1
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena
na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Para citar este artigo:
RISCADO, Caio. Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e
cena na poesia de Mila Teixeira.
Urdimento
Revista de
Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0205
Este artigo passou pelo Plagiarism Detection Software | iThenticat
A Urdimento esta licenciada com: Licença de Atribuição Creative Commons (CC BY 4.0)
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
2
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de
Mila Teixeira
1
Caio Riscado
2
Resumo
O artigo tem como objeto a análise de poemas do livro
A proclamação da vulgaridade
ou quantos furos uma calcinha pode ter?
, da poeta, roteirista e dramaturga Mila
Teixeira, publicado pela editora Urutau, em 2021. A partir da noção de crueldade em
Artaud, o texto busca uma aproximação com o anúncio da vulgaridade, proclamado
pela escritora. Através do destaque de versos que sugerem a confluência entre vida
e obra, a poesia é analisada pela perspectiva do trabalho em arte como prática de
investigação do corpo e recriação das relações. Os relatos e imagens compartilhados
pela autora são interpretados como situações cênicas que revelam a manifestação
de um estado-poético-teatral em sua produção. Por fim, a escrita autoficcional é
abordada como proposição para a expansão dos espaços de escuta e
compartilhamento das experiências encarnadas.
Palavras-chave
: Mila Teixeira. Vulgaridade. Crueldade. Trabalho. Corpo.
Vulgar without being sexy: Body, work and scene in Mila Teixeira's
poetry
Abstract
This article focuses on the analysis of poems from the book
A proclamação da
vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?
, written by poet, screenwriter
and playwriter Mila Teixeira, and published by Urutau in 2021. From the notion of
cruelty in Artaud, the text seeks an approximation with the announcement of
vulgarity, proclaimed by the writer. By highlighting verses that suggest the confluence
between life and work of art, poetry is analyzed from the perspective of work in art
as a practice of investigating the body and recreating relationships. The stories and
images shared by the author are interpreted as scenic situations that reveal the
manifestation of a poetic-theatrical state in her production. Finally, autofictional
writing is approached as a proposition for the expansion of spaces for listening and
sharing incarnated experiences.
Keywords
: Mila Teixeira. Vulgarity. Cruelty. Work. Body.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pela Profa. Dra. Rosyane Trotta (Programa de Pós-Graduação
em Artes Cênicas PPGAC/UNIRIO).
2
Pós-doutorado em desenvolvimento na Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAC/UFRJ). Doutor em Artes
Cênicas (UNIRIO). Mestre em Artes Cênicas (UNIRIO). Bacharel em Direção Teatral (UFRJ). Professor de teatro,
diretor teatral e artístico, artista pesquisador e performer. caioriscado@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/0268269452321350 https://orcid.org/0000-0001-9020-5189
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
3
Vulgar sin ser sexy: cuerpo, trabajo y escena en la poesía de
Mila Teixeira
Resumen
El artículo tiene como objetivo analizar los poemas del libro
A proclamação da
vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?
de la poeta, guionista y
dramaturga Mila Teixeira, publicado por Urutau, en 2021. Partiendo de la noción de
crueldad en Artaud, el texto busca una aproximación al anuncio de vulgaridad,
proclamado por la autora. Al resaltar los versos que sugieren la confluencia entre la
vida y la obra, la poesía se analiza desde la perspectiva del trabajo en el arte como
una práctica de investigación del cuerpo y recreación de relaciones. Los relatos e
imágenes compartidos por la autora se interpretan como situaciones escénicas que
revelan la manifestación de un estado ptico-teatral en su producción. Finalmente,
la escritura autoficcional se aborda como una propuesta de ampliación de espacios
para escuchar y compartir experiencias encarnadas.
Palabras clave
: Mila Teixeira. Vulgaridad. Crueldad. Trabajo. Cuerpo.
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
4
um dia
tão bonito
e eu
não fornico
(Adília Lopes)
Por definição, a proclamação é um anúncio público, realizado de maneira
enfática, em voz alta e com solenidade. Esse tipo de declaração tem por objetivo
divulgar decisões, revisões e mudanças que produzem efeito nos regimes e
sociabilidades. Proclamar é o mesmo que dar como certo, afirmar, certificar e, até
mesmo, provar. A proclamação assegura o “objeto” anunciado, legitimando a sua
existência, desenvolvimento, expansão e circulação. Apesar da proximidade
histórica com figuras que ocupam cargos de poder, a proclamação não se restringe
ao fazer político institucionalizado. Nesse sentido, é que podemos proclamar a
mobilidade dos nossos desejos, fazendo valer o que costuma ser esquecido,
desvalorizado ou, propositalmente, silenciado pelos órgãos responsáveis pela
manutenção do(s) sistema(s).
Em seu primeiro livro,
A proclamação da vulgaridade ou quantos furos uma
calcinha pode ter?
