Introdução: delimitação conceitual e apresentação do objeto
Este artigo é parte de projeto de pesquisa em desenvolvimento que reflete sobre o processo da transição brasileira. Partimos, aqui, de uma sintética reflexão sobre os conceitos norteadores da pesquisa, especificamente as ideias de transição, autoritarismo e violência. Esta apresentação recupera alguns norteamentos já colocados no debate historiográfico e contribui com a delimitação do tema desta pesquisa, para então, discutirmos a questão colocada para este artigo.
A reflexão sobre a transição apresenta diferentes abordagens conforme a área em que se insere a pesquisa. Para o estrato conhecido como transitólogos, segmento de pesquisa da área de Ciência Política, há a preocupação em se estabelecerem estudos comparativos na análise das mudanças institucionais de regimes autoritários para regimes democráticos, demarcando o campo político, com o olhar centrado no percurso das elites, seus cálculos e pactos na busca da democracia. Já a História, que demorou mais para assumir esses temas de pesquisa, em função das dificuldades postas para a análise da história do tempo presente, tende a valorizar o tempo em suas análises. Essa perspectiva incide sobre a delimitação temporal do tema, bem como viabiliza a observação de um cenário mais amplo que o estrito escopo político, considerando aspectos como a cultura política e a memória em suas reflexões. Segundo Martinho (2012), podem-se identificar três grandes campos de influência teórico-conceitual para a produção historiográfica: a historiografia francesa com as noções de política e cultura política, dialogando com as análises das Ciências Sociais; o direito e todo o debate desdobrado na justiça de transição e, por fim, as reflexões que correlacionam história, memória e esquecimento.
Nos estudos de transitologia, muito utilizados no Brasil, Martinho (2012) destaca duas variáveis que são fundamentais para se pensar a transição. A primeira seria o sentido da mudança ou o que é determinante na passagem de um regime para outro. A segunda variável seria o caráter da transição, considerando a maneira como foi conduzida, o que levou a historiografia a ponderar sobre processos ora conduzidos por cima, de maneira pactuada, ora pressionados por setores da oposição, caracterizando uma transição por colapso. Se tomarmos a produção acadêmica já existente, verificaremos que o Brasil é associado ao segundo grupo num debate sobre as estratégias de negociações. Essa perspectiva se coaduna com as reflexões sobre as características de nossa cultura política (Motta, 2018), tendo como um de seus traços o caráter conciliador (Debrun, 1983; Iokoi, 2009).
Em diálogo com esse debate encontramos, considerando a produção historiográfica, vertentes que ponderam sobre a identificação dos sujeitos condutores do processo e as chaves discursivas norteadoras. Nessa linha de reflexão, Daniel Aarão (Reis, 2000) reflete sobre o deslocamento simbólico efetivado ao longo da transição brasileira que carregou a esquerda para o campo da defesa da democracia; nesse percurso, o autor identifica a alteração da chave discursiva norteadora do processo, antes centrada na ideia de revolução e depois associada à democracia. Entendemos que essa perspectiva possibilita reflexões sobre a alteração do espaço de experiência e, logo, sobre o horizonte de expectativas (Koselleck, 2006).
O debate proposto por Aarão resvala num outro âmbito das discussões sobre as transições que elegem os enfrentamentos de memórias e seus deslocamentos como eixo analítico; houve aqui, o redimensionando não só do próprio debate sobre a democracia, como também, dos sentidos de revolução e dos papéis dos sujeitos envolvidos. Nessa linha, temos Montenegro (2012) nos estudos de memória a partir da história oral, bem como, Denise Rollemberg e Marcos Napolitano que refletem sobre a memória prevalecente. Nesta reflexão, entendem que a vitória não foi a da memória das esquerdas, mas sim, de uma memória que articula perspectivas das esquerdas e da elite política, explicitando um complexo processo de construção da memória hegemônica.
Um outro importante campo de debates tem como eixo norteador a discussão sobre os Direitos Humanos, dialogando com os aspectos da primeira variável indicada por Francisco Palomanes Martinho, ou seja, o que mudou ou não. Nesse eixo são analisadas as leis e a ação da justiça na reparação das violações e no direito à verdade e à memória. Como discutido por diferentes autores, o processo de transição no Brasil foi iniciado na vigência dos governos autoritários e seu resultado não gerou rupturas que exigissem reparações; dito de outra forma, os setores que detiveram o monopólio do poder no período autoritário não precisaram responder por seus atos no contexto da transição e as reflexões sobre a anistia muito contribuem para essas conclusões (Del Porto, 2009; Greco, 2005).
Entendemos, ainda, tal qual Pinheiro (1991), que houve a permanência de estruturas autoritárias e de personalidades autoritárias; e, tal qual Iokoi (2009); Greco (2009), entre outros, que não houve mudanças de fundo na sociedade brasileira, com a constituição de estratégias de esquecimento. Tomando as diferentes perspectivas, vemos a conformação de um regime democrático frágil, nomeado de diferentes formas e esse diversificado debate norteia nossa reflexão sobre a transição e redemocratização brasileira. Pinheiro aponta para uma questão central das permanências autoritárias: a violência, aspecto abordado também por outros autores (Benevides, 1982, Dallari, 1977; Paoli, 1982). Considerando que estamos discutindo a transição de um regime autoritário para um regime democrático, perguntamo-nos quais seriam as reais mudanças e quais seriam as permanências em torno do autoritarismo, tendo a violência como sua espinha dorsal.
O conceito de violência (Adorno, 2002; Ianni, 2019; Martín-Baró, 1988; Paoli, 1982; Zaluar, 1999), como qualquer conceito, é amplo, congregando distintos entendimentos conforme a área de conhecimento em que o debate está inscrito e/ou a base teórica em que se constitui. Se partirmos, por exemplo, de uma definição que reflete sobre a violência a partir de seu lugar de produção, poderíamos discutir, grosso modo, três grandes dimensões: estrutural, institucional e pessoal. A dimensão estrutural considera a produção e características da violência relacionadas ao próprio sistema, no nosso caso, sistema capitalista (Ianni, 2019); a dimensão institucional distinta, contudo relacionada à anterior, aborda a violência produzida e coordenada pelo Estado e muitas vezes discutida como resposta aos atos de violação social. Já a violência pessoal busca qualificar os atos violentos disseminados na sociedade, abordando diferentes aspectos, em suas expressões coletivas e individuais.
O lugar de produção da violência precisa e está relacionado, também, à tipologia da violência praticada, o que levaria à discussão sobre os seus tipos, considerando a violência física, psicológica, simbólica, aspectos que confirmam a complexidade do tema. Poderíamos, ainda, partir da própria etimologia da palavra, relacionada à violação, o que nos levaria à reflexão sobre os seus sentidos. A meu ver, de certo modo, essa é a abordagem que Marilena Chauí (Chauí, 1980) fez, ao trabalhar com a reflexão sobre a violência considerando o binômio violação- sujeição. Nessa perspectiva em que a sujeição demarca um modo de reificação do sujeito, amplia-se o campo de análise considerando aspectos simbólicos e/ou pouco visíveis, como o machismo, o racismo, diferentes fobias, formas de silenciamentos, todos como diferentes práticas de violência.
Assim, partindo do entendimento proposto por Chauí, podemos retomar um debate amplificado sobre o autoritarismo no Brasil, assumindo tanto o âmbito político quanto os âmbitos econômico e sociocultural como lugares de intensas práticas autoritárias, pois violentas. Nesse sentido, a violência é eixo central das permanências autoritárias, em seus vários formatos e gradações.
Considerando a discussão acima, norteadora desta pesquisa, propomos, como pano de fundo para este artigo, a reflexão acerca das permanências autoritárias no contexto da transição, observando o lugar e o papel da violência no processo. Dada a amplitude do tema da violência, restringiremos o debate, analisando o discurso sobre a violência institucional praticada pelas polícias militares estaduais, em suas funções no interior da segurança pública paulista, no recorte de 1983-1986.
Analisar os discursos em relação ao papel e funções da segurança pública pressupõe a reflexão sobre o próprio entendimento da segurança pública e a concepção de Estado vigente. Para o Estado de Direito, a Segurança Pública está diretamente relacionada à resolução dos conflitos do cotidiano da cidade, na defesa das liberdades individuais, enquanto para o Estado autoritário, seu papel é o da garantia da ordem; em ambas as concepções, o policiamento urbano aparece como um de seus braços. E, como discutido por Paoli (1982), ponderar sobre a segurança pública e, logo, sobre as relações estabelecidas entre a polícia militar e a sociedade, é ponderar sobre as condições de cidadania.
