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Reperformance: a presença em questão
Artur Correia de Freitas
Para citar este artigo:
FREITAS, Artur Correia de. Reperformance: a presença
em questão.
Urdimento
Revista de Estudos em Artes
Cênicas, Florianópolis, v. 1 n. 43, abr. 2022.
DOI: http:/dx.doi.org/10.5965/1414573101432022e0203
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Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
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Reperformance: a presença
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em questão
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Artur Correia de Freitas
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Resumo
A proposta básica desta pesquisa foi esboçar uma definição possível de
reperformance, cotejando-a com a problemática geral da relação entre
presença e arquivo no campo das atividades performáticas. Para tanto,
considerou-se a eclosão histórica das reperformances, típica dos anos 2000,
a partir da exposição
Seven Easy Pieces
, de Marina Abramović, com ênfase
na análise de um caso-exemplar a obra
Seedbed
e nas eventuais
aproximações e diferenças que esta manteve com a performance de
“origem”, de Vito Acconci. Como resultado, propôs-se a noção de “redução
arquival” como uma categoria central para a definição de reperformance,
considerando-se suas potencialidades dialógicas, de ordem trans-histórica.
Palavras-chave
: Reperformance. Performance. Presença. Arquivo. Marina
Abramović.
Reperformance: the presence in question
Abstract
The aim of this paper was to propose a possible definition of reperformance,
comparing it with the general problem of the relationship between presence
and archive in the field of performance art. For this, the historical emergence
of the reperformance in 2000s was considered through Marina Abramović’s
exhibition
Seven Easy Pieces
, with emphasis on the analysis of the artwork
entitled
Seedbed
, taking into account its similarities and differences with the
“original” performance by Vito Acconci. As conclusion, the notion of “archival
reduction” was proposed as a central category for the reperformance
definition, considering its dialogical and transhistorical potentialities.
Keywords
: Reperformance. Performance. Presence. Archive. Marina
Abramović.
1
Revisão ortográfica e gramatical do artigo realizada por Arthur Aroha Kaminski da Silva. Doutorando e mestre
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
2
Este texto é resultado de pesquisa apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico CNPq / Bolsa de Produtividade em Pesquisa, processo n. 312500/2021-1 .!
3
Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR). Mestre no mesmo curso e programa.
Professor Associado de História da Arte do curso de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em
Artes (PPGARTES Mestrado Profissional em Artes) da Universidade Estadual do Paraná (campus Curitiba II
- FAP/UNESPAR) e professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná
(PPGHIS/UFPR - Mestrado e Doutorado). artur.imagem@gmail.com
http://lattes.cnpq.br/7705592106667807 https://orcid.org/0000-0003-3041-4725
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Reperformance: la presencia en cuestión
Resumen
El objetivo de esta investigación fue proponer una definición de
reperformance, comparándola con el problema general de la relación entre
presencia y archivo en el campo de las actividades performativas. Para ello,
se consideró el surgimiento histórico de las reperformances, propio de la
década del 2000, a partir de la exposición
Seven Easy Pieces
, de Marina
Abramović, con énfasis en el análisis de la obra
Seedbed
, y en las posibles
aproximaciones y diferencias que éste mantenía con la performance de
“origen”, de Vito Acconci. Como resultado, se propuso la noción de “reducción
de archivo” como categoría central para la definición de reperformance,
considerando sus potencialidades dialógicas, de orden transhistórico.
Palabras clave
: Reperformance. Performance. Presencia. Archivo. Marina
Abramović.
Reperformance: a presença em questão.
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Em sentido amplo, a ideia de reperformance engloba toda sorte de
reencenações, recriações, reconstruções e reprises de obras performáticas do
passado (Bénichou, 2016, p.21). Em sentido estrito, todavia, a reperformance não
apenas
refaz
um ato performático pregresso: ela nos obriga a repensar o que
entendemos por “performance”. É a esse segundo sentido que pretendo me
reportar neste artigo. A proposta básica será esboçar uma definição possível de
reperformance, cotejando-a com a problemática geral da relação entre presença
e arquivo no campo das atividades performáticas. O vocabulário de análise,
pautado nos conceitos de “alografia” e “autografia”, decorrerá da teoria dos
regimes de imanência de Nelson Goodman e Gérard Genette, que será exposta de
modo sumário. Com esses termos em vista, apresentarei rapidamente a ontologia
da presença de Peggy Phelan e a performatividade documental de Philip Auslander,
com destaque para interpretações mais dialéticas, com as de Amelia Jones e
Diana Taylor. Em seguida, a eclosão histórica das reperformances, típica dos anos
2000, será considerada a partir da exposição
Seven Easy Pieces
, de Marina
Abramović, em que a artista refaz sete performances, algumas delas centrais para
a história das artes. A ideia fundamental será compreender o método poético da
artista, suas principais propostas e contradições, considerando o lugar central que
ocupam no debate contemporâneo sobre a reperformance. Para tanto, recorrerei
à análise pontual de um caso-exemplar a obra
Seedbed
, de Abramović e às
eventuais aproximações e diferenças que mantém com a performance de
“origem”, de Vito Acconci. Na última parte do texto, depois de uma breve
comparação com uma ciberperformance do coletivo italiano 0100101110101101.org,
proporei a noção de “redução arquival” como uma categoria central para a
definição de reperformance, e finalizarei com algumas considerações sobre suas
potencialidades dialógicas, de ordem trans-histórica.
Presença e arquivo
Quando se imagina a ideia de “re”-performance, o que exatamente se está
“re”-fazendo ou “re”-criando? A que espécie de ato ou conceito performativo nos
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referimos quando o supomos novamente ativo ou atualizado? Se considerarmos
o conjunto das atividades artísticas, veremos que a ideia de performance abrange,
no mínimo, duas formas distintas de ação criativa. De um lado, uma performance
é um ato inventivo único, presencial, perceptualmente denso e, portanto,
irreprodutível, para sempre perdido na cadeia irreversível dos acontecimentos; um
evento corpóreo e contingente que se realiza diante de testemunhas concretas
como uma experiência imediata e intransferível. De outro, a atividade performática
é vista como uma ocorrência ou execução de uma notação prévia e relativamente
organizada; uma espécie de encenação repetível que atualiza, por meio de
conformidades minimamente codificadas, a condição virtual de uma obra
preexistente que nela se manifesta. No âmbito da teoria dos regimes de imanência
de Nelson Goodman e Gérard Genette, tal distinção aproxima-se, respectivamente,
das diferenças entre obras de arte “autográficas” e “alográficas” (Goodman, 2006;
Genette, 2001). Em linhas gerais, uma obra autográfica é um objeto ou evento
singular, irrepetível e integralmente perceptivo que se define por sua história de
produção (Genette, 2001, p.xxiii-xxxi), como no caso de uma pintura ou de um
improviso de jazz; ao passo que o regime alográfico implica uma obra de imanência
virtual que comporta, ao menos em potência, incontáveis ocorrências ou
performações possíveis, tal como um romance, com sua tiragem de livros
impressos, uma peça de teatro, com suas montagens, ou uma composição
musical, com suas múltiplas possibilidades de interpretação (Genette, 2001, p.xxiv-
xxvi; Goodman, 2006, p.136-144). Uma característica distintiva da alografia é a
necessidade de um sistema de notação, ou seja, de um código convencional que
registre a identidade da obra e ao mesmo tempo permita a comunicação com os
executores, como no caso do texto para o editor, do roteiro para o ator ou da
partitura para o pianista (Goodman, 2006, p.149-237).
