http://dx.doi.org/10.5965/2175180316412024e0401
Recebido: 11/03/2024
Aprovado: 02/04/2024

Usos e abusos dos direitos humanos no tempo presente

Matheus Fernando Silveira
Universidade do Estado de Santa Catarina
lattes.cnpq.br/2487205866924203
mfsilveiras@gmail.com
orcid.org/0000-0002-9603-4912

Obra resenhada

MOYN, Samuel. Direitos Humanos e Usos da História. São Paulo: Editora Unifesp, 2020, 208p.

Resenha

Os Direitos Humanos são uma questão em ebulição no tempo presente. Mesmo tendo sido escrito originalmente em 2014, este livro - Direitos Humanos e Usos da História - é prognóstico interessante de uma sociedade contemporânea que ora advoga, ora ignora os direitos humanos. Neste sentido, o livro é uma obra bastante crítica, que não dispensa uma historicidade do objeto e um diálogo duro com outras obras clássicas acerca dos direitos humanos – como, por exemplo, A Invenção dos Direitos Humanos, de Lynn Hunt, criticado principalmente por sustentar um continuum dos direitos humanos na História: “Se os historiadores deixarem escapar como eram os direitos no passado, eles não conseguirão nem mesmo reconhecer o que seria necessário para explicar os direitos no presente” (MOYN, 2020, p. 27). Com efeito, a historiografia de direitos humanos contemporânea parece ter duas vertentes majoritárias, com Lynn Hunt - a principal representante de uma delas, a da história profunda, ou da evolução de longa duração - e Samuel Moyn - o nome pioneiro da outra, a da história recente, ou da transitoriedade revisionista de narrativas universalistas (HOFFMAN, 2016).

Não podemos entender direitos humanos – direitos que são ancorados num passado que os legitima, seja evento, lei ou paradigma – sem reconhecer seu potencial para o futuro. Neste sentido, direitos humanos são transicionais e dependentes de certa interpretação do e no presente, em prol de um futuro, numa chave de interpretação da qual a própria história é refém, de acordo com Moyn, que escreve: “A história ainda é escrita por quem e para ser significativa para quem está vivo. Sendo assim, os abusos do passado requerem usos em nome de um futuro melhor” (2020, p.13). O autor, neste livro, quebra uma visão utópica (essencialista, legalista e universalista) do que são os direitos humanos; oferece outra percepção, também utópica (de direitos humanos como moralidade ocidental internacionalizada); e constrói certos parâmetros para uma nova utopia (a de direitos humanos como mecanismo de ação social). Essas são as três principais camadas de direitos humanos a serem observadas no livro: 1) a teleológica, ligada à tradição iluminista francesa e moderna britânica; 2) a ligada ao fim da Guerra Fria e ao protagonismo estadunidense em diplomacias e intervenções internacionais; 3) a que pode ser catalisadora de mudança material concreta, ligada a lutas e a demandas de organizações não governamentais, de proteções individuais e coletivas. Na argumentação de Moyn, todas essas camadas têm certa dose de utopia, mas com propósitos e estruturas bem diferentes.

A obra é um produto notável da história do tempo presente, na medida em que reposiciona e contextualiza o tema a partir de problemas e demandas do agora. É um livro que não apenas afirma que nossa compreensão dos direitos humanos está em permanente transformação e ampliação, como também que esta compreensão não é um produto estanque e contínuo, derivado de uma mítica linear. Esta noção, com efeito, não correspondeu à materialidade dos direitos humanos em suas respectivas épocas, que dirá em tempos contemporâneos! O livro, assim, procura se desvencilhar de certa teleologia essencialista acerca do tema, bastante persistente na literatura acadêmica e política, por demais arraigada em certos cânones da civilização ocidental (independência dos Estados Unidos, Revolução Francesa, Declaração de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), entre outros). Ademais, o autor não tem receio em elaborar severas críticas contemporâneas à materialização dos direitos humanos, trazendo à baila uma série de elementos e episódios (guerras e intervenções militares, justificações de tortura, atuação de tribunais penais internacionais) que demonstram que os usos e abusos dos direitos humanos são política e ideologicamente orientados, e igualmente distantes de um purismo pueril de defesa da dignidade da pessoa humana.

