Introdução
No dia 1º de abril de 1964, a coalizão golpista, composta por contingentes das Forças Armadas, parlamentares de diversos partidos políticos, governadores de estados, meios de comunicação, empresários, lideranças religiosas conservadoras, organizações femininas anticomunistas e numerosos setores da sociedade, foi vitoriosa no golpe de Estado. O golpe civil e militar iniciado no dia 31 de março e vitorioso no dia seguinte, 1º de abril, teve como objetivo central depor João Goulart da presidência da República. Não havia projeto de governo militar ou de ditadura que duraria 21 anos.
Lideranças políticas da coalizão civil golpista acreditavam que os militares agiriam como ocorreu em 1945: as tropas sairiam às ruas para resolver as divergências entre os grupos políticos em conflito. A seguir, retornariam aos quartéis e a vida política seria retomada em sua normalidade. Eles estavam certos que teriam o controle de suas ações e que as perspectivas futuras seriam previsíveis. Nem uma coisa, nem outra. As lideranças políticas do golpe não contavam com a indeterminação na política, com a permanência dos militares no poder após o golpe de Estado. O golpe liberou forças conservadoras e de direita, que apoiaram a formação de um regime autoritário.
Atualmente, sabe-se que o resultado do golpe foi uma ditadura que durou 21 anos. No entanto, naqueles dias de abril de 1964, ninguém poderia saber o que ocorreria nos anos seguintes. O historiador deve evitar narrativas teleológicas. A premissa da narrativa teleológica é de que, “como sabemos o fim de uma história, ela é contada como se o seu fim fosse conhecido desde o seu início” (Ferreira; Gomes, 2014, p. 16). “A tentação é supor que o que aconteceu teria que ter acontecido”. A premissa, absolutamente falsa, é a “de que os protagonistas da ação, no momento em que ela está ocorrendo, não têm dúvidas, não têm escolhas”. Como se apenas um único futuro fosse “possível à sua frente” (Ferreira; Gomes, 2014, p. 381).
O objetivo deste artigo é conhecer o processo de constituição da ditadura militar nos primeiros nove dias após o golpe de Estado – entre 1º de abril, quando a coalizão golpista garantiu a sua vitória, e 9 de abril, dia da edição do Ato Institucional. Nesses nove dias, empresários, políticos conservadores, meios de comunicação, autoridades religiosas, organizações políticas e sociais de direita, entre outros, incentivaram a cúpula militar golpista a punir parlamentares de esquerda, sindicalistas trabalhistas e comunistas, além de personalidades que integraram o governo Goulart. O comando militar obteve apoio político para agir, naqueles primeiros dias do golpe, como tutor da nação.
Em termos metodológicos, recorro ao procedimento da redução de escala, abordagem conhecida como micro-história. Segundo Jacques Revel, a escolha de escala particular de observação “pode ser posta a serviço de estratégia de conhecimentos” (Revel, 1988, p. 20). A micro-história é uma metodologia de pesquisa e uma técnica narrativa. É a partir desses procedimentos – o método e a narrativa – que procuro conhecer a construção do Estado autoritário dias após o golpe civil-militar. Recorro, também, ao que se convencionou chamar de “narrativa densa”, no sentido dado por Clifford Geertz (1973).
A imprensa, aqui, é fonte documental privilegiada para conhecer o processo de formação do Estado autoritário. Alguns jornais estratégicos foram escolhidos. Em São Paulo, a escolha recaiu sobre O Estado de S. Paulo (OESP), pela sua importância e influência política, e sobre a Folha de S. Paulo (FSP). No Rio de Janeiro, um jornal tinha repercussão nacional: o Jornal do Brasil (JB). Um segundo não pode ser desconhecido: O Globo (OG). Outro periódico carioca também era importante: O Jornal (OJ), líder do grupo Diários Associados, pertencente a Assis Chateubriand. A linha editorial de OJ era replicada nas noventa empresas do grupo, como jornais e emissoras de rádio e televisão, em outras capitais e cidades do interior (Martins; Luca, 2008, p. 179)[1].
Escolhas, entretanto, implicam exclusões. Dois importantes jornais ficaram de fora da análise. O primeiro foi o Última Hora (UH). O jornal apoiou o governo Goulart e sofreu sistemática perseguição da polícia e de militares. O segundo foi o prestigiado Correio da Manhã (CM). Como os outros jornais, o CM apoiou o golpe que destituiu João Goulart. Posteriormente, tomou rumo diverso, opondo-se ao regime autoritário. Esse, portanto, é o motivo para a exclusão.
Vale ressaltar que os cinco jornais utilizados na pesquisa são, ao mesmo tempo, fonte e objeto de pesquisa. São fontes porque neles busquei informações sobre os primeiros dias após o golpe de Estado; e objeto, devido à análise que faço de suas posições políticas.
Dia 1º de abril – o golpe vitorioso
Na edição do dia 2, as matérias do JB eram francamente favoráveis às forças vitoriosas. No entanto, como Goulart não renunciara ao cargo e estava em território nacional, os editores do jornal defenderam que a alternativa era o Congresso Nacional declarar seu impeachment (Situação [...], 1964, p. 2). O problema foi resolvido pelo presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, ao declarar vago o cargo de presidente da República. Segundo Flávio Tavares, o Congresso Nacional dera o golpe antes mesmo dos próprios militares, formalizando a derrubada do presidente Goulart (Tavares, 2019, p. 212). “Se o país não tinha mais um presidente”, avalia, por sua vez, Marcos Napolitano, “o caminho dos golpistas estava aberto não só pelas forças das armas, mas pelas artimanhas da própria política institucional” (2014, p. 65). Maria Celina D’Araujo e Mariana Joffily manifestam certa concordância: “o Congresso, sob pressão militar ou em aliança com as Forças Armadas, antecipou-se à renúncia do presidente, declarou vago o cargo e facilitou a chegada dos militares ao poder [...].” (D’Araujo; Joffily, 2019, p. 16). Às 03h45 do dia 2, o deputado Ranieri Mazzille tomou posse no cargo de presidente da República, mesmo estando João Goulart em território nacional.
As linhas editoriais do JB, de OG, de OJ, de OESP e da FSP manifestavam desprezo por Goulart e apoiavam com entusiasmo sua deposição. Vale destacar, no entanto, que não havia nelas propostas de regime autoritário sob o poder das Forças Armadas. O editorial publicado no JB do dia 2 de abril era claro nesse sentido. Segundo os editores, era inaceitável a permanência de João Goulart. “Esse problema foi resolvido pela restauração da legalidade, na sua pureza democrática” (Presente [...], 1964, p. 5). Para os editorialistas, a solução para a crise estava na Constituição: “a Presidência vacante deverá ser ocupada pelo Presidente da Câmara dos Deputados, o primeiro na ordem da sucessão, cabendo ao Congresso eleger trinta dias depois o novo Chefe do Poder Executivo” (Presente [...], 1964, p. 5). Nesse sentido, para o JB, o novo governo deveria preparar o país para as eleições presidenciais de 3 de outubro de 1965 (Presente [...], 1964, p. 5).
É importante lembrar que, de acordo com a Constituição de 1946, caso o impedimento do presidente e do vice-presidente ocorresse na segunda metade do período presidencial, a eleição para ambos os cargos seria realizada pelo Congresso Nacional, trinta dias após a última vacância. Os eleitos completariam o mandato (Brasil, 1946).
Em OG, na primeira página do dia 2, o título do editorial era “Ressurge a Democracia!”. Segundo o texto, os patriotas se uniram para salvar o país da “comunização”, chamando as Forças Armadas para proteger os brasileiros de seus inimigos e dos “vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal”. Segundo o jornal, quem daria o “remédio constitucional à situação existente” seria o Congresso Nacional, “sem que os direitos individuais sejam afetados, sem que as liberdades públicas desapareçam” (Ressurge [...], 1964).