Durante a ditadura civil-militar, a manutenção da ordem esteve atrelada à concepção disseminada pela Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento Econômico, tendo a repressão como eixo norteador. Essa perspectiva se materializou tanto na concepção de informação disseminada com a criação do SNI (Serviço Nacional de Informações, 1964) quanto no corpo da lei, presentes na Constituição de 1967 e na Lei de Segurança Nacional do mesmo ano. O embasamento legal viabilizou a criação de órgãos propriamente de repressão e, entre 1969-1970 foram criados a OBAN (Operação Bandeirantes,1969), depois substituída pelos DOI-CODIs (1970), além da estrutura do SISSEGIN (Sistema de Segurança Interna no País, 1970) e do SISNI (Sistema Nacional de Informações, 1970)[2]. Tomando as polícias militares dos estados, vemos que seu papel foi reforçado pelo Decreto-Lei 667/69, que estabeleceu o controle das polícias militares pelo exército; essa lógica se perpetuou e se aprofundou com a Emenda Constitucional n. 7/1977, que garantiu amplos poderes de ação no combate ao crime, com a manutenção da cultura repressiva e formação do combate à subversão.
Considerando essa hipertrofia da polícia militar, numa concepção de segurança pública repressiva, que tomava o cidadão como um inimigo em potencial e risco à nação, buscamos observar como a ideologia autoritária da ordem, baseada no uso autorizado da violência, foi adaptada para o contexto da transição, contexto esse pautado pela ideia de democracia. Trata-se de análise de relações de poder, partindo do entendimento de que a segurança pública, por um lado, é formada por militares no policiamento ostensivo da cidade e, por outro lado, é braço fundamental da estruturação de uma concepção de cidadania, a partir dos limites definidos para o controle social.
Nesse sentido, buscamos discutir o papel que a polícia militar teve no processo. Além do agente policial, temos a finalidade de observar como o campo político, heterogêneo em seus interesses e composições partidárias, lidou com o tema da violência urbana. Devemos lembrar que se tratava de nova legislatura (9ª. legislatura, 1983-88), com uma composição de maioria de oposição ao regime, o que nos possibilita ponderar sobre os jogos de poder e estratégias de discursos.
Para tanto, observaremos dois segmentos de análises, numa abordagem arquegenealógica[3]. O primeiro visa reconstituir um percurso de construção discursiva proposto pela própria corporação militar desvelando, também, o discurso do Estado; neste percurso, visamos destrinchar como a Segurança Pública estava organizada e se houve alterações de seu funcionamento. O segundo percorre os embates políticos em torno da segurança pública, através da análise dos discursos dos vereadores de São Paulo, em consonância com discursos da mídia impressa. Considerando, como colocado por Foucault, que o poder é uma prática social e o discurso é uma prática de poder, visamos identificar recorrências e correlações de enunciados na conformação de uma formação discursiva.
Com isso, partiremos do entendimento de que os discursos dos militares, dos vereadores e da imprensa sobre o tema da segurança pública se apresentam como acontecimentos discursivos “...é preciso estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção de acontecimento, nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, ...” (Foucault, 2014, p. 31). Ao mesmo tempo, entendemos que todo discurso, em sua expressão como acontecimento, se efetiva num campo de enunciação que, se problematizado, possibilita a compreensão dos interesses em jogo, das tensões, enfrentamentos e encaminhamentos. Nessa observação podem-se destacar, também, os sujeitos do discurso e seus lugares institucionais de fala. Nesse tecido, poderemos vislumbrar o lugar dos militares, dos estratos políticos e dos cidadãos no processo. Por fim, se pudermos definir, nos diferentes discursos “...uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos, transformações), diremos por convenção, que se trata de uma formação discursiva” (Foucault, 2014, p. 47).
Genealogia da repressão: polícia militar e a segurança pública
A origem das polícias dos estados remete à formação das Guardas Municipais ocorridas em 1831 e suas funções estavam relacionadas à manutenção da tranquilidade pública e ao auxílio à justiça. De 1926 até os anos 60, a segurança pública dos estados era composta pela Polícia Civil, Guarda Civil e pela Força Pública. Essa última era composta por militares cujas funções estavam relacionadas essencialmente ao “serviço dos bombeiros, o policiamento rodoviário, florestal e ferroviário” (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 12), cabendo prioritariamente à Guarda Civil o policiamento da população. Dentre as três forças, cabia à Polícia Civil a coordenação das tarefas de policiamento do estado e à Guarda Civil o policiamento preventivo e ostensivo, cabendo à Força Pública o auxílio à Guarda Civil no policiamento ostensivo e a ação em situações extremas. Como colocado por Battibugli, “A Polícia Civil possuía maiores competências em relação às outras corporações no período analisado e o delegado era a principal autoridade policial a coordenar as tarefas de policiamento” (Battibugli, 2006, p. 35), fato que gerou contínua tensão entre as forças, principalmente a Força Pública, que almejava equiparação hierárquica e maior inserção nas atividades de policiamento ostensivo.[4]
Para lidar com as controvérsias já existentes e as críticas que o policiamento do estado recebia e baseados nos programas de cooperação Brasil-EUA[5] ocorridos naqueles anos através da ICA (International Cooperation Administration), o governo de São Paulo encomendou estudos sobre o policiamento do estado, tanto aos consultores americanos quanto aos ingleses que estiveram no Brasil e, segundo Battibugli, os resultados foram parecidos:
Os estudos de ingleses e americanos e as análises de policiais e da imprensa identificaram falhas semelhantes na polícia paulista e, dentre as soluções recomendadas, havia um cerne comum: a liderança do policiamento para a Polícia Civil com a efetiva subordinação da Força Pública e da Guarda Civil, além da divisão de atribuições para a FP e a GC (Battibugli, 2006, p. 187).
Apesar dos relatórios produzidos e da constatação dos problemas inerentes à condição tripartite, não houve alteração substancial naqueles anos e, somente em 1967, o governo federal interferiu na questão com a publicação do decreto-lei n. 317/ 1967, que alterou as funções das polícias militares dos estados. Na contramão dos relatórios recebidos, com este decreto, a Força Pública passou a “executar o policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridades policiais competentes, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos podêres constituídos; [...]” (Brasil, 1967), ou seja, assumiram as funções antes exercidas essencialmente pela Guarda Civil.
O contexto de recrudescimento da ditadura civil-militar potencializou a ação dos militares através do decreto citado, buscando garantir a aplicação da Doutrina de Segurança Nacional na segurança pública dos estados, agindo diretamente sobre a população. O estado de São Paulo, contudo, manteve a composição anterior confirmada pela promulgação da Constituição Paulista, em 13 de maio de 1967, que estabeleceu a manutenção das forças através do artigo 139, “Parágrafo único - São órgãos policiais, subordinados ao Secretário de Estado responsável pela segurança pública: I - Delegados de Polícia e demais carreiras policiais civis; II - Força Pública; III - Guarda Civil.” (São Paulo, 1967).
Pudemos perceber, pela observação das fontes, um percurso de tensão entre as polícias civil e militar na disputa pelo espaço de ação na segurança pública, considerando-se o estado de São Paulo; no processo houve a preocupação por parte da polícia militar em justificar a ocupação deste espaço, com o decreto-lei 317. No geral, o discurso foi construído através da afirmação de sua maior competência para o exercício da função:
É de perguntar -se agora: Por que as falhas nos demais ramos do policiamento ostensivo se a seleção e a formação de nosso pessoal nele empregado merecem o mesmo cuidado?
A resposta é óbvia: a dualidade na execução e a diversidade da direção propiciam a diluição da responsabilidade com reflexos diretos na qualidade dos serviços prestados dificultando- lhes o aprimoramento. A par dessa diluição de responsabilidade há de se atentar para utilização insatisfatória dos meios, dispersos entre os diversos órgãos, o que impede o seu emprego racional.
Para se afastar esse óbice, um único organismo policial deverá desempenhar o policiamento ostensivo no estado. Qual é ele?
A resposta nos é dada pela leitura do decreto-lei n. 317 de 1967 art. 2º. alínea -A-, que assim reza sabiamente: ‘executar o policiamento ostensivo, fardado, planejado pelas autoridades policiais competentes, a fim de assegurar o cumprimento da lei, a manutenção da ordem pública e o exercício dos poderes constituídos (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 12-13).