Tal distinção é relevante para que se entenda o lugar e o papel transformador
das reperformances na história da performance. A rigor, reperformar é um termo
que sugere não a repetição do mesmo, do idêntico, mas a alteração ativa de algo
que, na “origem”, é percebido como um gesto singular, irreprodutível e
essencialmente presencial. Por outras palavras, o que se requer é a estranha
preexistência de um ato autográfico. Tal operação é em si mesma contraditória e,
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talvez por isso, desafiadora. Como veremos, reapresentar um evento a princípio
avesso à repetição é algo que depende da ressignificação da relação, no campo
performático, entre experiência e registro, ato e memória – presença e arquivo.
No campo da produção artística contemporânea, o fenômeno da
reperformance, em sentido estrito, ganha visibilidade internacional a partir dos
anos 2000, quando algumas instituições culturais abrem suas portas para uma
tendência curiosa: a reencenação de performances canônicas, via de regra dos
anos 1960 e 1970, muitas das quais concebidas, de início, como eventos de exibição
única, de natureza testemunhal e autográfica. A ideia de manter “viva” uma dada
performance, implícita na reperformance, coincide, no plano histórico, com a
adoção pela UNESCO, em 2003, da categoria de “patrimônio cultural imaterial”, e
com ela divide os riscos, como nota Diana Taylor, de transformar as práticas vivas
em produtos de marketing (Taylor, 2016, p.149-161). Além disso, em termos
geracionais, o repentino interesse por tais obras fugidias do passado tem relação
com o processo, em si mesmo nostálgico, de “reviver” no presente as utopias da
geração 68, ali incluídas algumas de suas principais estratégias artísticas, como o
conceitualismo, a efemeridade e a performação (Chalmers, 2008, p.23-25). A
própria difusão das reencenações ocorre num momento de clara
institucionalização da performance, evidente nas curadorias e bienais a ela
dedicadas, e na recente abertura dos museus às artes corporais (Foster, 2015,
p.127-128). O pano de fundo imediato é o processo de legitimação cultural das
chamadas “novas vanguardas”, ativas entre os anos 1960 e 1970 (Buchloh, 2000,
p.xxii-xxv), e que pelo menos vinte anos vêm ocupando um lugar de destaque
nas pesquisas universitárias, no circuito expositivo e no mercado das artes.
Nas suas diversas variantes, o debate aberto pelas reperformances implica
uma reconsideração crítica não apenas da ideia de performance, mas do que se
entende por obra de arte na condição contemporânea. É quase um lugar-comum
que uma obra de performance seja vista como uma arte do aqui-e-agora, uma
espécie de presença imediata de corpos potencialmente tangíveis, que agem no
tempo diante de testemunhas oculares. Num mundo hipermediatizado como o
nosso, é compreensível a simpatia nostálgica angariada por essa visão, como se a
potência da experiência ao vivo, essa bisneta da aura de Benjamin, fosse ou
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pudesse ser a panaceia de uma vida medíocre, no sentido de mediana, porque
afogada no oceano ordinário de telas,
logins
e redes sociais.
No campo dos estudos performáticos, é conhecida a argumentação da
teórica norte-americana Peggy Phelan em favor da presença nas performances.
Para a autora, uma performance, enquanto obra de arte, existe apenas em ato, no
campo da experiência e do testemunho. O corpo em carne e osso, nessa
perspectiva, deve estar em relação direta com seu público. Atributos estéticos
como a imediatez e a efemeridade surgem como valores em si mesmos: a obra é
criada para desaparecer. Ou como resume Phelan: “a única vida da performance
está no presente” (Phelan, 1993, p.146)
4
. Disso decorre o caráter não-reprodutível
da performance: a aura como pureza e originalidade, a irreprodutibilidade como
resistência à pobreza do mundo. O que significa que os eventuais registros,
gravações e documentos derivados da atividade performática são produtos
secundários e contingentes, alheios à identidade da obra (Phelan, 1993, p.146).
A sobrevivência cultural de uma performance, todavia, depende da
materialidade de seus rastros e registros, ali incluídos o vídeo e a fotografia, bem
como as anotações, os áudios gravados, os objetos utilizados e os depoimentos
transcritos. Variável a cada caso, a soma de todos os vestígios disponíveis de uma
performance corresponde àquilo que Diana Taylor nomeia de “memória arquival”
ou mais propriamente de “arquivo” (Taylor, 2013, p.48 e ss). A natureza complexa
da relação entre arquivo e presença é um tema em disputa nos estudos da
performance. No caso dos registros fotográficos, por exemplo, Philippe Dubois
nota a existência de duas posturas opostas. Na primeira, favorável à ontologia da
presença, a fotografia é considerada como um simples meio documental (Dubois,
2012, p.289). A obra de arte, nesse viés, é o corpo em ato, a partilha de um
acontecimento radicalmente singular, sem qualquer exterioridade ou posteridade,
como em Peggy Phelan, para quem os registros são fenômenos estéticos menores,
informativos, meros documentos. A segunda postura, todavia, é mais transigente.
Nela, o arquivo aparece ou pode aparecer como uma forma de pensamento
estético – ainda que uma forma instável. A ideia de obra de arte, nesse caso, leva
em conta o fato de que alguns artistas não apenas integram os arquivos à
4
Performance’s only life is in the present. (Tradução nossa)
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concepção da obra, como chegam a realizar ações poéticas em função dos
procedimentos de registro (Dubois, 2012, p.285).
A partir do final dos anos 1990, essa postura se acentua. Para além dos
eventuais propósitos poético-documentais dos artistas, reforça-se, ao menos no
plano da teoria, a importância do arquivo como categoria geral de interpretação e
produção. Para a historiadora da arte Amelia Jones, os registros de uma obra
performática cumprem um papel discursivo tão importante quanto a presença
diante da ação. Embora a experiência de uma fotografia ou de um texto seja
diferente daquela de assistir uma performance ao vivo, nenhuma delas, nas
palavras da autora, “tem uma relação privilegiada com a ‘verdade’ histórica da
performance” (Jones, 1997, p.11)
5
. Como bem sabem aqueles que lidam com os
procedimentos metodológicos da história oral, a legitimidade da experiência não
depende da autenticidade do testemunho. Performances vistas in loco, quando
revisitadas na “tela da memória” (
memory screen
), são tão subjetivas e valiosas
quanto uma imagem fotográfica ou um vídeo (Jones, 1997, p.12). Às concepções
idealistas da
body art
e da performance, orientadas pela metafísica da presença
do corpo do artista, Amelia Jones contrapõe o caráter representacional das artes
corporais. Em lugar da referencialidade de um ato imediato e a-sígnico, a ênfase
recai na mediação cultural que se viabiliza na documentação, e na consequente
dimensão simbólica da performance (Jones, 1998, p.33).
