http://dx.doi.org/10.5965/2175180315382023e0302
Recebido: 30/09/2022
Aprovado: 13/03/2023

Convite à história oral aplicada

Lucas Maceno Sales
Universidade Federal da Grande Dourados
lattes.cnpq.br/2171523760751384
maceno@outlook.com.br
orcid.org/0000-0003-4694-1546

Obra resenhada

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas:história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020. 192p.

Resenha

A história oral consagra a diferença. Por operar em fenômenos mnemônicos lastreados na oralidade, dimensiona-se manifestação cidadã do saber – a memória falada é organismo social pré-existente às barreiras disciplinarmente erigidas. Conjuga-se a polissemia de trabalhos em história oral por diferentes áreas do conhecimento e comunidades afins. De maneira incontornável, a história oral está difundida porque se fez valer alternativa privilegiada de registro, divulgação e análise do passado filtrado no imediato dialógico. Assim, a história oral no tempo presente está caracterizada por sua crescente horizontalidade.

Desdobramento deste paradigma ainda recente, o debate no interior da história oral no Brasil está marcado pela urgência de explicações de cunho ético, teórico e empírico. Ressalta-se que seu acatamento ampliado abrasou a busca por critérios explícitos que diferenciem história oral e história pública, valorizando especificidades e intersecções[1]. Observando a questão por ângulo alternado, a democratização da história oral foi capaz de provocar a insatisfação contida na divisão entre história oral acadêmica e história oral popular. Escrito em coautoria por José Carlos Sebe Bom Meihy e Leandro Seawright, Memórias e narrativas: história oral aplicada (2020) reposiciona o debate brasileiro celebrando a recepção dos públicos implicados desde a elaboração de projetos característicos de história oral.

E tudo principia na relação de cumplicidade entre os autores, que falam a partir de um lugar comum: o Núcleo de Estudos em História Oral da Universidade de São Paulo (NEHO-USP). Publicado nas vésperas dos 30 anos do núcleo, em contexto pandêmico, Memórias e narrativas traduz a maturidade metodológica ancorada nesta efusiva trajetória. Endossando o pressuposto de que história oral não se limita à prática de entrevistas, Meihy e Seawright extraíram desta constatação a potência refletiva para argumentos enredados em projetos característicos de história oral. Desse modo, o planejamento sistemático de procedimentos desde a pré-entrevista (planejamento), as entrevistas propriamente ditas e tratamento pós-entrevista (materialização e devolutiva de resultados) responde aos questionamentos mais corriqueiros, deixando às claras um estatuto, que pode ser metodológico ou indicando para posturas disciplinares. A aplicação da história oral se inicia, pois, com a materialização escrita das intenções.

Meihy e Seawright provocam a discussão com uma pergunta simples, mas permeada de sentidos que ecoam pelas páginas seguintes: “mas por que história oral aplicada?” (2020, p. 11). As respostas possíveis transbordam os termos de sua provocação. Na superfície deste problema, consta o qualitativo “aplicado” ao sujeito “história oral”. A aplicação corresponde, portanto, à condução cuidada, disciplinada do projeto. A valorização dos públicos que consubstanciam os trabalhos de memória, dos narradores aos leitores/receptores se reflete no rigor processual organizado nas oito unidades. A referência à canção “Amor de Índio”, de Beto Guedes define o tônus da aplicação: “‘Abelha fazendo mel, vale o tempo que não voou’” (2020, p. 88). A apresentação criteriosa das histórias orais, somada a intensidade do labor envolvendo escuta, registro, escrita e devolução identifica o oralista[2] com o seu ofício, atribuindo-lhe razão social de ser.

Com Memórias e narrativas, renovou-se o compromisso nehoista[3] de publicar resultados sintetizados em textos de leitura dinâmica, atendendo as demandas por manuais introdutórios que orientem a tessitura dos projetos. Desse modo, o leitor brasileiro perceberá que esta nova empreitada está inserida na tradição de livros como Manual de História oral (MEIHY, 2005), Guia Prático de História Oral: para empresas, universidades, comunidades e famílias (MEIHY; RIBEIRO, 2011) e História oral: como fazer, como pensar (MEIHY; HOLANDA, 2015). A eufonia das linhas que se entrecruzaram por procedimentos concatenados indica que este manual pode ser apropriado por pesquisadores iniciantes e experientes – sejam estes universitários ou outsiders.

