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Odisseia dos sentidos
,
um espetáculo de luz e fogo
Cristina Alves de Macedo
Fabio Dal Gallo
Para citar este artigo:
MACEDO, Cristina Alves de; GALLO, Fabio Dal.
Odisseia
dos sentidos,
um espetáculo de luz e fogo.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1
n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0207
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, um espetáculo de luz e fogo
Cristina Alves de Macedo; Fabio Dal Gallo
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
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, um espetáculo de luz e fogo
Cristina Alves de Macedo
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Fabio Dal Gallo
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Resumo
Neste artigo, argumenta-se sobre o processo que levou à montagem do
Odisseia
dos sentidos
, um espetáculo de circo que estreou em 2011 e foi remontado três
vezes para, enfim, constituir um grande
show
de malabarismo de luz e fogo. A
análise descritiva expõe o ponto de vista de dois artistas sobre um processo de
criação em circo, que focalizou a técnica da manipulação de objetos. No início, a
obra se destacou por seu caráter principalmente performático, mas posteriormente
foi recebendo novas nuances estéticas, num processo de construção e direção
coletiva que consolidou uma dramaturgia que afluiu não apenas o olhar dos artistas,
mas também do público que assistiu as apresentações em diferentes cidades da
Bahia, no Brasil e na Europa.
Palavras-chave: Circo. Processo de criação. Malabarismo. Fogo.
Odyssey of the Senses
, a show of light and fire
Abstract
This article discusses the creative process of the performance of the
Odisseia dos
sentidos
, a circus show that debuted in 2011 and has been reassembled several times
to finally constitute a big juggling show of lights and fire. The descriptive analysis
exposes the point of view of two artists about a circus creation process, and focus
in the object manipulation technique. In the first moment, the work was
predominantly performative character, but later it received new aesthetic nuances,
in a process of collective direction and construction, which allowed the creation of
an dramaturgy that showed the point of view of artists and the public that watched
the presentations in different cities in Bahia, Brazil and Europe.
Keywords
: Circus. Creation Process. Juggling. Fire.
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia -
PPGAC/UFBA. Mestrado em Estudo de Linguagens pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB e Graduação
em Pedagogia pela Universidade Católica do Salvador (UCSAL). johnecristina@yahoo.com.br
http://lattes.cnpq.br/9053164527802280 http://orcid.org/0000-0003-4113-1675
2
Pós-doutorado pela Universidade de Pádua- Itália (2018). Doutorado em Artes Cênicas pela Universidade
Federal da Bahia (2009). Mestrado em ciências sociais. Graduação em economia política pela Alma Mater
Studiorum Universidade de Bolonha - Itália. Professor Associado II do Departamento de Técnicas do
Espetáculo da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, é docente permanente do Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da mesma Universidade. Fabio.gallo@ufba.br
http://lattes.cnpq.br/8184463550898041 https://orcid.org/0000-0002-3664-3118
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, um espetáculo de luz e fogo
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Odisea de los sentidos
, un espectáculo de luz y fuego
Resumen
En este artículo se analiza el proceso creativo de la representación de la
Odisseia
dos sentidos
, espectáculo de circo que debutó en 2011 y que ha sido reensamblado
varias veces para constituir finalmente un gran espectáculo de malabarismo de
luces y fuego. El análisis descriptivo expone el punto de vista de dos artistas sobre
un proceso de creación circense y se centra en la técnica de manipulación de
objetos. En un primer momento, la obra fue de carácter predominantemente
performativo, pero luego recibió nuevos matices estéticos, en un proceso de
dirección y construcción colectiva, en una dramaturgia que mostró el punto de vista
no sólo de los artistas, sino también del público que asistió a las presentaciones en
diferentes ciudades de la Bahía, del Brasil y de Europa.
Palabras clave
: Circo. Proceso de Creación. Malabares. Fuego.
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Odisseia dos sentidos
na performance do circo
3
O circo por muito tempo foi marcado majoritariamente pela oralidade, sendo
a transmissão de saberes passada de geração em geração pelos mais velhos e
membros da mesma família, não sendo alheia a existência de um exíguo número
de escritos que remetem a determinados assuntos neste campo, mesmo que seja
visível o crescimento de pesquisas e publicações voltadas para a área.