No editorial do dia 3 de abril da FSP, a intervenção militar garantiu a democracia. Segundo o jornal, Goulart foi afastado do cargo quando a crise política chegara a nível intolerável, “mas logo a seguir a palavra foi transferida ao Congresso” (Forças [...], 1964). A crise política foi de tal gravidade, continuava o editorial, que poderia resultar em uma ditadura militar, “fossem menos firmes os sentimentos legalistas das nossas Forças Armadas” (Forças [...], 1964). Para o JB, OG e FSP, portanto, o Congresso Nacional seria o protagonista do processo político.
Em OESP, no dia 2 de abril, o editorial saudou o golpe, defendendo que seu significado fora “bem mais profundo e complexo”. Enquanto para o JB, o OG e a FSP, o culpado pela crise política fora João Goulart. Para os editorialistas de OESP, fora o próprio regime político instituído com a Constituição de 1946 a motivação para o que ocorrera em 1º de abril. Segundo o jornal, a influência da ditadura de Vargas continuou presente no período liberal-democrático pós-1946. Com Goulart, os comunistas estiveram próximos de tomar o poder de modo que a democracia estaria sendo restabelecida com seu afastamento da presidência (O significado [...], 1964).
Nos quatro veículos ainda não se falava em governo militar. Todos expressavam satisfação com o rompimento institucional, sendo a palavra “democracia” bastante citada. Naquele dia 2, acreditava-se que ocorreria algo similar ao episódio do dia 29 de outubro de 1945, quando houve um golpe militar. Vargas foi deposto e logo a seguir o país retomou o processo transição democrática. Até mesmo João Goulart e muitas organizações de esquerda partiram dessa premissa.
No conjunto da imprensa, quem destoou foi OJ do dia 2 de abril. O título principal da primeira página era “Vitoriosa a Revolução”. A palavra “revolução” para definir o golpe de Estado foi usada por OJ antes dos outros quatro periódicos. Também de maneira singular, o editorial de primeira página daquele dia 2 não fazia tantas referências à democracia, mas a punições. O título era “Operação Limpeza”. A palavra limpeza também foi utilizada por OJ antes dos outros jornais. De acordo com o editorial, após a queda de Goulart, cumpria “proceder à higienização da vida pública brasileira” (Operação [...], 1964, p.1). O editorial afirmava: “não é possível que depois de arranhada a ordem legal se mantenha intacto esse dispositivo, por falsos pruridos legalistas” (Operação [...], 1964, p. 1).
O Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e o Pacto de Unidade e Ação (PUA) eram definidos como “espúrio poder sindical”, o qual precisava “ser liquidado e exterminado do sindicalismo” (Operação [...],1964, p.1). A União Nacional dos Estudantes (UNE) funcionava, segundo o editorial, como “uma agência do governo soviético e cubano” (Operação [...],1964, p.1). Ainda segundo o texto, impunha-se “o imediato início da ‘operação-limpeza’, mediante o enquadramento na Lei de Segurança Nacional de todos os elementos, civis ou militares, parlamentares ou ‘pelegos’, que conspiraram pela derrubada do regime” (Operação [...], 1964, p.1). A sugestão do jornal era a cassação dos direitos políticos de todos eles. Recorrendo a metáforas médicas, o editorial terminava: “sem a assepsia após o processo cirúrgico, novos focos de infecção poderão surgir, agravando os males de que padece o organismo nacional” (Operação [...], 1964, p.1).
O editorial de OJ estava à frente no uso do palavreado que logo seria adotado pelos outros jornais – caso de “revolução” ou “limpeza” –, e também se adiantava ao propor a repressão ao sindicalismo e a cassações de direitos políticos. Muito rapidamente os cinco jornais estariam alinhados tanto no linguajar quanto nas propostas repressivas.
O que seria conhecido por “operação limpeza” já havia começado. Logo no dia 1º de abril, líderes sindicais da Guanabara, de São Paulo e Minas Gerais foram presos. Militantes e líderes políticos de partidos de esquerda, sobretudo do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), também foram detidos ou estavam sendo procurados pela polícia.
2 de abril – o golpe que virou revolução
No dia 1º de abril, um general até então desconhecido do noticiário entrou no palácio Duque de Caxias, sede do ministério da Guerra. Alegando ser o general mais antigo do Alto Comando do Exército, ele se autonomeou ministro da Guerra (atual comandante do Exército). Na avaliação de Gaspari, a conduta do desconhecido foi audaciosa ao atropelar normas institucionais e subverter a disciplina e a hierarquia militar (2002, p. 16). Para surpresa de muitos integrantes da coalizão civil-militar golpista, ele instituiu o Comando Supremo da Revolução, também chamado de Alto Comando Militar da Revolução. Tratava-se, na verdade, de uma Junta Militar formada pelos ministros do Exército, Marinha e Aeronáutica. A partir daí, a Junta passou a tutelar a vida política do país.
O golpe foi saudado e bem-recebido por vários setores sociais. Bispos do Paraná emitiram manifesto avaliando: “o maior perigo, no momento, é, sem dúvida, o avanço do comunismo” (Nei Braga [...], 1964, p. 9). O Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Jaime de Barros Câmara, exaltou a atuação das Forças Armadas e afirmou: “sem a punição dos culpados estamos arriscados a perder a batalha final, isto é, a salvação da Pátria. [...] castigar os que erram é obra de misericórdia” (Dom Jaime [...], 1964, p. 2). Na Guanabara, foi realizada a Marcha da Vitória, evento que, segundo cálculos da imprensa, reuniu cerca de 1 milhão de manifestantes. Ao final da marcha, discursaram representantes das religiões católica, umbandista, evangélica, ortodoxa e judaica (GB [...], 1964b, p. 7).
O mesmo ocorria com organizações representativas dos empresários. O presidente da Confederação Rural Brasileira publicou nota apoiando a “vitória da democracia contra o processo de comunização que se implantara no país, com a conivência do governo deposto” (À classe [...], 1964, p. 13). Em nota publicada nos jornais, 34 federações que congregavam quinhentos sindicatos do comércio de vários estados apoiaram a deposição de Goulart (Reafirmação [...], 1964, p. 3). A diretoria do Centro Industrial do Rio de Janeiro publicou nota na imprensa indicando o “saneamento das áreas infiltradas pelos comunistas e seus simpatizantes” (A indústria [...], 1964, p. 3). O vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais confirmou o movimento favorável de empresários para a cassação de direitos políticos de brasileiros que se deixaram alugar “a uma potência estrangeira” (Presidente [...], 1964, p. 3).
Na cidade de São Paulo, emitiram notas de apoio ao golpe de Estado e à punição de “comunistas” o presidente da Federação e do Centro do Comércio do Estado de São Paulo, o Clube dos Diretores Lojistas de São Paulo e a Associação Paulista de Criadores de Bovinos. Mas o apoio não partiu apenas dos empresários. Também respaldaram o golpe engenheiros do Movimento Democrático Politécnico, a Ordem dos Advogados do Brasil – seção de São Paulo, os maçons da Ordem do Grande Oriente de São Paulo, a Federação dos Empregados no Comércio do Estado de São Paulo, a Federação dos Círculos Operários do Estado de São Paulo, estudantes de medicina da Universidade de São Paulo (USP), a Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, entre outras entidades. Vale destacar a nota do corpo docente da Faculdade de Direito da USP. O texto dizia: “os professores catedráticos e livres docentes da Faculdade de Direito de São Paulo manifestam o seu júbilo pela restauração da ordem democrática no País [...], com a condenação de ideologia estranha aos sentimentos cristãos do povo brasileiro” (Une-se [...], 1964, p. 6).
