http://dx.doi.org/10.5965/2175180315382023e0109
Recebido: 05/04/2021
Aprovado: 17/02/2022
Marco Antônio Machado Lima Pereira
Universidade Federal do Maranhão
lattes.cnpq.br/0749138625162130
marco.pereira@ufma.br
orcid.org/0000-0002-8010-3995
Palavras-chave: Alberto Bomílcar Besouchet; trajetória; militância antifascista.
Alberto Bomílcar Besouchet nasceu em Florianópolis/SC, em 11 de dezembro de 1910. Filho de Julia Bomílcar Besouchet (1870-1918), natural do estado do Ceará, e do oficial do Exército, Helvécio Renato Besouchet (1870-1960), alagoano de nascimento, era o caçula de uma família de cinco irmãos: Esther da Silva Santos (1900-1973), Augusto Bomílcar Besouchet (1905-1992), Marino Bomílcar Besouchet (1907-1965) e Lídia Besouchet (1908-1997). Entre os anos 1925-1933, Alberto, que morava em Fortaleza/CE, concluiu sua formação secundária na Escola Militar do Ceará. Seguiu para o Rio de Janeiro, matriculando-se na Escola Militar do Realengo, onde tornou-se aspirante a oficial da arma de infantaria em 1934, conforme visto na imagem 1, particularmente na insígnia sobreposta ao ombro e na lapela de seu uniforme. Filiou-se ao Partido Comunista do Brasil (PCB) aos 23 anos, agremiação em que seus irmãos Augusto e Marino já atuavam como membros da Juventude Comunista desde meados da década de 1920 (RANGEL, 2016, p. 53-55).
Servindo em Pernambuco, Alberto Besouchet tomou parte na sublevação do 29º Batalhão de Caçadores, sediado na Vila Militar Floriano Peixoto em Socorro/PE, município de Jaboatão, nos arredores da capital pernambucana. Ferido na perna quando carregava uma metralhadora na tentativa de bloquear a parte dos fundos do pavilhão de comando da Vila Militar, Besouchet conseguiu escapar da prisão, embora tenha perdido sua patente no exército[1]. Condenado a oito anos de reclusão pelo Tribunal de Segurança Nacional (TSN), deixou o Brasil no final de 1936 para lutar pela Espanha republicana, ingressando nas Brigadas Internacionais[2] (BI). Mesmo depois de sua morte na Espanha, em 1938, Alberto permaneceu como foragido da justiça (RANGEL, 2016, p. 30).
Do pequeno grupo de ex-combatentes brasileiros – quatorze militares e dois civis – que lutou ao lado dos republicanos contra as tropas comandadas por Franco, Besouchet havia sido o primeiro a chegar à Península Ibérica em fevereiro de 1937. E, quando chegaram os demais brasileiros, ele já estava desaparecido. O único documento que encontrei sobre Besouchet nos arquivos espanhóis foi uma carta que seu pai, o major Helvécio Renato Besouchet, enviou à Embaixada da Espanha no Rio de Janeiro solicitando notícias do filho, que se encontrava “servindo junto às gloriosas forças espanholas, que com tanta bravura e patriotismo defendem a lendária pátria do Cid” (BESOUCHET, 1937). Desde abril de 1937, data em que, segundo o pai, Alberto teria entrado no território espanhol pela fronteira de Perpignan, na França, a família desconhecia seu paradeiro. Disse ainda que, não fosse pela idade avançada, lutaria ao lado do filho e do “valoroso Exército legal espanhol”.
Até a sua ida para a Espanha, Alberto não havia se convencido a passar para a corrente “trotskista”. Desde que a rebelião armada em Pernambuco fracassou, o personagem só teve tempo de se esconder e planejar a fuga para a Europa, que lhe permitiria continuar atuando na militância antifascista. Como observou Lívia Rangel, Alberto “não teve tempo ou não quis aliar-se à dissidência, a qual seus irmãos haviam se juntado, mantendo-se assim sem rupturas a sua relação com o PCB” (RANGEL, 2016, p. 136).