Ademais, essa carência se aprofunda ao pensar em reflexões a respeito de
processos criativos de espetáculos de circo e, diante disso, considera-se plausível
também reconhecer que são raros os artistas de circo que escrevem ou
escreveram sobre suas obras e seus processos de criação, sendo também muito
poucos os diretores de espetáculos de circo ou ensaiadores circenses que
escrevem ou escreveram sobre as obras de circo que dirigiram.
Pode parecer redundante enfatizar a escassez de publicações sobre este
tema no âmbito das artes cênicas, mas foi justamente esse o argumento que
estimulou o início do estudo, que se constitui como uma pesquisa teórico-prática
na área do circo.
É importante marcar, que este texto foi redigido por dois pesquisadores da
área das artes cênicas, que também atuam como artistas e na direção de
espetáculos de circo. Assim sendo, a partir de um olhar adjacente e de dentro,
neste artigo são descritas e analisadas as etapas do processo de criação que
culminou no espetáculo
Odisseia dos Sentidos.
Falar sobre a montagem de um espetáculo participando como artista e na
direção desse mesmo espetáculo, de um lado, pode carregar a descrição e o
detalhamento de partes importantes da obra de muita subjetividade, sem
constituir um olhar destacado ou, quiçá, objetivo do todo. Entretanto, do outro
3
Revisão ortográfico e gramatical do artigo realizada por: Cristina Alves de Macedo - Mestre em Estudos de
Linguagens pelo Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, da Universidade do Estado da Bahia
PPGEL/UNEB.
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lado, essa proximidade corrobora uma postura que possibilita evidenciar
propostas metodológicas seguidas, problemas vivenciados e caminhos partilhados
a partir de uma relação de intimidade que desvela os acontecimentos, seja no
plano artístico-relacional que procedimental, que propiciaram a construção e a
consolidação do espetáculo em sua versão final.
À vista disto, é importante marcar que as considerações dos artistas aqui
apresentadas buscam se aproximar de maneira crítica, para tornar “legível e
revelar alguns dos sistemas responsáveis pela geração da obra. Essa crítica refaz,
com o material que possui, a gênese da obra e descreve os mecanismos que
sustentam essa produção” (Sales, 2004, p.12-13). Destarte, a análise não recai sobre
o produto final, mas sobre o processo que levou à sua constituição, dando luz aos
diferentes olhares que participaram dessa composição, que envolveu os artistas,
num processo de criação coletiva, e o público, numa construção colaborativa, e
culminou em um espetáculo de circo de grande estímulo sensorial.
O
Odisseia dos Sentidos
foi concebido, inicialmente, como um espetáculo
circense performático, para ser apresentado em festivais de música eletrônica,
que são contextos permeados não apenas por música, mas por diferentes tipos
manifestações e criações artísticas. Além da exibição de
disc jockey
(DJ), de vídeo
jockey
(VJ), de artistas plásticos que se ocupam das decorações, projeções e
instalações multimídia e interativas, esses espaços suportam diferentes tipos de
apresentações ao vivo que incluem a dança, o teatro, o circo, a performance, em
um ciclo de espetáculos e cenas que dialogam com os circuitos e manifestações
globais e contemporâneas, ao passo que revelam elementos interligados com o
imaginário, a criatividade, a ancestralidade, o ritual.
No evento ritual, os objetos, os símbolos e o espaço resguardam um tom
especial em relação aos objetos comuns [...]. Sua natureza diferenciada e
sua função territorial trabalham num recorte espaço-temporal que se
difere das marcações cotidianas. O corpo se adapta a estas novas
funções e temporalizações da espacialidade ritual, transportando-se e
entrando em ressonância (Néspoli, 2004, p.4).
Observa-se que, nesses contextos, a presença do circo é habitual e
constantemente mais recorrente em relação às outras linguagens das artes
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cênicas, predominância que pode ser justificada tanto pelo caráter ritualístico de
sua
performance
, que envolve a demonstração de virtuosismo e habilidade dos
artistas, quanto do risco presente nas técnicas circenses, o qual pode ser
simbólico, mas também “real e vital, colocando em causa a integridade física do
artista. A vida é colocada em jogo na cena, e a morte [...] é verdadeira e
frequentemente convocada” (Wallon, 2009, p.25).
