Revisitar a Transição Democrática e o seu legado: uma demanda ainda urgente
Quem se ateve às notícias dos últimos tempos, talvez tenha tido a sensação de que Clio esteja novamente a nos pregar uma peça já que os ecos de um passado trágico parecem ficar cada dia mais altos. No Chile, a constituição imposta pela ditadura permanece. Na vizinha Argentina, volta à baila a crise econômica em meio a flertes crescentes com os trágicos idos da brutal ditadura do final dos anos 1970. E, no Brasil, assistimos estarrecidos os trágicos incidentes de 8 de janeiro de 2023, quando o processo de reconstrução da nossa institucionalidade democrática foi quase interrompido.
De volta ao proscênio de forma tão dramática, tais eventos questionam-nos sobre os meios e resultados dos processos de redemocratização em nossa região. Uma conclusão imediata é a da fragilidade das democracias que emergiram ao longo da década de 1980, via processos controlados, em maior ou menor grau, a depender de cada caso, pelas elites militares e civis de cada país. Dentro de tais dinâmicas, transladaram-se ao presente entraves que nos impedem ultrapassar de vez um triste período que, pelo visto, vem cobrar a conta. Indagar sobre tais experiências é, pois, vital se quisermos construir um futuro sem o peso desse passado que insiste em não passar. Afinal, ao não serem bem exorcizados, os fantasmas de tempos idos irão sempre nos atormentar.
Ainda que trágico, esse não é, contudo, um problema novo. Os gregos, por exemplo, dedicaram algumas das suas melhores tragédias às consequências de não enterrar devidamente os mortos. Metonímia que deveria ser aplicada a processos coletivos já que tais mitos escondem significados mais amplos. Em nossos casos, nossas ditaduras deixaram rastros profundos e essa presença emerge como pedra insolúvel. O Brasil investigou tardia e parcialmente, e tragicamente nunca puniu, os crimes de lesa humanidade cometidos pelo regime empresarial militar de 1964-1985. O Chile não consegue abolir a estrutura política pinochetista e, a Argentina, apesar dos seus altos méritos na área dos Direitos Humanos, não é capaz de superar os entraves de uma polarização que destrói a economia e mesmo o tecido social.
O primeiro passo no processo desse exorcismo, mais que necessário, é o de reconhecer que não precisava ser assim. De fato, se considerarmos o tanto que diferentes organizações de base lutaram, desde meados da década de 1970, para que houvesse uma redemocratização efetiva no Brasil, fica difícil de entender como chegamos a tal ponto de rejeição não só da democracia formal, mas também da própria cultura e dos valores democráticos entres nós. Se nos detivermos, contudo, nos meandros do processo de redemocratização, em grande parte imposto, assim como na própria lógica de acomodações operando em tais desdobramentos, poderíamos então começar a ter uma melhor noção não só das insuficiências de tal processo, mas também do seu legado em médio e longo prazos.
É exatamente o que buscamos fazer no presente Dossiê História do Tempo presente, transições e democratizações, que chega em boa hora, quando presenciamos uma rica e necessária reflexão (ainda que talvez por demais restrita aos âmbitos acadêmicos) em torno do aniversário de 60 anos do fatídico Golpe Civil-Militar de 31 de março de 1964, que não só destruiu o que até então tinha sido uma das mais importantes e promissoras experiências de convívio democrático no Brasil, como custou a vida e os sonhos de milhares de pessoas, uma vez que aprofundou um modelo de desenvolvimento injusto e um projeto de país autoritário e excludente em termos econômicos, raciais e de gênero.
É vital que fique claro que a transição não foi uma mera concessão. Ao contrário do que saudosistas da nossa ditadura têm buscado afirmar nos últimos tempos, por meio de distorções históricas aberrantes, mal informadas ou perversas, mas certamente não ingênuas que apresentam a mais importante experiência autoritária que o país viveu com um período de paz, ordem e progresso, o que efetivamente tivemos foi um jugo militar opressor que somente aceitou se retirar de cena, pelo menos em parte, por meio de uma luta lenta, gradual e segura num período de transição que nos levou à nova institucionalidade democrática. Ainda que restrita, tivemos, por fim, uma democracia.