, lançado pela editora Urutau, em 2021, a poeta Mila Teixeira
proclama a vulgaridade para marcar seu posicionamento contrário à imposição de
normas que controlam nossos corpos e, sobretudo, a produção de saberes sobre
eles. Na poesia da autora, proclamar a vulgaridade é uma tomada de decisão ética
que expõe a sujeira varrida para debaixo do tapete e, nessa revelação, elabora um
chamado sobre a estética das impurezas, da obscenidade em se saber viva e do
prazer da decomposição.
Depois de atingido por uma escova cor-de-rosa, como no caso do poema
sobre a barata (Teixeira, 2021, p.18), ou pela pulsão de morte na história das baleias
(Teixeira, 2021, p.32), quanto tempo um corpo leva para desaparecer? Através das
pequenas imundices diárias, a poeta constrói seu relato e, ao invés de se fixar no
conhecido terreno da realização de denúncias, cria anúncios: “passo o dia mijando”
(Teixeira, 2021, p.17), escreve Mila, no primeiro verso do primeiro poema que abre
o seu livro de estreia. Percebo como anúncios os versos construídos não como
reação, mas proposição de uma intenção encarnada. Ou, para pensar com o
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
5
vocabulário iluminado pela poeta, a proposição de uma ação vulgar. Café, suco de
fruta, chá de camomila, nada escapa. O que não vira bosta, quase certeza: se
transforma em urina.
são rolos e rolos de papel higiênico por semana
ainda não contei quantos
são pelo menos dois banhos por dia
não durmo
nunca consigo mas
estou sempre hidratada &
minha pele
tá ótima
(Teixeira, 2021, p.17)
No projeto poético de Mila, a vulgaridade não corresponde à leitura que indica
uma procedência ruim, grosseira, rude, de baixa natureza ou desprezível. Para além
dessas significações tidas como indesejáveis, o convite da autora se faz mais
diverso e, justamente por isso, comum. De acordo com essa proposição, é preciso
que identifiquemos o comum como sendo, necessariamente, um conjunto
formado por diferentes. Sendo assim, a vulgaridade em Mila se aproxima da noção
de crueldade em Artaud, pois “tudo o que age é crueldade” (Artaud, 2006, p.96),
na medida em que estabelece pontos de atravessamento em todas as viventes e
sugere aquilo que, mesmo contra a nossa vontade, é parte fundante da vida, ou
seja, sua lucidez, crueza, condição ordinária, dura, banal, implacável, sua vocação
para a tormenta.
De fato, crueldade não é sinônimo de sangue derramado, de carne
martirizada, de inimigo crucificado. Essa identificação da crueldade com
os suplícios é um aspecto muito pequeno da questão […] A crueldade é
antes de mais nada lúcida, é uma espécie de direção rígida, submissão a
necessidade (Artaud, 2006, p.118).
Parece-me que a criação e a própria vida só se definem por uma espécie
de rigor, portanto de crueldade básica que leva as coisas ao seu fim
inelutável, seja a que preço for (Artaud, 2006, p.120).
A vulgaridade e a crueldade são populares. Elas pertencem ao povo e
funcionam como forças animadoras de uma vida criativa, apaixonada e convulsa.
Afinal, “é com crueldade que se coagulam as coisas, que se formam os planos do
criado” (Artaud, 2006, p.121). Forças animadoras para uma vida que quer recobrar
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
6
não a potência dos corpos, das coisas e suas relações, mas também a violência
dos sonhos: os cortes secos, as interrupções, a vertigem do indizível quando
somada a sabedoria dos sustos e encantos. Então, a vida como teatro e o teatro
como vida-sonho: uma sobreposição que não almeja resultados, se afasta da
dimensão de obra finalizada e se entrega ao fluxo dos espasmos cotidianos.
acabou o filtro do café
não tem legenda disponível em português
o cachorro mijou na cama
quebrei a caneca da vovó
me cobraram dinheiro
ingressos esgotados
acho que o ventilador quebrou
cortaram o gás
entrei no negativo
pernilongos
esse cara me chupa como se chupa tampa de danoninho
aplicativo do banco fora do ar
dorflex passou da validade tomei mesmo assim
(Teixeira, 2021, p.38)
São fluxos que sugerem o inacabamento de uma vida, cortada a cada minuto
em suas experiências do comum. A vontade de “viver o corpo como uma realidade
parcialmente conhecida, ainda não estabilizada e mapeada” (Quilici, 2004,
p.200). Uma vida ancorada na ideia de conflito eterno e que, por não mirar o
sangue, se revela lúcida e rigorosa. Uma vida perseguida em suas falhas que
podem ser vistas como convites para uma nova tentativa. Mas a possibilidade da
tentativa não se aproxima das narrativas de superação. Ao contrário, a falha é
percebida como campo do comum, como conjunto que se expande em cada
relevo de marcação das diferenças. Como espaço oportuno para lidar repetidas
vezes com o fracasso que nos acompanha. O fracasso que é intrínseco à ideia do
próprio viver, à ideia de uma vida vivível, logo, atravessada. Ou, como diria Beckett,
na máxima que Mila usa como epígrafe para o poema citado, como campo para
“tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor” (Beckett apud Teixeira, 2021, p.38).