O risco, assim, aparece não apenas para evidenciar o caráter ritualístico que,
como indicado por Almeida (2008), esteve presente por longo período na prática
das técnicas circenses da antiguidade, mas, inclusive, para criar uma tensão no
público, se distanciando da representação, na medida que se relaciona com o real,
pois:
Quando o atirador de facas atua, ele o está “representando”, não está
fazendo nenhum personagem. Ele está praticamente atuando no real
time. Talvez o risco nesse caso é que esteja trazendo mais “realidade”,
mais “vida”, para esta cena (na medida em que se trabalha com o
imprevisto) (Cohen, 2002, p.67).
Assim, enquanto o DJ anima uma pista de dança com suas músicas, o VJ
está promovendo diferentes elementos visuais em projeções de desenhos e
hologramas, abstratos ou realistas, nesta mesma pista, ou em outro palco
próximo, onde são apresentadas diferentes cenas e espetáculos ao vivo. A
peculiaridade desses espaços firma-se no fato que, geralmente, os shows
acontecem de maneira compartilhada, pois diferentes artistas de diferentes áreas
atuam de modo simultâneo, formando um grande espetáculo.
É justamente para esse tipo de contexto multissensorial e multiartístico que
o Odisseia dos Sentidos começou a ser pensado. Apoiando-se nessa ideia de
multiplicidade e buscando agregar os elementos poéticos que cada artista possui,
evitou-se uniformizar os diferentes estilos e incorporar as capacidades individuais,
contemplando as rotinas prontas e os números de repertório. O intuito era agregar
as especificidades, para levar à cena um conjunto orgânico de variedades, com
diferentes vertentes do circo.
Vale marcar que esse espetáculo é uma montagem realizada a partir da
colaboração entre Malabares Mágicos, Cadenas Produções e Taturana Circus, de
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Salvador Bahia, com outros artistas independentes, todos com extensa experiência
de atuação com o circo.
Devido a essa parceria, o primeiro espetáculo contou com treze artistas, que
atuaram em números solo ou em parceria com outros do grupo. A apresentação
aconteceu num palco sobrelevado, construído na parte central da pista principal
do festival, e contou com números de alto impacto visual previamente ensaiados
que foram alternados com improvisações cênicas, principalmente nos momentos
de transição das diferentes cenas, que dialogaram constantemente com a música
tocada pelo DJ. Vale marcar que a música sempre foi indispensável no circo,
colaborando com a dramaturgia do espetáculo (Draguignan, 2018).
Ao buscar destacar cada artista e sua técnica circense, a perspectiva
performática do
Odisseia dos Sentidos
não se esbarrou em problemas de
equalização ou uniformização estética, pois a ideia era justamente articular as
habilidades que cada um desses treze artistas podia trazer para a cena, mostrando
uma multiplicidade de disciplinas e números de técnicas circenses desenvolvidas
em diferentes planos, seja no solo, através do malabarismo e da manipulação de
objetos com fogo, ou no ar, com os números aéreos dos tecidos acrobáticos.
Cada
performance
destacou, principalmente, a composição individual do
artista, que desenvolveu a técnica circense mostrando o melhor de sua virtuose
ou sensualidade, em cenas fracionadas, não sequenciais, individuais ou em grupo,
para compor o todo do espetáculo de circo, que se aproximou a uma composição
clássica, com a patente junção de expressões artísticas díspares.
Concebida deste modo, e seguindo uma estrutura baseada na bricolagem,
termo que, como aponta Machado (2020, p.315), tem sido utilizado em diferentes
campos do conhecimento seja para indicar a criação em contextos de incerteza
que de adaptação, o espetáculo assumiu uma “postura inovadora gerada a partir
da superação de forças que emergem no processo.”
A linha guia, neste primeiro momento, foi atada por temáticas que
incentivaram
jogos de ações e criação de personagens
e enlaçaram cada artista
em um momento da apresentação, ao passo que integravam as técnicas do tecido
acrobático, da dança de contato, do malabarismo, em uma dramaturgia ainda
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pouco precisa, que se definiu a partir de temas. Constata-se, que tanto as técnicas
aéreas quanto os números com fogo colaboraram para que o espetáculo fosse
marcado por uma estética do risco (Guzzo, 2009).