O pesquisador de estudos midiáticos Philip Auslander vai ainda mais longe ao
defender não apenas a importância do registro documental, mas a sua primazia
diante do ato performático (Auslander, 2006, p.5). O raciocínio é polêmico, pois
inverte os dados de origem: ao invés de resultar da atividade performática, o
arquivo, ao contrário, a estabelece. A ideia central é que há uma performatividade
dos documentos, sem a qual não haveria obra, uma vez que a vida social da
performance depende da circulação pública de seus registros (Auslander, 2006,
p.1-10). Na bacia dos saberes, as múltiplas histórias da arte são fluxos narrativos
que dependem da memória da presença, que a irrigam e são por ela irrigados, mas
apenas na medida em que a transbordam. Dito com simplicidade: “O arquivo
5
While the experience of viewing a photograph and reading a text is clearly different from that of sitting in a
small room watching an artist perform, neither has a privileged relationship to the historical ‘truth’ of the
performance. (Tradução nossa)
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excede o que acontece ao vivo” (Taylor, 2013, p.49). Razão pela qual o
agenciamento dos registros seja capaz de dar vida ainda que uma vida outra
àquilo que, pela natureza efêmera do acontecimento performático, se supunha
extinto, esquecido, quase-morto.
Contudo, em lugar de posturas hiperbólicas como a ontologia da presença de
Peggy Phelan ou a performatividade documental de Philip Auslander, dou
preferência a posições dialéticas como as de Amelia Jones ou Diana Taylor, que
operam na mediação entre corpo e arquivo. Em alguma medida, tais posições
compactuam com a máxima de Derrida, segundo a qual o processo de
arquivamento tanto registra o evento (como em Phelan), quanto o produz (como
em Auslander) (Derrida, 2001, p.29)
6
. Mais do que modos antagônicos de
entendimento, as experiências presencial e documental podem ser vistas como
abordagens interdependentes, cada qual com suas virtudes. No primeiro caso,
temos a força da experiência física, corpórea, a energia do presente, o caráter
epidérmico da história vivida, em processo, a contiguidade imediata dos sentidos.
Nenhuma lição da historiografia, por mais abrangente e perspicaz que seja, é capaz
de superar a emoção estética, política, do nosso testemunho, a delícia muscular
dos gestos, a incidência carnal do risco e do trauma, a memória intransferível do
eu-estive-lá. Por outro lado, a experiência por vias documentais comporta o tempo
adensado da reflexão. Alimentado pela história da cultura, o olhar retrospectivo
pode permitir uma interpretação mais abrangente que a do olhar presencial, de
caráter mais reativo e espontâneo (Bedford, 2012, p.78). Não necessariamente
incompatibilidade entre história e memória, mas complementariedade. A memória
da presença de uma performance não é mais nem menos autêntica ou confiável
que a experiência do seu arquivo. Entender a própria memória como um
documento torna todos os documentos igualmente válidos em sua parcialidade e
subjetividade (Banks, 2015, p.10).
Reperformance e
Seven Easy Pieces
Difundidos nos anos 2000 e 2010, os termos desse debate são simultâneos à
6
Derrida: “O arquivamento tanto produz quanto registra o evento”.
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emergência da reperformance, com a qual dialogam abertamente. Os exemplos
de atos reperformáticos, nesse período, são muitos e, ao menos de início,
sucedem-se em velocidade. Entre 16 e 18 de novembro de 2001, onze artistas
contemporâneos são convidados para recriar uma série de importantes
performances dos anos 1960 e 1970 no contexto do projeto
A Little Bit of History
Repeated
, realizado no Kunst-Werke, em Berlim, com curadoria de Jens Hoffmann
(Wood, 2018, p.90). Em 2005, o Museu de Arte Contemporânea de Chicago
patrocina a primeira de duas reencenações da anárquica
MusiCircus
, de John Cage,
performada pela primeira vez em 1967 (Chalmers, 2008, p.25). No mesmo ano, o
Wooster Group encena uma das partes de
Akropolis
, de Jerzy Grotowski, a partir
de um registro fílmico de 1962. Em 2006, a Haus der Kunst de Munique recria 18
Happenings in
6 Parts
, de 1959, obra magna de Allan Kaprow (Chalmers, 2008, p.25)
mesmo artista que, curiosamente, afirmara que um
happening
deve ser
“realizado uma única vez” (Kaprow, 1996, p.712)
7
.
O nome de Marina Abramović está no centro desse processo. Em boa medida,
a visibilidade recente da reperformance é resultado da extraordinária publicidade
conquistada por duas megaexposições da artista: Seven Easy Pieces, de 2005, no
Guggenheim, e a retrospectiva
The Artist is Present
, montada no MoMA em 2010
(Morgan, 2010, p.11). A primeira delas é um marco na história da reperformance.
Em novembro de 2005, aos 58 anos, Abramović reencena no Guggenheim sete
performances sequenciais, seis delas criadas nos anos 1960 e 1970, duas de sua
própria autoria e as demais de Bruce Nauman, Gina Pane, Joseph Beuys, Valie
Export e Vito Acconci, todas autorizadas por seus criadores ou respectivos
espólios. O impulso de Abramović sinaliza, na sua opinião pessoal, uma importante
mudança geracional. De acordo com a artista, a geração 1960 e 1970, da qual faz
parte, via na atividade performática uma forma de reiterar a liturgia da presença.
Nas suas palavras: “Nós nunca queríamos repetir as coisas. [...] Não queríamos
sequer ser fotografados. Nós éramos puros, puros, puros” (Marina Abramović apud
Princenthal, 2006, p.90)
8
. Mas o rito autográfico tem seu preço. Passados trinta ou
7
Happenings should be performed once only. (Tradução nossa)
8
We never wanted to repeat things. […] We never even wanted to be photographed. We were pure pure pure.
(Tradução nossa)
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quarenta anos, apenas o arquivo garante a sobrevivência das obras performadas.
O problema da memória vai assumindo os contornos de uma agenda poética.
Marina Abramović parece apreensiva com a forma fantasmática das performances
de outrora, cuja sobrevida depende de fotografias difusas e memórias titubeantes.
A solução, posta à prova em Seven Easy Pieces, expressa-se num aforismo
inquietante: “A única maneira efetiva de documentar uma obra de arte
performática é reperformá-la” (Abramović, 2007a, p.11)
9
.
A frase é de Abramović. O impulso nela explicitado revela uma tensão que
me interessa. A aposta da artista, em um primeiro momento, parece pressupor a
presença como um valor em si. A rigor, Abramović pretende revigorar a energia
ritualística das performances reencenadas, que se supõem arrefecidas pelo
tempo, recuperando-as da teia pálida de sua sobrevida documental. Não à toa, o
crítico de arte Robert Morgan percebe, com alguma razão, que a prática
reperformática da artista está “em contraste com a abordagem arquival da
performance” (Morgan, 2010, p.11)
10
. algo de salvacionista nessa ideia, sobretudo
se considerarmos o alto grau de mediatização do mundo atual, ao qual tal salvação
pretensamente se insurge. Entretanto, convém não desconsiderar, no âmbito
objetivo das estratégias de circulação, o componente também espetacular das
práticas de Abramović. Reencenadas, as performances da artista aspiram às
formas contemporâneas do arquivo: servem ao olho da câmera, conquistam as
redes sociais, estão disponíveis em DVD. Mas é o processo que me interessa. O
impulso da reperformance é também, e sobretudo, o impulso da virtualização.
