1
A cena como campo ampliado:
o ambiente e o
Viewpoints
Giselly Brasil
Para citar este artigo:
BRASIL, Giselly. A cena como campo ampliado: o
ambiente e o
Viewpoints
.
Urdimento
Revista de Estudos
em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0209
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A cena como campo ampliado: o ambiente e o Viewpoints
Giselly Brasil
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-23, abr. 2022
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A cena como campo ampliado
1
: o ambiente e o
Viewpoints
2
Giselly Brasil
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Resumo
Este artigo apresenta considerações sobre a cena como campo ampliado a partir da
noção de ambiente presente em propostas e projetos de Richard Schechner e Hélio
Oiticica e de perspectivas da prática dos
Viewpoints
. Propõe-se aqui um olhar para
a abertura da cena a partir de iniciativas que articulam corpo, espaço e tempo nos
processos de criação. Schechner e Oiticica lançam propostas ambientais que
ampliam as possibilidades de reflexão sobre o fenômeno da arte como espaço de
relação no tempo e no espaço. O Viewpoints, por sua vez, estimula a investigação
desse campo ambiental do ponto de vista da prática e da experiência da cena.
Pretende-se assim, abordar perspectivas de uma cena ampliada levando-se em
consideração a noção de ambiente, bem como das experiências ambientais
propostas pelo
Viewpoints
.
Palavras-chave
: Ambiente. Cena. Espaço. Tempo.
Viewpoints
.
The scene as an extended field: the environment and the
Viewpoints
Abstract
This article brings considerations about the scene as an expanded field from the
notion of environment present in proposals and projects by Richard Schechner and
Hélio Oiticica and from the perspectives of the
Viewpoints
practice. It is proposed
heir a look at the opening of the scene, taking into account initiatives that articulate
body, space and time in the creation processes. Schechner and Oiticica create
environmental proposals that expand the possibilities for thinking on the
phenomenon of art as a space of relationship in time and space. The Viewpoints, in
its turn, encourages the investigation of this environmental field from the point of
view of the scene's practice and experience. It is intended, therefore, to approach
perspectives of an enlarged scene taking into account the notion of environment, as
well as the environmental experiences proposed by Viewpoints.
Keywords
: Environment. Scene. Space. Time. Viewpoints.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada pelo Prof. Dr. Fabio de Carvalho Messa. Doutorado em
Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC - 2002). Mestrado em Literatura (UFSC (1997).
Graduação em Comunicação Social - Jornalismo pela PUC-RS (1991). Graduação em Letras - Licenciatura -
Língua e Literatura Bras. pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS -1993).
2
Este trabalho resulta em sua maior parte do material produzido na tese de doutoramento, da autora, em
Artes Cênicas, na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo. Ver: Brasil, 2016.
3
Doutora em Artes Cênicas pela Universidade de São Paulo (USP) com bolsa sanduíche pelo Serviço Alemão
de Intercâmbio Acadêmico - Deutscher Akademischer Austauschdienst - (DAAD), em Theaterwissenschaft,
na Universidade de Giessen, na Alemanha. Mestra em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina
(UDESC).Licenciada em Artes Cênicas (UDESC). Professora no curso de Artes da Universidade Federal do
Paraná (UFPR). gisellybrasilw@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/9843583356648145 https://orcid.org/0000-0002-6980-8126
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La escena como campo extendido: el ambiente y los Viewpoints
Resumen
Este artículo presenta consideraciones sobre la escena como campo expandido
desde la noción de ambiente presente en las propuestas y proyectos de Richard
Schechner y Hélio Oiticica y desde las perspectivas de la práctica de Viewpoints.
Aquí proponemos una mirada a la apertura de la escena, teniendo en cuenta
iniciativas que articulan cuerpo, espacio y tiempo en los procesos de creación.
Schechner y Oiticica lanzan propuestas ambientales que amplían las posibilidades
de reflexión sobre el fenómeno del arte como espacio de relación en el tiempo y el
espacio. Los Viewpoints, a su vez, fomentan la investigación de este campo
ambiental desde el punto de vista de la práctica y la experiencia de la escena. Se
pretende, por tanto, abordar perspectivas de una escena ampliada teniendo en
cuenta la noción de ambiente, así como las experiencias ambientales propuestas
por los Viewpoints.
Palabras clave
: Ambiente. Escena. Espacio. Tiempo. Viewpoints.
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Apresentação
Neste artigo
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trarei considerações sobre a cena como campo ampliado
5
a
partir da noção de ambiente apresentada por Richard Schechner e Hélio Oiticica e
a prática dos
Viewpoints
6
. Schechner aborda o conceito de ambiente sob o ponto
de vista da criação teatral e de possíveis encaminhamentos para a abertura da
cena. Oiticica, referência das artes visuais, apresenta um projeto ambiental que
ampliará as possibilidades da pintura e da escultura ao mesmo tempo em que
provocará a ação do corpo do espectador. Ambos se aproximam da noção de
ambiente, ou mesmo de uma perspectiva ambiental, ao considerarem o espaço
como dinâmica e potência para o movimento.
Os
Viewpoints
7
aparecem, neste contexto da cena, como campo ampliado,
como prática amplamente investigada na cena contemporânea para a criação de
dinâmicas que articulam corpo, espaço e tempo. E são essas orientações que
expandem as possibilidades da cena que aproximam as experiências propostas
pelos
Viewpoints
de condições ambientais sugeridas por Schechner e Oiticica.