Os temas selecionados e os direcionamentos sugeridos para a constituição
das cenas foram: Indígena: entrada na floresta;
Místico
: encontro com o Mago;
Tensão
: a luta pela liberdade; e
União
: desfecho e finalização.
Nesse cenário, o indígena ganhou destaque numa dança que deu início ao
espetáculo e chamou a atenção do público, o mago realizou um número solo de
malabarismo com bolas transparentes de
rolling
(em destaque na Figura 1) e o
momento da União incluiu um número de troca de claves (Figura 2) realizado em
vértice por três malabaristas. Na luta pela liberdade, os instrumentos circenses
foram ressignificados em uma cena de luta que utilizou as claves de malabarismo
de fogo junto com
devilsticks
, para simbolizar as espadas e o escudo.
Com essa estrutura, a apresentação demonstrou algum contraste ou falta de
integração entre as cenas, mas isso em nada diminuiu a qualidade do espetáculo,
que transcorreu sendo muito apreciado e aplaudido pelo público.
Cabe marcar, ainda, a composição dos figurinos que prezou pela neutralidade
das cores, transitando entre o preto e o branco, com detalhes fluorescentes que
se destacavam na presença da luz negra, sendo complementados com uma
maquiagem que mudava de cor de acordo com os feixes luzes que incidiam sobre
o palco, ganhando ressalto. O resultado positivo obtido com essa primeira versão
do Odisseia dos Sentidos foi motivador para os grupos Malabares Mágicos e
Taturana Circus prospectarem a apresentação deste espetáculo em outros
contextos.
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Arquivo: Grupo Malabares Mágicos e Taturana Circus
Figura 2 Odisseia dos Sentidos - Primeira montagem.
Primeira apresentação em 2011
Figura 1 e Figura 2
Odisseia dos Sentidos
- Primeira montagem.
Primeira apresentação em 2011
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Arquivo: Grupo Malabares Mágicos e Taturana Circus
Elementos para uma nova constituição
O convite para participar em um festival de circo promovido pelo Banco do
Nordeste, no Centro Cultural de Souza, na Paraíba, foi motivador para dar início à
remontagem do espetáculo, que começou a ser modificado a partir do número de
integrantes, que foi reduzido a cinco artistas, para facilitar a articulação e a viagem,
sendo composto, curiosamente, por uma equipe cosmopolita que envolveu um
uruguaio: Jorge Ribeiro; um italiano: Fabio Dal Gallo; e três brasileiros: Dery Lima,
Camille Bastos e Cristina Macedo.
Optou-se por retirar as cenas com os números de técnicas aéreas, para dar
mais agilidade e facilitar o deslocamento, dispensando, assim, a dependência de
estruturas específicas, que precisariam ser montadas antes de cada apresentação.
Com isso, focalizou-se mais na técnica da acrobacia de solo e da
manipulação de diferentes tipos de objetos, entre os quais se destacaram:
bolinhas, claves, bastões,
devilsticks
,
swing-poi
, bambolê, bolas de
rolling
e bola
de contato, mantendo, contudo, a característica de ser um espetáculo noturno,
propício a ser apresentado em espaços com pouca luminosidade, privilegiando o
uso de instrumentos luminosos e de malabarismo de fogo.
Uma vez definido o foco, acordou-se que cada artista ficaria responsável pela
manipulação de um objeto como instrumento circense principal, que seria
utilizado em um número solo ou em dupla, além de outro número ou cena de
transição, realizado em colaboração com um ou mais integrantes do grupo.
Todos os integrantes dessa nova formação eram hábeis em diferentes
técnicas circenses, por esse motivo, corroborou-se que o instrumento circense
principal selecionado para o número fosse aquele que o artista tivesse não apenas
maior aprimoramento técnico, mas, inclusive, maior desenvoltura, mesmo que ele
tivesse familiaridade com todos os instrumentos à disposição. Posto isto, Camille
Bastos escolheu o bambolê, Jorge Ribeiro a bola de contato e as bolas de rolling,
Deri Lima as bolinhas de malabarismo e os bastões de fogo, Fabio Dal Gallo e
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Cristina Macedo ficaram com as claves e as espadas de fogo.