Samuel Moyn é estadunidense, professor de Direito e de História na Universidade de Yale, e leciona disciplinas ligadas à história do direito, ao direito internacional e à teoria política[1]. O pesquisador é autor de diversas obras, bem como proferiu muitas palestras e pronunciamentos acerca dos direitos humanos - em parte disponíveis nas redes sociais. O livro Usos da História não é uma obra isolada, mas condensa uma série de reflexões ao longo de anos de estudo. Desta série, a mais famosa é a obra The Last Utopia: Human Rights in History, de 2010. Foi este livro que tornou Moyn conhecido e alvo de certas tarjas, de controverso a revisionista (CARGAS, 2016). As concepções básicas do autor, contudo, parecem constantes e coerentes em suas obras. Ele critica o pensamento simplista e hegemônico acerca dos direitos humanos e centraliza tais direitos como um horizonte utópico conceitual em constante mutação, uma espécie de mirante de moralidade que não foi alcançado por nenhuma das maiores utopias políticas do século XX - o liberalismo capitalista e o comunismo socialista. Por fim, ele concentra suas análises na época da ascensão política contemporânea do tema – o final da Guerra Fria -, quando a moralidade ocidental dos direitos humanos teria atingido um alcance genuinamente transnacional e se havia espalhado pelo direito internacional, com protagonismo estadunidense (RORIZ, 2018). Para Moyn, os direitos humanos, em sua pragmática contemporânea, não começam antes da década de 1970, e conectar diretamente essa experiência com outras anteriores (iluministas, modernas ou derivadas de Nuremberg na II Guerra) é uma espécie de manipulação do passado, ou abuso da história.

O livro Usos da História contém dez artigos curtos: trata-se de uma coletânea de conferências e textos publicados em revistas (especialmente a The Nation, mas também a Boston Review). Moyn apresenta uma linha de argumentação consistente, em que demonstra uma espécie de lado perverso dos direitos humanos “bem-intencionados” (como intervenções militares), assim como suas supostas “permissões” (tais como a tortura). Ele parece criticar, como historiador, o uso da História como referência legitimadora de políticas do tempo presente, sobretudo no papel de uma história exemplar ou de modelo civilizatório. Penso que essa crítica atinge, em particular, ativistas ocidentais que procuram justificar questões contemporâneas ao invocar de forma teleológica os direitos humanos. Num livro posterior, Not Enough: Human Rights in a Unequal World, de 2018, o autor parece aprofundar esse ponto, demonstrando que esse tipo de (ab)uso dos direitos humanos reforça desigualdades. Em Unequal World, Moyn sustenta que os direitos humanos, por si sós, são incapazes de combater a desigualdade social e são historicamente o braço ideológico de uma democracia liberal burguesa ocidental (PITTS, 2018). Em Usos da História, esse argumento não é longamente desenvolvido, mas apenas esboçado.

Apesar de não ser um livro extenso, é preciso dizer que Usos da História não deixa de ser complexo. É uma obra que parece difícil de ser digerida por um leigo interessado, ou por alguém que primeiro se aventure a estudar direitos humanos. O autor assume que o leitor ou leitora domine certos conhecimentos fundamentais: conceitos relacionados à legislação (tais como validade, nulidade, jurisdição); aos pressupostos do modernismo científico e filosófico (tais como a moralidade nietzschiana); ao clima histórico da França revolucionária e a suas dissidências; à geopolítica local em intervenções militares estadunidenses, dentre outros.

Paradoxalmente, se falta alguma atenção ou alguns pormenores na escrita que tomem a forma de exemplificações, metáforas ou comparações, outros tipos de considerações do autor soam um tanto repetitivas, como a (acertada e dura) crítica à ingenuidade universalista a respeito de direitos humanos. Ao longo do livro, fica mais clara sua intenção de desmontar essa concepção, presente tanto em ativistas e acadêmicos - que glorificam a herança iluminista francesa ou britânica moderna -, quanto no endosso geral de uma hegemonia de moralidade da ONU do século XX. A solução do autor é situar a materialidade do conceito de direitos humanos e o quanto seu uso histórico tem impacto de transformação social concreta menor do que o humanismo e os humanitaristas (ao longo de diversos períodos da história) querem crer e afirmar. Argumentos nessa linha aparecem reiteradamente no decurso da obra, mas isso é algo possivelmente previsível numa coletânea de textos escritos em momentos distintos, todos em torno de um grande tema. É possível que este livro tenha sido pensado como uma simplificação do trabalho acadêmico prévio de Moyn, talvez para ampliar seu público leitor. Nesse caso, cabe verificar se a intenção atingiu seu propósito, uma vez que Usos da História toca questões muito densas, mas soa muitas vezes repetitivo sem esmiuçar detalhes, frustrando um pouco tanto leigos quanto acadêmicos.