Na apresentação do assunto aqui proposto, apontarei importantes quebras
de paradigma na produção de arte e, na sequência, abordarei as propostas
ambientais de Hélio Oiticica e Richard Schechner. No momento seguinte,
apresentarei considerações sobre a cena expandida do ponto de vista da noção
de ambiente, de Schechner e Oiticica. Por fim, apresentarei o contexto da criação
e elaboração dos
Viewpoints
e abordarei as suas dinâmicas do ponto de vista de
experiências práticas. Neste ponto, compartilharei impressões pessoais, como
artista, que partiram de inquietações provocadas pelos
Viewpoints
, na tentativa de
descobrir a cena como campo ampliado e ativado por relações ambientais.
4
Trago neste artigo apontamentos que dialogam com questões transversais que investiguei em minha tese
de doutorado. Ver: Brasil, 2016.
5
Termo utilizado pela autora Rosalind Krauss no texto
A Escultura no Campo Ampliado
, de 1984. O texto foi
originalmente publicado em 1979 e traduzido para o português em 1984.
6
Manterei o nome em inglês, tendo em vista que artistas em diferentes partes do mundo se referem à prática
utilizando o seu termo original. Viewpoints, aparecerá aqui como proposta associada ao trabalho de Anne
Bogart junto à SITI Company, muito embora outros nomes estejam envolvidos na elaboração desta prática.
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A ampliação do campo da arte
Na virada do século XIX para o XX aconteceram importantes transformações
sociais, econômicas e filosóficas que traçaram novos modos de pensar e agir no
mundo. A supremacia da razão provocou questionamentos que reorientaram
abordagens e conceitos sobre a própria noção de conhecimento, mudanças
decisivas que provocaram a transformação de paradigmas.
“A filosofia, que vem abrindo mão da afirmação de uma verdade universal,
sobretudo com o enfrentamento da ideia do absoluto, noção pontualmente
refutada por Friedrich Nietzsche (1844-1900)” (Brasil, 2016, p.234), surge como
parceira e aliada na construção de olhares múltiplos que transitam por diferentes
direções e sentidos.
Filósofos como Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Gilles Deleuze (1925-
1995), Félix Guatarri (1930-1992), entre tantos outros, produziram uma
ampla literatura que foi e continua sendo intensamente utilizada como
referencial para propostas teóricas ou práticas que enfatizam a
constituição do sujeito e a produção de conhecimento sob uma
perspectiva dinâmica (Brasil, 2016, p.234).
“Se o pensamento cartesiano parte de pressupostos estáveis que traçam
regras e constroem referenciais fixos, abordagens do pós-estruturalismo e,
sobretudo da fenomenologia lançam linhas e traços complexos” (Brasil, 2016,
p.235). As orientações passam a coincidir com vínculos que percorrem caminhos
imprevisíveis e confrontam o sujeito com múltiplas e inesperadas associações,
quedas, pausas e silêncios.
Neste contexto, importantes contribuições da fenomenologia foram tecidas,
sobretudo, pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty. Merleau-Ponty (1999)
aborda o sujeito como processo, como instância em constante devir e como
aquele que apreende o mundo em suas relações perceptivas com o entorno. Sua
capacidade de perceber, de interagir corporalmente com o mundo coincide com
o ato de conhecer.
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Esta perspectiva de um conhecimento que acontece no corpo e nas relações
com o entorno incentivará o surgimento de inúmeras propostas de criação nas
quais o sujeito irá experimentar situações diversas com estímulos e materialidades
no campo da produção de arte.
Multiplicam-se as abordagens e os procedimentos que reconhecem a própria
prática em arte como produção de conhecimento. Perceber, escutar, desenhar,
caminhar, parar, dançar e olhar são algumas das orientações que, conjugadas,
movimentam processos de conhecimento sobre o mundo.
Tal abordagem, que diz respeito à ação, à percepção e às relações do corpo
com o entorno, apresenta uma noção de espaço que entra em conflito com aquela
adotada pela física clássica. “O espaço surge agora como instância, trânsito e
interação e não como um território previamente mensurado e delimitado por
regras e medidas, como queria a noção euclidiana de lugar” (Brasil, 2016, p.160).
Neste contexto expansivo, no qual os elementos interagem entre si, o corpo
gira, desliza e se move em uma rede de relações que evidenciam avessos,
memórias, sons, tonalidades, cores, temperaturas e texturas. O corpo age,
percebe, pensa.
A partir das considerações apresentadas acima, é possível dizer que a
“fenomenologia e correntes consideradas pós-estruturalistas têm exercido uma
forte influência no pensamento e na produção de arte, sobretudo a partir de
meados do século XX”. (Brasil, 2016, p.235). Temas e abordagens filosóficas que
priorizam os processos e as relações provocam o interesse de artistas e motivam
o surgimento de procedimentos e propostas que irão superar o espaço da
representação e assumir o movimento e a dinâmica dos eventos.
Na dinamização da pintura, por exemplo, surge a
action paiting
, a
performance
, o
happening
. A pintura aos poucos experimenta novas condições e
se revela como movimento, matéria e presença. Na dinamização da escultura
surge o ambiente, a instalação que reconfigura o espaço e altera a posição do
espectador.
Aliás, o reconhecimento do espectador parece ser uma das condições
fundamentais nesse movimento que articula novas relações de tempo e espaço
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na produção de arte e uma das chaves de acesso a novas possibilidades
investigativas.
A partir das considerações apresentadas acima, é possível dizer que um
campo de caráter efêmero e processual é inaugurado. O espaço ganha, na
produção de arte, novos contornos e uma perspectiva ambiental tratará das
experiências que vinculam corpo, espaço e tempo.