De acordo com o escritor George Orwell, integrado numa das colunas do POUM[3], o termo “trotskista” abarcava três definições completamente distintas: (1) Aquele que, como Trotski, prega a “revolução mundial”, contra “o socialismo num só país”. De modo pejorativo, designa o extremista revolucionário; (2) O membro da organização real da qual Trotski é o chefe; (3) Um fascista disfarçado, que se apresenta como revolucionário e que age principalmente pela sabotagem na URSS, mas que, de um modo geral, divide e solapa as forças de esquerda (ORWELL, 1967, p. 184-185). Isto posto, o termo “trotskista” será usado aqui entre aspas, pois os integrantes do movimento “preferiam definir-se como ‘bolcheviques-leninistas’, ‘marxistas revolucionários’ ou ‘comunistas internacionalistas’” (BENSAÏD, 2008, p. 15).
Abordar as tensões e os conflitos que permearam a vida de Alberto Besouchet é crucial para reconstituir uma etapa de sua militância política e, igualmente, os embates entre as distintas forças de esquerda no período entreguerras. O estudo de uma trajetória talvez seja útil para pensar nas relações interindividuais que conformam um campo político, como se consolida e se modifica em um momento histórico concreto. Nesse sentido, há todo um caminho a percorrer em torno do potencial criativo que tem a ação dos sujeitos no que se refere aos níveis de coerência interna e de conflito em uma dada cultura política (BURDIEL, 2014, p. 60-61).
Os antifascistas compartilharam uma experiência histórica marcada por momentos transnacionais de mudança, tais como a tomada do poder nazista na Alemanha (em que o fascismo passou a ser percebido como um fenômeno internacional) e o VII Congresso da Internacional Comunista (IC), realizado em julho de 1935, que marcou a era da Frente Popular[4]. Contudo, convém sublinhar que o antifascismo permaneceu diverso – entre nações, regiões e culturas políticas –, embora alicerçado sobre um terreno comum dotado de estratégias, visões de mundo e discursos (GARCÍA, 2016b, p. 565-566). A este respeito, Michael Seidman propõe uma definição mínima de antifascismo: a luta contra o fascismo como prioridade máxima, reconhecendo a necessidade de colaborar com os comunistas e capitalistas; o rechaço a teorias conspiratórias que faziam dos judeus e plutocratas os responsáveis pela crise política, econômica e social; a recusa ao pacifismo e a convicção de que era necessário o poder do Estado para combater tanto os fascismos domésticos, como a máquina de guerra do Eixo. Em resumo, antifascismo significava sacrifício concreto, e não apenas atitudes hostis para derrotar o fascismo (SEIDMAN, 2017, p. 2).
Para Alejandro Cieri, o fascismo se baseia em duas negações radicais: a primeira é a possibilidade da democracia; a segunda, vinculada à anterior, é a negação da igualdade e da unidade das ideias ilustradas propagadas pela Revolução Francesa, que são substituídas pelo racismo e pelo darwinismo social como interpretação dos fenômenos sociais e políticos e como princípios de ação nos quais se funda a ação política. Cieri sintetiza os diferentes aspectos dos fascismos da seguinte maneira: como um sistema político e social (“capitalismo de guerra”) que, sem deixar de ser capitalista, tenta criar uma sociedade coesa e sem conflitos por meio de um ordenamento hierárquico e autoritário, fundado na “naturalização” da desigualdade, em torno de uma mística nacionalista e racista que promove uma política externa agressiva, militarista e imperialista (ANDREASSA CIERI, 2009, p. 33-34).
Contribuindo com o debate em questão, Enzo Traverso assinala que a cultura fascista exalta a ação, a virilidade, a juventude e o combate, valores dirigidos a uma multiplicidade de figuras de alteridade: “a alteridade de gênero dos homossexuais e das mulheres que não aceitassem uma posição subalterna; a alteridade social dos delinquentes e dos criminosos; a alteridade política dos anarquistas, dos comunistas e dos subversivos; a alteridade racial dos judeus e dos povos colonizados” (TRAVERSO, 2015, p. 16-17).
