral abre um intervalo nesse mesmo
contexto para a criação de outro. Segundo Artaud, o acontecimento teatral torna
concreta no espaço a criação poética que desencadeia formas de comunicação
extremas como somente a peste é capaz de causar.
Enquanto as imagens da peste em relação com um poderoso estado de
desorganização física são como os derradeiros jorros de uma força
espiritual que se esgota, as imagens da poesia no teatro são uma força
espiritual que começa sua trajetória no sensível e dispensa a realidade
(Artaud, 1993, p.19).
A operação poética violenta formas e contextos estabelecidos e subverte
conexões habituais. Para isso, age não como mais uma relação
entre
as outras
relações, mas como uma espécie de enfermidade que se infiltra em todas as
relações, de modo que as comunicações convencionalmente instituídas no
cotidiano falhem e se tornem ruído e contaminação. A operação poética está
entre
as artes sem se deixar delimitar em um gênero. Soberana em relação aos sujeitos,
ela pode estar, inclusive, nos lugares em que não parece haver poesia, onde
ninguém a fez voluntariamente, ao mesmo tempo em que pode não estar onde
se espera que ela esteja. Artaud, por exemplo, titulou-se um poeta não como
alguém que declama poesias, mas como um sujeito que as vive em seu próprio
corpo
7
.
A ação poética faz do
entre
do acontecimento teatral um fenômeno errante.
Torna-o uma ponte que não estabelece vínculos seguros, abre buracos na ponte,
7
“Se sou poeta ou ator não é para escrever ou declamar poesias, mas para vivê-las” (Artaud apud Mattos,
2015, p.145-146).
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agencia atravessamentos
entre
pontos não imaginados, funda margens delirantes,
e, em última instância, leva os corpos à queda na água. A característica poética é
mais que uma camada de relação no acontecimento teatral, é uma membrana
que infiltra todas as camadas do
entre
teatral, fazendo dos corpos pontes para
poesia e para uma espécie de política.
É possível dizer que a poesia é política, porque permite que se diga não ao
mundo organizado, comercializado, instituído e organizador, comercializador e
instituidor dos corpos. A poesia permite que sejam inventadas outras formas de
violência que não a do extermínio dos corpos diversos por parte de grupos (sociais,
religiosos, culturais), que não a violência causada pelo machismo, racismo,
lgbtfobia e xenofobia. A poesia permite que outro tipo de fome seja inventado que
não o da miséria social fruto do descaso das políticas públicas. A poesia permite
que outras destruições sejam inventadas que não as ecológicas e a dos recursos
naturais. Permite que outros modos de corrupção sejam criados que não os
governamentais que marcam nosso país. A poesia permite que outra crueldade
possa ser criada: a crueldade como necessidade da poesia atua contra a crueldade
como desumanidade do mundo. A poesia faz da dor uma arma não contra a dor,
mas contra a própria arma. O mundo estabelecido abre espaço em si para a poesia,
mas a poesia não tem em si espaço para o mundo estabelecido. Não opera sob
princípios lógicos daquele espaço, não pode ser experienciada a partir dele, obriga
que outro mundo seja inventado para que nele a poesia possa circular.
Octavio Paz escreveu as seguintes linhas: “se não é a metafísica, senão a
história o que define o homem, haverá que deslocar a palavra ser do
centro de nossas preocupações e colocar em seu lugar a palavra entre”.
Breve como um monograma, aguda como uma incisão, esta frase captura
como nenhuma outra a transformação do entre em uma característica
fundamental do imaginário da nossa época. E, sem dúvida, a atualidade
do entre está pendente. Nada menos a vista. Nada mais postergado e
esquecido. O entre insiste no coração da época, insiste em nossas
realidades sociais, políticas, técnicas, estéticas, urbanas, mas se resiste a
ser pensado por si mesmo (Arancibia, 2017, p.21).
O
entre
existe
entre
um corpo e outro e dentro do próprio corpo, somos feitos
de tecidos intersticiais que ligam e separam as partes do corpo. Da mesma forma,
o
entre
, se pensado como invisibilidade, ocupa os espaços ocos do corpo, assim
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como o pensamento ocupa o vazio, assim como a voz ocupa o silêncio. O
entre
é
também uma trama que liga e desliga os lugares dos corpos e dos
acontecimentos. O
entre
perfura os corpos e o
entre
dos corpos fende o espaço.