O ambiente - um campo ampliado
A autora Rosalid Krauss, no texto
A Escultura no Campo Ampliado
, de 1979, e
que foi traduzido para o português em 1984, nos apresenta um panorama da arte
- entre 1969 e 1979 - que coincide com um período no qual as categorias se
tornaram mais maleáveis. Esse processo, de acordo com Krauss, fez com que
categorias como pintura e escultura fossem moldadas, esticadas e torcidas,
demonstrando extraordinária elasticidade. Krauss comenta sobre o campo da
escultura:
Nos
ú
ltimos 10 anos, coisas realmente surpreendentes t
ê
m recebido a
denomina
çã
o de escultura: corredores estreitos com monitores de TV ao
fundo; grandes fotografias documentando caminhadas campestres;
espelhos dispostos em
â
ngulos inusitados em quartos comuns; linhas
provisórias tra
ç
adas no deserto (Krauss, 1984, p.129).
8
Este movimento de transformação da escultura coincide com um período de
transição da arte moderna para a arte contemporânea, quando a produção de arte
se desvincula de suportes e espaços de representação. Esse momento presencia
o surgimento de procedimentos investigativos que consideram tempo e espaço
como parceiros dos projetos de criação.
Neste ponto, surgem diferentes termos que tentam dar conta dessa condição
temporal e espacial das propostas de arte. De acordo com a autora Julie H. Reiss
(2001, p.6):
8
Acesso em: 01 out. 21:
https://monoskop.org/images/b/bc/Krauss_Rosalind_1979_2008_A_escultura_no_campo_ampliado.pdf
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Antes do termo "instalação arte" tornar-se parte do vernáculo da arte
contemporânea, havia o termo "Ambiente", que foi usado por Allan
Kaprow, em 1958, para descrever seus trabalhos multimídia do tamanho
de uma sala. A crítica apropriou-se deste termo para descrever uma série
de trabalhos por duas décadas. Em meados dos anos 1970, o termo
"Ambiente", embora ainda popular, se juntou a outros, incluindo "projeto
de arte" e simplesmente "arte temporária".
9
Essa "arte temporária" apresenta os trabalhos como processos e não como
objetos acabados em si e confere ao evento da arte condições que se
comprometem com a ativação e inclusão do espectador, seja de modo direto, a
partir de sua presença física, ou na provocação da sua percepção.
A partir dessas considerações, apresentarei essa condição temporária e
transitória a partir do conceito de ambiente que surge nas perspectivas ambientais
de Richard Schechner e Hélio Oiticica. O termo ambiental, que surge nas propostas
de ambos, coincide com uma concepção na qual:
[...] os fenômenos artísticos se apresentam como potencialidade de
relação, como compartilhamento e como surgimento de pontos de
observação múltiplos e dinâmicos. Um evento sem ponto de fuga, sem
um orientador fixo que garanta o reconhecimento de fórmulas e padrões
instituídos” (Brasil, 2016, p.162).
Richard Schechner, na introdução da edição expandida do
livro Environmental
Theater
, informa que o termo Environmental, usado em seus trabalhos, sobretudo
na década de 1970, vem do conceito de Allan Kaprow, que em 1966 escreveu o
livro Assemblages, Environments e Happenings. “A noção de Environmental no
contexto de Kaprow se relaciona com o mundo da pintura e é a partir daí que
Schechner irá colocar tal noção em diálogo com a perspectiva teatral” (Brasil, 2016,
p.163). O autor faz ainda algumas considerações sobre a sua concepção de
ambiental:
Os significados teatrais e ecológico dos ambientes não são antitéticos.
Um ambiente é o que envolve, sustenta, envolve, contém, aninha. Mas ele
é também participativo e ativo, uma concatenação de sistemas vivos. Em
termos de planeta terra, o ambiente é o lugar onde a vida acontece. O
9
Before the term “Installation art” became part of the vernacular of contemporary art, there was the term
“Environment”, which was used by Allan Kaprow in 1958 to describe his room-size multimedia works. This
term was picked up by critics and used to describe a range of works for two decades. In the mid-1970s, the
term “Environment”, while still popular, was joined by others, including “project art” and simply “temporary
art”. (Tradução nossa)
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ambiente da terra é afetado por seres vivos (bem como por eventos
naturais não vivos, como erupções vulcânicas, tempestades, inundações,
etc.) (Schechner, 1994, p.5).
10
O conceito de teatro ambiental, de Schechner, implica uma série de noções
que são estruturadas a partir de um texto seu de 1967,
Six Axioms for
Environmental Theater
, Seis Axiomas para um Teatro Ambiental, que foi
republicado no livro Environmental Theater, em 1994. Esse livro apresenta uma
reflexão sobre o teatro ambiental a partir de temas como espaço, participação,
nudez, performer, xamã, terapia, texto, grupos e diretor.
Das orientações previstas em seu texto de 1967 e das noções que ele adiciona
a sua edição mais recente, destaco considerações sobre o espaço e sobre a
participação.
Uma das bases principais do conceito de
Environmental Theater
, de
Schechner, é a rearticulação espacial a partir da afirmação de relações e
perspectivas que geram encontros e fusões da cena com o espectador. Como
comenta o autor: “Em uma palavra, ambientes ecológicos ou teatrais podem ser
imaginados não como espaços, mas como participantes ativos em sistemas
complexos de transformação.” (Schechner, 1994, p.5).
11
Schechner chama a
atenção para a observação do fenômeno teatral sob uma perspectiva ecológica na
qual diferentes agentes de um sistema se relacionam e se transformam.
O autor afirma ainda que o
Environmental Theater
trata de aspectos da
direção teatral, da composição de trabalhos, da organização do espaço,
da formação ou termino de grupos e é também um manual de
treinamento para o performer, ou o atuante, baseado em práticas
corporais de relaxamento, respiração e produção de sons (Brasil, 2016,
p.164).