Traverso advoga que o fascismo tentou articular em um sistema coerente elementos ideológicos nascidos antes da Revolução Russa de 1917 e, nesse aspecto, o anticomunismo desempenhou um papel indispensável para amalgamar esses diferentes elementos e, sobretudo, “para transformar uma ideologia em política, e uma visão de mundo em um programa de ação” (TRAVERSO, 2015, p. 26-27). Em outras palavras, o fascismo não existiria sem o anticomunismo, mesmo que ele não se reduza a este último. Em síntese, o nascimento dos regimes fascistas implica um grau de “osmose” entre autoritarismo e conservadorismo, cujo apoio das elites tradicionais foi indispensável para o movimento chegar ao poder (TRAVERSO, 2015, 27-28). Outra característica central do fascismo é a violência – utilizada sob a forma de repressão em massa ou de práticas de extermínio –, aspecto “fortemente presente na consciência histórica e na memória coletiva das sociedades europeias” (TRAVERSO, 2015, p. 30).
Compreendemos o antifascismo como um movimento transnacional. Seus atores estavam vinculados à “diáspora antifascista” de refugiados políticos oriundos de países sob regimes fascistas e/ou autoritários. De modo que o antifascismo era, em grande medida, “uma cultura de exílio” vivida em cidades como Paris, Moscou, Barcelona, Londres, Nova York, Cidade do México e Buenos Aires. Os militantes antifascistas encaravam a política de uma perspectiva cosmopolita, engajando-se em conflitos diversos. Torna-se relevante destacar que o antifascismo não era apenas uma motivação para a ação, mas também uma parte essencial da identidade política de todos aqueles que se reconheciam como parte de uma “humanidade comum”. Dito isso, parte relevante de nossa proposta consiste em observar a complexa interação entre sujeitos, dimensões locais, nacionais e globais presentes no fenômeno do antifascismo (GARCÍA; YUSTA; TABET; CLÍMACO, 2016, p. 13-14). Num outro plano da análise, enfatizaremos as conexões e as tensões entre a trajetória de Alberto Besouchet e a cultura política comunista dos anos 1930.
Com o surgimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), organização de frente antifascista e antigetulista criada em março de 1935[5], Alberto tornou-se um comunista aliancista, conquistando uma posição de liderança no movimento, o que o tornou um dos chefes da rebelião em Recife. É bem provável que a comunicação entre ele e seus irmãos tenha sido esporádica enquanto morava em Pernambuco, tendo em vista o trabalho secreto que realizava junto aos militares comunistas que formavam o Comitê “Antimil[6]” (RANGEL, 2016, p. 136-137).
O levante de Recife, que enfrentou forte resistência dos militares legalistas, foi uma decisão da direção local do PCB, especificamente do secretariado do Nordeste. Os tenentes Lamartine Coutinho, Alberto Besouchet e o capitão Otacílio Alves de Lima iniciaram a insurreição do 29º Batalhão de Caçadores. Segundo Marly Vianna, a participação popular foi bastante restrita, embora os rebeldes tivessem clareza sobre os motivos da revolta. Importante destacar que Recife era considerada o centro político do Nordeste, palco de várias conspirações e rebeliões militares, tornando-se o cenário das principais atividades dos militantes comunistas de toda a região (VIANNA, 2007, p. 287-288).
Na noite de 23 de novembro de 1935, sábado, chegaram a Recife as notícias do levante do 21º Batalhão de Caçadores em Natal. O secretariado do PCB no Nordeste “não tinha dúvidas quanto à necessidade de apoiar os revoltosos do Rio Grande do Norte, ampliando um movimento que acreditavam significar o início da revolução nacional-libertadora em todo o país” (VIANNA, 2007, p. 294-295). Em seguida, o secretariado marcou o levante na capital pernambucana para as 9 horas da manhã do domingo, 24. No confronto com militares legalistas, Besouchet foi atingido por uma bala na perna, ficando fora de combate (VIANNA, 2007, p. 297).
Coordenados pelo tenente ferido, cerca de vinte rebeldes cercaram os oficiais superiores e dominaram o 29º BC. A maioria seguiu Lamartine rumo à capital, onde confraternizaram com uma patrulha de policiais militares que haviam aderido ao movimento. Por volta das 13h, já estavam no Largo da Paz, no bairro de Afogados. Acabaram não atravessando a ponte sobre o rio Capibaribe, forças legalistas tinham tomado posição na margem oposta. Ao cair da tarde, enquanto aguardavam reforços para avançar, os rebeldes posicionaram uma metralhadora na torre da igreja Matriz e dispararam para intimidar (MAGALHÃES, 2012, p. 85).
