http://dx.doi.org/10.5965/2175180315382023e0301
Recebido: 28/02/2023
Aprovado: 30/03/2023
Kauê Pisetta Garcia
Universidade do Estado de
Santa Catarina
lattes.cnpq.br/017435928878464
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orcid.org/0000-0002-1067-6149
A partir da segunda metade do século XX e com mais ênfase, nas últimas décadas, o campo da História tem voltado grande interesse para a História do Tempo Presente. A necessidade de tratar de eventos recentes a partir de uma perspectiva histórica está intimamente conectada com os eventos traumáticos do início do século passado. Tratar de acontecimentos tão próximos cronologicamente traz uma série de desafios com os quais o campo precisou lidar desde o primeiro momento. A obra organizada por Angélica Müller e Francine Iegelski aborda justamente esses obstáculos e as formas como historiadores e historiadoras do tempo presente consolidaram o campo e têm lidado com as especificidades de pesquisar acontecimentos que encontram reverberações no presente.
O livro História do Tempo Presente: mutações e reflexões, publicado em 2022, demonstra a trajetória deste campo de estudos, os avanços e os desafios com os quais ainda é necessário lidar. As autoras são docentes da Universidade Federal Fluminense, ambas com atuações relacionadas à História do Tempo Presente, integrando e coordenando o Observatório do Tempo Presente da UFF. Angélica Müller é doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e tem pesquisas relacionadas à ditadura brasileira e à transição para a democracia. Francine Iegelski também é doutora pela USP e atua principalmente na área de Teoria e Filosofia da História.
A obra consiste em um texto introdutório das próprias organizadoras e em 10 artigos escritos por 16 historiadores e historiadoras, divididos em cinco eixos, tratando das especificidades que a pesquisa em História do Tempo Presente apresenta, de seus limites e potencialidades. As organizadoras propõem, na introdução, uma série de questões que suscitaram a iniciativa que resultou no livro, constituindo, a maioria, problemas já conhecidos de pesquisadores e pesquisadoras da área, como a questão do distanciamento dos objetos de pesquisa e os desafios de escrever sobre a história recente. Propõem, ainda, outras indagações relacionadas aos avanços feitos pelo campo, as contribuições da América Latina em um campo inicialmente constituído por europeus e os novos desafios que surgiram para o conhecimento histórico na era digital. Todos esses questionamentos, contudo, são secundários. O principal, segundo as autoras, é um que pode ser aplicado às mais diversas pesquisas quando se pensa a História do Tempo Presente: “O que tornou possível o nosso presente?”
Os artigos propriamente ditos são divididos em cinco partes. A primeira, HTP e desafios epistemológicos, contém apenas o texto de Hugo Fazio Vengoa[1], La historia del tiempo presente: composición, temporalidad y pertinencia. O historiador colombiano abre seu texto abordando as diferentes concepções sobre a História do Tempo Presente, fazendo uma espécie de “histórico” do termo, traçando relações com terminologias usadas para referir-se ao estudo do presente como “história do presente”, “história contemporânea”, “história recente”, “história imediata” ou, mesmo, “história moderna”[2] (p. 32-34). Vengoa dedica o restante do capítulo para destrinchar a ideia de “História do Tempo Presente”, separando-a nos seus três elementos essenciais: a história, o tempo e o presente. São todos termos que, por si sós, poderiam gerar debates extensos e profundos para suas conceituações.
O autor centra-se no entendimento da história enquanto área do conhecimento, estudo das sociedades humanas ao longo do tempo. Pensando especialmente o tempo presente, destaca sua natureza inesgotável, já que “la multiplicidad de lecturas del pasado responde a la variabilidad de momentos presentes que realizan las correspondientes interrogaciones”. Sobre o tempo, Vengoa considera, assim como Koselleck (1993), que é uma das questões mais complexas para o estudo histórico, e acrescenta que é justamente esse um dos temas centrais para a pesquisa em história. É particularmente interessante a ideia de tempo “eisteinizado”, defendida pelo autor, que seria o reconhecimento de que não existe um único tempo na história e na sociedade, e sim uma variedade de tempos que se entrecruzam, sobrepõem e colidem (p. 38). Sobre a ideia de presente, Vengoa apoia-se em outro conceito de Koselleck, a ideia de extratos de tempo (2001). Entende que o presente deve ser compreendido para além de uma “duração” de tempo, mas como algo composto por diferentes temporalidades, que o passado e o presente não seriam um sucedido pelo outro, mas que ocorreriam simultaneamente.