Na mesma página, foi publicado um manifesto assinado por dirigentes de dez federações de trabalhadores, oito de sindicatos e cinco de Círculos Operários. Na nota, eles apoiaram a deposição de Goulart, repudiaram o comunismo e denunciaram que o ex-presidente e o CGT desejaram “transformar o sindicalismo nacional em instrumento de subversão do regime” (Sindicatos [...], 1964a, p. 6). No estado da Guanabara e no antigo estado do Rio de Janeiro, manifesto assinado por presidentes de quatro Federações e onze sindicatos de trabalhadores exigiam a “total descomunização do país e o sindicalismo liberto de ideologias” (Sindicatos [...], 1964b, p. 9).
Há de se observar com atenção as mensagens, sobretudo a dos catedráticos de Direito e a dos sindicalistas. Elas aplaudiam as Forças Armadas por terem deposto Goulart do cargo e manifestavam ideias anticomunistas. Entretanto, não se referiam a governo militar, regime autoritário ou apoio a ditaduras. Para Rodrigo Motta, o “perigo vermelho” cimentou a aliança que sustentou o golpe de Estado. O anticomunismo foi a linguagem comum que aproximou “diferentes grupos e interesses sociais” para depor Goulart (2021, p. 48). Contudo, o principal objetivo dos que apoiaram o golpe de 1964 não foi “uma ditadura duradoura, mas combater os comunistas, as demais organizações de esquerda e os movimentos sociais” (Motta, 2021, p. 69). Ainda segundo Rodrigo Motta (2021, p. 69), “o recurso à solução autoritária” foi um meio de “eliminar tais ‘ameaças’, e não um fim em si”. Como afirmaram os próprios militares golpistas, “não havia um projeto de governo entre os vencedores: o movimento foi contra, e não a favor de algo” (D’Araujo; Soares; Castro,1994, p. 18).
O editorial de OG publicado no dia 3, mas redigido no dia anterior, sinalizava mudanças. Pela primeira vez, naquele jornal, surgiu a palavra “revolução” para definir o golpe de Estado. No editorial, a “revolução” não fora apenas para depor João Goulart; “seu objetivo primordial” foi impedir que “os agitadores comunistas” continuassem dispondo de “possibilidades de influir na vida brasileira”. Nesse sentido, o jornal entendia que caberia ao Congresso Nacional dar continuidade à tarefa iniciada pelos militares. Surgiu, também em OG, referência à “limpeza” como expressão para perseguir aqueles considerados comunistas. Para o editorial, caberia ao novo governo e ao Congresso Nacional “formar, sem demora, os meios de limpar a administração federal e o campo sindical dos elementos comunistas” (A vez [...], 1964, p. 1). Mais ainda, pela primeira vez havia alusão a um presidente militar. O presidente que completaria o mandato de Goulart deveria estar equidistante das candidaturas presidenciais que concorreriam em 1965, defendia o editorial, sendo necessário “um nome militar, por exemplo, do gabarito dos ilustres comandantes do movimento vitorioso” (A vez [...], 1964, p. 1).
A manchete de primeira página do JB do dia 3 de abril afirmava que o “Brasil volta à normalidade” (Goulart [...], 1964b, p. 1). OESP, também em sua primeira página, estampava: “Democratas dominam toda a Nação” (Democratas [...], 1964, p. 1). Mas o país não voltara à normalidade e a democracia era algo do passado. Naquele dia 3, foram presos o marechal Osvino Ferreira Alves, os almirantes Cândido Aragão e Pedro Paulo Araujo Suzano, os generais Ladário Teles e Assis Brasil, além de centenas de marinheiros, fuzileiros navais, sindicalistas e militantes de esquerda. Todos foram detidos sem mandados de prisão. Os governadores do Rio de Janeiro, Badger da Silveira, e de Pernambuco, Miguel Arraes, foram depostos de seus cargos. Arraes foi levado para o arquipélago de Fernando de Noronha. O prefeito do Recife, Pelópidas Silveira, foi deposto após a Câmara dos Vereadores votar o seu impeachment. O prefeito de Natal, Djalma Maranhão, junto com seu vice-prefeito foram presos por oficiais do IV Exército. O prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, foi deposto do cargo e preso. O prefeito de Salvador, Virgildásio Sena, foi deposto por militares, e, posteriormente, a Câmara Municipal declarou vago o cargo. O reitor da Universidade de Brasília (UnB), Darcy Ribeiro, também foi preso. A residência de Leonel Brizola foi invadida pela polícia, e os empregados e os jornalistas presentes foram detidos. O ministro da Justiça do governo Goulart, Abelardo Jurema, foi preso, e seus familiares não souberam de seu paradeiro. Também foram presos ex-ministros do governo deposto, entre os quais, os do Trabalho Amauri Silva, da Saúde Wilson Fadul, da Agricultura Osvaldo Lima Filho, e da Superintendência de Política Agrária (Supra) João Pinheiro Neto.
Muitos caíram na clandestinidade, evitando a prisão, enquanto outros entraram em embaixadas e pediram asilo político. Outros partiram para o exílio em Montevidéu. O militante comunista Gregório Bezerra foi amarrado a um jipe militar e arrastado pelas ruas do Recife. Como se não bastasse essa violência, ele ainda foi barbaramente espancado com uma barra de ferro e obrigado a pisar em ácido de bateria de automóvel (Bezerra, 2011?, p. 553-554).
Professores sofreram perseguições. A diretoria da Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), uma das organizações direitistas que mobilizou mulheres a participar da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, enviou carta aos diretores das escolas solicitando a eliminação do quadro de professores “os elementos comunistas, comunicando às autoridades competentes a razão por que o fazem” (A Camde [...], 1964, p. 10). A fúria policial e militar recaiu particularmente sobre os sindicatos. Em vários estados, os Departamentos de Ordem Política e Social (Dops) fecharam sedes de sindicatos e prenderam seus dirigentes. No interior dos estados do Nordeste, sindicatos e ligas foram fechados, e lideranças de trabalhadores rurais foram detidos por militares. Em OJ, a notícia era de que militares invadiram o Engenho Galileia “o maior foco vermelho do interior pernambucano” (Invadido [...], 1964, p. 7).
Um dos casos mais dramáticos foi a prisão de onze funcionários da República Popular da China. Eles entraram no país graças a acordos entre os governos brasileiro e chinês, estabelecidos em 1961 (Comissão Nacional da Verdade, 2014). Após a prisão por agentes do Dops, todos sofreram torturas. Na edição do dia 4 de OG, os chineses foram acusados dos piores crimes: planejar o assassinato do governador Lacerda e do general Kruel, preparar guerrilha rural, subornar e praticar corrupção (Personalidades [...], 1964).
Os editorialistas do JB e do OESP estavam errados. Nada havia de normal ou democrático em perseguições, prisões arbitrárias, violências, deposições dos cargos e torturas.
Grave foi a recomendação do Conselho Superior da Magistratura (CSM) a todos os juízes do estado de São Paulo. Segundo a circular do CSM, o Tribunal de Justiça e o Corregedor-Geral da Justiça haviam recebido comunicações de graves atritos entre as autoridades policiais “sob o comando revolucionário” e os juízes que concediam habeas-corpus a presos por motivação política (Recomendações [...], 1964, p. 5). Para o CSM, era necessário distinguir as “situações de fato e as de direito” (Recomendações [...], 1964, p. 5). Desse modo, “a eclosão revolucionária” deveria ter como “primeiro pressuposto uma relativa restrição na tutela dos direitos individuais” (Recomendações [...], 1964, p. 5). A recomendação era que os juízes colaborassem, quando possível, “com as autoridades policiais mandatárias da chefia militar revolucionária” (Recomendações [...], 1964, p. 5). O próprio poder Judiciário elaborou diretrizes para garantir a conivência dos juízes com as perseguições e as arbitrariedades policiais e militares.