Na poesia de Mila, as tentativas ganham como contorno a dimensão do
exercício. Não se desejam os melhoramentos do corpo, mas a atividade de se pôr
em movimento, de buscar outros modos de saída ou retirada. A noção de exercício
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
7
também não se assemelha à ideia de treinamento. Como dito, para a poeta, o
corpo não é um campo ou sistema a ser superado. O exercício se direciona, então,
para a observação, para a contemplação que não é funcional, desinteressada das
utilidades e alinhada aos acasos do porvir. Os versos de Mila me lembram de olhar
o corpo como quem olha para uma pessoa que dança e tenta, mesmo com
dificuldade, não interpretar os seus movimentos. É, antes, sobre saber o que se
abandona e menos sobre nomear o lugar que está para ser criado. Mila se diz, com
ironia, germofóbica, mas conserva as unhas “imundas formando dez linhas pretas”
(Teixeira, 2021, p.31) para que perguntemos por que ela não limpa essa sujeira, ao
que a poeta responde:
dez linhas pretas me geram um mal-estar tremendo
por isso faço questão
de deixar assim talvez se você
se aproximar fixar o olhar devagar
vai perceber que é um exercício
atenção: um exercício
sobre a saída da zona de conforto
(Teixeira, 2021, p.31)
Sair da zona de conforto é campo de experimentação. Tentativa que se
alimenta da própria ação de tentar. Ação que não objetiva resultados porque está
preocupada com o presente, com as suas possibilidades de multiplicação do “aqui
e agora”: do corpo, das coisas e relações. O embate com a imundice sinaliza uma
vontade de fuga dos automatismos e determinismos normalizadores. O exercício
é, sobretudo, uma experiência de estranhamento. Uma aposta na desestabilização
dos modelos cristalizados. Um modo de pensar a poesia, o poema, a partir do
corpo e, mais importante, com o corpo. Deixar que as unhas sejam para rever,
nesse caso, o que foi recalcado pela constante promessa de higienização e bons
modos. As unhas sujas podem não ser mero desleixo, mas um exercício, um
trabalho que se costura entre o rigor e a espontaneidade, com a atenção voltada
para a crueldade do que cresce e se transforma, como as unhas,
independentemente do nosso controle. Na poesia de Mila, assim como na
articulação da crueldade em Artaud, a vida que brota das mãos exibe um dos
gestos próprios do viver: a necessidade do movimento.
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
8
Entendo esses versos como anúncio e, posteriormente, como trabalho para
sinalizar que precisamos avançar na conversa sobre o que compreendemos e
defendemos como atividade laboral. Na minha leitura, e tomando como base a
interpretação de Cassiano Quilici (2015) sobre o trabalho de alguns performers, o
exercício proposto por Mila se enquadra na definição de trabalho porque não
estabelece nenhuma relação de exploração, não cria vínculos hierárquicos e nem
se dedica à acumulação de capital. As matérias partilhadas nessas atividade são
outras: mais finas, mais frágeis e, por isso, altamente poéticas e,
consequentemente, políticas. A poeta menciona o mal-estar para dizer que faz
questão de habitá-lo: uma postura rigorosa na investigação da vulgaridade da vida.
Passar os dias mijando e conviver com as unhas sujas dizem mais do trabalho vital
do que os cargos e funções a que somos submetidas.
O trabalho em arte elaborado por Mila se aproxima da noção de “arte de
existência”, pesquisada por Cassiano Quilici: uma arte “que nos inspira aqui a falar
de algo que se realiza nas mínimas ações, e que não se identifica necessariamente
com os espaços consagrados e previsíveis para a realização das atividades
artísticas” (Quilici, 2015, p.143). “A arte torna-se uma forma de investigar a natureza
do fazer e agir humanos” (Quilici, 2015, p.142) em suas potencialidades criativas,
um “modo de criar e cuidar das nossas formas de relação com o mundo e conosco
mesmos” (Quilici, 2015, p.143). A partir dessa perspectiva, singular e reveladora,
podemos pensar que o trabalho em arte se faz porque precisa ser feito: viver,
relacionar, cuidar. O trabalho em arte e em vida, ou arte-vida, se não como
resposta, mas como questão.
O trabalho de Mila é, ao mesmo tempo, físico e plástico. O exercício poético
existe antes do poema ser registrado em livro. E o seu registro não confirma a
experiência porque ela não pode, e não deve, ser verificada. Por meio da linguagem
escrita, o que se compartilha é a continuidade do trabalho. Ou seja, o seu
firmamento enquanto atividade imaginativa, ação política que interfere e provoca
movimento na disputa pelos imaginários. Nesse sentido, a obra segue obrando e
as linhas de sujeira se multiplicam. Como questão, os dedos de Mila passeiam por
outras mãos. Ao pegar no livro, você pode até ignorar suas unhas. Mas o fato delas
estarem admite a possibilidade da sujeira. Parafraseando a poeta, se você
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
9
fixar o olhar devagar, vai perceber que as coisas são, mas não se fixam. E essa
percepção, além de dar trabalho, é trabalho.