Em relação à configuração desse universalismo, o Capítulo 1 começa criticando a famigerada Declaração Universal de Direitos Humanos, apontando uma sua excessiva valorização enquanto paradigma histórico para o tema.  No Capítulo 2, de forma irônica, o autor assevera que o fim da Guerra Fria deu lugar a certa vontade coletiva de impor uma espécie de dignidade universal, criticando outra faceta desse universalismo. Este assunto reaparece mais desenvolvido no Capítulo 4, quando o autor desmonta diversas justificativas morais e materiais para intervenções militares internacionais que, supostamente, pretendiam evitar a violação de direitos humanos. Moyn vai da falácia do imperialismo humanitário britânico (por exemplo, nas pressões militares para acabar com a escravidão atlântica) ao estadunidense (por exemplo, na invasão do Iraque). Para o autor, não apenas essas intervenções não têm motivações genuinamente humanitárias (e, sim, político-econômicas), como muitas delas são violadoras diretas de princípios básicos dos direitos humanos e têm resultados catastróficos para populações locais em curto, médio e longo prazo. Resultados estes, acrescento, com pouca visibilidade na política e na mídia ocidentais. É preciso dizer que a linha de argumentação consistente do autor nos faz questionar com seriedade se tais intervenções deveriam mesmo ter sido realizadas: “A miopia humanitária marginaliza muitas dinâmicas locais de uma crise, quando o melhor seria mergulhar nelas com profunda compaixão, e não com deplorável ignorância” (MOYN, 2020, p. 77).

Sólidos e importantes são os argumentos de Moyn a partir da análise do papel dos tribunais e órgãos internacionais, especialmente penais, e sua pouca eficácia material na operacionalização dos direitos humanos. Ou, ao menos, de uma ideia de direitos humanos que ultrapassem ou enfrentem a barreira de moralidade imposta pela política externa estadunidense e pelas prerrogativas da ONU. A influência estadunidense aparece bem delineada no Capítulo 6, com ênfase no renascimento político dos direitos humanos no governo Carter (1977-1981), durante a Guerra Fria, e mesmo no ativismo posterior do ex-presidente, na multiplicação das ONGs e no endosso de jornais influentes como o New York Times. Já os limites da legislação e da jurisprudência internacionais têm destaque maior no Capítulo 5, tanto em sua dimensão impositiva para países menores no jogo internacional, que têm sua soberania engolida, quanto em sua dimensão inócua em países maiores, com suprassoberania. Nas palavras do autor: “As nações fortes e ricas nunca decretarão a perda de sua própria superioridade – e nenhuma corte internacional ousará chamá-las de inimigas da humanidade por isso” (MOYN, 2020, p. 97-98).

Se Moyn pensa os direitos humanos como (novo) horizonte utópico, ele quer propor uma transcendência: ir além dos direitos públicos e civis, tão bem delimitados pela fronteira moral supracitada. Então, ele retorna ao indivíduo e ressignifica o coletivo para falar dos “deveres humanos”: se a pauta é coletiva, a demanda deve ser buscada e bancada em esfera individual. Não me parece que isso esteja em contradição com sua crítica ao individualismo liberal que permeia a própria compreensão hegemônica de direitos humanos universalizantes, mas seja, antes, uma espécie de chamamento para reivindicar “novos” direitos humanos ligados à concreta materialização da dignidade humana (nas esferas dos direitos individuais, civis, e particularmente, dos direitos sociais). Com efeito, o autor parece demonstrar que deixar coletividade(s) institucional(is) tomar as rédeas dos direitos humanos é garantir intervenções e legislações internacionais questionáveis, bem como criar dinâmicas perpétuas de não ampliação da dimensão (inter)cultural e, especialmente, econômica, dos direitos humanos. Esse tópico aparece principalmente no Capítulo 10, amarrando diversos temas anteriormente conectados. Acrescento, aqui, a grande dificuldade que é pensar direitos e sobretudo deveres humanos no mundo contemporâneo, dada a imposição de um capitalismo globalizado que opera sem horizonte político-econômico macro, concreto e majoritário que o conteste propriamente (como foram o socialismo soviético ou os movimentos de independência no neocolonialismo). É um tema também um tanto abandonado pela historiografia ocidental, como o reconhece o próprio autor: “Resgatar a história dos deveres é um primeiro passo em direção à reflexão e à prática que podem defensivamente conduzir ao resgate dos próprios deveres” (MOYN, 2020, p. 177).