Para reexistir no mundo contemporâneo, a performance de origem, presencial e
singular em sua essência, depende de um processo de tradução de
conformidades, uma vez que caberá ao reperformer decidir o quê, no ato
tradutório, estará ou não conforme à obra que se supõe “original”. A tensão é
evidente: para reconquistar a presença, a obra precisa, antes, pagar o pedágio, por
assim dizer, da despresença, que é um pedágio de feitio fundamentalmente virtual,
ou melhor, alográfico. É por isso que, apesar do amor sincero pela presença,
Abramović conjectura, num momento de notável perspicácia, sobre a dimensão
9
The only real way to document a performance art piece is to reperform the piece itself. (Tradução nossa)
10
In contrast to the archival approach to performance. (Tradução nossa)
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também notacional das reperformances. Nas palavras da artista, talvez seja
possível “abordar a arte da performance da mesma forma que uma composição
musical. Nós não podemos tratar”, pergunta-se retoricamente, “as instruções da
performance como uma partitura musical? como algo que qualquer pessoa
devidamente treinada pode reproduzir?” (Abramović, 2007a, p.10)
11
.
Em
Seven Easy Pieces
, Abramović explora o alcance dessa hipótese a partir
da reencenação de performances que exerceram grande impacto em sua
formação artística, como
How to Explain Pictures to a Dead Hare
(1965), de Joseph
Beuys,
Action Pants: Genital Panic
(1969), de Valie Export, Seedbed (1972), de Vito
Acconci,
The Conditioning
(1973), de Gina Pane,
Body Pressure
(1974), de Bruce
Nauman além de
Lips of Thomas
(1975), dela própria. Ao longo de sete noites
consecutivas, as obras são reencenadas em sessões de sete horas, uma a cada
dia. A duração das reperformances é deliberadamente maior que o tempo das
performances de origem, que variavam de dez minutos a algumas horas. A ampla
extensão temporal das reencenações, aliada à concentração quase meditativa de
Abramović, aspira ao testemunho do público, que em boa medida acompanha
atento às provações silenciosas e autoimpostas da artista. O desafio da duração e
a partilha da resistência habitam o núcleo das ações, que variam da dor à quietude.
Em
The Conditioning
, por exemplo, Abramović deita-se imóvel sobre uma cama
de metal aquecida por dezenas de velas acesas. A cada hora, a artista se levanta,
repõe as velas e deita-se novamente, determinada, revelando as roupas
chamuscadas pelo calor (Smith, 2005). A objetificação do corpo em suplício arde
na cumplicidade de nossos olhos. A imagem que se forma é poderosa, quase
religiosa, como se estivéssemos diante de um ritual de penitência e sacrifício.
A presença efetiva do público, que acompanha por horas as contrações
faciais da performer, é parte constitutiva da experiência. Todavia, o rito da
presença não elimina o fato de que a ação é a reedição de uma performance
primeira, realizada em 1973, por Gina Pane. Tal gesto de reedição desafia
abertamente o entendimento da performance como um evento específico e
irreprodutível, realizado por uma artista determinada e exclusiva (Richards, 2018).
11
In this manner, I can open a discussion about whether we can approach performance art in the same way
as a music composition. Can we treat the instructions of the performance like a musical score something
that anyone who is properly trained can re-play?. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
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Para tanto, cabe ao reperformer, em primeiro lugar, considerar a performance de
origem não como um evento único, autográfico, mas como uma “composição
musical”, da qual é possível extrair “instruções” semelhantes a “uma partitura”
para retomar os termos de Abramović. De um ponto de vista material, a extração
de instruções depende da preexistência de um arquivo, como no caso da
conhecida série fotográfica da performance de Gina Pane, e dos relatos que lhe
acompanham. É dessa base documental que a reperformer selecionará os
elementos notacionais pertinentes à reexecução da obra.
Em compensação, a própria Abramović reconhece que tal abordagem não se
limita ao desejo da reperformer ou à existência de um arquivo prévio. Em termos
práticos, autorais, a reperformance funciona como um contrato criativo, uma
espécie de jogo poético baseado no encontro possível entre a obra primeira e a
extração da reperformer. Abramović sintetiza as regras desse jogo em uma curiosa
metainstrução: “Peça permissão ao artista. Pague os direitos autorais para o artista.
Performe uma nova interpretação da obra. Exponha o material original: fotografias,
vídeo, relíquias. Exponha uma nova interpretação da obra” (Abramović, 2007b,
p.11)
12
. A ironia é clara: a artista mimetiza a gramática imperativa das
event scores
(Fluxus) para enfatizar o que considera ser o fundamento ético-jurídico das
reperformances, a saber: a nova encenação requer um acordo autoral entre
reencenador e reencenado.
Tal acordo jurídico, expresso sob a forma contratual, pressupõe, em paralelo
às questões legais do direito de autor, um acordo também poético: algo como um
pacto silencioso entre artistas (ou seus representantes formais), ainda que um
pacto
ad-hoc
. Independentemente de Gina Pane ter ou não considerado a
performance de 1973 como um evento único, o fato é que agora, em 2005, no
contexto de
Seven Easy Pieces
, o espólio da artista corrobora a leitura
reperformática de Abramović acerca de
The Conditioning
, pelo simples fato de
autorizar a sua reencenação. O limite filosófico dessa abordagem, entretanto,
evidencia-se quando, em lugar do pacto entre autores, nos deparamos com casos
de desacordo poético. Pensemos, por exemplo, em
Trans-fixed
, de Chris Burden.
12
Ask the artist for permission. Pay the artist for copyright. Perform a new interpretation of the piece. Exhibit
the original material: photographs, video, relics. Exhibit a new interpretation of the piece. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
14
A obra, em síntese, é uma performance radical de 1974 em que o artista se deixa
crucificar literalmente – no teto de um Fusca. Trinta e um anos depois, Marina
Abramović deseja reencenar a ação em
Seven Easy Pieces
. A ideia da artista é
repetir o ritual de autocrucificação, mas com uma alteração substancial: substituir
o popular Fusca por um Chaika, famoso carro de luxo soviético, recorrente nos
tempos de juventude de Abramović na Iugoslávia (Kennedy, 2005). A cena é
apelativa de antemão: uma artista pregada numa limusine dentro do Guggenheim.
Todavia, apesar do desejo da reperformer e da existência de um arquivo prévio da
obra, a reencenação é negada por Chris Burden e não se concretiza. A resposta,
crua e lacônica, é dada por uma secretária do artista: “O Sr. Burden não está
falando publicamente hoje em dia, e ele não dá permissão para repetir essa obra
ou qualquer outra” (Secretária do artista apud Kennedy, 2005)
13
. Admito que é
tentador deduzir dessa negativa um eventual desacordo poético entre Abramović
e Burden, mas, dado o silêncio do artista, simplesmente não há como saber.