Um agir renovado que começa na mudança de qualidade da própria
percepção. Um perceber que não decodifica o mundo no sentido de
sustentar o agir mecânico ou apenas funcional. Uma abertura que
sustenta o momento de espanto e admiração diante daquilo que surge,
que passa, que desaparece. Um olhar que não quer prender as coisas
numa representação que as fixa, não evita a impermanência dos
fenômenos e possibilita a apreensão poética dos acontecimentos (Quilici,
2015, p.143).
Além da sujeira das unhas, as mãos da poeta guardam outras marcas do
tempo. Ainda sem a presença de características do envelhecimento, Mila é uma
poeta nova, o que ela nos deixa imaginar também sobre as suas mãos diz do perigo
e da beleza que rondam toda relação. As cicatrizes de Mila, assim como as nossas,
são desvios que contribuem para a formulação e, por que não, fabulação das
narrativas sobre o corpo. Esse corpo que foi queimado pela avó e que reelaborou
o trauma do machucado por se reconhecer no susto de alguém que, por distração
ou força do vento, feriu com a brasa do cigarro um ente querido. Assim como a
sujeira que se acumula, não estamos livres dos pequenos ferimentos, das
pequenas chamas que acordam a pele com força suficiente para lembrar que
estamos vivas e que, de certa forma, estar viva também é se machucar: esse nosso
jeito estranho de eleger um tipo de perigo como preferido.
minha cicatriz preferida
está no dorso
da mão esquerda
minha avó apagou
um cigarro nela
passado susto feito
curativo
ela se sentiu aliviada:
ainda bem que não foi
na palma da mão
assim a queimadura
não vai interferir em nada
no seu destino
(Teixeira, 2021, p.34)
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
10
Cabe dizer, mais uma vez, que o movimento da poeta não parece estar
direcionado para a superação da queimadura. Como em muitos episódios em que
os acasos nos ferem e formam, a cicatriz se mostra como uma espécie de
lembrança, vestígio do acontecido. A cicatriz preferida, então, serve como ponte
para a construção de novos relatos sobre um corpo alterado, um modo de
reconexão com as narrativas que criamos para o que, com ousadia, identificamos
como nós mesmas. Isso porque, talvez, os acidentes e desvios falem mais do que
os planos lisos.
Com base na leitura de Butler (2015), faço menção à ousadia da identificação,
pois, de acordo com a filósofa, não temos uma história própria. A nossa história
só existe na medida em que é também a história de uma relação ou um conjunto
de relações. Nossos relatos estão implicados em uma temporalidade social e
cultural. De modo que podemos perceber a nossa existência em relação com
esses fatores. Precisamos da outra para nos aproximarmos da ideia que fazemos
de nós mesmas. E, mesmo assim, essa percepção nunca será integral. Para a
desastrosa pergunta “quem é você?” nunca haverá resultado satisfatório se
designado pelo próprio “eu”. A identidade que acreditamos ter não nos captura.
Nas falhas, na opacidade e no fracasso naquilo que está fora das categorias
fixadas é que podemos, quem sabe, arriscar a construção de um relato. As
cicatrizes da poeta dizem mais de sua trajetória do que a utopia de uma paisagem,
ou corporeidade, sem acidentes, sem o perigo e a beleza da presença da(s)
outra(s).
Na primeira parte do poema, o destino do corpo segue sem interferência,
para o alívio da avó. na vida que se quer poesia, na confluência entre vida e
obra, o destino se refaz de maneira constante e a cada modificação. Os acidentes
não param de se sobrepor e exigem a reelaboração dos nossos relatos. Reparem:
o cachorro da poeta mordeu o dorso de sua outra mão, provocando a necessidade
de atualização do poema, a escrita de uma segunda parte. Queimadura na mão
esquerda, mordida na mão direita: “que sorte: minhas cicatrizes preferidas ficam
uma ao lado da outra” (Teixeira, 2021, p.35).
O corpo alterado, marcado pelo encontro com a exterioridade, bagunça
noções estéticas, de bem estar e saúde. Desloca o discurso médico da resolução
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
11
de problemas para uma esfera em que os questionamentos levem em
consideração as singularidades. Mila se descobre alérgica a amendoim e o médico
determina que ela corte a leguminosa de sua alimentação. Mas “como viver sem
pé de moleque, doutor? / como viver sem paçoca?” (Teixeira, 2021, p.25), pergunta
ela. No poema, não temos a resposta do médico. Talvez, porque ele considere
improvável a possibilidade de uma vida acompanhada das manchas causadas pela
alergia recém descoberta.
A dimensão do prazer é ignorada pelo doutor que está mais preocupado
(notem: mais do que a própria paciente) com a sua aparência que não corresponde
aos padrões de beleza por ele praticados. Nesse contexto em que “almejamos
uma existência asséptica, indolor, prolongada ao máximo, onde até os prazeres
são controlados e artificializados: café sem cafeína, cerveja sem álcool, sexo sem
sexo, guerra sem baixa, política sem política” (Pelbart, 2007, p.61), Mila não quer
abrir mão do seu amendoim com manchas. Ainda no consultório, a poeta diz: “as
manchas não fazem mal algum / a falta de amendoim / sim” (Teixeira, 2021, p.25).