Se Moyn, em sua motivação para a escrita, começa com o presente, ele igualmente termina o seu texto com o presente em sua proposta operacional do uso dos direitos humanos. Depois de uma sequência de críticas, um apelo surge no epílogo, para não abandonar a noção de direitos humanos, tampouco seu horizonte utópico. Esta última parte contém uma lista de indicações para “uma melhor conciliação entre utopismo e realismo” (MOYN, 2020, p. 186).  É um livro, por conseguinte, que em alguma medida dialoga com a história pública, porque parece ampliar o papel do historiador, ao incentivar a renovação da concepção de direitos humanos como alavanca de transformação social, bem como reivindicar os direitos humanos como um conceito com papel sócio-histórico de mudança, de ação e mobilização social. Além disso, também sugere uma percepção e um uso da história como movimento perpétuo, concreto e não linear, como ponte entre passado e presente – o que é bastante coerente com uma percepção teórica da história do tempo presente[2]. Conforme o autor, “os argumentos sobre a história [...] nunca fazem outra coisa senão servir ao presente” (MOYN, 2020, p. 12).

Se o autor defende os (“novos”) direitos humanos como utopia, estes transcenderiam (ou deveriam transcender) seu espaço delimitado pela democracia burguesa ocidental (a legalidade, a jurisdicionalidade, a institucionalidade). Ampliar a percepção e a operacionalização dos direitos humanos envolve reconhecer sua capacidade de mobilização e sua âncora em condições materiais reais de usufruto de direitos básicos. Contudo, envolve igualmente perceber a sua necessidade contemporânea de desprendimento do individualismo liberal (tão caro a suas origens essencialistas), o que significa ampliar o espaço da garantia de liberdades políticas, além de mitigar opressões estruturais e históricas no seio internacional (e não apenas no estatal). Desse modo, Moyn não deixa de se posicionar politicamente, ainda que de uma maneira um tanto vaga. O autor clama por certa radicalização dos direitos humanos, pela criação de uma consciência individual e coletiva de que nenhuma garantia está dada. Não obstante os debates sobre direitos humanos estejam em voga, seu conceito estanque ou seu pragmatismo institucional ideológico não vão resultar em justiça social. Esta última precisa ser incessante para ser relevante; precisa ser mobilizadora para ser efetiva; precisa ser responsável para ser mais reativa e precisa de deveres para estabelecer direitos.

Referências

  1. CARGAS, Sarita. “Questioning Samuel Moyn’s Revisionist History of Human Rights.” Human Rights Quarterly, v. 38, n. 2, 2016, p. 411–425. Disponível em: JSTOR, http://www.jstor.org/stable/24738057.  Acesso em: 15 dez. 2023.
  2. MOYN, Samuel. Direitos Humanos e Usos da História. São Paulo: Editora UNIFESP, 2020, 208p.
  3. HOFFMAN, Stefan-Ludwig. Human Rights and History. Past & Present. v. 232, Issue 1, ago. 2016, p. 237-278. Disponível em: https://doi.org/10.1093/pastj/gtw011. Acesso em: 14 dez. 2023.  
  4. PITTS, Jennifer. Book Review: Not Enough: Human Rights in an Unequal World, by Samuel Moyn. Political Theory, 2018. DOI:10.1177/0090591718817841.
  5. RORIZ, João. Direitos Humanos como um novo projeto para o Direito Internacional? Notas sobre The Last Utopia, de Samuel Moyn. Revista de Direito Internacional, UNICEUB, v. 15, n. 2, 2018, p. 488-496.
  6. VENGOA, Hugo. La Historia del tiempo presente: composición, temporalidad y pertinencia. In: MÜLLER, Angélica; IEGELSKI, Francine. (Org.). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2022, v. 1, p. 29-52.



[1] Informações retiradas do site oficial do Departamento de História da Universidade de Yale: https://history.yale.edu/people/samuel-moyn Acesso em: 14 dez. 2023.
[2] Para mais, ver VENGOA, 2022.


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Revista Tempo e Argumento
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