Trata-se de documento produzido pelo Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, na forma de livro, intitulado “A Força Pública na Lei Orgânica- razões históricas, jurídicas, de interesse social e de segurança pública”, composto e impresso na tipografia do Serviço de Intendência da Força Pública do Estado de São Paulo. Foi publicado, ainda em 1967, trazendo o seguinte preâmbulo: “O Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado imprimiu o presente opúsculo no intuito de colaborar no equacionamento do problema surgido com a elaboração da Lei Orgânica da Polícia”, indicando a tensão e disputa colocadas entre as polícias com a publicação da lei.
O conteúdo do livro buscou fundamentar a justiça e a legitimidade das novas funções, através de discussão que evitou o enfrentamento frente às outras polícias, optando-se pela argumentação em torno das dificuldades existentes na divisão de funções e nas competências do setor “... teremos uma melhoria do padrão de serviços, com alto sentido social e humano, e colaborado de modo patriótico na solução de tão relevante problema.” (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 13) pontuando, contudo, a crítica estabelecida ao policiamento civil: “Entretanto, em São Paulo, pretendem impedir que a doutrina de Segurança Nacional ganhe a amplitude que lhe é devida.” (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 16).
A publicação foi organizada em três partes: a primeira, destacando a importância do policiamento efetivado pela polícia militar; a segunda, apresentando um parecer jurídico para a alteração legal, elaborado pelo ex-Ministro do Supremo Tribunal Federal e Catedrático de Direito Constitucional, Dr. Candido Motta Filho, procurando justificar a força legal, seguido de dois outros pareceres municiando a decisão.
Em linhas gerais, os pareceres defenderam a importância do decreto-lei n. 317, entendendo que se coadunava com a Constituição Federal aprovada no mesmo ano, tornando “...o tema policial em valor indispensável à organização política do país, e com isso, traduz a nova fisionomia da sociedade...” (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 25). Na argumentação proferida houve o claro entendimento de que a sociedade mudou e logo a polícia precisava mudar: “Quando foi criada, a Polícia longe estava dos graves problemas da cidade moderna, onde as massas contraditórias se acumulam, onde os conflitos se multiplicam, onde a desordem, o crime e a segurança são ameaças constantes” (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 28), justificando o que a doutrina impunha “... pela farda e pelo porte de armas, possa manter a evocação da MORAL DE GUERRA” (Clube dos Oficiais da Força Pública do Estado de São Paulo, 1967, p. 29).
A discussão aponta, em primeira instância, para uma clara mudança no entendimento de segurança pública, introjetando a Doutrina de Segurança Nacional no tecido cotidiano da sociedade garantindo, para a ditadura civil-militar, a criminalização da sociedade civil e a constituição de um estado vigilante e repressivo ou como colocado, uma ‘moral de guerra’. Ao mesmo tempo em que expressa uma incontestável mudança, reafirma um enunciado já recorrente entre os militares no entendimento sobre a sociedade, apontando para uma temporalidade mais extensa, ao considerarmos a formação e o pensamento militares.
Frente à manutenção da Guarda Civil no estado de São Paulo, o governo federal, através do decreto-lei 1072/69 extinguiu a Guarda Civil dos estados e reforçou o controle das polícias militares pelo Ministério do Exército através do decreto-lei 667/69. Mas esses dois decretos ainda não eram claramente elucidativos quanto à hierarquia da polícia militar frente à polícia civil aspecto, como visto, debatido ao longo das décadas e isso foi resolvido com o decreto-lei 66862/1970 que formalizou o Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares (R-200) estabelecendo que “são autoridades policiais competentes, para efeito do seu planejamento, os respectivos Comandantes Gerais...” (Brasil, 1970).
Como desdobramentos dos decretos, em 1970, o governador do estado de São Paulo, Abreu Sodré, assinou um decreto-lei de unificação da polícia, denominada doravante polícia militar. Essa regulamentação demonstra a equiparação hierárquica das duas polícias na função pública[6].
Vemos que os embates e tensões entre as polícias foi longo e, no cômputo geral, houve maiores ganhos à polícia militar, pois pudemos notar que as duas maiores demandas colocadas, equiparação de hierarquias e controle do policiamento ostensivo, foram conquistadas e isso se deveu, certamente, ao fato de vivermos num contexto autoritário, de predomínio da Doutrina de Segurança Nacional. Assim, observa-se a prevalência de uma concepção de segurança pública atrelada à ideologia das Forças Armadas, no predomínio da repressão e vigilância, em oposição à ideia de mediação de conflitos. Na abordagem repressiva, com um policiamento preparado pelo exército no trato à população considerada, a priori, o possível inimigo interno vemos, então, a violência como princípio. Assim, chegamos ao contexto da transição permeados por uma ideologia autoritária e por atores autoritários no controle social.
Arqueologia do discurso: a violência como acontecimento discursivo
Em 15 de novembro de 1982, Franco Montoro foi eleito governador do estado de São Paulo, pelo PMDB, em eleições diretas após 21 anos de ditadura, e sua posse apontou, em primeira instância, para um reordenamento político local, pela ascensão de um governante do partido de oposição ao governo central. Em 1983, Mário Covas, do mesmo partido, assumiu a prefeitura da cidade, num momento de crise econômica, com altas taxas de desemprego e consequentemente a ocorrência de muitas greves. Naquele mesmo momento, ocorreram as eleições municipais para a 9ª Legislatura (1º/2/1983 a 31/12/1988). Assim, no recorte espaço-temporal aqui estabelecido, iniciava-se uma nova legislatura, além dos governos municipal e estadual.
O cenário político municipal era favorável à transição, considerando-se a composição do poder executivo, municipal e estadual, mas apresentava uma legislatura que exigia negociações. Dos 33 vereadores eleitos, 45% eram do PMDB; 21,2 % do PTB; 18% do PDS; 15% do PT. Nessa combinação, isoladamente, o PMDB tinha o maior número de vereadores e, numa composição à esquerda, somada a percentagem do PT, teria a maioria da bancada, com 60% dos vereadores. Contudo, alguns problemas se colocavam.
O primeiro dizia respeito à própria composição do partido majoritário pois, apesar de o prefeito Mario Covas, do PMDB, compor 15 cadeiras na Câmara, enfrentava fissuras internas, em função da disputa de duas alas dentro do próprio partido; uma apoiava o prefeito e o governador e a outra, conduzida por Orestes Quércia, lhes fazia uma oposição calculada. As votações se compunham, no interesse geral do partido, mas a demarcação e negociação contínua pelos espaços gerava alto custo político tanto para o prefeito, quanto para o governador.
Considerando a composição partidária mais à esquerda, tomando o caso do PT, notamos que as relações com o PMDB eram mais tensas do que consensuais, tanto em função da necessidade de demarcação de seus próprios espaços, como partidos de oposição ao governo central, quanto em função do perfil da prática política de cada um, sendo mais aguerrida no PT e mais conciliatória no PMDB, atravancando as negociações.
O terceiro problema se relacionava com o perfil do 2º. partido mais votado, o PTB. Apesar de sua origem no trabalhismo de Vargas, sua refundação, a partir da reorganização partidária de 1979, trouxe disputas e reconfiguração política. O partido construiu sua reestruturação em torno de disputas da legenda entre duas antigas lideranças, Yvete Vargas e Leonel Brizola. A vitória de Yvete Vargas foi garantida com o apoio de setores do governo federal, numa reconfiguração dos seus princípios internos, distanciando-se do trabalhismo e do varguismo, próprios de sua fundação, e apresentando-se como um partido sem princípios ideológicos, que negociava sua legenda para nomes variados e votava muitas pautas afinado com o governo federal. E, ao apoiar pautas do governo, acirrava as votações, mostrando-se mais combativo que o próprio PDS, partido da ditadura, na legislatura municipal.
A pauta da oposição ao governo federal, considerando-se o PMDB nacional, desde a ascensão de Ernesto Geisel, em 1974, foi a pauta da redemocratização, que significava, essencialmente, a volta da normalidade política e a defesa dos direitos políticos. Com isso, entendemos que o tema da segurança pública, no nível municipal, tenderia à defesa dos direitos humanos do cidadão ordinário, em oposição à permanência da repressão nos moldes ditados pela doutrina de segurança nacional e, no cerceamento e delimitação do poder dos militares. Assim sendo, na discussão aqui proposta, visamos observar, não só se isso se efetivou, como também, a tecitura do campo de enunciação constituído, analisando os limites do debate e as condições dos atores políticos na defesa do campo democrático, que no âmbito municipal estava permeado pelos direitos do cidadão.