Na senda dos objetivos da proposta, destacam-se a atualização de conceitos consolidados em obras anteriores, e a definição de um campo de incursão: a memória de expressão oral[4]. E não há como deixar de correlacionar tais princípios diretores, visto que a própria concepção dos projetos de história oral aplicada se afeiçoa como meio transformador de enunciados verbalizados para sua concretude textual. Radicalizando o entendimento de que a dimensão oralizada da experiência possui fundamentos próprios, Meihy e Seawright requalificaram as balizas de uma história oral que se assume filha da memória. Sem embargo, a história oral aplicada se substância como campo de estudos em memória de expressão oral.

Na esteira das definições, uma preocupação recorrente dos autores foi fermentar a reflexão estatutária sobre memória de expressão oral. Ao fazer emergir as sutilezas internas que diferenciam o código oral do escrito, nota-se que a argumentação confluiu para a superação de hierarquizações documentais ao destacar “um dado fundamental: o ser humano como produtor" (2020, p. 89). Ambas as codificações gozam de suficiência analítica e, portanto, não convém transpor métodos iguais para o entendimento de expressões dessemelhantes. Enquanto a memória escrita se organiza conforme a lógica sequencial do pensamento ativado pelo sentido do tato (2020, p. 22), a memória de expressão oral se fundamenta por sua liquidez inerente. Seletiva, performática, instantânea, a memória oralizada escapa às convenções da norma culta da língua e se expressa pela potência narrativa filtrada por fatores subjetivos e circunstanciais. Uma vez mais, a história oral aplicada se define por acolher o narrador presentificado na linguagem, e se movimenta em direção à desnaturalização da oralidade para sua condição escrita.

A partir da filiação da história oral aplicada à memória de expressão oral, tornou-se necessário recriar a própria noção de projeto. Projeto, então, constitui-se sistema que articula procedimentos interdependentes, promovendo a transformação progressiva da matéria mnemônica do estado líquido para o sólido; da oralidade para o suporte textual. A mediação da escrita, nesse sentido, fundamenta-se artifício que viabiliza duas situações: atingir o significado que o interlocutor atribui a própria narrativa oral; o exame das entrevistas e do próprio projeto. Assim como entrevista não é história oral, foi enfatizado que uma história (oral) é mais do que a transposição absoluta do código oral ao escrito. O que se almeja com a aplicação do projeto é promover a produção textual orientada a comunicar histórias reconhecidas pelos entrevistados, projetando pelo rigor disciplinado recepções direcionadas. O respeito aos públicos envolve procedimentos mais arrojados do que a transcrição literal. Fala-se, pois, em transcriação[5].

Em Memórias e narrativas, a transcriação supera os entendimentos de um conceito operacional. Faz-se postura ética e estética. Fundamentada na tradução poética dos irmãos Campos, a transcriação foi relida pelo NEHO-USP e passou a constituir o estágio final da materialização das entrevistas, quando cumpridas as fases da transcrição e textualização. Por ela, consagram-se os diversos elementos que escapam ao que se espelha no gravado. Silêncios, gestos, sorrisos, lágrimas, cacofonias, entonação e demais sutilezas inerentes à oralidade são transformadas em contornos textuais, permitindo ao leitor dimensionar a aura dos encontros. Com a obra, novas apropriações da transcriação se viabilizaram ao inseri-la no campo mais abrangente da transformação da oralidade prosaica para sua concretude na palavra grafada. Transcriação e desnaturalização se converteram em palavras sinônimas, sugerindo a operação por níveis transcriativos que perpassam os projetos: transcriação do próprio projeto, transcriação das histórias orais e transcriação analítica (2020, p. 149-151).

Se a transcriação é movimento transformador, a motivação precípua dos personagens que constituem os projetos confere foros de solenidade ao processo. Assim se explicam o colaborador e o oralista. São partes que não se confundem, mas que alinham esforços para dimensionar socialmente situações reverberadas no íntimo. A esta relação, define-se colaboração; termo que, decomposto, “é fundamental tanto para o andamento técnico no projeto como para sua função ética, pois remete à mediação [...]” (2020, p. 20).