Viver o corpo, exercitar sua engenharia física e poética, não é a mesma coisa
que se entregar a uma aventura sem limites. O risco da poesia de Mila está no
traçado de uma errância calculada, uma espécie de passeio lúcido pelas inúmeras
possibilidades da experimentação encarnada. Nessa jornada, a poeta parece
perseguir os barulhos da existência através de jogos cotidianos que, embora
possam parecer radicais, revelam um desejo agudo de atrito com o mundo e suas
coisas. A radicalidade em Mila não busca o ferimento e, muito menos, o sangue,
como já mencionado. A radicalidade é, nesse caso, tensão praticada, aplicada aos
exercícios que, dependendo do ponto de vista, podem, até, sugerir a crueldade
(lembremos: rigor, apuro, prontidão, investigação) de um corpo que não quer deixar
de ser corpo. Como, por exemplo, no poema que ela nomeia “som”:
às vezes me jogo no chão depende do dia
me jogo mesmo, com vontade
não é me deitar, visualize:
tem que fazer barulho
é uma queda tem que ter impacto
me jogo no chão
(Teixeira, 2021, p.46)
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
12
Jogar-se no chão é também uma forma de conversa, de acordar as partes
adormecidas do corpo, enfrentar a imposição do silêncio, fazer barulho. E, ainda,
mudar de plano, abandonar a verticalidade para se esparramar no concreto. Ficar
embaixo, perto do chão, com ele e os cachorros. As conversas horizontais mudam
não a perspectiva como também produzem outros interlocutores. As marcas
ou lembranças de pisadas, a memória territorializada que transforma cada
passagem em uma história, o pó, a poeira, a vassoura que não veio, uma migalha,
um objeto faz muito tempo perdido e, de repente, encontrado. A queda lúcida,
para lembrar aqui também a poeta Orides Fontela, como uma mistura estranha
entre desalento e alegria, exaustão e viço. Nas palavras de Mila: dor e riso.
[…] depende
do dia os cães
pulam em cima de mim
sei que gostam quando
reclamo de dor e rio em seguida
(Teixeira, 2021, p.46)
Estabeleço essas relações entre a poética de Mila e os escritos de Artaud,
entre as noções de exercício e trabalho, estimulado pela própria atuação da autora
que, além de poeta, é roteirista e dramaturga. Influenciada por essa multiplicidade
de funções, a poesia de Mila carrega algo de cênico quando pensamos a cena
como espaço privilegiado para o endereçamento da ação. Em sintonia com muitas
das leituras sobre as práticas no teatro contemporâneo, a escrita de Mila busca a
ação, mas não exatamente preocupada com o que acontece. Mais pulsante do que
definir a ação (dramática) é trabalhar o seu modo, ou seja, escrever sobre como
as coisas acontecem ou podem acontecer. O conflito está, muitas vezes, não no
fato, mas na situação. As ações exploradas por Mila são bastante banais. E é dessa
vulgaridade cotidiana que ela tece os fios do que, a partir da leitura de Silvia
Fernandes (2010)
3
, quero chamar de estados-poéticos-teatrais. A questão não está
na narrativa, mas na maneira como ela se dá.
3
De acordo com Silvia Fernandes “a categoria adequada para dar conta do teatro contemporâneo não é mais
a ação dramática, mas a situação cênica, responsável por uma dinâmica particular de estados teatrais”
(Fernandes, 2010, p.140).
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
13
lavei as cuecas e ao colocar no varal
acabei deixando uma cair na rua
desci pra buscar vi um senhor estava botando ela
no bolso
ele não entendeu quando pedi de volta e disse que era minha
por estar de bom humor contei:
só uso calcinhas em começos de namoro e olhe lá
(Teixeira, 2021, p.20)
Essa disposição para a cena suspende o que seria a ação central, pois se
interessa, principalmente, pelas derivações, ou fugas, investigadas. Resgatar a
cueca torna-se menos importante porque é o encontro com o senhor o que faz a
queda do objeto significativa. Essa espécie de embaraço poético é potencialmente
teatral quando, enquanto leitoras, nos perdemos na construção e percepção das
diferentes temperaturas que poderiam orientar a criação dessa cena. Não se sabe
porque o velho leva a cueca. Esse tipo de roubo declarado, feito às claras, se
aproxima do teatro que investe mais em presença e menos em sentido, que está
interessado pela afetação dos encontros e suas reverberações, independente dos
motivos.
É um modo novo de utilização dos significados no teatro, que exige mais
presença que representação, mais experiência partilhada que
transmitida, mais processo que resultado, mais manifestação que
significação, mais impulso de energia que informação (Fernandes, 2010,
p.54).