De todo modo, a negativa de Chris Burden suscita uma importante discussão
pública acerca dos pressupostos da reperformance. Numa carta-resposta
publicada no jornal New York Times, o artista Tom Marioni, fundador do Museu de
Arte Conceitual de São Francisco e ativo defensor da performance nos anos 1970,
propõe-se a justificar por sua conta a recusa de Burden. A performance daquela
época, afirma, era “concreta”, e como tal, deveria existir uma única vez. Assim, “se
a obra de Chris Burden fosse recriada por outro artista, ela se transformaria em
teatro, um artista interpretando o papel de outro” (Marioni, 2005, p.8)
14
. A posição
de Marioni é exemplar, e se aproxima da ontologia da presença de Peggy Phelan e
afins. A novidade é o didatismo da explicação. A raiz do desacordo com Abramović,
descobrimos agora, é a suposta diferença entre performance e teatro. Os
fundamentos esquemáticos dessa oposição são retomados e aprofundados, anos
depois, pelo próprio Marioni (2017, p.17):
A diferença entre performance e teatro é que na performance você não
13
Mr. Burden is not talking publicly these days, and he doesn't give permission to repeat this piece or any other
pieces. (Tradução nossa)
14
The performance art of the early 1970's was concrete. We made one-time sculpture actions. If Mr. Burden's
work were recreated by another artist, it would be turned into theater, one artist playing the role of another.
(Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
15
está interpretando um papel. Você é você mesmo. E você não está
fantasiado. E você não está contando uma história. Você está
manipulando um material. [A performance] não se dirige às emoções do
público, como no teatro. A performance se dirige ao material que você
está manipulando. Essa é a diferença básica da performance, em sua
ideia original
15
.
A oposição entre teatro e performance é dura, mas elucidativa. Uma peça de
teatro, nesse registro, é uma história fictícia interpretada por um ator “fantasiado”,
ao passo que uma performance, em sua pureza “original”, é o contrário: uma ação
autêntica realizada por um indivíduo real, um evento singular em que “você é você
mesmo”. A dimensão alográfica do roteiro teatral seria a prova do crime, a
insinceridade como delito. Qualquer ator, em tese, pode interpretar a notação
escrita e gesticular, falar ou chorar como exige o texto de outrem. Do performer,
em contrapartida, espera-se o gesto próprio, a fala e o choro de si. A unicidade do
ato autográfico desponta como a expressão de sentimentos e propósitos que se
imaginam verdadeiros. O substrato da linguagem, portanto, é de natureza moral,
com consequências certamente moralistas: o ator finge; o performer é sincero.
Daí a interpretação de Marioni em relação à recusa de Chris Burden. A negativa do
artista teria o peso de uma acusação: ao propor a reencenação de
Trans-fixed
,
Abramović estaria ameaçando ficcionalizar a arte da performance, teatralizando-
a. E a ficção, em Marioni, é quase um problema ético, um vício a ser purgado nas
águas batismais da verdade performática. Mas se o reperformer parece falar com
a voz dos heréticos, é porque o ouvido que lhe escuta partilha da crença do
performer como redentor dos pecados teatrais.
O caso
Seedbed
A ideia da reperformance como heresia não impede, todavia, que Abramović
reencene performances profundamente pessoais, espontâneas e, em certa
medida, intransferíveis. Pensemos, para exemplificar, em
Seedbed
, de Vito
Acconci. A ação de origem é realizada em 1972, no interior de uma galeria. Ao entrar
15
The difference between performance art and theater is that in performance art, you're not playing a role.
You're yourself. And you're not in costume. And you're not telling a story. You're manipulating material. And
you're not it's not directed at the audience's emotions, like in theater. It's directed at the material you're
manipulating, so. That's the basic difference between performance art in its original idea. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
16
no espaço expositivo, o visitante caminha sobre uma ampla rampa de madeira,
ligeiramente inclinada, que cobre a maior parte do chão. Embora a intervenção se
assemelhe às estratégias arquitetônicas do minimalismo, não me ocorre nada
menos minimalista que essa obra. Deitado sob a rampa, o performer Vito Acconci
se masturba sem ser visto. Suas fantasias sexuais, baseadas nos movimentos dos
presentes, são ouvidas de imediato, amplificadas por uma caixa de som. A insólita
operação segue por horas a fio, reiniciada a cada novo visitante (Jones, 1998, p.104-
107). As reações do público às narrações eróticas do performer são parte
integrante da proposta. Apesar da invisibilidade mútua, a evidente tensão sexual
põe em suspensão o aparato contemplativo da galeria, fomentando uma conexão
íntima entre o artista e seu público.
Diferente de Chris Burden, Vito Acconci autoriza a realização da performance
por Abramović. Dada a natureza íntima da obra, não é difícil imaginar as
consideráveis adaptações implicadas no ato reperformático. Algumas alterações
são de ordem institucional. A
Seedbed
de Abramović ocorre num palco circular
em formato de tambor situado no chão da rotunda do museu Guggenheim. Ao
contrário da ação de Vito Acconci, a audiência de
Seven Easy Pieces
é volumosa:
cada performance atrai entre 500 e 1400 pessoas (Smith, 2005). Por conta disso,
o fluxo de visitantes da nova
Seedbed
é limitado a vinte pessoas por turno (Smalec,
2006). O público imediato situa-se no topo do palco. O acesso ao círculo íntimo
da artista é feito por uma escada lateral. Marina Abramović está escondida logo
abaixo, no interior da estrutura. Como Acconci, a artista escuta os passos acima e,
estimulada pela presença de anônimos, masturba-se por horas, oculta a qualquer
olhar, ao mesmo tempo em que narra suas fantasias através de amplificadores.
Além dos muitos relatos, o arquivo da primeira
Seedbed
, de 1972, conta com
uma conhecida série de registros fotográficos e fílmicos, alguns aparentemente
óbvios: o artista se masturbando; uma moça caminhando sobre a rampa. Contudo,
a simples possibilidade de reencenação da obra demanda uma interpretação ativa
dos documentos remanescentes. Por interpretação ativa refiro-me à necessidade
de intervenção poética na matéria documental. Uma vez autorizada por Acconci,
Abramović é impelida a selecionar, dentre os vários elementos contidos no arquivo,
aqueles que serão considerados pertinentes, ou seja, efetivamente constitutivos
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
17
de Seedbed, separando-os daqueles tidos como contingentes, e, portanto,
descartáveis. Tal processo de seleção não é necessariamente intencional ou
consciente, e pode ser o efeito de decisões práticas, talvez arbitrárias, de todo
modo poéticas. O resultado da interpretação ativa do arquivo decorre dos
elementos comuns entre a performance e a reperformance. Assim, basta
compararmos a
Seedbed
de Acconci à de Abramović para inferirmos as seguintes
propriedades pertinentes da obra: a presença do público, a invisibilidade do artista,
sua localização abaixo dos visitantes, a masturbação estimulada pela
movimentação dos espectadores e a narração amplificada das fantasias do
performer. É essa, em síntese, a notação de
Seedbed
(evidentemente latente e
descritiva) proposta em ato (em obra) por Abramović.