O
entre
é como um buraco que vem perfurando meu pensamento. Como uma
trama que avança, ao tocar a desordem como poder da operação poética, também
encontramos no
entre
a desordem do mundo:
o que caracteriza nossa época é o deslocamento do ser pelo entre. Este
deslocamento pode definir-se como um “acontecimento sísmico”. Um
acontecimento sísmico produz deslocamentos de terreno e dinamismos
energéticos; não produz campos, paradigmas ou epistemes, senão uma
instabilidade aberta [...] não se trata somente de resgatar o entre ou o
intervalo no mundo, senão de pensar desde o entre a desordem do
mundo (Arancibia, 2017, p.47-48).
O corpo, por ser
entre
dentro e fora de si, aproxima as noções de ente e
entre
. O
entre
não responde sobre a origem ou final das coisas, ele aparece como
e enquanto processo das coisas. Assim que um acontecimento teatral termina,
por exemplo, os corpos que o fizeram se transformam em linhas para fundar
entres
em outros acontecimentos. O
entre
é a interrupção de qualquer
continuidade. A partir dessa reflexão e retornando à ideia de
entre
como trama,
lembremos que trama não é apenas o entrelaçamento dos fios, mas, segundo os
dicionários, é também armação, complô. Mas trama é descrita nos dicionários,
ainda, como doença de pele e peste. Esse fato torna essa reflexão também uma
singela homenagem a Antonin Artaud, que fez da operação poética uma espécie
de magia que se instala
entre
nós:
Violência e Recusa. Estes dois polos significativos de um estado de
espírito impossível, de uma misteriosa eletricidade, indicam o caráter
anormal da poesia dessa época, que não era mais poesia no sentido dado
à palavra, porém a emissão magnética de um sopro, uma estranha
espécie de magia instalada entre nós (Artaud, 2014, p.73).
Assim, a trama indeterminante do
entre
no acontecimento teatral é infiltrada
em todas as suas linhas pela operação poética, tornando-se uma conspiração
epidêmica feita de violência e de recusa, que cria o fazer dos corpos e do
acontecimento como construções poéticas e abertas. Se os limites como
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fronteiras designam diferença, quando elas são abertas, vazam, causando
contágios irreversíveis. Podemos, evocando Artaud, substituir a palavra
comunicação, por contaminação. A contaminação, evocada em sentido expandido,
inclui as imagens borradas da visão periférica e os ruídos sentidos pela escuta. A
contaminação inclui os corpos de insuficiência e precariedade. A contaminação
inclui os outros e inclui as invisibilidades, as forças, os desejos e a dor. A
contaminação lugar ao que não tem lugar, utilidade ou justificativa. A
contaminação rasga a comunicação tradicional ao mesmo tempo em que rasga o
contorno dos corpos.
No palco o há imunidade. O olhar é palpação, o movimento ação, e ser,
relação. Ação ecoa, voz preenche; o corpo sempre interage com algo,
mesmo que seja o vazio. [...] E você imerso nesse campo de forças, nesse
sistema nervoso, nessa massa de rastros passados e futuros, presenças
passadas e futuras. E você experimentando a textura desse vazio-pleno,
incorporando e esculpindo essa latência. E rememorar e imaginar e
evocar e inventar e atentar para corpos que contigo se comunicam, que
através de ti se comunicam. O teu corpo, esse palco. O corpo, esse palco
fluido (Fabião, 2010, p.322).
Refletir sobre o
entre
como poética do acontecimento teatral é perceber a
efemeridade dos acontecimentos do teatro e dos corpos como um constituinte; é
considerar as comunicações visíveis e invisíveis (concretas e abstratas, semânticas
e não semânticas)
entre
os envolvidos realizadas em camadas dinâmicas; é
compreender os corpos como criadores de si, da efemeridade e das comunicações
visíveis e invisíveis; é acolher o impossível como uma chance para fazer nascerem
criações e corpos não instituídos pelo possível regulamentado, é aceitar a
impossibilidade de explicações, definições fixas e, principalmente, a
impossibilidade de imunidade
entre
os corpos; é aceitar que contágio e
(co)criação
entre
os corpos que não se completam em si mesmos como unidades
acabadas, mas perdem a si por estarem expostos, abertos, rasgados e fora, uns
com os outros, plurais e singulares; é escutar as vozes e os corpos como linhas
que tramam o tecido do espaço e escutar a escuta que pode receber os habitantes
do
entre
: rastros, pulsações, forças, atritos, corpos, restos. O
entre
do
acontecimento teatral é poético por ser inventor de mundos. Negativa o mundo
como estabelecido para criar outro, um mundo que afronta e resiste a esse
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mundo. No
entre
do acontecimento teatral a voz encontra a escuta, o corpo
encontra o gesto, o texto encontra o subtexto, a palavra encontra a poesia, o visível
encontra o invisível e o sentido encontra a presença.
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Recebido em: 27/11/2021
Aprovado em: 21/02/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br