O ambiente político era o pior possível para as esquerdas. O cerco punitivo vinha de todos os lados.
Abrindo as portas do inferno
Ao refletir sobre as relações entre os poderes Executivo e Legislativo nas democracias liberais, Simone Diniz, com base na literatura especializada, desenvolve análise sobre o que chama de “perspectiva centrada no sistema político”. Segundo essa interpretação, presidência da República e Congresso Nacional operam na arena legislativa de maneira articulada, fazem parte de um mesmo sistema. “Quando buscam uma interação direta, [estas instâncias] podem experimentar tanto o conflito quanto a cooperação, dependendo da ocasião”. Embora se deva pensar o Executivo e o Legislativo de maneira relacional, com os dois poderes atuando em processo de negociação, o peso maior nas decisões finais incide sobre o Congresso Nacional. É verdade que o presidente da República pode se valer de seu poder de veto, total ou parcial, sobre as ações do Legislativo. Mas tais vetos podem ser derrubados pelos parlamentares. Nos regimes de separação de poderes, a última palavra é do Congresso Nacional (Diniz, 2005, p. 335-339). Vale ressaltar, ainda, que o Congresso Nacional tem a prerrogativa de retirar o presidente de seu cargo, por meio do impeachment. Contudo, o presidente da República não pode cassar mandatos parlamentares, muito menos fechar o Congresso.
No dia 2 de abril, o equilíbrio relacional entre os poderes Executivo e Legislativo já estava cindido. O poder Executivo não existia como poder republicano, tal como ocorre em democracias representativas. Ranieri Mazzilli era figura decorativa na presidência de um poder Executivo esvaziado. A “última palavra”, no sentido dado por Simone Diniz, não era mais do Congresso Nacional. O poder Legislativo perdera a capacidade de iniciativa, de tomar decisões. No mesmo movimento, tomou forma outro tipo de poder, nada republicano e muito menos democrático: o poder Militar. Começava a tutela militar sobre o poder Legislativo – embora as lideranças dos partidos políticos e de diversas organizações da sociedade não se dessem conta disso, ou não se manifestassem a respeito, por estarem acuadas diante das ameaças da cúpula militar.
Naquele momento, os poderes da República estavam submetidos ao poder Militar. O JB do dia 3 de abril publicou declaração do presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade: “o movimento revolucionário representa um momento de verdadeira purificação de nossa democracia” (Auro [...], 1964, p. 3). Enquanto isso, o poder Judiciário endossava o golpe de Estado, assim como as ilegalidades e as violências, que começavam. Também no dia 3 de abril, o ministro Ribeiro da Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), emitiu a seguinte nota: “O desafio feito à democracia foi respondido vigorosamente. Sua recuperação tornou-se legítima através do movimento realizado pelas Forças Armadas, já estando restabelecido o poder do governo pela forma constitucional” (STF [...], 1964, p. 4)
Não se vivia o 29 de outubro de 1945, mas algo novo, diferente. “Desde o alvorecer do regime”, analisa João Roberto Martins Filho, “a hipótese de uma intervenção cirúrgica das Forças Armadas – que preparasse o retorno dos líderes civis – passou a se apresentar como improvável” (Martins Filho, 1996, p. 47). As próprias lideranças políticas insuflavam a tutela militar e instigavam os comandantes militares a condenar e punir. O que se lia na imprensa eram expressões como “limpeza”, “sanear” e “purificar”. Palavras que escamoteavam o verdadeiro sentido do que ocorria: perseguição política e ideológica.
Mas, afinal, para a direita civil e militar golpista, quem eram os “comunistas”? Não se tratava apenas de militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB). A palavra “comunista” incluía qualquer partido de esquerda, os militantes do movimento sindical, fossem eles do PCB ou do PTB, como também os que defendiam o nacionalismo, as reformas de base propostas por Goulart, a democracia e os programas considerados hoje como progressistas. De “comunismo” poderia ser acusado qualquer um, desde que não partilhasse ideologias de direita e conservadora.
No dia 3 de abril, as notícias publicadas no JB eram de perseguição aos “comunistas”. O governador do Paraná, Nei Braga, juntou-se ao governador Carlos Lacerda e pediu o “afastamento de todos os elementos suspeitos dos cargos públicos”. A direção da Camde afirmou não admitir “nenhuma transigência com os comunistas” (Líderes [...], 1964, p. 1). No dia seguinte, a Federação das Filhas de Maria do Rio de Janeiro, com dez mil filiadas, apoiou os chefes militares no sentido de erradicar o comunismo, o qual estava transformando o Brasil em um “simples Departamento da Rússia, da China ou de Cuba” (Federação [...], 1964, p. 4). Também foi publicado o manifesto da Frente Patriótica, organização de extrema direita carioca, que exigia o fechamento do CGT, das Ligas Camponesas e de “outras organizações comunistas”, a cassação de direitos políticos, entre outras medidas punitivas (Falange [...], 1964, p. 4). Na interpretação de Rodrigo Motta, lideranças manipulavam a boa-fé e “os sentimentos conservadores de uma parte da população de maneira oportunista”. O objetivo era econômico, como também galgar o poder. Contudo, muitos “acreditavam na existência de forte ameaça comunista no Brasil; seus temores eram exagerados, mas não insinceros” (Motta, 2021, p. 23).
Os clamores por perseguições foram atendidos prontamente. Segundo notícia publicada no JB: “as prisões de elementos comunistas ou simpatizantes do comunismo prosseguem em todo o país – e, em alguns lugares, com especial violência”. Segundo o texto, ainda no dia 3 de abril, forças militares e policiais
invadiram, vasculharam e fecharam o Instituto Brasileiro do Café, a Administração Central do Iapi [Instituto de Aposentados e Pensionistas da Indústria], a sede do Iapetc [Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas] e o Serviço de Prevenção e Repressão aos Crimes contra a Fazenda Nacional, e os ministérios da Fazenda, Trabalho, Saúde, Educação e Minas e Energia (Líderes [...], 1964, p. 1).
Em Belo Horizonte, mais de trezentas pessoas foram detidas por ordem do “comando revolucionário” (Mais [...], 1964, p. 5). Na Guanabara, o navio-transporte Ari Parreiras foi transformado em presídio flutuante. A maioria dos prisioneiros eram sindicalistas e trabalhadores “apontados como comunistas” (Ari [...], 1964, p. 5).
Na Rádio Nacional, César de Alencar, famoso pelo programa com seu nome, distribuiu nota à imprensa declarando que, ao lado de outros companheiros, criara o Movimento de Reafirmação Democrática dos Artistas Brasileiros. No dia do golpe, “forças democráticas”, na definição de OJ, entraram nas dependências da rádio e prenderam diretores e artistas, entre eles Dias Gomes, Mario Lago e Nora Nei. Todos foram levados para o Dops (Rádio [...], 1964, p. 9). No dizer de Maria Celina D’Araujo e Mariana Joffily (2019, p. 17), “a repressão avançava frente a uma sociedade acuada, surpresa ou aliviada”.
Ainda no dia 3 de abril, assembleia com presença de 1.200 oficiais das três Forças Armadas e com a participação da diretoria do Clube Naval indicou algumas providências para o novo governo: cassação dos mandatos de parlamentares, governadores e prefeitos comprometidos com o comunismo, bem como de seus direitos políticos; aposentadoria ou reforma de funcionários públicos civis e militares apoiadores do comunismo ou que tivessem se omitido diante da ameaça comunizante, entre outras medidas punitivas (Decidem-se [...], 1964, p. 13).