Mas a força da reperformance seu poder de manipulação de signos e de
invenção de sentidos decorre sobretudo da
diferença
. É no desvio da identidade
mantida que a reperformance atualiza a obra de origem, pleiteando a
sobrevivência contraditória da arte do efêmero. Algumas diferenças são evidentes,
mas acessórias, como a substituição do cubo branco pelo palco redondo.
outras, como a substituição do performer, são fundamentais. Em termos
instrucionais, a presença de Vito Acconci, afinal, é ou não obrigatória? Até que
ponto a excitação de um corpo masculino é uma exigência notacional de
Seedbed
?
Quais as implicações poéticas da masturbação feminina? E que novas
modalidades de interação pública são por ela ativadas? Tais perguntas, para além
dos rigores da especulação abstrata, exigem a concretude da cena e, com ela, a
observância prática do rito, ou melhor, do novo arquivo que dele se instaura. A
partir de então, o contrato poético entre Abramović e Acconci faz da reedição de
Seedbed
um verdadeiro experimento coletivo, ao mesmo tempo psicológico e
social.
O título da obra
Seedbed
(canteiro ou cama de semente) é um primeiro
desafio à reencenação feminina, pois contém um trocadilho sugestivo: base de
sêmen (
seed bed
). Nos anos 1970, Vito Acconci admite a evocação ejaculatória do
título. “Eu me masturbo”, afirma, e “tenho que continuar me masturbando o dia
todo para cobrir o chão com esperma, para semear o chão (
to seed the floor
)”
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
18
(Vito Acconci apud Diacono, 1975, p.168)
16
. Décadas depois, ao autorizar a
reperformance, o artista põe em xeque a natureza masculina do próprio desafio.
Ainda se trata de Seedbed, pergunta-se a pesquisadora Theresa Smalec, “se um
rastro de ‘sêmen’ (
seed
) não permanecer na ‘base’ (bed) do chão da galeria”?
(Smalec, 2006, s. p.)
17
. Em uma entrevista, Abramović explica seu fascínio pelo
tema: “O que é interessante sobre a masturbação é que você está produzindo algo.
Existe um produto. Mas o que uma mulher produz ao se masturbar?” (Marina
Abramović apud Kaplan, 1999, p.14)
18
. A reperformance da artista, como previsto,
estende-se por sete horas consecutivas. Além do desgaste físico envolvido na
masturbação prolongada, Abramović altera o enunciado de sua ação ao
estabelecer para si mesma a meta de conseguir tantos orgasmos quanto possível
(Chalmers, 2008, p. 30). A alteração notacional, de ordem instrucional, não é um
simples capricho. Como a ejaculação para Acconci, o orgasmo efetivo de
Abramović é, para a artista, a prova do seu trabalho – a verdade da sua
Seedbed
particular:
Ter orgasmos em público, ficar excitada com os visitantes acima de mim
não é algo realmente fácil, eu te digo. Nunca me concentrei tanto na
minha vida. Meu amigo me deu algumas revistas eróticas, mas eu não as
usei de fato. Eu me concentrei nos sons e na ideia de que eu tinha que
ter orgasmos, como prova do meu trabalho. E foi o que fiz. Eu não finjo
eu nunca finjo nada. [...] Eu acabei tendo nove orgasmos. O que foi
péssimo para a próxima performance eu estava tão exausta” (Marina
Abramović apud Rosenberg, 2005, s. p.)
19
.
Enquanto experimento coletivo, a recriação de Seedbed mobiliza uma
subjetividade contra-hegemônica, que põe em suspeita o cânone masculino da
vanguarda. Para a historiadora da arte Amelia Jones, a ação inicial de Acconci deve
16
I masturbate; I have to continue doing it the whole day to cover the floor with sperm, to seed the floor.
(Tradução nossa)
17
Can we still call it
Seedbed
if a trail of ‘seed’ does not remain on the gallery's floor ‘bed’? (Tradução nossa)
18
What's interesting about masturbation is that you are producing something. There is a product. But what
does a woman produce in masturbating? (Tradução nossa)
19
Having orgasms publicly, being excited by the visitors, steps above me it’s really not easy, I tell you. I’ve
never concentrated so hard in my life. My friend gave me some sexy magazines, but I really didn’t use them.
I concentrated on the sounds, and on the idea that I had to have orgasms, as proof of my work. And so I did.
I don’t fake it I never fake anything. […] I ended with nine orgasms. It was terrible for the next piece I was
so exhausted. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
19
ser lida como paródia e, portanto, como crítica –, na medida em que o performer,
pela via do excesso, expõe o corpo masculino do “gênio”, via de regra oculto pelas
engrenagens de poder do campo da arte (Jones, 1998, p.106). Por outro lado, a
fricção entre performance e reperformance sinaliza tanto a integridade da obra no
tempo, quanto um possível conflito de versões. Embora a partilha da intimidade
seja um ato radical atrelado à era da liberdade sexual, a masturbação pública de
Acconci não deixa de ser um novo capítulo (literalista) de uma velha tradição
ejaculatória da arte moderna, vigente no pós-guerra, que remonta ao
dripping
convulsivo de Jackson Pollock. Sua ação exibicionista expressa, literal ou
parodicamente, a estrutura sexista da história das vanguardas. Não por acaso, as
fantasias murmuradas pelo artista ao microfone são chulas e objetificadoras
(Smalec, 2006). De acordo com testemunhas da época (incluindo o artista), a
primeira
Seedbed
é descrita como uma obra não apenas perturbadora, mas hostil
(Smalec, 2006). A reperformance de Abramović, em contrapartida, assume um
outro modelo de relação intersubjetiva. Ao invés de encarnar a imaginação artística
como um ato de dominação, as fantasias da performer reivindicam a cumplicidade
e a participação efetiva do público. Próxima do gozo, Abramović irrompe
abruptamente: “Onde estão os passos? Eu preciso ouvir os passos” (Marina
Abramović apud Smalec, 2006, s. p.)
20
. O público responde de imediato, pisando
com força sobre o chão (Smalec, 2006; Smith, 2005).
A ação de Abramović incita não apenas a interação entre artista e espectador,
antevista por Acconci, mas a conexão interna entre os próprios membros do
público. A crer na memória de alguns participantes, a reperformance de Seedbed
tem o efeito colateral, por assim dizer, de estimular a formação espontânea de
pequenas comunidades de sentido, ainda que temporárias. A certa altura, um
visitante começa a esfregar sua virilha contra as bordas internas do palco circular
(Smalec, 2006). Na medida em que o clímax de Abramović se aproxima, o homem
cai de quatro e grita: “Isso te excita?”. Os seguranças do museu invadem o palco e
mandam o sujeito se retirar. O público protesta de imediato: “Você não entende a
performance”. “Há alguma regra contra fazer barulho?”. Os seguranças cedem e o
homem permanece no recinto. Triunfantes, os visitantes formam uma ilha sexuada
20
Where are the steps? I need to hear steps. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
20
de solidariedade poética. Ou como resume Theresa Smalec, presente na cena:
“Nós conquistamos nossa pequena vitória contra a máquina higienizada” (Smalec,
2006, s. p.)