A segunda parte do livro, Balanços historiográficos e contribuições da América Latina para a HTP, é formada por três capítulos que abordam diferentes experiências de pesquisas sobre o tempo presente, mas que se conectam e complementam intimamente. A compreensão das condições de produção é essencial para a pesquisa historiográfica, em especial para tratar de passados ainda tão presentes. O primeiro desses capítulos, intitulado La historia reciente en Argentina: apuntes sobre un campo de investigación en expansión, de Marina Franco[3] e Daniel Lvovich[4], utiliza a sociedade argentina como exemplo, mas traz questões que se repetem em diversas pesquisas sobre HTP, como as memórias traumáticas, as violências de Estado e violações de direitos humanos.
No caso argentino, assim como em diversos países do Cone Sul, essa divisão seria a partir das ditaduras que ocorreram na região, mas os autores destacam que, por se tratar de fenômenos intrínsecos de cada país, as datas variam enormemente, já que os regimes ditatoriais terminaram não só em momentos diferentes, mas também cada Estado teve que lidar de forma diferente com o passado autoritário. Franco e Lvovich também destacam outro elemento comum às pesquisas sobre o tempo presente: a memória. Os debates que cercam esses eventos traumáticos também envolvem políticas de memória e frequentemente demandam que historiadores e historiadoras trabalhem com testemunhos para efetuar suas pesquisas.
Nesse ponto, o texto se conecta com o capítulo seguinte – Memorias de violencia en America Latina: debates públicos y agendas académicas, de Eugenia Allier Montaño[5] e Laura Andrea Ferro Higuera[6], em que as autoras fazem um apanhado da produção acadêmica sobre história recente no subcontinente. Percebe-se, nessa pesquisa, que a violência de Estado, em qualquer das suas formas – desaparecimentos forçados, prisões, torturas, perseguições políticas – é um tema central para a historiografia latino-americana. Essa percepção volta a ser confirmada no artigo que encerra essa parte, Nas margens do tempo: a contribuição da Udesc para a história do tempo presente no Brasil, de Silvia Maria Fávero Arend[7] e Reinaldo Lindolfo Lohn[8]. Arend e Lohn apresentam uma reflexão sobre a constituição e consolidação do pioneiro Programa de Pós-Graduação em História do Tempo Presente da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Os autores abordam os desafios que envolvem a construção de um curso com essas especificidades, assim como acerca da produção acadêmica deste curso, em que se exacerba ainda mais o fato de que a pesquisa sobre o tempo presente está necessariamente ligada a passados que não se encerram e que reverberam no presente.
O eixo Presentismos e desordens climáticas é composto por dois artigos. O primeiro é de François Hartog[9], chamado Os impasses do presenteísmo, em que o historiador francês alerta para os desafios que o “presentismo” – noção de que o foco excessivo no presente nubla a visão sobre o passado e o futuro – propõe ao estudo do tempo presente. Por se tratar de um campo da história que foca justamente nos ecos do passado perceptíveis no presente, a HTP precisa ter especial atenção ao lidar com os empecilhos impostos pelo presentismo, ainda mais em relação à internet, que, nas palavras de Hartog, “não apaga, não esquece e, portanto, tudo permanece no presente” (p. 141). Este eixo é completado pelo artigo A “catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do antropoceno para a consciência histórica contemporânea, de autoria de Rodrigo Turin[10], trazendo questões instigantes acerca da ideia de “antropoceno”, da expectativa de uma grande “catástrofe cósmica”, possivelmente climática, e das formas como a história poderá se modificar para compreender a experiência humana neste contexto temporal.
Dada a natureza da pesquisa em História do Tempo Presente, estabelecida desde o primeiro capítulo do livro e corroborada pelas experiências descritas em vários deles, a política é praticamente indissociável desse campo. Se estamos falando de memórias traumáticas, de políticas de memória, de violência de Estado e de passados presentes, é inevitável tratar da política institucional. E, se há interesse dos historiadores e historiadoras do tempo presente por política, também é seguro afirmar que os políticos igualmente se interessam pelos temas pesquisados pela HTP. O surgimento e a popularização da internet adicionam ainda mais complexidade a essa relação entre política e história. A relação entre história, política e internet, com sua tríplice conexão, é o tema central do artigo de Mateus Pereira[11], Thiago Nicodemo[12] e Valdei Araujo[13], A indústria das fake news como um problema historiográfico: atualismo e política em um presente agitado, que abre a penúltima parte desta obra – HTP, o político e os historiadores. Os autores tratam da difusão de notícias falsas ligadas a movimentos políticos, como o trumpismo nos Estados Unidos da América e o bolsonarismo no Brasil, e os empecilhos que isso gera tanto para a produção de conhecimento histórico quanto para a divulgação de pesquisas historiográficas sólidas, da mesma forma que são uma ameaça para a democracia. A ideia de que ameaças ao Estado Democrático também ameaçam a produção histórica está em consonância com o texto seguinte, de Antoon de Baets[14] – Democracia e escrita histórica –, que argumenta que a “escrita histórica responsável” é uma condição necessária para a existência e a consolidação da democracia e que a democracia, por sua vez, também é uma condição necessária para a pesquisa histórica responsável – ainda que nenhuma seja, por si só, suficiente para a existência da outra. Esse eixo é fechado com o artigo de Cristophe Prochasson[15], O passado no presente: historiografia e política, em que o autor retoma a ideia de “usos políticos do passado” de Hartog (2001), com exemplos da política atual francesa para exemplificar os usos do passado recente – ou nem tanto – para objetivos políticos no presente, seja de forma a exaltar os próprios objetivos, seja para criticar adversários.