10
The theatrical and the ecological meaning of environments are not antithetical. An environment is what
surrounds, sustains, envelope, contains, nests. But it is also participatory and active, a concatenation of living
systems. In terms of the planet earth, the environment is where life happens. The earth’s environment is
affected by living beings (as well as by non-living natural events such as volcanic eruptions, storms, floods,
etc.). (Tradução nossa)
11
In a word, environments ecological or theatrical can be imagined not only as spaces but as active players
in complex systems of transformation. (Tradução nossa)
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No texto “Six axioms for Environmental Theater”, Schechner descreve os seis
axiomas:
[...] o primeiro se refere ao evento teatral como um conjunto de
negociações relacionadas; o segundo diz que todo o espaço é aproveitado
pela performance; o terceiro afirma que o evento teatral pode acontecer
tanto em um espaço totalmente modificado quanto em um espaço que
é “fundado”; no quarto Schechner diz que o foco é flexível e variável; o
quinto é sobre os elementos que constituem a produção teatral e neste
axioma o autor diz que todos os elementos falam sua própria língua; o
sexto e último axioma afirma que o texto não deve ser nem o ponto de
partida e nem o objetivo de uma produção e que é possível que não exista
texto verbal (Brasil, 2016, p.164).
Com esses seis axiomas Richard Schechner apresenta um panorama daquilo
que define a sua noção de um teatro ambiental. Este texto, que foi escrito cinco
anos antes de Schechner terminar o livro “Environmental Theater”, foi a sua
primeira investigação do que viria a ser a sua noção de teatro ambiental. Os
aspectos destacados pelo autor, nesse texto, dão ênfase às relações ativas entre
os elementos que constituem as suas abordagens. Schechner explica:
Nem ambientes ecológicos nem performances são passivos. Eles são
agentes de interação em eventos que de modo orgânico ocupam
completamente espaços vivificados. O ambiente da performance é uma
"posição" no sentido político, um "corpo de conhecimento" no sentido
acadêmico, um " lugar verdadeiro", no sentido teatral. Assim, encenar
uma performance "ambientalmente" significa mais do que simplesmente
mover-se para fora do proscênio ou para fora da arena. Uma
performance ambiental é aquela em que todos os elementos ou partes
que compõem a performance são reconhecidos de modo vivo. "Estar
vivo" é mudar, desenvolver, transformar; ter necessidades e desejos; até
mesmo, potencialmente, adquirir, expressar e usar a consciência
(Schechner, 1994, p. 5).
12
No segundo axioma, que aborda diretamente o espaço, o conceito de
ambiental proposto por Schechner fica claro quando ele fala sobre a superação
12
Neither ecological nor performance environments are passive. They are interactants in events organically
taking throughout vivified spaces. A performance environment is a “position” in the political sense, a “body
of knowledge” in the scholarly sense, a real place” in the theatrical sense. Thus, to stage a performance
“environmentally” means more than simply to move it off of the proscenium or out of the arena. An
environmental performance is one in which all the elements or parts making up the performance are
recognized alive. To “be alive” is to change, develop, transform; to have needs and desires; even, potentially,
to acquire, express, and use consciousness. (Tradução nossa)
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de divisões entre a área de atuação e a área do espectador. Um espaço se
entrelaça no outro formando uma ampla área de trocas e interações.
Aqui as considerações de Schechner sobre um teatro ambiental se
aproximam das questões colocadas nos experimentos de Hélio Oiticica.
Em 1954, Oiticica inicia estudos de pintura e desenho e escreve seu
primeiro texto sobre artes plásticas. A partir daí textos e reflexões
acompanharão a sua produção. Participa do Grupo Frente em 1955 e 1956.
Em 1957, inicia suas pinturas geométricas de guache em cartão, que nos
anos 1970, ele dará o nome de Metaesquemas. Segundo Oiticica, essas
pinturas geométricas já apresentam o conflito entre o espaço pictórico e
o espaço extra-pictórico, o que o levou a superação do quadro como
suporte da pintura (Brasil, 2016, p.168).
A partir dos seus trabalhos conhecidos como
Metaesquemas
, que foram
criados em um período no qual Oiticica ainda investigava estruturas geométricas,
o artista empenhar-se-á na criação de propostas espaciais e instalativas que
descolarão de uma vez por todas as linhas e as cores dos suportes tradicionais da
pintura e do quadro.
Com a série
Invenções
(1959-1962), pequenos quadrados monocromáticos, o
artista inicia a transição da tela para o espaço antes reservado ao público. E em
1959 apresenta as suas primeiras obras tridimensionais: os
Bilaterais
- chapas
monocromáticas pintadas suspensas por fios de nylon - e os
Relevos Espaciais
.
Em 1960, Hélio Oiticica cria os primeiros
Núcleos
, formados por placas de
madeira coloridas e geométricas suspensas que permitem a interação do
espectador. A partir de 1961, Oiticica cria Os
Penetráveis
, que são composições de
grandes chapas de madeira cromáticas que podem ser penetradas e percorridas
pelos corpos dos espectadores. Os
Penetráveis
são uma espécie de radicalização
dos
Núcleos
por ampliarem as possibilidades de interação entre obra e
espectador. Em ambos os trabalhos, o deslocamento do espectador e a
movimentação das placas integram o acontecimento da obra.
Com os
Núcleos
e os
Penetráveis
as manifestações ambientais passam
a fazer parte de um programa no qual a participação do espectador é
efetivada em experiências físicas e sensoriais com cores e movimentos.