Mas embora muitos movimentos sociais lutassem por uma redemocratização mais substantiva, em que as violações aos direitos humanos cometidas pelo regime fossem punidas, nossa transição, diferentemente da que ocorreu na vizinha Argentina, por exemplo, teve um processo controlado pelo alto, que levou cerca de uma década, e a anistia imposta pelo regime foi, por fim, incorporada à institucionalidade democrática vigente. E, desde então, não temos, de fato, tentado enfrentar as sequelas de uma transição controlada, capenga e insuficiente.
Quando do aniversário de 40 anos, muitos eventos acadêmicos sobre a ditadura e seus legados foram realizados. O mesmo ocorreu dez anos depois e, agora, também, uma nova data redonda nos deparará com a necessidade de novas e maiores reflexões. Nada mais importante e necessário. Mas, o fato é que em todos esses momentos pouca discussão ocorreu para além das esferas acadêmicas e intelectuais. Tal realidade reflete a forma como a questão é difusamente percebida pela população em geral; assim como, a baixa prioridade que o tema tem recebido pelas lideranças políticas, de várias matizes ideológicas, que têm dirigido o país nos últimos 30 anos. Esse é um panorama que infelizmente acabou por se unir ‘a uma outra emergência’.
Vivemos hoje uma crise democrática ao redor do mundo que tem servido como desculpa, pelo menos em grande parte dos países, para fortalecer a agenda salvacionista da ultra-direita, quase sempre, por meio do culto ao grande líder conservador e autoritário. Dentro desse contexto preocupante, o Brasil parece ter passado pela sua tormenta mais forte. De fato, após quatro trágicos anos da propagação do autoritarismo e de um renovada tutela militar, o país conseguiu mobilizar todas suas forças democráticas para garantir uma eleição justa e o respeito ao mandato popular oriundo das urnas. É no interior desse enorme esforço coletivo que nos cabe, como estudiosos de temas relacionados, em maior ou menor grau, à tal temática da transição democrática e seu legado, continuar com essa tarefa pedagógica, neste caso, a apresentação do presente Dossiê.
Chamamos a atenção, desde já, que se trata de uma reflexão interdisciplinar que cobre um amplo período de tempo e uma grande amplitude de temas, o que nos parece ser mais do que necessário no complexo contexto de crise institucional e simbólica de democracia. Abrindo o Dossiê, Martina Spohr analisa os laços profundos que existiam, e que certamente ainda existem, entre empresários poderosos e os atores militares centrais do período, os que assumiram crescentemente protagonismo tanto na gestão, implementação e administração de rumos e desígnios do regime civil militar. “Empresariado, ditadura e transição política: reflexões sobre o regime empresarial-militar no contexto do governo Ernesto Geisel (1974-1979)” detalha, assim, de maneira sofisticada, um lado menos visível, mas determinante da experiência autoritária, que teve um componente civil central e incontestável. Embora central, esse poderoso segmento socioeconômico não experimentou medidas punitivas no processo de redemocratização – as poucas que existiram. Foi capaz, assim, de reinventar-se como ator central na nova composição social que daí emergiu, condicionando, deste modo, o processo político já não pela força das “botas”, mas pelo seu poderio econômico, que mudava de patamar dada a pesada herança em dívidas e descontrole fiscal deixada pela maioria das ditaduras.
Enriquecendo o volume, em “Nas entranhas da transição: o discurso da violência através do papel da segurança pública no processo da transição política brasileira”, Carla Reis Longhi toca em outro tema neuvrálgico da transição brasileira, tornado uma ferida ainda aberta do processo autoritário. Seu rico texto foca na recorrência das justificativas repressivas, não apenas restrita à política e instalada como uma questão social. O inimigo interno passara a ser o crime organizado, marginal, mas que tem produzido um efeito corrosivo para a própria democracia, colocado como problema central por aqueles que tomam as ditaduras como referência. Vimos recentemente como a polícia da cidade de Rosário, na Argentina, usava da truculência na prisão como arma propagandista, inspirada na recente experiência equatoriana, pois o fetiche autoritário parece ser uma marca que não se apaga, a julgar também pela experiência brasileira, que não precisa de inspirações externas.