A observação dos Anais da Câmara[7] nos mostra a recorrência do tema da segurança pública na relação com os subtemas da violência e da crise econômica associada à convulsão social. Os primeiros discursos[8] mais veementes sobre a violência apareceram na 2ª metade de 1983:
O SR. JAMIL ACHÔA -- Sr. Presidente, nobres Srs. Vereadores, a cidade de São Paulo, gostosamente chamada de São Paulo da Garoa, Cidade dos Viadutos, tão decantada em verso e prosa por nossos poetas, lamentavelmente, de algum tempo para cá, perdeu tais denominações para São Paulo -- Cidade da Criminalidade — do Terror da Morte — do Medo, e isto porque a nossa policia não tem condições de combater o crime por falta de recursos materiais e humanos, criminosamente negados por nossas autoridades. São Paulo é uma cidade entregue completamente à sanha dos assaltantes e assassinos. Não se tem mais qualquer segurança. Não se pode andar livremente pela cidade. Não se pode mais freqüentar um restaurante. Não se pode mais ir a um estabelecimento bancário. Não se pode mais entrar em uma loja sem correr o perigo de ser assaltado- ou morto pelos marginais que agem livremente sem serem importunados pela nossa policia (Anais da Câmara- Achôa, 01 de novembro de 1983, 97ª. Sessão, p.53)
Como já nos apontou Michel Foucault, todo discurso é uma prática, porque instaura temas e tendências, mobiliza público e possibilita composições, altera percepções e, não menos importante, indica e define jogos de forças; neste sentido, é sempre uma prática de poder, porque a vitória ou derrota de uma perspectiva discursiva afeta as relações sociais e políticas. A fala do vereador Jamil Achôa apontou para uma recorrência que alteraria a representação da própria cidade. Se, ao longo dos anos de 1981-1982, não identificamos discursos que traziam a temática da violência-criminalidade e praticamente nada sobre a crise econômica, no ano de 1983, observamos que os temas predominantes foram os que se unificavam em torno da crise econômica, pautados através da preocupação com o desemprego e questões correlatas, como as condições de trabalho, greves e a própria crise. Cabe lembrar que em abril daquele ano, justamente em função do desemprego, houve o primeiro grande momento de demarcação da crise econômica associada à convulsão social, com os motins e saques ocorridos na cidade, no bairro de Santo Amaro, mobilizando uma gama de discursos, políticos e midiáticos. Os temas associados à crise e à violência causaram tensão e ocuparam as manchetes de jornais e revistas, ao longo dos dias de abril.
No mesmo ano, já na segunda metade, apareceram alguns discursos dispersos e pontuais, contudo mais radicais, apontando para a questão da criminalidade, associada à crítica ao novo governo. A demarcação discursiva foi potencializada no final do ano se tornando, a partir de então, constante. Notamos que, a partir do discurso acima e, ao longo do ano de 1984, houve a modulação da discussão política norteada pelo tema da violência, com a constância de sessões que o pautaram, demonstrando um gradativo aumento da preocupação da vereança com o assunto. Podemos notar no discurso abaixo, já de 1984, algumas recorrências:
— Sr. Presidente e nobres Vereadores, ainda uma vez voltamos a narrar, da tribuna da Casa do Povo, os protestos continuados e, no sentido geral, da população que vive em São Paulo, no que tange à sua segurança. Nunca houve, na história desta cidade, um período tão triste e tão negro para a nossa sociedade. Tem-se a impressão de que as coisas se voltaram contra o bem comum, contra a segurança, contra a harmonia e contra a própria perfeição. É o Mal contra o Bem; e o Mal está vencendo o Bem. E por que isto ocorre? Por falta de patriotismo, de civismo e de interesse das autoridades públicas no que se refere à garantia do bem-estar do povo (Anais da Câmara - Francisco Batista, 07/02/1984, 112ª.sessão, p.35).
Um aspecto contínuo, em muitos discursos, foi a indicação de uma mudança de rota. Tanto Achôa (PMDB) “perdeu tais denominações para São Paulo -- Cidade da Criminalidade — do Terror da Morte — do Medo” (Anais da Câmara- Achôa, 01 de novembro de 1983, 97ª. Sessão, p.53), quanto Batista ( PTB) “Nunca houve, na história desta cidade, um período tão triste e tão negro para a nossa sociedade” (Anais da Câmara- Francisco Batista, 07/02/1984, 112ª. Sessão, p. 35) demarcaram esse acontecimento discursivo, identificado como uma nova era de medo. Precisamos ponderar sobre as causas e sentidos dessa enunciação. Vários aspectos podem ser discutidos.
O primeiro, mais óbvio, foi o da sensação por parte da população do aumento da violência, continuamente verbalizada nos discursos da vereança, apresentando números do aumento dos assaltos: “Se no governo passado a média de assaltos por mês era de 1.400, neste governo está acima de 3.000” (Anais da Câmara- Sr. António Carlos Fernandes, 01/11/1983, 97ª. Sessão, p. 55); recorrentes exemplos de situações de violência descritas na cidade, bem como, resultados de institutos de pesquisa, mostrando que o tema da segurança tornou-se o ponto principal de reclamações, frente a outros temas apresentados nos anos anteriores, como os problemas do trânsito; poluição e saneamento básico. Começava a se firmar uma recorrência discursiva, presente na mídia, impressa e televisiva; em institutos de pesquisa e no meio político. Certamente teve características distintas conforme o lugar de fala; enquanto o jornalismo impresso e televisivo restringia-se a dados estatísticos da violência, a câmara politizou a questão.
Essa percepção foi confirmada pelo governador de São Paulo, Franco Montoro, em rede nacional de televisão, ainda em novembro de 1983 informando, entre outras coisas, a criação de um “Fundo Especial de Segurança de São Paulo — Fasesp — com a finalidade de prover recursos que atendam despesas relativas às necessidades dos órgãos que integram a Secretaria da Segurança Pública” (Anais da Câmara -Achôa, 08/11/1983, p. 39, 99ª. sessão,) e também ficou explicitada pela troca contínua de secretários de Segurança Pública, no total de três até o começo de 1984.
A confirmação do aumento da criminalidade pelas autoridades estaduais e/ou a sensação da violência vivenciada pela população estava inserida num complexo contexto que articulava uma crise econômica, sentida pela população brasileira pela alta inflação e custos de sobrevivência, acompanhada da alta do desemprego. O vereador Albertino Nobre (PTB) apontou, em sua fala, para as causas sociais que culminaram na crise descrita, na pesquisa Gallup, realizada em fevereiro de 1984, “Os problemas criados pela recessão, a nova situação da classe média, o aumento da pobreza e da miséria absoluta, respondem pelo resultado da atual pesquisa” (Anais da Câmara - Albertino Nobre, 21/02/1984, 118ª. Sessão, p. 46). A questão reverberou no plenário e foi reafirmada em discurso de José Maria Rodrigues Alves, em março de 1984, que incluiu, entre os problemas já anunciados, dois outros também importantes para o entendimento do contexto que foram, a destruição do parque industrial e uma crítica que vinha sendo feita no plenário sobre os custos para o Brasil das negociações com o FMI:
O crescimento do desemprego e do subemprego; os preços aviltantes dos gêneros de primeira necessidade (só o feijão subiu em um ano 585 %); os salários achatados; o déficit habitacional; o baixo nível do ensino com sua crescente e inescrupulosa privatização; o aumento das falências e a destruição de nosso parque industrial; a espiral inflacionária que se fixou como turbulência incontrolável, ultrapassando, em 1983, a casa dos 210%; os aluguéis que estão sendo reajustados acima de 130% ao ano; a interferência indevida e insolente do FMI que ultraja a nossa soberania como nação, são alguns dos seus problemas marcados pela insensibilidade, pelos escândalos administrativos, pela impunidade dos corruptos e dos corruptores e pela incompetência dos governos nestes últimos vinte anos (Anais da Câmara - Alves, 21/03/1984, 129ª. Sessão, p. 24).
Vemos que a transição política brasileira ocorreu em cenário histórico adverso, no exato contexto de reordenamento do capitalismo mundial[9], numa requalificação do sistema internacional, na qual países como o Brasil estavam inseridos e a qual haviam se rendido, produzindo um cenário interno de crise econômica, também pautado por outros fatores externos[10]. E, para nós, mais importante que essa constatação é a de que, nesse cenário de crise, a visibilidade não foi dada para suas causas e atores, mas sim, para algo mais palpável e manipulável, a violência urbana.