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As relações plásticas e físicas que são criadas confirmam os
pressupostos ambientais propostos por Oiticica (Brasil, 2016, p.165).
As experiências ambientais de Hélio Oiticica coincidem com a sua produção
a partir da década de 1960, quando o artista abandona o espaço bidimensional e
passa a propor o espaço como ação. Neste contexto de criação, o espectador
aparece como participante ativo.
Em 1963 são criados
Os Bólides
, as primeiras estruturas manuseáveis através
das quais o espectador é convidado à experiência da cor como matéria e estímulo
sensorial.
“Os primeiros
Bólides
são recipientes que contêm pigmentos de diferentes
cores. Surgirão, a seguir, variações de
Bólides
, também chamados de Transobjetos,
compostos por diferentes materiais, como conchas e latas” (Brasil, 2016, p.171).
A estrutura Bólide reúne a matéria e estimula a pecepção do espectador para
aquilo que é conhecido e que está disperso no mundo. “Pode-se dizer que os
Bólides são estruturas compostas por elementos e materiais que condensados ou
agrupados fundam diferentes percepções sobre o estar das coisas” (Brasil, 2016,
p.171).
De acordo com o filósofo Celso Favaretto (2000), “é possível identificar duas
fases na obra de Oiticica: uma mais visual, que tem início em 1954, na arte
concreta, e vai até a formulação dos Bólides, em 1963, e outra sensorial, que segue
até 1980”.
Dando continuidade à criação dos
Bólides
, Oiticica concebe, em 1964, o
primeiro
Parangolé
, que viria a ser a primeira capa como proposição da
experiência da cor no corpo. O
Parangolé
é uma espécie de capa colorida
que deve ser vestida pelo participante. Vestir o
Parangolé
e dançar
constituem princípios desta proposição que prevê a experiência do corpo
em movimento. O ato corporal como ação formadora e transformadora
da percepção. Os
Parangolés
são como pinturas ou esculturas vivas e
ambulantes (Brasil, 2016, p.172).
Bólides
e
Parangolés
são proposições ou estruturas que provocam
interferências no campo da percepção. Mais do que criar novos objetos, Oiticica
coloca em prática um projeto estético.
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Para Helio Oiticica, o ponto central daquilo que ele chama de “arte ambiental”
está no ato do espectador e no uso de diferentes meterialidades e meios que
incentivam a participação do sujeito. A autora Angela Varela Loeb comenta:
O Parangolé passará a designar um programa no qual toda a produção
daquele período se insere; ele passará a ser sinônimo de Programa
Ambiental. Isto porque é por meio dele que "cor, estruturas, sentido
poético, dança, palavra, fotografia" e a ação do participante se fundem,
tornam-se indissociáveis uns dos outros, em prol da "totalidade-obra". O
ambiental é uma visão ampliada do artístico que faz uso irrestrito de
meios e linguagens e tem ampla abertura às possibilidades participativas
do sujeito (Loeb, 2011, p.57).
13
Em 1967, o destaque da sua produção é o trabalho
Tropicália
, considerado o
apogeu de seu programa ambiental e apresentado na exposição Nova Objetividade
Brasileira, no MAM/RJ.
Tropicália
é um labirinto de madeira, que ao ser percorrido
pelo espectador, coloca-o em contato direto com elementos naturais, como areia,
plantas etc.
“Oiticica transita da teoria do Não Objeto, de Ferreira Gullar, que questiona a
dissolução do objeto de arte para a criação em um espaço coletivo que integra e
solicita a participação” (Brasil, 2016, p.173). Percebe-se que, aos poucos, o
espectador é convidado a participar de ações que fundamentarão as suas
propostas.
Propositor de experiências que farão parte de um projeto ambiental, Oiticica
ênfase aos aspectos dinâmicos e temporais quando promove alterações
estruturais que libertarão seus trabalhos da dependência de suportes e
configurações espaciais que separam a obra do entorno. Uma obra ambulatória e
em constante diálogo com o meio fundamentará as propostas de Hélio Oiticica. O
espectador é convocado à ação ao mesmo tempo em que o artista pensa a “obra”
como o “mundo”.
Helio Oiticica fala sobre o surgimento de novas condições estéticas quando
seus trabalhos se desdobram pelo espaço e provocam interações entre diferentes
13
Acesso em: 10 ago. 2021: https://www.scielo.br/j/ars/a/P5hDGHRTbV8w4YpnBtG96tK/?lang=pt
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elementos. Isto marca uma das principais características do que serão suas obras
ambientais. De acordo com Oiticica (1986, p.27):
Como está tudo tão claro agora: que a pintura teria de sair para o espaço,
ser completa, não em superfície, em aparência, mas na sua integridade
profunda. Creio que partindo desses elementos novos poder-se-á
levar adiante o que começaram os grandes construtores do começo do
século (Kandinsky, Malévitch, Tatlin, Mondrian etc.), construtores do fim
da figura e do quadro, e do começo de algo novo, não por serem
“geométricos”, mas por que atingem com maior objetividade o problema
da não-objetividade.
Celso Favaretto (2000) comenta ainda o projeto ambiental de Oiticica, que é
visto pelo autor como uma espécie de antiarte no que se refere à negação de
padrões estruturais e estéticos que determinavam a noção de arte. “A antiarte
ambiental é consequência da expansão das operações construtivas ao espaço das
vivências e exemplo da nova situação estética” (Favaretto, 2000, p.123).