Ainda naquele dia, o comandante da Guarnição de Belo Horizonte, general Carlos Luz, declarou: “a consolidação da democracia em nosso país é um problema complexo, que deve durar uns dois anos” (Magalhães [...], 1964, p. 4). Segundo ele, a Lei de Segurança Nacional (LSN) deveria ser aplicada com rigor. “Enquadrar todos os comunistas é fácil”, afirmou, “depende das lideranças no Congresso Nacional. Depois de um movimento desses, não poderemos voltar frustrados, para casa, daqui a um mês” (Magalhães [...], 1964, p. 4). Também no dia 4, quarenta brigadeiros da Força Aérea Brasileira (FAB) lançaram nota exaltando a “revolução” e exigindo a punição de comunistas (Brigadeiros [...], 1964, p. 9). O general Adalberto Pereira dos Santos propôs ao Alto Comando da Revolução instituir o banimento de cidadãos do país (Gaspari, 2002, p. 130).
Cassações de mandatos, perda dos direitos políticos, banimentos, processos pela LSN, eis algumas propostas de militares em seus clubes e na imprensa. Mesmo que se tratasse da perda de mandatos de parlamentares eleitos democraticamente, nas páginas do JB, de OG, de OJ, do OESP e da FSP não havia qualquer crítica à proposta. Parlamentares apoiaram a medida, mas surpreendentemente foi a bancada udenista na Câmara dos Deputados que rejeitou as cassações dos mandatos. Na bancada trabalhista no Senado, parlamentares afirmaram a necessidade de moderação e o entendimento de evitar “desdobramentos nefastos ao regime” (Líderes [...], 1964, p. 1). Muito certamente eles sabiam do que eram capazes os comandantes militares. As violências praticadas, inclusive contra governadores de estado, indicavam que deputados e senadores poderiam ser incluídos na sanha punitiva.
O golpe abriu as portas do inferno político. Na assembleia do Clube Militar com a participação da diretoria do Clube Naval, oficiais discursaram. Um deles lamentou a atitude dos chefes militares, os quais conduziram as tropas à vitória e, segundo ele, ficavam “agora cheios de dedos”. E afirmou: “fizemos uma revolução sim. E vencemos. Agora é preciso ocupar com urgência os postos deixados vagos. É preciso não permitir que políticos, sabidamente oportunistas, iniciem cambalachos de seus interesses” (Sugerido [...], 1964, p. 1). O discurso do oficial expressava o pensamento dos militares que, mais adiante, seriam chamados de “linha dura”. Na definição de João Roberto Martins Filho, o grupo reivindicava mais rigor nas “depurações” do sistema político e ambicionava influenciar os rumos do governo militar (Martins Filho, 1996, p. 14). Maud Chirio considera que esses militares defendiam certa interpretação do que chamavam “revolução de 31 de março de 1964” (Chirio, 2012, p. 50). Eles tinham o ideal de uma ditadura na qual pudessem desempenhar um papel central. Uma de suas exigências era um expurgo radical. Eram “ativistas de extrema direita, anticomunistas, antigetulistas e muitas vezes lacerdistas fanáticos”, afirma a historiadora (Chirio, 2012, p. 91). Os governadores e os parlamentares que integraram a coalizão golpista não contavam com o surgimento, no cenário político, da “linha dura”, cuja liderança era o ministro da Guerra, general Costa e Silva. O pós-golpe não foi como planejaram. Os planos dos líderes políticos golpistas não foram previsíveis, muito menos controláveis.
Culpar, condenar e punir
Em sua primeira página, OESP noticiou que, no dia 3 abril, nos meios militares, surgiu a tese de que o presidente a ser eleito pelo Congresso Nacional deveria ser um militar. Entre os nomes aventados figuravam os dos generais Castelo Branco, Mourão Filho e Amaury Kruel (Consolida-se [...], 1964, p. 1). O nome do general Castelo Branco tinha ampla aceitação nos meios políticos e militares para assumir a presidência da República por eleição indireta e cumprir o restante do mandato de João Goulart.
No dia 4 de abril, reuniram-se, no Palácio Guanabara, os sete governadores que apoiaram o golpe de Estado: o da Guanabara, Carlos Lacerda, o de Minas Gerais, Magalhães Pinto, o de São Paulo, Ademar de Barros, o do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, o do Paraná, Nei Braga, o de Goiás, Mauro Borges e o do Mato Grosso, Fernando Correia Costa. Todos indicaram o general Castelo Branco como candidato à presidência da República, apenas com o voto contrário de Ademar de Barros. Quase ao mesmo tempo, o Alto Comando Militar da Revolução também decidiu pela candidatura de Castelo Branco (Reunião [...], 1964, p. 3.
O general também teve o apoio do JB, de OG, de OJ e do OESP. A FSP não se posicionou sobre candidaturas à presidência, embora demonstrasse discreto apoio ao general Amauri Kruel. A própria imprensa apoiava e estimulava uma candidatura militar. Em editorial, OESP afirmou que “seria um desastre que preocupações ou reivindicações partidárias interferissem nos trabalhos que a Revolução tem a realizar”. As tarefas exigiam na presidência da República alguém perfeitamente integrado à revolução: “acreditamos que só um militar esteja nessas condições” (Inadmissível [...], 1964, p. 4).
Nas reuniões de governadores e generais, não houve apenas a indicação do candidato à presidência, mas também discussões sobre punições (Reunião [...], 1964 p. 3). Ademar de Barros afirmou que era condição sine qua non para seu governo a cassação dos mandatos “dos deputados e senadores esquerdistas, para que a revolução cumpra o seu objetivo”. Os membros da Frente Parlamentar Nacionalista, por exemplo, deveriam ser julgados por crimes contra a Segurança Nacional e, a seguir, cassados, dizia (Ademar [...], 1964, p. 1). O governador de Alagoas, Luís Cavalcanti, dias depois, declarou aos jornais que era “totalmente favorável à cassação imediata e sumária dos mandatos dos parlamentares esquerdistas e comunistas” (Governador [...], 1964, p. 13). O deputado Nina Ribeiro, da Assembleia Legislativa da Guanabara, defendeu a cassação dos mandatos de parlamentares comunistas. “Não se trata de vingança”, afirmava, “mas de profilaxia moral do povo brasileiro” (Nina [...], 1964, p. 3).
A proposta militar de cassação de mandatos parlamentares tomava força não apenas nos meios políticos, mas também em organizações da sociedade. A diretoria do Centro Industrial do Rio de Janeiro, em nota à imprensa, além de elogiar as Forças Armadas, fez um apelo ao Congresso Nacional para que oferecesse ao poder Executivo “os instrumentos legais” que lhe permitisse “expurgar, radicalmente, as hostes comunistas, tais como a cassação dos direitos políticos dos extremistas e seus aliados” (A indústria [...], 1964, p. 3). Também em nota nos jornais, a presidenta da Camde afirmou:
[...] a Pátria deseja se ver definitivamente livre dos comunistas e dos inocentes úteis onde quer que estejam, inclusive cassando mandatos e direitos políticos daqueles participantes dos Legislativos Federal, Estaduais e Municipais. [...] limpeza total e intransigente é que desejamos ou votaremos às ruas e às praças com todas as nossas forças (Manifesto [...], 1964, p. 7).
Uma comissão de duzentas mulheres representando organizações dos estados de São Paulo, da Guanabara, do Paraná, de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul foi a Brasília entregar um manifesto ao Congresso Nacional. Elas pediam a imediata eleição do general Castelo Branco, a suspensão dos direitos políticos, a cassação dos mandatos dos parlamentares comunistas e a ruptura de relações do Brasil com países que pretenderam implantar o regime comunista aqui (200 senhoras [...], 1964, p. 4).