Arqueologia do poder: violência, segurança pública, militares e políticos
O tema da violência foi absorvido pelas esquerdas, pela oposição de diferentes perfis e pela direita, com diferentes motivações, intenções e, necessariamente, desdobramentos. O discurso de Jamil Achôa, transcrito anteriormente, expressava as especificidades e tensões postas na 9ª. legislatura. Achôa era do PMDB, partido do governador do estado, mas quando trouxe o tema da violência para o seu discurso na Câmara e destacou a atuação do deputado federal de seu partido – “A verba destinada à Segurança Pública para essa finalidade e no valor de Cr$ 12,5 bilhões deve-se, em grande parte, à atuação do Deputado Federal Samir Achôa que, através de inúmeros pronunciamentos, exigiu do Governador Montoro providências urgentes [...]” (Anais da Câmara - Achôa, 08/11/1983, 97ª. sessão, p. 53) –, estava valorizando o partido, mas principalmente, enaltecendo a ala partidária da qual fazia parte, indicando as fissuras internas e contribuindo com a instabilidade institucional, referindo-se à necessidade de equipar e reestruturar as polícias civil e militar. Ao mesmo tempo, aponta para as fortes conexões temáticas entre as esferas municipal-estadual e federal. O tema motivava a Câmara; atendia seu público; demarcava uma posição no interior dos partidos, fragilizando o próprio governo e, intencionalmente ou não, politizava o tema do policiamento urbano.
A politização e partidarização do tema foi presente em muitas sessões da Câmara naquele ano, explicitando também as divergências postas dentro do campo da oposição. Assim, a vereadora Tereza Lajolo demarcou o entendimento do seu partido, PT, sobre o assunto ao apontar que “... a questão da violência e da criminalidade não é meramente uma questão policial: é, antes de tudo, uma questão social.” (Anais da Câmara- Lajolo, 1/11/1983, 97ª. sessão, p. 54). Ao relacionar criminalidade e violência, a vereadora retomou os principais pontos da crise econômica que assolava todo o país, numa combinação de recessão, inflação e desemprego, que facilmente culminariam num aumento da violência. Os vereadores do PT propunham a atuação sobre as causas da violência.
Outros vereadores tornaram a partidarização uma crítica explícita ao governo do estado, como foi o caso da fala de Francisco Batista, vereador do PTB, numa postura recorrente deste partido:
E o que podemos concluir de tudo isso? Que São Paulo não tem um gestor dos negócios públicos. Ê o que diria o português da padaria da esquina: "Quem não tem competência, que não se estabeleça!". O Governador é um homem (como já tive ocasião de a S. Exa. me referir) bem intencionado, de bom caráter, honesto; todavia, é um mau gestor dos negócios públicos. Seria bem melhor que no lugar dele estivesse um analfabeto, que, não obstante, olhasse, acima de tudo, o interesse público. São Paulo está falido, abandonado (Anais da Câmara- Batista, 09/02/1984, 114ª. Sessão , p. 24).
A partidarização acirrada da temática seria esperada na primeira legislatura após o bipartidarismo, num contexto ainda de ditadura. Os partidos buscavam sua demarcação eleitoral e o fortalecimento interno e apresentavam percursos de construção de suas bases eleitorais ainda frágeis e instáveis.
Temos, contudo, que avaliar os problemas acarretados pela polarização na construção de sentidos, viabilizando uma construção discursiva que passava a associar o governo de um partido de oposição (no contexto colocado) à má gestão, sendo responsabilizado pela crise anunciada. Várias foram as tipologias de arguição nessa linha, sempre dos partidos governistas, principalmente o PTB, tendo algumas falas bastante radicalizadas; trazemos o exemplo da fala de Antonio Carlos Fernandes, também do PTB, já em 1983, que associou o uso da crise pelas esquerdas para a efetivação do processo revolucionário: “Esse fator é que as esquerdas radicais[11] e elementos da chamada ‘Igreja Popular’ consideram ‘condições objetivas’ para o ‘início da guerra popular’. Com a vitória do PMDB nas últimas eleições, houve uma possibilidade de se ‘queimar etapas’ ...” (Anais da Câmara- Fernandes, 20/10/1983, 93ª. sessão, p. 43). Veremos, contudo, que essa associação específica não se disseminou como discurso consensual, transmutando-se em outras formulações discursivas que ainda compunham criminalidade e perfil das oposições.
Nessa construção discursiva, o contexto nacional de crise decorrente da política econômica dos governos militares e, principalmente, a compreensão dos significados e desdobramentos da opção neoliberal daqueles anos, numa submissão às diretrizes do que marcaria o Consenso de Washington, muito visíveis no processo de desconcentração da produção industrial, próprio da inserção da financeirização da economia foi diluído, apagado, no destaque do problema político-partidário. Perdeu-se, naquela ocasião, a possibilidade de compreensão do momento capitalista que se vivia e das consequências das escolhas político-econômicas que eram feitas, tomando-se o exemplo da política salarial imposta durante toda a ditadura, que achatou os salários e garantiu a concentração da renda. Perdeu-se, também, a possibilidade de construção de um movimento de oposição mais unificado na construção de pautas democráticas e, por fim, entendemos que se perdeu o controle da narrativa no processo de transição ou, dito de outro modo, do controle da gramática da transição.
Dessa forma, a nosso ver, a crise econômica foi capturada discursivamente, no âmbito local, considerando a legislatura municipal de São Paulo, em favor da própria ditadura e na crítica aos governos/ partidos/ ideários opositores. Esse enunciado foi possível em função da regionalização do problema, como se se tratasse de uma questão do estado de São Paulo e não de uma questão nacional, evitando-se o debate sobre a própria ditadura; em função do trato conjuntural e não estrutural da questão, evitando-se o desnudamento dos princípios do neoliberalismo nascente; e, por fim, em função da predominância e/ou vitória de um discurso simplificador, pautado por ideias e frases coladas às referências já presentes no imaginário social.
Pudemos notar, em diferentes discursos, como a referência à criminalidade foi apresentada através da mudança de status da própria cidade “Cidade da Criminalidade — do Terror da Morte — do Medo...” (Anais da Câmara- Achôa, 01 de novembro de 1983, 97ª. Sessão, p.53); isso possibilitava o segundo aspecto da estratégia discursiva, a associação à má gestão, reforçando a partidarização da questão. Se retomássemos as duas primeiras transcrições neste artigo, dos discursos de vereadores sobre a criminalidade, observaríamos a conexão contínua à ineficiência das autoridades públicas, lê-se, governo do estado. Vimos que o discurso de Antonio Carlos Fernandes (PTB) comparou o antigo governo do PDS ao governo do PMDB, indicando o aumento da criminalidade diretamente vinculada à mudança de partido. Essa argumentação foi contínua do final do ano de 1983 até o começo de 1985. A partir daí, pudemos observar novas conexões discursivas.
Assim, de uma qualificação genérica dos partidos de oposição como maus gestores passou-se a uma elaboração discursiva estrutural e ampliada de associação destes à proteção do banditismo; vemos o enunciado aparecendo nessa legislatura em alguns momentos, como na fala de Fernandes: “Porque o Governo Franco Montoro, o Governo democrático de Franco Montoro optou por um política praticamente de proteção à delinqüência” (Anais da Câmara- Fernandes, 21/03/84, 129ª. sessão, p. 23) e sabemos que a associação discursiva ganhou força na segunda metade dos anos 80, em âmbito nacional, no entendimento de que direitos humanos significavam a defesa dos direitos de bandidos e destacamos a questão, nesse momento, por começar aparecer no debate legislativo.
Devemos lembrar que, em janeiro de 1983, foi constituída a Comissão Teotônio Vilela[12], que tinha como função principal acompanhar a situação das prisões e instituições fechadas (hospícios, instituições de menores, asilo de idosos e leprosários), pois segundo Pinheiro e Braun, “É nessas instituições da violência que a ideologia da guerra contra os criminosos e os largos contingentes marginalizados, desclassificados da população, assume contornos mais concretos” (Pinheiro; Braun, 1986, p. 13). Os participantes da comissão procuravam fazer visitas surpresas a essas instituições no intuito de averiguar as condições físicas, superlotação, cumprimento de sentenças e o respeito aos direitos humanos. A comissão estava em contínuo contato com outras instituições que atuavam na defesa dos direitos humanos, como a “Comissão de Justiça e Paz, a Comissão de Direitos Humanos e Marginalizados da Arquidiocese de São Paulo, a Organização Comunitária pelos direitos do preso, o Instituto de Estudos Especiais da PUC-SP [...]” (Pinheiro; Braun, 1986, p. 17).