Obra ambiental é uma noção abordada neste artigo com o intuito de
favorecer a observação da produção em arte sob uma perspectiva ampla e
complexa. Neste contexto, proponho um olhar para a cena como ambiente, como
espaço que é produzido no cruzamento de forças e potencialidades, de terceiras
e quartas dimensões nas quais público e obra se entrelaçam, o que extrapola a
ideia da cena como imagem, como plano bidimensional, como tela.
A cena como campo ampliado: considerações sobre o ambiente
Levando-se em conta as perspectivas de ambiente propostas por Schechner
e Hélio Oiticica, é possível afirmar que a produção de arte assume novas condições
temporais e espaciais na elaboração de suas estruturas e dinâmicas. O espaço
assume o entorno, incorpora os estímulos, acontece na interação entre elementos.
Sob esta perspectiva, o corpo do artista da cena ou mesmo o do espectador
se torna um dos principais focos de interesse da produção de arte. Reconhecer o
corpo como lugar da percepção, escuta e produção de conhecimento é
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experimentar espaços mais sensíveis para a elaboração de gestos, narrativas,
fábulas e escritas que percorrem trajetos menos previsíveis.
A cena no campo expandido surge como ambiente, formação espacial e
processo aberto que provoca o movimento, que solicita uma presença ativa do
corpo do artista. O corpo, neste ambiente, negociará com o meio a partir da
descoberta de trajetos, matérias e temporalidades. Uma cena ampliada é
orientada pela produção de experiências sensíveis, imagéticas e fenomenológicas.
Essa perspectiva ambiental está entrelaçada com uma qualidade de
atenção que é produzida na relação consciente com o entorno e não na
afirmação ou na insistência em se relacionar de acordo com alguma regra
ou imposição que leve à construção de narrativas pré-estabelecidas. Os
contatos produzem qualidades e forças que não podem ser mensuradas
de antemão. O corpo, neste contexto, precisa se aventurar e descobrir
sentidos a partir de impactos que atravessam e ativam a percepção
(Brasil, 2016, p.250).
As noções de ambiente, elaboradas por Schechner e Oiticica, ampliam as
possibilidades de observação da cena ao apresentarem uma perspectiva espacial
expandida e livre de limites impostos por convenções que impunham à prática da
arte um espaço de representação definido. A ampliação de possibilidades de
relação entre corpo, espaço e tempo propostas por Oiticica e Schechner coincide
com procedimentos apresentados pela prática do
Viewpoints
em processos de
criação.
Neste artigo localizo a prática do
Viewpoints
em um contexto de mudanças
de paradigma que alteraram profundamente o modo de se pensar e fazer arte. A
prática, que nasce na dança, é absorvida pela prática teatral e pela performance
ao mesmo tempo em que estimula processos de criação em diferentes contextos.
O surgimento do Viewpoints coincide com um momento no qual a arte se lança
ao desafio de estabelecer relações mais diretas e sensíveis com o mundo.
Neste sentido, considero importante trazer considerações que surgiram em
práticas de Viewpoints. Quais os procedimentos metodológicos presentes nas
práticas do Viewpoints? Como que artistas de cena percebem, em seus próprios
corpos, orientações propostas pelo
Viewpoints
? Como descrevem essas
experiências sensíveis que engajam corpo e espaço em dinâmicas temporais? Para
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responder a essas perguntas, trarei, a seguir uma contextualização do
Viewpoints
,
considerações sobre a metodologia, bem como me lançarei ao desafio de
compartilhar algumas dessas impressões do ponto de vista da prática.
Viewpoints
, práticas e reflexões
No livro
The Viewpoints Book
as autoras e diretoras de teatro americanas
Anne Bogart e Tina Landau (2005) apresentam os
Viewpoints
como processo
aberto ou estímulo para investigações que ultrapassam qualquer rigidez técnica.
Os Viewpoints são propostas que preveem adaptações por parte daqueles que se
lançam ao desafio da criação. Artistas da cena se apoiam nesse conjunto de
possibilidades e estímulos que compõem os
Viewpoints
em processos
investigativos nos quais a tônica está na articulação entre corpo, espaço e tempo.
Os
Viewpoints
são inspirados em experimentações que ampliaram as
possibilidades da produção de arte. Bogart e Landau (2005) comentam sobre esse
momento de transformação e abertura, no contexto dos Estados Unidos, durante
os anos de 1960
14
, destacando os movimentos sociais, políticos e artísticos que
alteraram o modo como os artistas passariam a pensar sobre os seus processos,
sobre o lugar do espectador e a função da arte no mundo.
Neste contexto, é importante mencionar o grupo de artistas da
Judson
Church Theater
na elaboração de alternativas para os processos de produção de
arte. Pintores, compositores, artistas da dança e outros faziam parte desse coletivo
que tentava liberar a prática da arte de limites e normas instituídas.
Diante deste cenário de aberturas e transformações, acontecem inúmeros
experimentos que pautam suas práticas em estruturas não hierárquicas e a
utilização do "tempo real", como pontuam Bogart e Landau (2005). No âmbito da
produção em dança, o jogo entre elementos no tempo e no espaço em que se dá
a ação se torna mais importante do que a criação a partir de conceitos e categorias
fixas. Nesta condição, artistas da dança irão experimentar a interação com
14
As autoras citam como exemplo os protestos contra a guerra do Vietnã, as marchas por direitos civis e o
nascimento do expressionismo, pós-modernismo e minimalismo.
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diferentes espaços e materialidades. A dança acontece em diferentes
circunstâncias, em telhados, jardins e na suspensão do corpo no ar, por exemplo.
Quando as regras mudam, o campo de ação da arte se expande e novos pontos
de vista surgem, reposicionando o espectador e alterando a dinâmica de todo o
sistema.