Outras modificações precisaram ser feitas para apresentar o
Odisseia dos
Sentidos
em um espaço diferente daquele dos festivais de música eletrônica, mas
buscando manter a estética obtida com a primeira montagem, que remeteu à
elementos da psicodelia, com cores e imagens criadas a partir de fractais.
Nesta etapa, a importância dos elementos visuais presentes nesses
contextos se tornou evidente, os quais interferiram notoriamente no processo de
criação e configuraram a “natureza estética do espetáculo” (Tudella, 2013, p.42). A
ausência das vídeo-projeções e iluminações comuns nos festivais de música
eletrônica, foram um corte significativo em relação a visualidade: a ida para rua,
assim, iria requerer outras reelaborações na composição cênica para dar maior
sustento à qualidade visual. Assim, foi feito um investimento não apenas em
dispositivos cenográficos, mas também na maquiagem, no figurino e em
elementos teatrais.
A composição de cenas para marcar momentos de transição entre os
diferentes números e a criação de uma narrativa também foram importantes e
corroboraram com uma aproximação do circo com o teatro de forma inovadora,
esta que não deve ser entendida como uma real novidade, pelo fato desta
aproximação existir dede o século XVIII com o circo moderno
4
, havendo “uma
frutífera ‘contaminação’ entre esses campos artísticos aparentemente díspares.”
(Bolognesi, 2002, p.9).
Por sua vez, os figurinos, deixaram de ser unicolor para ganhar tonalidades
que transitaram entre o vermelho, preto e dourado e a maquiagem ganhou
maiores contornos no rosto, ficando mais evidentes, inclusive à médias distâncias.
Essas modificações, contudo, não trouxeram grandes resultados para a
visualidade do espetáculo, que contou com a presença quase exclusiva da luz das
tochas de fogo e alguns refletores a 2500k, que não proporcionaram maiores
profundidades ou intensidades à nova criação que estava nascendo.
4
O circo moderno criado no século XVIII, tem como característica a apresentação de demonstrações de
evoluções sobre cavalos e de números de saltimbancos. Neste contexto também era comum a exibição
de pantominas e dramas equestres.
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Outro ponto de destaque foi a necessidade de utilizar uma trilha sonora
específica, a qual contou com a colaboração de cada artista do grupo. Foram
selecionadas sonoridades adequadas a cada número específico de modo
subjetivo, contemplando músicas amplamente conhecidas, que pairaram entre os
diferentes ritmos da música eletrônica.
Considerou-se importante buscar uma sonoridade que se adequasse a esse
novo formato do espetáculo, que não contava mais com a agitação musical da
pista de dança do festival. Assim, optou-se por selecionar músicas mais lentas,
com um menor número de batidas por minuto (bpm), mas que se aproximassem
aos estilos goatrance, neotango,
psy-ambient
,
low
,
downtempo
e
chill-out
psicodélico.
A criação das coreografias inicial e de desfecho com todos os integrantes do
grupo (Figuras 4 e 5), propiciou grande impacto visual e deflagrou momentos de
auge e um consequente clímax da cena; esse é um recurso recorrentemente
utilizado em espetáculos de teatro de rua, primeiro para apresentar os artistas que
participam da montagem e depois para finalizar o espetáculo.
Para localizar as cenas que ainda estavam sendo realizadas de modo
fragmentado e consolidar a ligação das partes dentro do todo, foram importantes
os procedimentos de
motivações para as ações
, que, se valendo de estímulos
visuais, sonoros, táteis e gustativos, visaram atender as exigências específicas dos
movimentos realizados antes e depois de cada ação, em momentos de transição
gerados a partir dos cinco sentidos como tema. Aqui, a releitura de trechos do
poema épico grego
Odisseia
de Homero, que narra a história do retorno de Ulisses
para casa, ao findar a guerra de Troia, foi importante para inspirar novas ações à
criação, que se consolidou em uma trama não linear.