São os colaboradores que indicam pessoas a serem entrevistadas, tecem os fios da memória coletiva e conferem estatuto documental à história oral mediante assinatura de carta de cessão de direitos autorais. Por seu turno, o oralista assume a função de mediador de códigos, sem abdicar a responsabilidade do texto. No contexto de Memórias e narrativas, a colaboração se renova como fundamento filosófico capaz de desatar o nó que costurava história pública e história oral sob o mesmo tecido. Mais do que a divulgação, a história oral aplicada preza o fazer conjunto, e destina resultados direcionados a partir de objetivos justificados por meio da comunidade que gerou os trabalhos[6]

Enfim, certa historinha foi capaz de mensurar a relevância da obra no debate atual. Trata-se d’Um Apólogo, em que Machado de Assis narra a discussão entre a agulha e o novelo de linha (1994). Disputavam o papel de protagonista na costura do vestido da baronesa. Seria esta a provocativa agulha, que manuseadas nos dedos hábeis da costureira fura e abre caminhos no pano? Ou seria a linha, enrolada em seu orgulho por produzir materialidade ao vestido? No caso da história oral, a querela fermenta as inquietações iniciais. Afinal, a quem se atribui a primazia trabalhos de história oral: ao teórico ou ao empírico; ao oralista ou ao colaborador; ao conhecimento acadêmico ou ao conhecimento popular? E tudo se esclarece na aplicação disciplinada do projeto. Oralistas machadianos, José Carlos Sebe Bom Meihy e Leandro Seawright reconduziram o debate brasileiro ao aclamarem lugar cidadão das histórias orais; as quais, em analogia, constituem o vestido justificador da operação. Após transcriar a história oral do estado fluido de sua aceitação para uma proposta dotada de coerência afetiva e procedimental, a mensagem que fica de Memórias e narrativas é um efusivo convite à aplicação da história oral.

Referências

ALMEIDA, Juniele Rabêlo de. O que a história oral ensina à história pública? What does oral history teach public history? In: MAUAD, Ana Maria; SANTHIAGO, Ricardo; BORGES, Viviana Trindade. Que história pública queremos? What public history do we want? – São Paulo: Letra e Voz, 2018, 101-111p.

ASSIS, Machado de. Um apólogo. In: ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994, v. II. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000269.pdf. Acesso em 10/09/2022.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de História oral. 5º ed. São Paulo: Loyola, 2005.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; HOLANDA, Fabíola. História oral: como fazer, como pensar. – São Paulo: Contexto, 2015.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; RIBEIRO, Suzana L. Salgado. Guia prático de história oral: para empresas, universidades, comunidades, famílias. – São Paulo: Contexto, 2011.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom; SEAWRIGHT, Leandro. Memórias e narrativas: história oral aplicada. São Paulo: Contexto, 2020.

Notas

[1] Não sendo cabível neste encete apresentar os diálogos possíveis entre história oral e história pública no Brasil, indico o artigo de Juniele Rabêlo de Ameida (2018, p. 101-110).

[2] Define-se oralista o pesquisador que opera por projetos característicos de história oral. 

[3] Assim são chamados os pesquisadores formados no NEHO-USP.

[4] Com a popularização do vocábulo memória nas humanidades, um dado importante para o avanço do debate da história oral foi a utilização de termos correlatos a “memória oral”. A oralidade, pois, passou a ser reconhecida como manifestação que lastreia o fenômeno mnemônico incursionado pelo campo (MEIHY, 2005, p. 77-8). Meihy e Seawright preteriram pelo termo expressão ao argumentar a inexatidão subjacente em “memória oral” (2020, p. 25), valorizando assim a fluidez dialógica.

[5] Sabe-se que a operação pela transcriação não é unanimidade na história oral brasileira. Apesar da transcriação compor os trabalhos de Meihy e seus orientandos desde os anos 1990, argumentos sobre a não interferência na fala dos interlocutores, bem como a veiculação das entrevistas de história oral prezando a totalidade dos enunciados verbais transcritos ainda são recorrentes. Reconhece-se, porém, que as diferenças inerentes entre código falado e código escrito justificam as soluções transcriativas.

[6] Os autores reconheceram que historiadores públicos e oralistas, não raro, compartilham de preocupações comuns, mas reforçam que as feições entre os campos não se confundem (MEIHY; SEAWRIGHT, 2020: p. 162-5).





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Revista Tempo e Argumento
Volume 15 - Número 38 - Ano 2023
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