Todo enunciado precisa ser considerado num cenário de enunciação, para podermos analisar seus sentidos e seus impactos de médio e longo prazos e aqui colocaram-se alguns aspectos bastante preocupantes. Assim, da partidarização dos debates caminhou-se para a construção de um sistema binário de abordagem do tema, em que o bem precisava da repressão para acabar com o mal, os criminosos. Aos poucos, associou-se o binarismo aos políticos e intelectuais vinculados ao tema. No percurso, houve o entendimento de que a solução do problema seria o reforço da polícia na resolução das questões de criminalidade, num descomprometimento com as questões sociais e num desmerecimento aos direitos humanos, logo associados à defesa da delinquência por grupos de esquerdistas. Notamos aqui que as questões de cidadania e de direitos humanos no contexto da transição, ao serem partidarizadas, não terão relevância para o grupo hegemônico, optando-se pela repressão, ou seja, pelo uso da violência institucional legalizada no controle da criminalidade, tornando central o papel da Segurança Pública.
Nessa lógica binária que começava a se anunciar, apresentava-se a necessidade de fortalecimento das polícias. Vemos essa proposição discursiva na continuidade da argumentação de Batista, petebista crítico do governo do estado, que propunha que a inação do governo em relação às polícias era fator prioritário:
Observamos um fato de que não há mais policiamento nas ruas mas, principalmente nos bairros periféricos, -que se constituem em verdadeiras cidades. E há policiamento suficiente para cobrir a Capital de São Paulo, não me venham dizer que não. Há -Polícia e há meios, o que está faltando é vergonha e começar a trabalhar em benefício do povo, especialmente no que se refere à sua segurança. Sr. presidente, peço a V. Exa. que cópia deste discurso seja enviado ao Sr. Governador, para que S.Exa. acorde, para que S.Exa. desperte e deixe de fazer politicagem e trate dos interesses públicos (Anais da Câmara - Batista, 09/02/1984, 114ª. Sessão p. 24).
A crítica ao governo do estado foi recorrente e o debate sobre as condições da polícia também. A mesma apareceu sob diferentes enfoques que passamos a discutir. Os problemas mais constantes relacionavam-se ao soldo da polícia militar, considerado pequeno, gerando insatisfações e, como já apontado, a falta de infraestrutura de trabalho, prejudicando a eficiência da força. Outros problemas, contudo, se avizinhavam. Vejamos a fala de Dalmo Pessoa:
Nada mudou, pois o Comando Geral e a alta cúpula ficaram nas mãos dos bravos cabos eleitorais do PDS. O coronel Nílton Viana, atual comandante da Polícia Militar deste Governo, do Governo Montoro, manifestou-se, certa ocasião, antes das eleições de 15 de novembro de 1982, da seguinte maneira, conforme publicou o Jornal "Notícias", do Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar (mês de outubro de 1982, tiragem: 30 mil exemplares): "A Polícia Militar é Governo e só será confiável se assim se posicionar. A PM não pode permitir aventuras, correndo atrás de seduções, de falácias e de promessas, porque ela é leal e constante ao governo. Para termos assegurada a nossa perfeita postura, ou a posição adequada e desejável no momento futuro, temos que ser confiáveis hoje para continuarmos confiáveis amanhã. Dentro dessa linha de idéias, até vou me permitir externar aqui a fala de um governador de Estado, num almoço com coronéis da nossa corporação. Ele próprio nos alertou da necessidade de, como organização, mantermos representação nossa junto ao Poder Legislativo. Nós temos uma definição, temos o coronel Cantídio na área federal, o coronel Rigonato na área estadual e o subtenente Campos para a Edilidade de São Paulo" (Anais da Câmara- Sr. Dalmo Pessoa, 21/03/1984, 129ª Sessão, p. 25).
Dalmo Pessoa, vereador do PMDB, criticava a composição dos comandos da polícia militar apontando para uma questão-chave que se desdobrará em diferentes aspectos de reflexão, ou seja, as permanências autoritárias no contexto de transição, permanências essas em setores que lidavam diretamente com a sociedade, já que controlavam a segurança pública e estavam afinados com o ideário político do governo federal, em contexto de ditadura. Essa questão transformou-se na construção e fortalecimento de um discurso que entende que a transição aconteceu com o aumento da violência e que só poderia ser resolvida se potencializasse a ação das polícias militares, justamente essas que enalteceram sua lealdade aos valores da ditadura civil-militar e que não sofreram alterações de comando e ideários políticos nesse processo. Com isso, estamos afirmando que o discurso sobre a violência, potencializado naqueles anos de 1982-85 encaixava-se num projeto de fortalecimento das polícias militares em contexto de transição política, momento que poderia colocar essas forças em questionamento, numa profunda reformulação interna de seus comandos e, principalmente, de seu papel na sociedade. A própria Comissão Teotônio Vilela, em documento entregue ao então candidato à presidência da República, Tancredo Neves, em dezembro de 1984, indicava:
A democratização implica uma transformação das relações entre povo e polícia, se se quer que o país modifique sua atitude de medo e de rejeição do poder e do Estado. A sociedade deseja um maior controle democrático da polícia. Existe uma base da opinião pública para sustentar uma alteração nos métodos policiais. Violência, tortura, prisões ilegais, blitz- todos esses métodos brutais e incompetentes revelam um estado de desrespeito aos direitos humanos, principalmente da população mais pobre (Pinheiro; Braun, 1996, p. 62).
O debate sobre o papel e funções da polícia militar estava posto “1. Transformar o policial, civil ou militar, em protetor e orientador e não em fiscal e repressor do homem de bem.” (Anais da Câmara- Dalmo Pessoa, 22/03/84, 130ª. Sessão, p. 29), funções essas que sofreram importantes transformações ao longo da ditadura, numa crítica ao uso da violência policial como método de atuação em relação à sociedade, utilizado ao longo da ditadura “..., visto os homens de plantão no Poder Central haverem transformado a Secretaria da Segurança Pública num brutal sistema de repressão, para perpetuarem-se no Poder, manter os privilégios abusivos e afastar o povo de qualquer participação democrática” (Anais da Câmara- Pessoa, 1984, 130ª Sessão, p. 29). O vereador apontava para questão central a este artigo, a constatação da manutenção de um ordenamento repressivo, com abordagem de guerra, no trato ao policiamento ostensivo, em contexto de transição democrática. Em seu discurso, reforçou o fato de que a prática não só era recorrente como também incentivada:
Hoje, o policial militar cria e força flagrante delito, chegando a gerar atritos e conflitos com a Autoridade Policial que se nega a essa prática, simplesmente porque o flagrante delito, por conseguinte, a repressão ao crime, garante ao policial militar elogios, folgas e medalhas, terminando por gerar no policial a psicose da violência e em ver em qualquer cidadão um bandido em potencial ou mais um suspeito, tal e qual a Doutrina de Segurança Nacional, que coloca o exercício da cidadania como uma perigosa prática subversiva (Anais da Câmara - Pessoa, 22/03/1984, 130ª sessão, p. 25).
Quando acompanhamos os Anais da Câmara Municipal de São Paulo, podemos perceber a recorrência do tema da criminalidade ao longo de todo o ano de 1984, circundado pelas temáticas de apoio ao fortalecimento da polícia militar, em sua lógica repressiva; é nítido que a partir de abril passaram a dividir o espaço da sessão com o tema de maior foco ao longo do ano, as eleições diretas para Presidência da República. Contudo, no ano de 1985, o tema da criminalidade-repressão voltou à tona com grande fôlego e desdobramentos que passamos a discutir.
No início de 1985, em fevereiro, o tema da criminalidade voltou ao plenário ganhando novo contorno. O vereador Gilberto Nascimento (PMDB) lançou o seguinte questionamento: “gostaria de levantar o problema aqui nesta Câmara, esta Casa que realmente representa os anseios da população: a pena de morte poderia ser uma solução para isso?” (Anais da Câmara- Nascimento, 09/02/1985, 222ª. sessão, p. 35). Ao que o vereador Albertino Nobre (PTB) logo responderá: “Então, eu não poderia deixar de concordar com V. Ex.ª de que a pena de morte é o remédio ideal para coibir tais crimes que vêm acontecendo, principalmente na nossa periferia. O criminoso deverá ser punido com mais rigor, assim como o era no passado; [...]”(Anais da Câmara- Albertino Nobre, 09/02/1985, 222ª Sessão, p. 35). Observamos que essa pergunta norteará a questão sobre segurança pública ao longo do ano, com intensos debates.