21
.
Em boa medida, tal vitória é possível graças à superação da exclusividade do
corpo de Acconci, decorrente da notação de Abramović. Ao propor a virtualização
da performance de origem, a artista atualiza, por vias cênicas, a área de ação
poética da obra, crivando-a de historicidade. Assim como a primeira Seedbed dos
anos 1970 remonta à liberação sexual da contracultura, a segunda, dos anos 2000,
remete ao empoderamento público do corpo feminino além de incorporar o
conflito, típico de certos setores da produção artística contemporânea, entre
imagem, desejo e espetáculo museal. A operação instrucional da reperformance,
todavia, não implica a monumentalização da permanência. A Seedbed de
Abramović é a mesma obra sem ser. um resto de alteridade e diferença que
nela escapa, reafirmando a condição também eventual, acontecimental da
performance, que, retornada à presença, se executa aqui e agora. O conteúdo da
reperformance, sintetiza Jessica Chalmers, continua a ser a efemeridade: “a
presença do performer compartilhando tempo e experiência aguda com o público
– embora a forma tenha se tornado mais expansiva” (Chalmers, 2008, p. 34)
22
.
Redução arquival e tempos impuros
Preservemos este ponto: a forma se tornou mais expansiva. “Forma”, claro,
como maneira, método, procedimento. A obra de arte como uma noção
estratégica, uma tática de ocupação, uma realidade movediça que se expande para
além das próprias bordas. Tal expansão está na base da dimensão conceitual da
reperformance. Nas artes performáticas estabelecidas, como a música, o teatro
ou a dança, o gesto interpretativo pressupõe, por força das convenções históricas,
uma conformidade mínima (notacional) entre a performação (autográfica) do
artista-intérprete (um pianista, por exemplo) e a obra (alográfica) que lhe antecede
21
We've won our little victory against the sanitized machine. (Tradução nossa)
22
The content of her work continues to be ephemerality the presence of the performer sharing time and
acute experience with an audience but the form has become more expansive. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
21
(uma dada composição musical, no caso). Apesar das exceções, o rio das relações
de conformidade geralmente corre no sentido que vai da composição às
interpretações, uma vez que, por definição, o intérprete interpreta o que se
imagina interpretável. A reperformance, contudo, é uma das exceções. Nela, o fluxo
de conformidades se inverte, como se o rio corresse ao contrário: o ato poético
nasce em uma performance autográfica única e singular, de ordem não-
notacional, para então desaguar, por vias inferenciais, numa obra que se pretende
alográfica, porque notacional.
Para fins categoriais, chamarei a esse processo de
redução
. O termo vem de
Gérard Genette, que o usa para referir-se ao processo de passagem de um objeto
ou evento autográfico para um alográfico (Genette, 2001, p.67-76). Consideremos
um exemplo prosaico: “Eu ergo o braço direito e peço a uma pessoa presente que
‘faça o mesmo gesto’; ela, se estiver atenta, erguerá ‘o mesmo braço’ que eu, ou
seja, o seu braço direito” (Genette, 2001, p.67). A rigor, nada impede que o meu
gesto de erguer o braço possa ser visto como um evento singular e irrepetível; é a
decisão do meu interlocutor que firmará, em atenção ao que se pede, quais são
ou não as propriedades comuns entre o seu gesto e o meu. Aceitar ou não o meu
gesto como repetível, usar ou não o braço direito, erguer a mão a certa altura, em
determinada velocidade e dinâmica, ou desconsiderar tais pormenores como
contingentes são decisões de conformidade e identificação. Na prática, as
inesgotáveis filigranas perceptivas da minha ação inicial poderão dar lugar a
uma eventual “reexecução” (“faça o mesmo gesto”) se forem alvo de uma
operação redutiva porque disposta a
reduzi
r a complexidade da experiência a
alguns traços que se supõem pertinentes. É Genette quem esclarece o termo:
Proponho batizar nossa operação institutiva como redução alográfica,
pois ela consiste propriamente de se reduzir um objeto ou evento, depois
de análise e seleção, aos traços que ele compartilha, ou pode
compartilhar, com um ou vários outros objetos ou eventos cuja função
será manifestar como ele, sob aspectos fisicamente perceptíveis, a
imanência ideal de uma obra alográfica (Genette, 2001, p.75).
Tal operação cumpre um papel central na história, na prática e na própria
definição das reperformances. Nesse registro, entendo a redução como um
fenômeno que se caracteriza como o ato voluntário e convencional de inferir um
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
22
determinado padrão notacional, de tipo instrucional, a partir de uma performance
autográfica “de origem”, até então tratada pelo campo da arte como um
acontecimento singular, presencial e, por isso mesmo, irrecuperável,
irremediavelmente abandonado no passado.
A redução, no contexto performático contemporâneo, é uma operação que
tensiona a relação das reperformances com as artes performáticas tradicionais,
visto que nela o trajeto das escolhas poéticas corre, por assim dizer, de forma
anômala, indo da autografia à alografia, para então retornar a uma segunda
autografia, amiúde distinta da primeira, embora não de todo. O percurso
geralmente se inicia com a reconsideração poética de uma performance
precedente que até então se supunha exclusivamente singular e não-notacional.
O objetivo é claro (e um pouco insubordinado): reencenar uma obra, a princípio,
não-encenável. Durante o processo, a unicidade da obra de origem é reavaliada à
luz da operação redutiva: alguns traços pertinentes são selecionados, enquanto
outros, tidos como secundários, são descartados. Na prática, são novas decisões
autorais que expandem, alteram ou mesmo conflitam com as decisões da primeira
performance. O diálogo com os visitantes, a invisibilidade do performer e a
masturbação podem, como vimos, ser entendidos como traços constitutivos
(obrigatórios) de
Seedbed
, ao contrário da presença de Vito Acconci ou de outros
elementos considerados contingentes, como a disposição arquitetônica, as
condições de iluminação e assim por diante.
Trata-se, porém, de uma redução de ordem específica, porque centrada nas
propriedades do arquivo que seleciona. A peculiaridade das reperformances reside
no fato de que o processo de transformação redutiva, na impossibilidade de
contato imediato com a performação primeira, depende integralmente do acesso
e da análise seletiva de sua extensão arquival, sem a qual o movimento de
atualização não seria possível. É somente por meio do manejo dos registros
documentais e da memória neles repertoriada que se pode inferir (poeticamente)
os elementos pertinentes (notacionais) de uma dada performação pregressa, e
com eles recriar as condições mínimas de sua reexistência e atualidade, ainda que
às custas de uma certa “traição” à singularidade de origem. Dito de outra maneira,
a reperformance é o processo de alografização de uma performance autográfica
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
23
através da redução arquival, aqui entendida como o ato de inferir ou inventar uma
notação instrucional a partir da análise do arquivo da performance de origem.