A dimensão do exercício não está reservada somente para a observação do
próprio corpo da poeta. Além dos casos descritos, para citar apenas mais um,
posso trazer o poema da barata, mencionado no início desse texto. O corpo do
bicho tira Mila do sono, mas a partilha entre as duas não termina com a morte da
invasora. Ainda interessada em como as coisas se dão, o tempo da morte é
dilatado pela proposição de manutenção do cadáver da barata na cena. O estado-
poético-teatral se manifesta de novo e o processo de decomposição, esse tipo de
suspensão dos vestígios de uma vida, recria a ação como situação cênica em que
persiste a ideia de uma negociação entre presenças. Mesmo morta, a barata está.
Mesmo morta, a barata é.
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
14
Tinha acabado de pegar no
sono quando uma barata pousou
em cima de mim o toque áspero
das suas patas me despertou
sem dó a matei com minha escova de cabelo
seu corpo está debaixo da cama
decidi observar sua decomposição
(Teixeira, 2021, p.18)
Está escrito, anuncia Mila, nós somos vulgares. Na verdade, nascemos
vulgares e tentam, a todo custo, nos convencer de que é preciso ser sexy.
Acontece que a vulgaridade é inerente aos processos. Portanto, menos cansativa
e danosa. Ela está presente em todas as pontas dos dias e não necessita
planejamento. Aparece para termos a certeza de que sempre esteve lá. Ou aqui.
Para além dos impactos de uma lembrança, a vulgaridade insurge contra a
linearidade das narrativas para se provar como elemento constituinte das mais
variadas situações de uma vida. O comum é ser vulgar, sem ser
sexy
. É dar como
certa nossa inaptidão para sermos aprisionadas em um
collant
e sustentar as
falsas perguntas sobre dom, talento ou vocação; é afirmar que precisamos do
milkshake
, da batata frita e de um litro de Coca-Cola para suportar alguns mal-
entendidos; é certificar que, apesar das recomendações médicas, amamos nossas
manchas, nossas cicatrizes (de mordida de cachorro ou cigarro) e que não
desistiremos assim tão fácil do amor oferecido por uma paçoquita. O comum é
ter dobrinhas.
Ninguém te conta quando você as menininhas vestidas de rosa, o
collant marcando dobrinhas, enquanto elas sorriem e acenam, que caso
decidam por isso, pelo balé, caso seja vontade delas, vai ser uma vontade
que vai exigir muita força de vontade. Eu sei sobre aptidão dom talento
qualquer uma dessas coisas que contam por aí, mas temo pelas
menininhas de collant marcando dobrinhas porque fui uma dessas
menininhas (Teixeira, 2021, p.26).
No lugar de diagnosticar uma gastrite ou entrar na faca para se desfazer das
suas dobrinhas, a poeta prefere se engajar no compartilhamento de receitas para
o tratamento das feridas que não mobilizam médicos e empresários da indústria
farmacopornográfica. Mila nos ensina, passo a passo, como colocar fogo em
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
15
nossas calcinhas porque sabe que passou da hora de declararmos guerra ao
poliéster puro que faz entrar no meio da bunda. Depois do fogo, bagunça a
divisão binária e enfadonha das roupas íntimas e nos sugere comprar cuecas:
promoção nas lojas Americanas, preço mais acessível, algodão puro, macio. Depois
do fogo, mas ainda em chamas, elabora sua inversão em linguagem: com a
calcinha que escapou da fogueira, diga-se de passagem, vermelha, veste o macho
que se acanha inteiro ao experimentar a prótese socialmente lida como feminina.
A poeta de cueca, diz ao macho de calcinha:
te olho de canto de olho pra
você não ler o letreiro neon
na minha cara:
quero-te-dar
quero-quero
quero-te-dar
(Teixeira, 2021, p.58)
Ao som de Valesca Popozuda, a ação que poderia ser vista somente como
um mecanismo para a desconstrução de seu parceiro, quer, antes, anunciar o
desejo pulsante de Mila que, por meio do fetiche, se utiliza do acanhamento como
trampolim para a vulnerabilidade. Na relação entre dois ou mais, sua língua quer
ser entendida “eu não quero falar num idioma incompreensível” (Teixeira, 2021,
p.60) para fazer do mundo uma cama que, a cada novo encontro, reelabora os
seus limites. Deitada em seu colchão de molas - “muito confortável preço de black
friday” (Teixeira, 2021, p.56) a poeta deixa para o mercado dos lençóis e das
masculinidades frágeis preocupações relacionadas ao número de fios ou tamanho.
No plano horizontal das vontades compartilhadas, antes no chão e agora na cama,
ela quer um tratamento total. Um passeio íntimo, quente, sem pudores, de uma
intimidade radical:
mãos
voz
olhos
pouco me importa
tamanho do seu pau
se suas delicadas mãos fazem
o que sabem fazer e
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
16
me tratam como um bom animal
(Teixeira, 2021, p.44)
Há quem pense no bom animal como um corpo docilizado. Mas uma leitura
atenta aos movimentos de Mila revela que a bondade do animal está, na verdade,
em sua selvageria. Em seu estado livre, não domesticado. A poeta descoreografa
a relação heterossexual padrão, cheia de normas e comportamentos de
dominação, ao se empoderar da vibração do seu próprio desejo que, como
veremos a seguir, nada tem de passivo. Na imagem sexual que constrói, Mila é
quem está por cima, ocupando o lugar que o sistema de fusão entre
sexo/gênero/desejo/prática sexual da heteronormatividade restringe aos homens
4
.