Os anseios punitivos dos militares identificados com a “linha dura” tinham o incentivo de diversos setores sociais, da imprensa, em particular. No dia 4 de abril, editorial de OESP afirmava: “Enquanto não se concluir a erradicação do comunismo, não se poderá dizer que tenhamos voltado à normalidade legal e à tranquilidade e segurança na vida democrática” (A solução [...], 1964, p. 3). Em entrevista na TV Tupi, o deputado João Calmon, um dos diretores dos Diários Associados, declarou: “Precisamos higienizar o país e livrar o Brasil do germe comunista que contaminou toda a Nação” (Calmon [...], 1964, p. 3). Para ele, o que ocorreu durante o governo Goulart foi uma “terrível conspiração internacional, cujos participantes conscientes ou inconscientemente estavam a serviço de potências estrangeiras como a Rússia e a China Vermelha” (Calmon [...], 1964, p. 3).
Ao mesmo tempo, começava algo que se tornou comum durante os anos seguintes: a destruição de reputações. Mentiras sobre a vida pregressa de adversários políticos surgiam nas páginas dos jornais, sem que o acusado pudesse se defender. O primeiro a ter a reputação manchada foi o ex-presidente João Goulart. Na tribuna da Câmara Federal, o deputado da União Democrática Nacional (UDN) da Bahia, Antônio Carlos Magalhães, afirmou que, em 1945, Goulart recebera de herança do pai modestos 425 hectares de terras, e que, vinte anos depois, o ex-presidente já era proprietário de várias fazendas, tornando-se “o maior senhor e possuídor de terras do país” (Deputado [...], 1964b, p. 5).
Também começou a prática de listar nomes de personalidades que atuaram no governo Goulart ou, fora dele, na militância das esquerdas. Em OG foi publicado o manifesto de fundação do Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI). Originalmente, o manifesto veio a público em 7 de outubro de 1963. O CTI foi uma organização que agregou artistas e intelectuais na luta pelas reformas de base. O manifesto foi publicado na íntegra pelo jornal. A chamada de OG dizia: “Este é o manifesto do chamado Comando dos Trabalhadores Intelectuais, que trabalhou ativamente pela implantação do regime comunista no Brasil. Republicando-o agora, chamamos a atenção do alto comando Militar para os nomes que o assinaram” (Fundação [...], 1964, p. 5). Os militares, assim, tinham à sua disposição centenas de nomes nas áreas do direito, arquitetura, medicina, literatura, teatro, artes plásticas, educação, cinema, rádio e televisão, editoria, jornalismo e economia. Ao final do texto, havia a seguinte menção: “transcrição paga por um grupo de democratas” (Fundação [...], 1964, p. 5).
Jornais e profissionais da imprensa começaram a sofrer com o autoritarismo crescente. A FSP foi o primeiro veículo da imprensa a sofrer censura. Por publicar entrevista com João Goulart, o governador do estado, Ademar de Barros, ordenou que agentes do Dops invadissem a sede do jornal, interrompessem a tiragem e apreendessem os exemplares já impressos (Goulart [...], 1964a, p. 2). O jornal Gazeta Esportiva também foi recolhido por ter publicado notícias de Goulart. Na Guanabara, OJ noticiou que, no dia 4 de abril, a edição de Última Hora fora apreendida ainda nas bancas de jornais pela polícia política (Apreendida [...], 1964, p. 9). A notícia foi publicada como se a ação dos agentes do Dops fosse algo normal. Todos os dias as edições de Última Hora eram apreendidas e os funcionários sofriam com a arbitrariedade policial (Última [...], 1964, p. 5).
A repressão das polícias estaduais e dos militares às esquerdas era marcada pela violência. O movimento sindical vinculado ao PTB e ao PCB sofria com as prisões de seus dirigentes em todo o país. Segundo notícia em OJ: “abrange, agora, a todas as frentes, a luta pela erradicação do comunismo no estado da Guanabara”(GB [...], 1964a, p. 7). No dia 3 de abril, a matéria no jornal dizia que
[...] todos os órgãos federais sediados na Guanabara estão sob regime de intervenção militar. Oficiais do Exército, à frente de contingentes da Polícia Militar, visitaram repartições públicas e autarquias, especialmente os Institutos de Previdência, prendendo funcionários e dirigentes comunistas, enquanto outros presidentes de Institutos estão foragidos. Mais de quinhentas prisões já foram efetuadas (GB [...], 1964a, p. 7).
O ambiente era de verdadeiro terror para sindicalistas e militantes de esquerda. No dia 5 de abril, no antigo estado do Rio de Janeiro, estavam presos sindicalistas, deputados, prefeitos, vereadores, funcionários públicos, médicos, operários e trabalhadores rurais (O novo [...], 1964, p. 7). Na Guanabara, os detidos ficaram no presídio da Ilha das Flores. O tratamento era o pior possível. Além do navio Ari Parreiras, muitos prisioneiros foram levados para o Raul Soares e o Princesa Leopoldina. Os estudantes acusados de “comunismo” ficaram presos no ministério da Guerra. As mulheres foram levadas para a penitenciária de Bangu. Tudo era noticiado sem críticas, como se as prisões fossem necessárias. Segundo Rodrigo Motta (2021, p. 105), cálculos apontam que cerca de 30 mil a 50 mil foram “detidos nos dias iniciais do golpe.”
Nem mesmo juízes tinham seus direitos constitucionais garantidos. No dia 7 de abril, os ministros do STF avaliaram o teor do telegrama enviado por todos os desembargadores do Tribunal de Justiça de Goiás denunciando a prisão de um juiz em Goiânia, por “ordens emanadas de Brasília” (Supremo [...], 1964, p. 5). Na UnB, policiais prenderam professores e estudantes, interditando ainda a biblioteca (Presos [...], 1964, p. 4).
Retornemos ao dia 6 de abril, terça-feira. Neste dia, OG noticiou a morte do tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro, oficial do quartel-general (QG) da 5ª Zona Aérea que ficou conhecido durante a Campanha da Legalidade. Na ocasião, entre agosto e setembro de 1961, Alfeu Monteiro liderou sargentos e oficiais na Base Aérea de Canoas para impedir que aviões de caça levantassem voo para bombardear o Palácio Piratini. Posteriormente, o tenente-coronel posicionou-se contra o golpe de Estado que depôs Goulart – razão pela qual houve a ordem do comando da FAB para prendê-lo. Segundo nota do ministro da Aeronáutica, Alfeu Monteiro reagiu à voz de prisão, atirando cinco vezes, mas acertando dois tiros no oficial que fora até o seu gabinete prendê-lo. Ainda de acordo com a nota oficial, os seguranças reagiram, levando Alfeu Monteiro à morte (O coronel-aviador [...], 1964, p. 4). Versões afirmam que o tenente-coronel morreu com um único tiro. Sua morte ocorreu no dia 4, um domingo. Alfeu de Alcântara Monteiro atualmente é considerado o primeiro militar morto pela ditadura. O Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos do Comitê Brasileiro pela Anistia, Seção Rio Grande do Sul, obteve o laudo da autópsia. Alfeu foi morto com dezesseis tiros de metralhadora pelas costas.[2]
O cerco se fechava contra o Congresso Nacional. A oficialidade das Forças Armadas, com apoio de governadores de estados e organizações sociais de direita, insistia em cassar mandatos parlamentares. As ameaças de cassação atingiriam a independência de um dos poderes da República. As reações não vieram de parlamentares de esquerda, acuados que estavam, mas dos próprios conservadores. O primeiro a protestar foi o udenista Adauto Lúcio Cardoso. Para ele, existiam dispositivos legais em vigor para punir parlamentares: “cassação pura e simples, não”, afirmou (Coluna [...], 1964, p. 4). No entanto, o conjunto dos parlamentares endossou a medida. No dia 6 de abril, o deputado federal por Santa Catarina, Laerte Vieira, discursou no plenário da Câmara: “o processo da contra revolução vitoriosa, em plena marcha, não pode frustrar os seus objetivos”, se ficar apegado “a dispositivos legais ou constitucionais, nessa hora inaplicáveis” (Deputado [...], 1964a, p. 6).