O debate em torno da provocação de uma proposta de lei de pena de morte, tendo como pano de fundo a discussão sobre o aumento da criminalidade pode ser dividida em dois grandes grupos de argumentação. O primeiro, opositor à pena de morte, entendia que era necessário resolver a criminalidade atacando suas causas, compostas de distintos fatores. Assim, alguns vereadores, como já visto ao longo do texto e ainda presentes nos debates colocados no ano de 1985, viam na crise econômica, na alta inflação, nos problemas sociais, focos importantes explicativos do aumento da criminalidade. Entendiam, ainda, que a questão não seria resolvida com o aumento da violência e do autoritarismo e procuravam demonstrar que não houve diminuição da criminalidade em países que adotaram a pena de morte. Assim, para esse segmento de vereadores era necessário garantir saúde, educação, condições econômicas e direitos humanos.
Já os vereadores que defendiam a pena de morte partiam do pressuposto de que o criminoso era irrecuperável e, por isso, não deveria ser protegido pelos direitos humanos. Assim, as argumentações propunham diferentes formas de intensificação da violência de Estado, garantindo o uso de todo o contingente militar no combate à criminalidade; o retorno da ROTA às ruas; uma legislação mais rígida, além da crítica contínua àqueles que defendiam os direitos humanos, considerados defensores da criminalidade e do banditismo “... gostaria que os demais membros daquela comissão fossem processados, inclusive o promotor Hélio Bicudo, pelo incentivo e proteção à criminalidade” (Anais da Câmara- Fernandes, 12 de fev. de 1985, 225ª sessão, p. 26).
Na defesa de maior policiamento, em maio de 1985, o vereador Francisco Batista propôs moção para a presença da polícia do exército no policiamento ostensivo da cidade, argumentando que “Vivemos numa época em que a presença das Forças Armadas se faz necessária. São Paulo não pode ficar despoliciada. A insegurança e a intranquilidade não podem continuar a residir nos lares de todos os brasileiros que aqui moram...” ( Anais da Câmara- Batista, 04/06/1985, 264ª. sessão, p.41); a moção foi aprovada e no dizer dos vereadores proponentes, tinha o intuito maior de expressar o sentimento de impunidade existente. Paralelamente, tramitava um projeto de lei propondo a criação de uma polícia militar municipal; essa proposta, que apareceu em algumas sessões ao longo do mês, acabou retirada de pauta. Para nós, contudo, o longo debate composto pelas diferentes pautas e a aprovação da moção em favor da utilização da polícia do exército para o policiamento ostensivo, explicitou a conformação de uma maioria na Câmara pautada pelo encaminhamento do aumento da repressão no controle da criminalidade de São Paulo. Essa perspectiva demonstrou a consolidação do discurso da violência e do medo como norteadores do debate da casa sobre o problema da segurança pública.
Tratava-se de momento central para qualificar a discussão sobre a segurança pública. Em 15 de março de 1985, assumiria um presidente civil e independentemente das idas e vindas, em função do falecimento de Tancredo Neves, estava posta a discussão sobre a legislação e normatização do Estado com o fim da ditadura civil-militar; e, nessa discussão, o tema da segurança pública dos estados era central. Se acompanhássemos a imprensa, veríamos que o debate se potencializou a partir daquele ano. Considerando a Folha de S. Paulo, vemos o pipocar de matérias refletindo sobre a necessidade de elaboração de uma nova constituição, o que colocava o tema da segurança pública na ordem do dia, com uma tendência em defender modificações na polícia, através de sua unificação e maior autonomia do estado: “Constitucionalmente, nada impede que as polícias militares, devido ao fim do regime militar, voltem a subordinar-se aos governadores eleitos pela via direta [...]” (Constituinte [...], 1985, p.12). Possivelmente, o debate foi novamente potencializado ao longo da constituinte, recorte temporal que não faz parte do escopo deste artigo.
Considerações finais
Neste artigo, procuramos refletir sobre o lugar da violência relacionada à repressão cotidiana, via segurança pública, na construção da transição brasileira, entre os anos de 1983-86. Pudemos observar, pelo documento proposto pela polícia militar, a defesa de um modelo de segurança pública repressiva, alicerçada na Doutrina de Segurança Nacional. Ao acompanharmos as Atas da Câmara Municipal, nos chamou a atenção a demarcação do tema da violência, via discussão da criminalidade e do papel da segurança pública, como acontecimento discursivo. O efetivo aumento da criminalidade e/ou a potencialização do discurso sobre a criminalidade sedimentou o tema como o grande problema social, objeto constante das sessões da câmara no recorte aqui proposto e abordado a partir de dois grandes eixos: os problemas sociais e econômicos versus a necessidade de controlar a criminalidade, independentemente de suas causas, com o aumento da repressão.
Pudemos perceber a constância de discursos de vereadores que buscavam ampliar a reflexão, ponderando sobre seus aspectos econômicos e sociais e buscando soluções estruturais. Observamos ainda, que os discursos eram apoiados e disseminados por diferentes instâncias da sociedade civil. Se aprofundássemos a discussão sobre a atuação da Comissão Teotônio Vilela, veríamos que ela efetuou profundos e contínuos estudos sobre a questão da violência, criminalidade e direitos humanos, concluindo que “... quanto mais consolidado o Estado de Direito, menos mortes, quanto mais autoritário o regime e menor controle da sociedade sobre o aparelho policial, mais mortes...” (Pinheiro; Braun, 1986, p. 141). Especificamente sobre o policiamento ostensivo, foram contundentes em afirmar que deveria ser reformulado, tornando-se preventivo, sob o comando da polícia civil. Essas discussões estão diretamente relacionadas ao debate sobre os direitos humanos e, logo, ao sentido de democracia em construção.
Já os discursos e desdobramentos propostos pelo segundo eixo, apoiado pelos partidos do governo federal, propunham a ampliação e fortalecimento da polícia militar no policiamento ostensivo. A retomada das Atas da Câmara nos mostrou o percurso de construção discursiva, iniciado com uma crítica aos governos de oposição na gestão pública, caminhando para a associação entre partidos de oposição e proteção do banditismo. Com essa estratégia, dois aspectos fundamentais se estruturaram: o entendimento de que a defesa dos direitos humanos era defesa da criminalidade e que somente com a manutenção da repressão haveria a solução do problema. Assim, principalmente no ano de 1985, caminhou-se para propostas de alteração da legislação penal, tanto pela proposição de lei de pena de morte quanto de leis que aumentassem a ingerência da polícia militar, como no caso da proposta de criação de uma polícia militar municipal. Apesar desses temas não se tornarem lei, a moção aprovada e a manutenção da segurança pública, nos moldes indicados por este segmento, mostraram a força do grupo e do encaminhamento proposto.
Essa recorrência efetivou uma formação discursiva pautada na valorização do uso da violência no policiamento ostensivo, contra o inimigo interno, sob controle da polícia militar. Constatam-se, assim, dois importantes aspectos. O primeiro, que a ideologia autoritária, praticada por setores formados no uso da repressão, foi legitimada pelo discurso político, ampliando seu escopo de atuação autorizado, no contexto da transição. Segundo, que a valorização da ideologia autoritária respondia a interesses de grupos sociais que anteviam a possibilidade de enfraquecimento político com a democratização; assim, a polícia militar e os partidos de direita, para além de suas referências ideológicas, utilizaram essas estratégias discursivas para se reacomodarem nas estruturas do poder.
Vemos que, apesar de tratarmos da segurança pública em tempo/espaço definidos, na cidade de São Paulo, entre os anos de 1983-86, temos diálogo contínuo com as questões nacionais e federais, já que o modelo de segurança pública está alicerçado na doutrina imposta com o golpe de 1964, num longo processo de disseminação, o que gerou também, um movimento e discursos de resistência, focados na defesa dos direitos humanos. Em nosso entendimento, assim, os embates vislumbrados no cenário paulista reverberam questões nacionais.
Considerando o tema da transição, balizado pelos debates políticos no âmbito da Câmara Municipal, vista aqui, então, como uma espécie de caixa de ressonância, observamos mais retrocessos do que ampliação do debate democrático. Isso porque a repressão ao crime, vitoriosa, possibilitou a permanência e enraizamento da lógica da Segurança Nacional no trato da sociedade, sedimentando a ideia da criminalização da mesma, na valorização da moral de guerra. A manutenção do conceito de segurança nacional, com a valorização da polícia militar, nos mesmos moldes anteriores possibilitou, a nosso ver, a estruturação de um Estado ainda repressivo, nomeado como democrático. Alterou-se a fundamentação do inimigo, mas manteve-se o belicismo como mediação social. Esses limites foram garantidos pela manipulação do medo; pela reverberação de um imaginário de guerra e pelo bloqueio do debate sobre os direitos humanos, rapidamente capturados como aspectos negativos, de favorecimento e proteção da criminalidade. Se não há valorização dos direitos humanos e, logo, da igualdade social, mantém-se uma concepção hierárquica e, então, autoritária.