Nesse caso, a improvisação se afirma como uma importante metodologia que
ampliará as possibilidades de criação. E é a partir desta perspectiva que Mary
Overlie, dançarina e coreógrafa que atuou no Judson Church, criará os "Six
Viewpoints: espaço, forma, tempo, emoção, movimento e história", que
influenciarão artistas de diversas gerações.
A abordagem de Overlie foi logo compreendida por Anne Bogart e, mais tarde,
por Tina Landau, como um importante recurso aplicável ao teatro para a criação
de movimentos e dinâmicas para a cena (Bogart e Landau, 2005). A partir de
práticas e experimentações, Bogart e Landau, expandiram os
Viewpoints
de
Overlie, criando nove
Viewpoints
físicos (Rela
ç
ão Espacial, Resposta Cinestésica
Sinest
é
sica, Forma, Gesto, Repeti
çã
o, Arquitetura, Andamento, Dura
çã
o e
Topografia) e seis vocais (Altura, Din
â
mica, Acelera
çã
o/Desacelera
çã
o, Sil
ê
ncio e
Timbre), que estruturam as práticas de improvisação em relações de tempo e
espaço.
Anne Bogart, em sua abordagem dos
Viewpoints
, enfatiza o espaço, as
relações e o modo como os artistas respondem aos estímulos espaciais. A
materialidade desses espaços é ressaltada em detrimento da construção de
espacialidades fictícias.
Os artistas devem explorar fisicamente a arquitetura e se relacionar com
o entorno de modo atento e consciente. A atenção aos detalhes e às
frestas que compõem o espaço ativam relações físicas nas quais os mais
variados agentes interpelam o campo perceptivo do artista. Os exercícios
tendem a provocar o olhar para novas orientações e possibilidades de
interação com elementos e qualidades que se apresentam nos demais
corpos que transitam pelo espaço e nos aspectos arquitetônicos que
evidenciam materialidades e a articulação entre formas e traçados
espaciais. O corpo é lugar de escuta e passagem que trepida ao interagir
com o meio (Brasil, 2016, p.250).
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O que os
Viewpoints
propõem é o exercício da ação que gera contatos e
diálogos com o entorno. A superação dos padrões de resposta que determinam
muitas vezes o modo como lidamos com estímulos é uma das questões
fundamentais abordadas pela prática dos
Viewpoints
.
Estar atento ao percurso, aos desdobramentos do corpo no espaço e aos
estímulos ambientais favorece a construção de experiências singulares e até
mesmo fenomenológicas nas quais os percursos estão sempre em transformação.
Beth Lopes tece considerações sobre esse assunto:
Para entender os
Viewpoints
, assim como na Fenomenologia, deve-se
reconhecer o mundo em que estamos inscritos antes de qualquer análise
ou reflexão. Do quarto andar da janela onde acontecem os workshops da
SITI Company os performers são estimulados a olhar para a rua e a
reconhecer as relações intersubjetivas que se articulam a partir daquele
recorte. Para onde vão/vem, como vão, como passam pelos outros, pelos
carros, pelos prédios, pelas vitrines? Como andam e por que param? O
que olham? Como são: a rua, os prédios, as janelas (dentro e fora), a
arquitetura? A redescoberta do tempo/espaço e seus entrelaçamentos,
chave das improvisações, constitui a experiência destes elementos em
seu próprio corpo e são a fonte de toda composição discursiva. Esta
descoberta vivencial e originária fundamentada na vida constitui o
conhecimento dos Viewpoints, uma pedagogia que faz brotar do corpo
inesgotáveis combinações de ações e reações para além do senso
comum (Lopes, 2010, p. 9).
Neste contexto, a sensibilização do olhar, a atenção, a escuta e a abertura
são condições que tendem a gerar um campo de forças que provoca relações.
Essa abordagem coloca artistas da cena em “uma dimensão que depende do
modo de “estar-no-mundo”, do quanto se está impregnado por ações constituídas
do des-aprender, perceber e reconhecer o mundo vivido que atravessa o seu corpo
e o do outro” (Lopes, 2010, p.11).
No que se refere à importância da experiência e da percepção nas práticas
dos
Viewpoints
, compartilharei, a seguir, uma breve narrativa elaborada a partir de
sensações e impressões que surgiram das relações diretas do meu corpo com
elementos e condições destacadas por algumas orientações dos
Viewpoints
de
espaço e tempo. Destaco esta experiência como possibilidade de acesso às
elaborações teóricas sob o ponto de vista da prática, da experiênca. Como que o
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meu corpo se relaciona com o meio? Como amplio a minha percepção na relação
com o entorno? Como assimilo e dialogo com os estímulos? Como experimento
uma perspectiva ambiental?
Embora a prática do
Viewpoints
foque, na maioria das vezes, em propostas
coletivas e na "escuta extraordinária", o que amplia as possibilidades de relação
em dinâmicas de grupo, proponho aqui um olhar para as sensações que me
ocorreram enquanto investigava sozinha, em uma sala de ensaio, os seguintes
Viewpoints de tempo e espaço: Resposta Cinestésica e Arquitetura
15
.
Resposta cinestésica
: Reação espontânea. Movimento impulsivo. Como o
corpo reage aos estímulos do meio? Resposta rápida do corpo. Como os
sentidos reagem aos estímulos de modo instantâneo? O espaço estimula os
sentidos?
Arquitetura:
Foque no ambiente físico no qual você está atuando e perceba como a
consciência desse espaço afeta o movimento. Como explorar a arquitetura para
além do espaço do palco?