A reestreia do espetáculo, assim, contou com a entrada de todos os artistas
em cena, cada um representando um dos cinco sentidos. Como abertura, optou-
se por um número acrobático de solo, que destacou movimentos de contorção e
gestualidades que enfatizaram sensivelmente o sentido do ouvir, buscando
remeter às convulsões de Ulisses ao ouvir o irresistível canto das sereias.
A transição seguinte, deu ressalto para o olfato. Uma dança de contato
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entrelaçou dois artistas, enquanto a fumaça e o perfume de incenso embebiam
seus corpos em cena, sendo a presença dos defumadores uma referência ao pote
doado por Eolo a Ulisses, contendo os ventos contrários à navegação.
A sensação do tato, todavia, não foi representado em uma cena teatralizada,
mas com os próprios instrumentos de malabarismo, significados por meio da
manipulação das bolas de rolling e de contato que, por seu formato esférico
transparente, comumente associado às situações de predileção do futuro, fizeram
referência à profecia de Tirésias a Ulisses, em sua incessante busca de retorno
para casa.
O paladar, por sua vez, entrou em cena pela degustação de frutas, que foram
comidas em cena pelos artistas e também compartilhadas com o público. Essa
cena aludiu às flores de lotos citadas no poema de Homero, que transportavam
aqueles que a degustavam a um estado de êxtase. A percepção da visão integrou
o grupo todo na constituição de uma imagem que, pela junção de diferentes
instrumentos, direcionou-se a formar o olho (Figura 8) do ciclope Polifemo,
personagem importante na obra de Homero.
Figuras 3 -
Odisseia dos Sentidos
- Segunda montagem. Direção: Criação Coletiva.
Apresentação em 2012
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Figuras 4 -
Odisseia dos Sentidos
- Segunda montagem. Direção: Criação Coletiva.
Apresentação em 2012
Apurando os sentidos do Odisseia
O próximo passo na constituição do
Odisseia dos Sentidos
surge com um
projeto assinado pelo produtor Robson Mol, que teve como finalidade a circulação
do espetáculo que itinerou por doze cidades da Bahia, passando por seis
Territórios de Identidade, dos seis Macro territórios do Estado.
Nesta etapa, foram realizadas modificações significativas, que acabaram por
saudar algumas problemáticas na visualidade da cena e na própria dramaturgia,
ao conceber um figurino que configurou “ao mesmo tempo significante e (pura
materialidade) e significado (elemento integrado a um sistema de sentido)” (Pavis,
2005, p.164).
Neste ponto, a atuação do figurinista Deni Neves foi muito importante, o qual,
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utilizando elementos da cultura popular (Figura 5), imprimiu não apenas uma
marca de regionalidade, mas acomodou parte da história a ser contada no corpo
dos artistas. As figuras do indígena e do mago, a ideia da luta e da união, junto com
os sentidos da audição, do olfato, do paladar, do tato e da visão marcaram suas
formas, visivelmente, no figurino de cada artista. No que tocam as cores das
indumentárias, privilegiou-se a utilização do vermelho e do dourado, mas dando
espaço para algumas cores frias, principalmente o verde e o lilás, em estampas e
linhas verticais, distribuídas harmonicamente.
Fato curioso, que além do tecido grosso de brim, da borracha e do metal,
foram utilizados outros materiais pouco convencionais
5
no trabalho com fogo,
como o tecido
voil
e o plástico para a construção do figurino que, elaborado em
forma de camadas, permitiu o destaque de suas partes, se apresentando com
formas diversas em cada cena.
Essa ideação dos figurinos no formato de multicamadas, propiciou a
composição de uma cenografia ambulante que pode ser aproximada à ideia de
cenário figurino indicada por Pavis (2005), o qual recebeu maior destaque com a
elaboração de uma maquiagem de cores fortes e brilho intenso, que delineou
fortemente a temática do espetáculo no rosto dos artistas.
Uma modificação na trilha sonora permitiu a inserção de novos elementos
que marcaram mais fortemente as transições de entradas e saídas, delimitando o
foco e o diálogo entre os artistas que permaneciam na cena. Neste ponto, a história
contada no espetáculo também começou a ser melhor delineada.
Com a dramaturgia bem definida, o grupo é convidado a participar do
festival de circo do SESC, no Maranhão. Ali, a história contada no espetáculo foi
bem recebida, sendo possível ouvir os comentários do público sobre o “espetáculo
psicodélico” do grupo da Bahia, que apresentou na praça Nauro Machado, no
centro histórico de São Luís.