Fora do parlamento, poucas vozes se levantaram, naquele momento, contra as violências e as arbitrariedades. Ou melhor, raras foram as vozes, devido à repressão policial e militar. Uma delas foi expressa na nota assinada pela diretoria da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). No dia 3 de abril, os dirigentes da ABI protestaram contra a prisão de jornalistas, o atentado contra a sede do jornal Última Hora e a destruição da sede do jornal Novos Rumos, do PCB (ABI [...], 1964, p. 4).
O poder Militar
As próprias instituições se dilapidavam, contribuindo para a desagregação da institucionalidade republicana e democrática. Com 75 votos a favor e nenhum contra, os deputados da Assembleia Legislativa de Minas Gerais cassaram os mandatos do trabalhista e presidente do CGT Clodesmidt Riani, do também trabalhista e sindicalista Sinval Bambirra e de José Gomes Pimenta, do Partido Democrata Cristão (PDC) (Mineiros [...], 1964, p. 8). O Diretório Estadual do PTB da Guanabara marcou reunião para “expulsar do partido todos os elementos considerados extremistas” (Diretório [...], 1964, p. 9). A bancada do PTB no Congresso Nacional, em sua maioria, manifestou que o partido sempre defendeu o trabalhismo democrático e que a esquerdização durante o governo Goulart ficou restrita a três nomes: Leonel Brizola, Almino Afonso e Bocaiúva Cunha (PTB [...], 1964, p. 8). A Seção da Guanabara do Partido Trabalhista Nacional (PTN) foi ainda mais longe. Definindo o governo Goulart como “caudilhista apoiado na corrupção e no Comunismo Internacional”, seus dirigentes defenderam a cassação de todos os parlamentares envolvidos na “sovietização do país”, o expurgo de comunistas de toda administração pública civil e militar, a eleição de um militar para a presidência da República, a desmontagem da “máquina pelego-comunista” dos sindicatos e a “desintoxicação de setores populares envenenados pela demagogia comuno-caudilhista” (Partido Trabalhista Nacional, 1964, p. 13).
A OAB publicou nota em OJ desmentindo boatos de que seria contra a candidatura do general Castelo Branco. Após o desmentido, a nota concluía: “Se a OAB, neste momento, tivesse que manifestar-se a respeito do grande Chefe Militar, só faria para congratular-se com S. Excia. que contribuiu tão eficazmente para o restabelecimento da ordem jurídica e constitucional da República” (OAB [...], 1964, p. 7).
Notícias de que um ato institucional seria instrumento utilizado para punição começaram a circular no dia 6 de abril. No dia seguinte, OESP publicou matéria com o título: “O comando revolucionário recomenda expurgo total”. Tratava-se de indicação da cúpula militar para fazer “um processo drástico e rápido de expurgo em todos os escalões da vida pública”. O novo presidente deveria dispor de poderes para prender e expulsar “comunistas” das Forças Armadas e da administração pública; cassar mandatos parlamentares; suspender direitos políticos; sustar as garantias do artigo 141 da Constituição, que tratava dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade; e cancelar direitos adquiridos (O comando [...], 1964, p. 3).
Em OG a novidade também foi noticiada, em 7 de abril. O jornal passou a nomear o golpe de Estado de “Movimento Revolucionário Democrático”. Segundo a matéria publicada, os chefes militares levaram ao conhecimento dos dirigentes partidários a necessidade de “desmantelamento do processo comunizante”, promovido pelo governo deposto. Para isso, seria necessário um ato institucional que pudesse “ser comparado a uma pequena Constituição”, a ser aprovado pelo Congresso Nacional imediatamente. Segundo matéria de OG, “no caso de sua não aprovação pelo Congresso, o Ato seria simplesmente outorgado pelo Executivo, com o apoio dos chefes militares” (Os chefes [...], 1964, p. 14).
No mesmo dia 7, o JB também informava ao leitor que lideranças no Congresso Nacional estavam a par de que o “comando militar revolucionário” estava disposto a impor “uma pequena constituição”. Nos corredores do parlamento as notícias eram de que o poder Legislativo seria extinto. Diante da coerção militar, os parlamentares estavam propensos a aceitar o Ato Institucional. O “grosso dos parlamentares”, continuava o JB, de “quase todos os partidos, encara com naturalidade a ação militar, por eles mesmos estimulada”. Os militares queriam a institucionalização do novo regime político, mediante a aprovação do Ato Institucional. Caso contrário, terminava o texto, “a chefia militar da revolução outorgará o Ato Adicional” (Militares [...], 1964b, p. 6). O que se lia na página de editorial do JB e de OG era claro: o poder Legislativo federal perdera independência e autonomia enquanto poder republicano. O poder político do país estava, de fato, com o comando das Forças Armadas.
Em uma quarta-feira, dia 8 de abril, a página do editorial do JB revelava o avanço da submissão do Congresso Nacional ao que chamavam, a partir daquele momento, de Comando Militar Revolucionário. Os parlamentares, noticiava o jornal, ofereceriam aos militares “instrumento de institucionalização do novo regime”. Os “chefes militares”, continuava o texto, “apertaram o cerco e o Congresso rendeu-se, por um lado, à evidência de que a Constituição está de fato suspensa” (Lei [...], 1964, p. 6). Três deputados federais foram indicados pelas lideranças do Congresso para formarem uma comissão que escreveria o projeto que daria fundamentos ao Ato Institucional: Pedro Aleixo (UDN), Ulisses Guimarães (PSD) e Arnaldo Cerdeira (Partido Social Progressista – PSP). A comissão recebeu sugestões do jurista Francisco Campos e do senador Afonso Arinos de Melo Franco. Os três deputados passaram a tarde e a noite redigindo os termos do Ato Institucional e depois submeteram o texto aos líderes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, além do presidente do Senado, Auro de Moura Andrade. Todos aprovaram o trabalho da comissão, com pequenas ressalvas (Lei [...], 1964, p. 6). No entender de Elio Gaspari, os parlamentares não estavam dispostos a cassar mandatos de colegas da esquerda. Firmou-se, desse modo, “um acordo tácito segundo o qual a violência viria de fora.” (Gaspari, 2002, p. 123).
Segundo o projeto elaborado pela comissão de deputados, o próximo presidente da República poderia suspender a estabilidade do funcionalismo público, as garantias constitucionais e a inamovibilidade da magistratura, de modo que o expurgo pudesse atingir o poder Judiciário. Poderia também cassar mandatos parlamentares, direitos políticos de cidadãos, em particular de líderes políticos, sindicais e estudantis, e o registro de partidos que abrigassem comunistas (Lei [...], 1964, p. 6). Chama atenção o fato de que foram os líderes do Congresso Nacional e os próprios deputados e senadores que se submeteram aos chefes militares, oferecendo a eles instrumento jurídico para excluir direitos constitucionais dos cidadãos e perseguir, de maneira arbitrária, tantos outros. Os poucos parlamentares que resistiram às medidas arbitrárias não foram ouvidos.
Por vontade própria, talvez acuados, possivelmente coagidos, parlamentares no Congresso Nacional concediam aos militares poderes políticos excepcionais. Ao mesmo tempo, líderes na Câmara dos Deputados pediam urgência na aprovação do projeto “do novo código de vencimentos e vantagens dos militares” (Militares [...], 1964a, p. 7). Queriam o aumento da remuneração dos homens de farda.