Perceba as paredes, o chão, o teto, os móveis, as janelas, as portas. Quais as
texturas dos materiais ao seu redor? São de madeira, metal, tecido? E como é a
luz? Como seu corpo interage com as zonas mais claras e com as sombras? As
diferentes cores no espaço alteram a sua relação com esses elementos? O seu
corpo produz sons na relação com a arquitetura? Por exemplo, quando você toca
a parede com o seu corpo algum som é produzido?
15
As orientações foram extraídas do livro The Viewpoints Book (2005), de Anne Bogart e Tina Landau e
apresentadas aqui de forma adaptada.
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O corpo ambiente
16
Investigo a cena, um espaço formado por linhas paralelas, círculos,
pontilhados oblíquos, formações instáveis, horizontais e caóticas que interligam
pontos escorregadios como desenhos em uma folha de papel de arroz.
Compartilho olhares, temperaturas, alterações atmosféricas e ambientais.
Desenho.
No intervalo entre um deslocamento e outro, o silêncio faz oscilar
temperaturas, colorações e uma respiração profunda na qual ouço ecos de
movimentos entre os meus órgãos. A matéria se expõe de tal modo que pedaços
de mim somem.
O chão é a superfície que negocia diretamente com o meu peso. A partir
desse encontro meu corpo esboça as primeiras linhas de contato através das
quais percorrerei a arquitetura bamba ao meu redor.
Crio suspensões para que a percepção se movimente com mais facilidade.
Deparo-me com o susto de não estar sozinha.
Janela, paredes e cadeiras me olham.
Compartilho sensações e variações que modificam a altura da fala.
Ouço ruídos cheios de imagens e trepidações que modificam o ar. Devoro aos
poucos a redondeza, enquanto me sento em uma cadeira vermelha no canto da
sala.
O intervalo dinâmico entre a pele e o entorno, o toque de um interfere no
outro. Sou o lugar que reage a minha pele, da mesma forma que altero as
proporções das geometrias dos caminhos que percorro. Uma dinâmica que não
começa em mim e nem no ambiente, mas que está na intersecção, no ponto de
contato que aciona múltiplas possibilidades de existir e perceber o mundo.
Uma dança com objetos, paredes, muros e janelas. Paro com os pés
descalços para deixar que a temperatura do solo toque os meus ossos. Resíduos
de gerações inteiras, passos e corpos que se diluem com o tempo. Habito lugares
em transição, prédios e estruturas efêmeras, e é nessas passagens que meu corpo
16
Experiência realizada no período de produção da tese. Ver: Brasil, 2016.
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se dissolve em linhas, pontilhados e intervalos que se sobrepõem e ativam vetores
e forças incisivas que me impulsionam para lugares desconhecidos, que me
apresentam camadas e intensidades que me fogem aos olhos. Esse olhar que
desfoca os pontos fixos de observação cria pensamentos, pontos de vista
improváveis, transitivos e dinâmicos que compõem lugares porosos em constante
construção.
As leis que se aplicam às flutuações e indeterminações espaciais dizem
respeito às interações entre corpo e espaço e alargam a minha percepção para
novas condições ambientais, para novos modos de conhecer e me relacionar com
o mundo.
A matéria frágil e porosa do meu corpo se depara com instabilidades
temporais, com movimentos que atualizam e modificam constantemente o modo
que meus olhos devoram e são devorados por coisas, pessoas e estímulos.
A instabilidade dos eventos, a constatação da impermanência e dos fluxos
migratórios, que inventam e transformam o ambiente constantemente, levam-me
a suspeitar de verdades, de pontos de vista rígidos, de valores absolutos e de
dualidades que me colocam dentro ou fora, à direita ou à esquerda e em cima ou
embaixo.
Um corpo não se move no espaço porque ambos são instâncias processuais
e agentes em um processo complexo de somatórias, sobreposições,
reorganizações e desaparecimentos.
Considerações finais
Se as vanguardas artísticas do início do século XX, principalmente,
impulsionaram reflexões e propostas que lançaram o evento artístico a
experiências múltiplas, sensoriais e dinâmicas, o que vemos hoje é uma espécie
de reverberação dessas iniciativas que aparecem no livre trânsito e nos intervalos
entre suportes, linguagens e perspectivas.
Quando a produção de arte se desvincula de suportes e espaços restritos de
representação, percebe-se o surgimento de procedimentos investigativos que
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consideram tempo e espaço como elementos fundamentais em projetos de
criação, como verificamos em abordagens de Schechner, Oiticica e Bogart.
Trazer as noções de ambiente e as perspectivas ambientais elaboradas e
experimentas por Schechner e Oiticica, em diferentes contextos, amplia as
possibilidades de compreensão das dinâmicas apresentadas pelos
Viewpoints
. O
corpo, nas experiências propostas pelos Viewpoints, e do ponto de vista ambiental,
joga com estímulos, dialoga com o entorno e constrói relações temporárias.
A cena, neste contexto, se amplia, e é vivenciada a partir de qualidades que
se manifestam no espaço, nas relações entre moléculas, coisas, objetos, corpos e
arquiteturas. Artistas da cena experimentam princípios físicos, matemáticos e
equações em aberto que geram um emaranhado complexo no qual estão sujeitos
a oscilações, desvios, quedas, flutuações e demais perturbações ambientais.
Não ocupamos o centro do quadro e tão pouco nossas trajetórias são
retilíneas, previsíveis e organizadas por pontos de fuga estáveis e
duradouros. Fazemos parte de um sistema dinâmico e instável, observar
suas características é voltar a atenção para princípios que promovem
encontros, dissoluções e o surgimento do novo (Brasil, 2016, p.34).
Cena ampliada é campo temporário que surge e desaparece.
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
Urdimento.ceart@udesc.br