Nesse sentido, vivíamos um período em que a temática democrática aparecia como a utopia possível para a restauração social, norteadora de todo o debate sobre a constituinte em 1987, culminando na chamada constituição cidadã em 1988. Contudo, concomitantemente ao enaltecimento da democracia, convivíamos com uma sociabilidade repressiva, alimentada continuamente pelo fomento à repressão, negando a igualdade aos cidadãos, a reflexão sobre estruturas socioeconômicas e fomentando o reforço dessa mesma lógica repressiva como saída possível para o desespero cotidiano dos cidadãos ordinários. Aqui, as lógicas autoritárias se mantiveram, tendo como cerne, o uso autorizado da violência.
Considerando, assim, a reflexão em tela, perguntamo-nos sobre o significado da transição colocada. Podemos argumentar, como a maior parte dos autores, que houve uma transição política, já que caminhamos de um sistema político autoritário para um não autoritário, com a retomada gradativa dos processos eleitorais, das mudanças legais, do equilíbrio dos poderes, culminando na Constituição de 1988. Mas, ao destrincharmos suas entranhas, vislumbramos a violência, como dinâmica de poder, como estrutura de Estado e como lógica social. Nesse sentido, mesmo a transição política não foi completa. Como nomear, então, essa transição?
Referências
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[1] Este artigo é parte da pesquisa desenvolvida como pesquisador Pq-2.
[2] O contexto de criação da OBAN nos remete, também, às estruturas paralegais de repressão já existentes no país; trata-se dos Esquadrões da Morte, disseminados em muitos estados do Brasil, com destaque para os esquadrões do Rio de Janeiro e São Paulo. Nesse último estado, estava sob o comando de Sergio Paranhos Fleury, policial civil locado no DEOPS-SP. Não por acaso, ele foi chamado para participar da OBAN, carregando o know-how já consolidado. Os esquadrões da morte, como organização paralela não institucional, sofreram pressão judicial ao longo dos anos de 1970. Hélio Bicudo, jurista sediado em São Paulo, foi um importante nome no combate aos Esquadrões da Morte, na defesa dos direitos humanos.
[3] O termo arquegenealogia foi aqui apropriado de fala de Maria do Rosário Gregolin, em aula ministrada com o título ‘Análise do discurso com Michel Foucault’. Na abordagem há a composição de uma análise arqueológica, que reconstitui a regularidade discursiva, com a análise genealógica, que busca compreender a origem dos discursos.
[4] Para o aprofundamento da questão, ler a tese “Battibugli, Thaís. Democracia e segurança pública em São Paulo (1946-1964).” A autora apresenta diferentes momentos em que houve a tentativa, por parte da Força Pública, de alteração dessa situação. Em 1953, por exemplo, a FP tentou equiparar seus cargos aos da Polícia Civil. E, ao longo desses anos foi tema contínuo da imprensa. Segundo a autora, “Havia uma intensa rivalidade entre as corporações policiais do Estado, e as polícias estavam em constante competição por verbas, por maiores atribuições e poder. Cada qual agia como se fosse única, autossuficiente, defendia os valores de sua instituição e denegria a imagem da rival para a população, imprensa e esfera política” (Battibugli, 2006, p. 83).
[5] “O Ponto IV no Brasil foi estabelecido através da assinatura de dois acordos com o governo norte-americano: o Acordo Básico de Cooperação Técnica, de 19 de dezembro de 1950 e o Acordo de Serviços Técnicos Especiais, de 30 de maio de 1953. Os programas estabelecidos pelo Ponto IV procuraram abranger as áreas de economia, administração pública, administração orçamentária e financeira, agricultura, recursos minerais, energia nuclear, saúde, educação, transportes e outras.” (Abreu, [196-]). Inserido nesse grande programa, o acordo de cooperação relacionado à segurança pública foi efetivamente firmado em 1959, ainda sob o controle do AIC (International Cooperation Administration), mas entre os anos de 1957 e 1959, em função da solicitação de governadores de diferentes estados, houve a vinda de técnicos para a análise da estrutura da segurança pública.
[6] A partir do novo decreto-lei algumas resoluções foram colocadas em prática, ao longo dos anos 70, para o ordenamento do cotidiano das polícias; foi o caso da resolução de 05/10/1971-n. SSP-47 que instituiu o ‘plantão integrado na CIOP (Centro Integrado de Operações)’ indicando em seu artigo 1º: “ Fica instituído o ‘Plantão Integrado’ na CIOP composto por um Delegado de Polícia de 1ª. ou 2ª. classe e um Oficial Superior da Polícia Militar” (Secretaria de Estado dos negócios de Segurança Pública, 1971, p. 18).
[7] Os Anais da Câmara Municipal de São Paulo são os documentos organizados por sessão ou por volume que reúnem os debates ocorridos na Câmara. Assim, em cada sessão (ordinária ou extraordinária) são debatidos aspectos do Expediente ou da Ordem do Dia e os vereadores discursam por ordem de inscrição. No Expediente pode haver Projetos-Lei e/ou Moções que são debatidos e votados e podem existir, também, indicações, que são aprovações previstas. Todo o conteúdo é registrado, compondo os Anais da Câmara. Trata-se de fonte de difícil análise, pois não está organizada por temas e o pesquisador é obrigado a fazer a leitura integral da Ata para identificar os temas debatidos e, então, a argumentação conduzida. Para essa pesquisa, fizemos a leitura integral dos Anais, no período recortado de 1982-1986. Através do Edital Pipeq auxp 22021, pude contratar um pesquisador júnior, responsável por me auxiliar na leitura das fontes e no registro das categorias de análise em planilha Excel. Em reunião prévia, definimos os temas que seriam analisados, destacando: 1. segurança pública, com os subtemas da violência, do crime, da crise econômica, de problemas urbanos, todos relacionados à crise social; 2. Democracia, com os subtemas das eleições e dos direitos humanos. Na planilha, registramos cada sessão; dia; tipo de sessão; temas norteadores; subtemas relacionados e síntese da argumentação. Nos temas identificados com o artigo em tela, no ato da escrita do texto, voltei a cada sessão para o processo de análise de discurso e do contexto histórico. Essa etapa, então, associou análise de conteúdo com análise de discurso e a planilha possibilitou identificar a recorrência dos temas em questão.
[8] Aproprio-me da explicação colocada por Foucault, quando alerta que ele próprio utilizou de várias maneiras o termo discurso; assim, muitas vezes esteve relacionado a um ‘conjunto de performances verbais’ indicando, contudo, que conceitualmente refere-se ‘ao conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação [...]’ (Foucault, 2014, p. 131).
[9] As décadas de 70/90 foram marcadas pela reestruturação política do capital, numa trajetória neoliberal que previa, em linhas gerais, o questionamento ao papel social do Estado e um processo de financeirização da economia. Essa reestruturação não ocorreu igualmente e na mesma proporção e tempo nos vários países, mas apontou para remodelações em escala mundial. No Brasil, a negociação com o FMI já incorporou alguns aspectos, já que previa a desregulação do setor produtivo; das condições de trabalho que acarretavam naquele momento a retração do emprego; bem como a alta de juros reais que submeteram definitivamente os países endividados ao FMI e, logo, ao neoliberalismo. Outra faceta presente no cenário propriamente paulista foi o processo de desindustrialização iniciado naquele momento.
[10] Muitos são os textos que discutem a crise econômica, com seus fatores externos, considerando tanto a crise do petróleo e as negociações com o FMI quanto os problemas relacionados à política do comércio internacional e negociações com os EUA. Também encontramos muitos autores discutindo os fatores internos, com destaque para a política de desindustrialização.
[11] Vemos que o vereador nomeia o PMDB como um partido de esquerda. Trata-se de estratégia discursiva no intuito de imputar ao partido o caráter radical, potencializando a crítica. Contudo, devemos lembrar que o PMDB se caracterizava como um partido de oposição, apresentando diferentes nuances conforme o contexto.
[12] A Comissão Teotônio Vilela, que só ganhou esse nome em novembro daquele mesmo ano, como homenagem ao senador Teotonio Vilela, falecido nesse mês, era composta por um grupo de pessoas preocupadas com os direitos humanos. Além dos senadores Teotônio Vilela e Severo Gomes, estavam José Gregori, Eduardo Suplicy, o cientista político Paulo Sergio Pinheiro, entre muitos outros nomes de relevância intelectual e política. Hélio Bicudo, jurista por São Paulo e envolvido nas denúncias às ações dos esquadrões da morte, colaborou também como integrante da comissão.