5
Os tecidos leves como o voli e o plástico são pouco convencionais em apresentações que utilizam o fogo
por causa da facilidade com que estes materiais podem queimar, podendo se tornar um risco para o
artista em cena.
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Figuras 5 e 6 -
Odisseia dos Sentidos
- Terceira montagem.
Direção: Criação Coletiva. Apresentação em 2013
Figuras 7 e 8 -
Odisseia dos Sentidos
- Terceira montagem.
Direção: Criação Coletiva. Apresentação em 2014
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Figuras 9 -
Odisseia dos Sentidos
- Terceira montagem.
Direção: Criação Coletiva. Apresentação em 2014
Um último passo para constituição desse espetáculo, aconteceu com a
participação no Ferrara Buskers Festival, um festival que acontece desde 1987 em
Ferrara, na Itália, e reúne músicos, pintores, poetas, além de uma variedade de
artistas rua todos os anos.
Nesta etapa, contudo ocorreram poucas modificações, havendo somente
uma alteração na parte técnica da acrobacia de solo, que passou a envolver um
número de dupla, e na cena de transição de dança contato, que contou com três
artistas ao invés de dois. Com essas modificações, a intenção foi destacar a
individualidade em experiências comunitárias, tendo como referência a dança
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coral
6
de Laban (1999). Neste número, ocorreu a aproximação e o distanciamento
dos artistas, que constroem e desconstroem o grupo, ressaltando especificidades
marcantes no movimento de cada um.
Com as diferentes apresentações e as respostas recebidas do público, o
grupo formatou e cimentou o
Odisseia dos Sentidos
numa dramaturgia que foi
sendo desenhada, de modo gradual, até chegar em seu formato final, com uma
narrativa que permeou todo o espetáculo e foi se consolidando através da
articulação de diferentes linguagens, num enredo marcado fortemente pela
música.
Neste contexto, a articulação dos instrumentos de malabarismo de luz e fogo
com outras técnicas, além das transições teatralizadas entre os números
circenses, colaborou para o
Odisseia dos Sentidos
encontrar um equilíbrio cênico
e se desenvolver de maneira harmônica, em uma apresentação que durou 45
minutos, em uma perspectiva frontal, apesar de conter algum foco difuso que
dialogou com o público nos espaços abertos da rua.
Neste caminho, a
pesquisa temática
a respeito dos sentidos humanos,
juntamente com os momentos de criação cênica, que envolveu
jogos de ações e
criação de personagens
e motivações para as ações
, foram de fundamental
importância.
Os números solo, em dupla e em grupo, colocaram em destaque as
capacidades individuais e coletivas, em diferentes cenas que foram pensadas para
manter o equilíbrio entre a tensão, provocada pelo risco no uso do fogo, e o
relaxamento, com cenas de transição teatralizadas ou de dança, com vistas a
manter pulsante, como indica Costa (2018), a atenção do espectador.
Pode-se concluir, dizendo que o Odisseia dos Sentidos se destacou por ser
um espetáculo de circo, que privilegiou o uso da técnica do malabarismo de luz e
de fogo em simbiose com outras técnicas, imprimindo um estilo particular e
específico no corpo do espetáculo. Tudo isso, em conjunto com os elementos
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Laban foi um dançarino e coreografo que estudou profundamente questões relacionadas a expressividade
corporal e a qualidade do movimento. Para Laban o movimento coral “servia para dar uma experiência de
dança ao leigo” (Partsh-Bergsohn, 2004, p.1) e esse principio foi considerado na criação, uma vez que não
pressupunha um profissional da dança.
Odisseia dos sentidos
, um espetáculo de luz e fogo
Cristina Alves de Macedo; Fabio Dal Gallo
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-20, abr. 2022
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visuais da cena, fez de modo que o
Odisseia dos Sentidos
encontrasse, na rua, os
estados oníricos e fantásticos almejados.
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Recebido em: 24/06/2021
Aprovado em: 0302/2022
Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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Centro de Arte CEART
Urdimento Revista de Estudos em Artes Cênicas
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