A parte final do livro (HTP e tempo brasileiro) é formada pelo texto O tempo presente na nova república: ensaio sobre a história do político brasileiro, escrito pelas organizadoras do livro. O ensaio traz uma reflexão sobre o tempo presente brasileiro, que as autoras defendem ter início com o final da ditadura, em 1985, e propõem a análise até a data do impeachment-golpe contra Dilma Rousseff em 2016, que delimitam como o “fim da Nova República”. Nesse texto, são apontadas diversas formas como passado, presente e futuro foram utilizados politicamente no Brasil durante esse período, e seria possível acrescentar outros eventos desde então, quando isso voltou a acontecer.
A obra de Angélica Müller e Francine Ingelski traz importantes reflexões sobre o caminho da História do Tempo Presente e dos que a pretendem pesquisar, no Brasil ou em outros lugares. É um campo relativamente novo e que segue enfrentando desafios para a sua consolidação. Este livro, porém, explicita de forma contundente os avanços feitos. Os artigos são divididos de forma temática, mas chama a atenção a possibilidade de se traçar paralelos entre quaisquer deles, dada a natureza interdisciplinar do campo sobre o qual se debruçam.
O livro oferece uma leitura muito importante para a compreensão da própria noção de tempo presente, das especificidades dessa área do conhecimento histórico e das maneiras com que é possível lidar com os obstáculos comuns a ela. A obra se propõe refletir sobre a trajetória da HTP e pontuar a posição atual dessa área do conhecimento, o que alcança tranquilamente, mas é de se destacar que, por se tratar de textos instigantes, é inevitável que proponham e permitam vislumbres de caminhos que ainda podem ser trilhados e de desafios que ainda precisam ser enfrentados e superados.
HARTOG, François. Regimes de historicidade e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
HARTOG, François; REVEL, Jacques (Org.). Les usages politiques du passe. Paris: EHESS, 2001.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre História. RJ: Contraponto, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; PUC/Rio: 2006.
FERREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo presente: desafios. Cultura Vozes, Petrópolis, v. 94, no 3, p. 111-124, mai./jun. 2000.[1] Historiador, mestre em História e doutor em Ciência Política. Professor da Facultad de Ciencias Sociales da Universidad de los Andes, na Colômbia. É autor de numerosas publicações sobre temas da atualidade, como a pandemia de Covid-19 e a guerra entre Rússia e Ucrânia.
[2] Esta última, vale destacar, está sendo entendida a partir da raiz etimológica “modo”, que significa “agora”, e não da forma mais comumente usada para designar o período entre o medievo e a Revolução Francesa.
[3] Marina Franco é doutora em história pela Universidade de Paris 7 e pela Universidad de Buenos Aires. É professora na Universidad Nacional de San Martín.
[4] Daniel Lvovich é doutor em história pela Universidad Nacional de La Plata e professor na Universidad Nacional del Litoral.
[5] Eugenia Allier Montaño é doutora em história pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e pesquisadora no Instituto de Investigaciones Sociales da Universidad Nacional Autónoma de México.
[6] Laura Andrea Ferro Higuera é mestre em estudos políticos e sociais pela Unam e politóloga pela Universidad Nacional de Colombia.
[7] Silvia Maria Fávero Arend é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora de História do Brasil na Universidade do Estado de Santa Catarina, além de integrante do Programa de Pós-graduação em História da mesma universidade.
[8] Reinaldo Lindolfo Lohn é doutor em pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professor integrante do programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina.
[9] François Hartog é historiador e professor na École de Hautes Études en Sciences Sociales (França).
[10] Rodrigo Turin é doutor pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de teoria da História na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
[11] Mateus Pereira é doutor pela Universidade Federal de Minas Gerais e professor na Universidade Federal de Ouro Preto.
[12] Thiago Nicodemo é doutor pela Universidade de São Paulo e professor na Universidade Estadual de Campinas.
[13] Valdei Lopes de Araujo é doutor pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e professor na Universidade Federal de Ouro Preto.
[14] Antoon de Baets é professor de história, ética e direitos humanos na Universidade de Groningen, Holanda.
[15] Cristophe Prochasson é professor de história francesa na École de Hautes Études en Sciences Sociales.