Pensando mais uma vez na metáfora do animal, ela assume a posição de bicho
solto que recusa ser adestrado. Mete o clitóris na boca do parceiro, reconfigurando
noções de ação e recepção da atividade sexual oral. Na minha leitura, a poeta não
é chupada. É, de fato, quem come a boca do macho.
suas mãos
sua voz
seus olhos
equação de lava
quente como meu clitóris
ao gozar
na sua boca
como um bom animal
(Teixeira, 2021, p.44)
Nos encontros que não se podem físicos, Mila proclama a fabulação como
portal para os encantos. Vulgar que é, transporta personalidades reconhecidas
para a sua vivência do ordinário: o comum dos dias que passam. Do encontro com
Cortázar, ganha um furo de cigarro na saia recém-comprada. Adília Lopes lhe
obriga a reler seu livro e recomenda à poeta mais banhos de sol. Frank O'hara quer
levá-la ao museu, lugar onde passa calor pois o ar condicionado está quebrado.
4
O sistema de fusão entre sexo/gênero/desejo/prática sexual é uma imposição da heteronormatividade
compulsória que determina que: “o indivíduo, ao nascer macho, seu gênero será masculino, seu desejo
heterossexual e sua prática sexual ativa, enquanto que, caso nasça fêmea, seu gênero será feminino, seu
desejo heterossexual e sua prática sexual passiva” (Peres, 2012, p.541).
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
17
Virginia Woolf lhe oferece possibilidades: água de coco ou suco de fruta?,
distraindo Mila de sua crítica ao governo que acabou com o horário de verão. A
poeta propõe um beijo de língua em Nuno Ramos, expondo a vontade de comer
seu cérebro e palitar os dentes com seus ossos. Na poesia de Mila, o sonho projeta
imagens ao mesmo tempo em que produz conversas. Nesse sentido, a imaginação
é também trabalho: uma forma de aproximação e experimentação de impossíveis.
Ainda sob efeito dos encantos, a poeta compartilha que quis ser Yayoi
Kusama, Diane Arbus, Francesca Woodman, Lygia Pape, Maria Auxiliadora, Mira
Schendel, Maria Martins e Louise de Bourgeois, “por toda a sua crueldade” (Teixeira,
2021, p.52). Seus “sonhos ilustres (por ordem de aparição)” (Teixeira, 2021, p.42)
carregam a beleza da banalidade e comentam, com ironia e humor, a
imprevisibilidade das nossas vontades. O desejo, quando desperto, não poupa
ninguém. Nem mesmo o nariz de Louis Garrel que Mila quer lustrar com a própria
boca.
me desperta o desejo:
passar a língua em cada
centímetro em cada cravo
em cada pelo
chupá-lo deixá-lo brilhante
com minha saliva até que seu dono
desmaie
pela falta de ar
(Teixeira, 2021, p.57)
O livro de Mila não é distante de seu corpo e realidade. O que não quer dizer
que sua poética se resuma às circunstâncias de uma política identitária. A voz que
fala é múltipla, difícil de reduzir a categorias preestabelecidas. Vida e obra
confluem, mas não para criar uma espécie de diário preenchido por confissões.
Portanto, distante de um registro egocentrado. Seus versos trabalham como
apostas e, para recobrar a dimensão do exercício cênico, se aproximam das
performances de possibilidades. Nos poemas, a matéria pessoal é articulada
também em sua dimensão política, estabelecendo conexões ocultas entre as
esferas públicas e privadas. Como na cena autoficcional, as experiências vividas
funcionam como veículo para o florescimento da(s) outra(s).
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
18
A cena autoficcional desnaturaliza a ilusão de um “eu” autocentrado e
expõe radicalmente o processo de subjetivação produzido por ela. O “eu”
é, ao mesmo tempo, desconstruído e construído no próprio ato de
performar a si mesmo [...]. Portanto, a cena autoficcional não produz
discurso tranquilizador com a ordem social, nem pode ser uma pura
exibição egocêntrica de si mesmo. Ao contrário, a cena autoficcional é
um ato potente estética e politicamente, pois produz subjetividades,
corporeidades, modos de existência e/ou imaginários que escapem dos
modelos hegemônicos (Morais, 2020, p.129).
Ao criar a partir dos embaraços de sua trajetória, suas investigações,
obsessões e fracassos, a poeta abre espaço para que outras narrativas sejam
também contadas. A exposição da banalidade em seu caminho constrói um
espaço seguro para que outras trocas sejam possíveis. A cena poética autoficional
funciona como um tipo de trampolim para outros corpos saltarem. Quando a
vulgaridade se torna assunto, ou seja, quando ela rompe barreiras que censuram
o discurso, as bocas se multiplicam. Nesse sentido, a autoficção colabora com a
ativação desse falatório para que mais vozes possam ser escutadas. A experiência
pessoal, sabemos, é política. E faz política principalmente quando trabalha pelo
aumento dos espaços de escuta.