Como estratégia discursiva, a reperformance opera com a sobreposição de
temporalidades. Sua elaboração do tempo, ao justapor as incidências da
atualidade à carga memorial do arquivo, implica a recontextualização permanente
dos sentidos. Cada nova atualização (ocorrência) problematiza o enraizamento
cultural da primeira performance, e ao fazê-lo, abre caminho para atualizações
futuras, problematizando assim o próprio enraizamento da nova obra na
atualidade. Tal
looping
antropológico de signos é uma característica central da
atividade criativa contemporânea. O ato de reviver uma performance pretérita no
presente pressupõe, entre outras coisas, a necessidade de remodelagem do
microcosmo histórico da primeira apresentação (Morgan, 2010, p.2). É o caso, como
vimos, da Seedbed de Abramović, com suas readequações de gênero e interação
pública. Mas também é o caso de outras
Seedbeds
, e com elas, de outras
reperformances. Pensemos na série Synthetic Performances, do coletivo italiano
0100101110101101.org, composto pelos artistas Eva e Franco Mattes. Realizada entre
2007 e 2010, a série consiste na reencenação virtual de cinco performances
históricas dentre as quais Seedbed, produzida em 2007. Em linhas gerais, tais
ciberperformances são encenadas por avatares antropomórficos semelhantes aos
artistas (Stojinić, 2015, p.71). As ações ocorrem no interior da plataforma Second
Life, um conhecido ambiente online multiplayer voltado à simulação de interações
sociais. No caso de Seedbed, o público, formado por personagens de usuários do
Second Life, visita uma galeria virtual disposta à maneira da performance de Vito
Acconci (Mattes; Mattes, 2010). Como na obra de origem, os visitantes escutam os
sons emitidos por Franco Mattes, com a diferença que agora quem se masturba
não é o artista, mas seu avatar, que se esconde sob o piso inclinado da galeria
virtual (Duarte, 2016, p.455).
Ainda que evidentes, as diferenças entre as obras envolvidas nesse looping
de sentidos são tão reveladoras quanto as semelhanças. Assim como a
reencenação de Marina Abramović, a ciberperformance do coletivo opera com o
processo de alografização da obra de Acconci, viabilizado pela redução de seu
arquivo. Mas ao contrário de Abramović, a nova
Seedbed
enfatiza a convergência,
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
24
patente no mundo digital, entre conceitualismo e virtualidade, isto é, entre a
chamada “desmaterialização” da obra de arte e os procedimentos alográficos da
vida
online.
Mais do que a reafirmação da presença e do corpo vivo, Eva e Franco
Mattes realçam a onipresença das relações hipermediatizadas e imateriais da
internet. Não por acaso, os artistas argumentam que as obras da série
Synthetic
Performances
não são críticas ao Second Life, mas sim às artes corporais: “Nós
odiamos performance”, afirma Franco. “Nunca a entendemos direito. Então,
queríamos compreender o que a tornava tão desinteressante para nós, e
reencenar essas performances foi a melhor maneira de descobrir” (Franco Mattes
apud Cooke, 2010, p.398)
23
.
Ao virtualizar eventos poéticos singulares e não-notacionais, a reperformance
funciona como um sinal da extensa difusão da condição conceitual no âmbito da
produção artística contemporânea. Não apenas a reperformance, mas a própria
operação alográfica no arquivo da história uma ocasião para o diálogo entre
sujeitos e contextos de tempos e espaços distintos. Proposto como notação ou
inferido por decisão, o arquivo, enquanto uma forma de exterioridade, permite a
amplificação temporal, mnemônica do evento arquivado. Nas palavras de Derrida,
não há arquivo “sem uma técnica de repetição”, sem a inscrição “em algum lugar
exterior que assegure a possibilidade da memorização” (Derrida, 2001, p.22). A
imanência supostamente “interna” de um acontecimento singular é, por meio do
arquivamento, empurrada, à revelia, em direção à “externalidade” da vida histórica.
Como uma espécie de deslealdade à unicidade do evento, o arquivo, cuja lógica é
a da repetição, é indissociável, portanto, da ideia de destruição (Derrida, 2001, p.23).
O “mal de arquivo”, como lhe nomeia Derrida, nasce de uma contradição inevitável:
“O arquivo trabalha sempre a
priori
contra si mesmo” (Derrida, 2001, p.23). Todavia,
não se trata exatamente da destruição do arquivo, mas daquilo que se arquiva. O
arquivo trabalha “contra” o arquivado na medida em que põe em questão a
singularidade que o define. Ao reprocessar, por vias redutivas, o arquivo de uma
obra autográfica, a reperformance, de certo modo, a “destrói”, pois põe em xeque
sua “interioridade” ímpar (Banks, 2015, p. 43).
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We hate performance art, we never quite got the point. So, we wanted to understand what made it so un-
interesting to us, and reenacting these performances was the best way to figure it out. (Tradução nossa)
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
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Nessa linha de raciocínio, a reperformance surge como uma ameaça ao
componente vivo da experiência. Mas uma ameaça ela mesma viva, porque feita
de imediato, na presença, realojada em novo corpo, diante de outro público. Tal
confusão aparente alimenta incertezas e habita o centro do debate crítico. Nem
bem viva, nem bem morta, a reencenação de obras pretéritas pressupõe uma
temporalidade igualmente híbrida, meio no passado, meio no presente. Não à toa,
o historiador da arte Hal Foster, num lampejo cômico, entende a reperformance
como uma arte zumbi (Foster, 2015, p.127). O argumento, além de burlesco, é
compreensível. A vitalidade da performance primeira, não raro associada às ideias
de autenticidade e originalidade, não tem, de fato, como despontar, ressuscitada,
em novo rito. algo de “morto-vivo” (
undead art
) nesse gesto (Foster, 2015, p.127);
algo ligado à natureza especulativa do mercado da arte contemporânea, à
institucionalização e à espetacularização das performances, como insinua Foster,
sem se aprofundar.
Mas se trata de um modo de falar. A ruína do singular a destruição do
elemento vivo da experiência é também a crise que admite a sua própria
sobrevivência, ainda que enviesada e potencial. A temporalidade híbrida é também
uma potência dialógica, comunicativa. Ao permitir a comparação entre uma obra
primeira e suas reencenações, a redução arquival, no sentido que atribuo ao termo,
estabelece um diálogo (real ou imaginário) que é, por definição, trans-histórico,
porque capaz de ativar, no cruzamento de eixos culturais dessemelhantes, a
produção mesma da diferença e da heterogeneidade. Ao invés de apagar distâncias
históricas ou de reconstruir a “verdade” da obra de origem, tal diálogo desenvolve
a capacidade de abranger uma outra historicidade, sem desativar a consciência da
nossa própria (Bénichou, 2016, p. 22). Uma obra de arte, nessa frequência, deixa de
ser a expressão singular de uma individualidade eucrônica, exclusiva de “seu
tempo”, para se tornar o diálogo intercultural de sujeitos cortados por tempos
impuros. Para além do campo estrito da reperformance, tal tradução trans-
histórica desponta, por vias alográficas, redutivas, como um dos casos mais
notáveis de expansão da ideia de obra de arte.
Reperformance: a presença em questão.
Artur Correia de Freitas
Florianópolis, v.1, n.43, p.1-28, abr. 2022
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Universidade do Estado de Santa Catarina
UDESC
Programa de Pós-Graduação em Teatro
PPGT
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