Entre
como poética do acontecimento teatral
Angelene Lazzareti
Florianópolis, v.2, n.44, p.1-25, set. 2022
Sou atriz, agora, no meio da cena, durante a ação. Ao mesmo tempo em
que tudo transcorre em conformidade com a trajetória projetada da
encenação, existe outro. Um outro espaço dentro deste acontecimento,
enquanto ele acontece. Uma camada que me suspende. Espaço ‘entre’,
onde chove. Os pingos da chuva caem sobre mim não apenas de cima,
mas de todos os lados, de frente, de costas e também de baixo. Ao
mesmo tempo. Vêm ora leves e espaçados como garoa, ora intensos
em fortes rajadas. Meu corpo agora é água, sendo tocado por água. As
ondulações que cada gota causa ao cair me mantêm em movimento.
Fluido. Fluxo incessante que eu não domino. Entretanto, percebo nítida
e violentamente quando as gotas me atingem e formam ondas
circulares espalhando-me, transformando a água em rio, em oceano.
Transbordo, alastro, escorro incontrolavelmente por todo o espaço. Meu
corpo: levitação e confronto, volto à órbita! De repente, é como se de
mim saíssem os pingos da chuva. Dos meus olhos são lançadas as gotas,
de minha boca e de cada um dos meus poros, em todas as direções,
destinadas a tudo e a todos que ali estão. Lanço-me sem saber se me
terei de volta. Há um eu nesse instante, sendo invadido e invadindo em
mútua contaminação. Devastação de água que não é água (mas também
é). Juntos na inundação, nós todos que ali estamos formamos um único
tornado. Tornar em comum, tornar-me, tornar-nos: nós. Após as marcas
da devastação, deixei de ser aquela e passei a ser esta. Mas, sem ponto
de parada, novamente deixei de ser, já fui, sou outra, serei ainda. Daqui
a pouco, a próxima ação. Outra tempestade, outro ‘entre’.
Entre
?
A presente reflexão atua
entre
as artes cênicas e a filosofia, desejando
enxergar e escutar o
entre
dos corpos uns com os outros no encontro operado
pelas artes da cena. Primeiramente, apresento alguns pensamentos do campo da
filosofia sobre a noção de
entre
e, em seguida, exponho a partir do campo das
artes cênicas a possibilidade de pensar a noção como uma poética do
acontecimento teatral.
O
entre
pode ser pensado em relação aos
entre-lugares
que pulsam em
nosso próprio corpo a partir do cruzamento
entre
memórias, saberes, culturas,
Diário de bordo: relato escrito por mim em 2013, sobre percepções relativas a uma ação cênica do Espetáculo
B612, apresentado em Blumenau - SC. Desde então, sigo investigando o
entre
como artista, educadora e
pesquisadora. O tema foi objeto de minha tese de doutorado realizada na Universidade Federal do Rio
Grande do Sul e é o centro de minhas investigações no projeto de pesquisa “Poéticas do ENTRE: Corpo,
Escuta e Criação Artística”, que coordeno na Universidade Federal da Integração Latino-Americana, onde
sou docente adjunta.
Opto por marcar a palavra
entre
com a formatação em itálico para que o foco da reflexão seja reforçado.