Em um ambiente que quer nos tornar cada vez mais assépticas, Mila é a
primeira a indagar: “quantos furos uma calcinha pode ter”? (Teixeira, 2021, p.61). E
sua pergunta é, na verdade, um plano de afirmação. Como quem diz: carrego
buracos por todos os lados, estou sempre vazando. Seu ato de proclamação traça,
então, um campo de proximidade com a leitora ao admitir que a vulgaridade borra
qualquer contexto. Assim como os eletrodomésticos, o corpo pode sempre
quebrar. As ligações de São Paulo tocam no nosso número, mas nunca chamam
o nosso nome. Afinal, “poetas não recebem / salário / direitos trabalhistas /
prestígio ou / podem tirar férias / ninguém poesia” (Teixeira, 2021, p.50) e as
poetas são pobres.
Somos tão ridículas que uma foto de perfil é capaz de nos provocar a paixão.
Cortinas são caras e, mesmo se fossem baratas, continuaríamos zanzando peladas
de um lado para o outro da casa. Gozamos antes ou depois da hora para nos
lembrar de que é preciso afastar o relógio da cama. Somos feias e,
independentemente da crença, fazemos nossa fé. Em nosso altar misturamos
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
19
prazer e luminosidade, gemido e devoção ao riscar o chão com o suco extraído
das nossas travessuras: “foi uma foda tão boa quanto respirar. pagaria promessa
levando flores pra algum santo” (Teixeira, 2021, p.63).
Em
A proclamação da vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode ter?
Mila nos faz uma espécie de solicitação propositiva: oferece sua voz alta para nos
irmanarmos com ela em seus atos de fala. Para que possamos começar depois
da largada, sem o receio de tropeçar nos primeiros passos. Para que possamos,
quem sabe, dar colo para nossas imperfeições, tomar nossos rumos, seguir nossos
sonhos, participar das boas batalhas, pedir cadeira, barraca, não esquecer da
toalha, sentar na areia, pegar sol, trincar o cérebro com cerveja gelada, lambuzar
os beiços de queijo coalho, almoçar tarde, perder a hora, e, ainda com o corpo
abraçado pelo sal, planejar a noite: uma mesa de bar lotada. Para que possamos,
enfim, quem sabe, sermos feias e felizes com Ismália. “não me pergunte não
sei como” (Teixeira, 2021, p.22).
Quando ismália enlouqueceu
quer dizer quando dizem
que ismália enlouqueceu
era dia de eclipse em escorpião
no auge do seu retorno de saturno
ismália escreveu carta de demissão
era consultora de marketing em
uma grande companhia
se questionou se era desvario
típica crise de quem se deu conta
de que roupa social era cativeiro
de que poupança conjunta não tinha cabimento
raspou o último centavo do banco
cláudio entrou com processo ela conseguiu
provar que cada real que pegou era seu
não me pergunte não sei como
seguiu seu sonho decidiu abrir um quiosque
na praia de cabo frio hoje em dia
todo mundo sabe que é o point da
cerveja trincando água de coco espetinho de camarão queijo coalho
(Teixeira, 2021, p.22)
Vulgar sem ser sexy: Corpo, trabalho e cena na poesia de Mila Teixeira
Caio Riscado
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
20
Referências
ARTAUD, Antonin
. O teatro e seu duplo
. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BUTLER, Judith.
Relatar a si mesmo: crítica da violência ética
. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2015.
FERNANDES, Silvia.
Teatralidades Contemporâneas
. São Paulo: Perspectiva:
Fapesp, 2010.
LOPES, Adília.
Aqui estão as minhas contas Antologia poética
. Rio de Janeiro:
Bazar do tempo, 2019.
MORAIS, Gabriel Antunes. A cena autoficcional como ato estético-político para
performar outras masculinidades. In: CICLORAMA:
Cadernos de Pesquisa da
Direção Teatral
, v.8. Rio de Janeiro: UFRJ, 2020. Disponível em:
https://issuu.com/ciclorama/docs/ciclorama8_2020. Acesso em: 01 out. 2021.
PELBART, Peter Pál. Biopolítica. In:
Sala Preta,
São Paulo, 2007. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57320. Acesso em: 01 out. 2021.
PERES, Wiliam Siqueira. Travestilidades Nômades: A explosão dos binarismos e a
emergência queering. In:
Revista Estudos Feministas
, Florianópolis, 20(2): 2012.
Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2012000200014. Acesso em: 01 out. 2021.
QUILICI, Cassiano Sydow.
Antonin Artaud: Teatro e Ritual
. São Paulo: FAPESP;
Annablume, 2004.
QUILICI, Cassiano Sydow.
O ator-performer e as poéticas da transformação de si
.
São Paulo: Annablume, 2015.
TEIXEIRA, Mila.
A proclamação da vulgaridade ou quantos furos uma calcinha pode
ter?
Bragança Paulista: Editora Urutau, 2021.
Recebido em: 01/10/2021
Aprovado em:11/01/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br