O primeiro Ato (de muitos outros)
Até a meia-noite do dia 8 de abril, deputados e senadores, em Brasília, acreditavam que o instrumento jurídico elaborado pela comissão seria aceito pelos comandantes militares. No entanto, na primeira hora do dia 9 de abril, o Comando Militar Revolucionário, também chamado de Comando Supremo da Revolução ou Alto Comando da Revolução, comunicou ao presidente em exercício, Ranieri Mazzilli, que não aceitaria o texto formulado pela comissão parlamentar (Militares [...], 1964c, p. 6).
Naquele dia, os três ministros militares que constituíam o referido Comando, ou Alto Comando, editaram o Ato Institucional. Às 17h45, os três ministros assinaram o documento no Salão Nobre do Palácio Duque de Caxias – sede do Ministério da Guerra. O Ato Institucional não tinha número. O jurista Francisco Campos e o procurador da República Carlos Medeiros Silva redigiram o texto. No preâmbulo do Ato Institucional, afirmava-se que ocorrera, no Brasil, uma “autêntica revolução”. E que a marca de uma revolução era sua capacidade de traduzir “o interesse e a vontade da Nação”. Nesse sentido,
a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como o Poder Constituinte, se legitima por si mesma. [...] os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação inequívoca da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder Constituinte, de que o Povo é o único titular (Comando [...], 1964, p. 1).
Em outros termos, os três poderes da República – Executivo, Legislativo e Judiciário – estavam limitados pelo poder Constituinte instaurado pela “revolução” e legitimados por ela. O poder Constituinte era exercido pelos chefes militares em nome do povo. Estavam abolidos, portanto, os princípios elementares das instituições republicanas e da democracia representativa. O Ato Institucional, transferia o poder político do Congresso Nacional para as Forças Armadas. Os três ministros militares não escondiam seus objetivos autoritários e antidemocráticos. O Ato Institucional estabeleceu os fundamentos da ditadura militar.
Apesar disso, ainda no preâmbulo do Ato Institucional, eles afirmavam que não pretendiam “radicalizar o processo revolucionário”, tanto assim que mantiveram a Constituição de 1946. Limitavam-se a modificar as prerrogativas do poder Executivo, as quais seriam ampliadas para “tomar as urgentes medidas destinadas a drenar o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências administrativas”. No entanto, para não radicalizar o “processo revolucionário”, os ministros militares afirmaram: “resolvemos, igualmente, manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes, constante do presente Ato Institucional”. Mas deixavam bem claro: “a revolução não procura legitimar-se através do Congresso. Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação”. Ou seja, o Congresso Nacional não era mais reconhecido em sua legitimidade política devido ao voto popular, muito menos como um dos poderes da República; sua existência era devida ao poder Constituinte do “processo revolucionário”.
A mensagem contida no preâmbulo do Ato Institucional não poderia ser mais objetiva: o poder Militar subjugava o poder Legislativo. O Congresso Nacional não foi extinto, e a própria Constituição de 1946 continuava em vigor, mas devido à boa-vontade dos chefes militares. Mas por que mantiveram o Congresso e a Constituição? Muito certamente porque justificavam o golpe de Estado como uma medida para defender a democracia do comunismo.
A seguir, o Ato Institucional tratava das novas prerrogativas do presidente da República e as punições que tão bem conhecemos, como cassações de mandatos parlamentares, suspensão dos direitos políticos, entre outras.
Os cinco jornais apoiaram a imposição do Ato Institucional. O que mais chama atenção foi a FSP. O editorial do dia 10 reconhecia que o “Supremo Comando da Revolução Vitoriosa” agiu com “sinceridade” ao decretar o Ato Institucional (O ato [...], 1964, p. 4). E afirmava que os “chefes militares” eram mais “sensíveis” do que os civis quanto aos problemas de segurança nacional, “ameaçada pela comunização do país” (O ato [...], 1964, p. 4). Para a FSP, as medidas de exceção permitiriam que o próximo presidente – um militar – pudesse realizar “a tarefa de reconstrução política e econômica do país” (O ato [...], 1964, p. 4).
Naquela noite, o presidente Ranieri Mazzilli emitiu manifesto à nação.
Tomamos conhecimento do Ato Institucional editado pelo Comando Supremo da Revolução, representado pelos Comandantes-Chefes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, e destinado a colaborar na obra de que participaram o povo, poderes constituídos e as Forças Armadas, visando ao aniquilamento do comunismo ateu e à restauração da verdadeira ordem democrática no Brasil. Invocando os poderes que devem decorrer de um movimento revolucionário e desejando que seus objetivos não sejam frustrados, os ilustres Chefes das Forças Armadas tomaram a si o dever de institucionalizar a revolução vitoriosa, dentro dos princípios éticos e políticos que as inspiraram, baixando o Ato Institucional de 9 de abril de 1964 (O presidente [...], 1964, p. 6).
O presidente da República interino, dessa maneira, reconhecia que o poder político no Brasil, naquele momento, era exercido pelo poder Militar. As bases da ditadura estavam dadas. Não foi casual que o ministro da Guerra, general Arthur da Costa e Silva, logo após a assinatura do Ato Institucional, declarou estar sendo instaurada uma “nova República no país” (Ato [...], 1964, p. 10).
Palavras finais – construindo a ditadura
Os jornais não apenas apoiaram o golpe de Estado, mas a própria construção do regime autoritário. Como diversas outras instituições políticas e organizações sociais conservadoras e de direita da época, os jornais defenderam punições e perseguições, como também a instauração de um governo militar, apoiando o Ato Institucional.
O golpe de Estado deve ser considerado como civil-militar porque perpetrado por ampla e heterogênea coalizão direitista, formada por contingentes das Forças Armadas, parlamentares e lideranças dos partidos políticos, membros do poder Judiciário, a maior parte da imprensa, empresários de diversos ramos da economia, ativistas de diversas religiões, organizações femininas anticomunistas, classes médias conservadoras, entre outras organizações sociais de direita. Sem o aval do Congresso Nacional e a conivência do STF, o golpe poderia ter sido abortado. É nesse sentido que considero o golpe civil e militar.
Contudo, entendo que o poder político, a partir do dia 2 de abril, foi exercido pelas Forças Armadas, em particular pela cúpula do Exército, tendo o respaldo da mesma ampla coalizão política e social que participara do golpe. Nesse sentido, o golpe foi civil-militar, como também a construção da ditadura. Mas bastaram poucos dias para se consolidar uma ditadura exclusivamente militar, porque o poder político e as decisões que alteraram os rumos do país foram tomadas pelo poder Militar, ainda que com apoio de parlamentares e diversos setores da sociedade.
Referências
- ABI protesta contra invasão de jornais. O Estado de S. Paulo, São Paulo, p. 4, 4 abr. 1964.
- ADEMAR exige cassação. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 1, 5 abr. 1964.
- APREENDIDA a edição de “Última Hora”. O Jornal, Rio de Janeiro, p. 9, 5 abr. 1964.
- ARI Parreiras volta a ser prisão flutuante. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 5, 4 abr. 1964.
- ATO Institucional garante armas para a democracia. O Globo, Rio de Janeiro, p. 13, 10 abr. 1964.
- O ATO Institucional. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 4, 10 abr. 1964.
- AURO coordena eleição. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, p. 3, 4 abr. 1964, p. 3.
- BEZERRA, Gregório. Memórias. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011?
- BRASIL. [Constituição (1946)]. Constituição Federal de 1946. Brasília, DF: Presidência da República, 1946. Parágrafo 79, artigos 1º e 2º. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 13 dez. 2023.
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Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC
Programa de Pós-Graduação em História - PPGH
Revista Tempo e Argumento
Volume 16 - Número 41 - Ano 2024
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