Por sua vez, em “Transição democrática brasileira e movimento estudantil na Universidade Estadual do Ceará (1979-1989)”, Maria Auxiliadora Gadelha da Cruz enriquece nossos conhecimentos sobre atores da sociedade civil no processo de transição. Examina de forma detalhada as aspirações, desejos e contradições de jovens forçados a viver e agir em meio a um horizonte que se vislumbrava, mas que era ainda contido e definido pelo autoritarismo e por temores. Ainda assim, dentro das amarras do momento, consolidava-se um processo relevante para entendermos o comportamento político futuro dos atores e talvez mesmo do país em geral. Afinal, a domesticação dos estudantes e, também, dos trabalhadores foram sem dúvidas os componentes centrais para a perda de radicalidade e significação da esquerda, propósito fim das ditaduras.
Outra das grandes frentes de esperança do processo de redemocratização foi a tentativa de remoção dos tramados jurídicos. Dos países que saíram de ditaduras, o Brasil foi pioneiro em ditar um novo marco constitucional, até porque o próprio regime não foi consolidado numa carta magna ao desistir da promulgada em 1967. Diferentemente, o Chile a cristalizou em 1980, continuando ainda vigente. Analisando tais entraves em “A Democracia Constitucional em questão – política, direito e história no tempo presente”, Andrei Koerner, Mariele Troiano e Lígia Barros de Freitas apontam que, apesar da dita transição, muitos entulhos autoritários ficaram presentes mesmo na chamada Constituição Cidadã. O famigerado artigo 142, por exemplo, deixou dúbio o papel das Forças Armadas que novamente foram tentadas a reverter a ordem legal. Debate que se abre sobre todo esse marco jurídico que ficou também como herança e que não foi removido, para o qual, além do caso chileno, temos a Lei de Caducidade no Uruguai e a própria Lei de Anistia no Brasil, que garantiram impunidade aos perpetradores de crimes de Lesa Humanidade.
Avançando a reflexão dentro de outros obstáculos para uma democracia mais plena, Janaina Rigo Santin reflete, em “Responsabilidade Fiscal e Reforma do Estado Brasileiro (1998-2000)”, sobre a recorrência do tema do desequilíbrio das contas públicas e a forma como as democracias recuperadas tiveram que lidar para domar o “monstro” inflacionário. Adentra-se, assim, em um espinhoso assunto que alguns países contornaram com políticas fiscais de austeridade, por imposição da hegemonia neoliberal, embora outros tenham ousado ultrapassar, às vezes com penosas consequências.
Fechando o dossiê e ampliando o foco da análise cronologica e geograficamente, em “Democracia, populismo y autoritarismo en América Latina, 2012-2022: una reevaluación”, Carlos Domínguez retoma a reflexão sobre a tensão constante que cada Estado recentemente redemocratizado experimenta, dentro de um ciclo vicioso que insiste em nos puxar para o passado. A análise é traçada ao longo de todo o contexto regional, com focos em países específicos, e centrada em um período mais recente, mas a rica linha investigativa apresentada se ancora nos limites e no legado problemático do processo de transição e redemocratização experimentado por diversos países da nossa região.
Examinando, assim, de forma crítica e multidimensional, temas complexos e diversos, os artigos que compõem o presente Dossiê procuram elucidar, da forma mais clara possível, questões centrais que continuam a pautar os debates públicos e os desafios democráticos latino-americanos, em especial em nosso país. Não esquecer, muito menos negar tais questões, e sim manter viva e aprofundar a reflexão sobre as mesmas é tarefar principal para darmos conta de vez dessa maldita herança que ainda nos aflige. Só assim poderemos resolver e enterrar definitivamente os demônios de um período trágico que insiste em nos definir. Esperamos ter contribuído para tal objetivo, tão urgente e necessário.