O sargento de infantaria e militante do PCB Gregório Lourenço Bezerra, que havia insistido para que o movimento não ocorresse num domingo, tentou tomar sozinho o quartel general da 7ª Região Militar. Atingido por um tiro de pistola na coxa, Gregório se engalfinhou com um sargento. Teve tempo de apanhar um fuzil, ferir o tenente Agnaldo Oliveira de Almeida e mais dois subalternos que o acompanhavam. Na troca de tiros, acabou matando o tenente José Sampaio, que chegara depois. Gregório Bezerra correu até o tiro de guerra, onde tinha armazenado 175 fuzis. Em busca de apoio, discursou nas ruas, invadiu uma delegacia e, posteriormente, foi preso no pronto-socorro (MAGALHÃES, 2012, p. 85-86).
Os trabalhadores saudaram o movimento nos subúrbios e os rebeldes distribuíram armas aos 6 mil civis que se incorporaram à luta. As ações levadas a cabo em Recife foram exclusivamente militares. Contudo, a ajuda não chegou às barricadas no Largo da Paz, e tropas de Alagoas e Paraíba chegaram para acudir os governistas. Para complicar o cenário, “muitos militantes comunistas só souberam do levante depois de sua eclosão” (VIANNA, 2007, p. 303).
No início da tarde do dia 25 de novembro de 1935, o tenente Lamartine abandonou o Largo da Paz e, à noite, os rebeldes deixaram o quartel do 29º BC. Na manhã do dia seguinte, cercados e esgotados, Silo Meirelles, Otacílio Alves de Lima, 7 praças e 2 sargentos se entregaram. A repressão contra soldados, cabos e sargentos foi brutal. Os presos foram torturados e muitos rebeldes, ao se renderem, acabariam sumariamente fuzilados (VIANNA, 2007, p. 304-306). Em Recife, participaram da luta quase que exclusivamente comunistas e aliancistas. A repressão atribuiu o movimento às ordens de Moscou. Dos 415 indiciados nos processos, 105 pertenciam ao PCB (VIANNA, 2007, p. 311). Seus perfis profissionais majoritários eram: militares, 204 (52,5%) e operários, 97 (25%).
Em dezembro de 1935, Vargas criou a Comissão de Repressão ao Comunismo. Numa reunião de generais, o então chefe do Estado-maior do Exército, general Góis Monteiro, pontuou que os direitos constitucionais não deveriam ser mantidos para que a repressão pudesse ser mais eficiente não só contra comunistas e aliancistas, mas com todos os que se opusessem ao governo (VIANNA, 2003, p. 97). No limite, os levantes militares de novembro de 1935[7] serviram de justificativa para o aprofundamento da repressão sobre o movimento operário brasileiro. Estima-se em 20 mil o número de prisões que impactaram profundamente todas as organizações operárias, sindicais e políticas (ALMEIDA, 2005, p. 114-115).
No prontuário de Alberto Besouchet de 19 de janeiro de 1936, lê-se que “o prontuariado, que servia no 29º BC, é conhecido elemento comunista, tendo tomado parte ativa no movimento subversivo irrompido no estado de Pernambuco, em 23/11/1935” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936). Em novembro de 1938, o TSN confirmou a condenação de 8 anos de reclusão imposta a Besouchet em 23/08/1938.
Nos relatórios apresentados pelos encarregados do inquérito Etelvino Lins e Ranulfo Cunha, o nome de Besouchet é citado como um dos cinco membros do Comitê Antimil junto aos dos sargentos Gregório Bezerra, José Avelino de Carvalho, Waldemar Diniz Henriques e Sebastião Acioly de Lima Lopes. Esta comissão “desempenhou papel salientíssimo na preparação e deflagração do movimento extremista de 24, 25 e 26 de novembro último em Recife, e estava ligada diretamente ao Secretariado do Nordeste” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 6) e aos nomes de Silo Meirelles, José Caetano Machado e Pascácio de Souza Fonseca. Conforme apontado no inquérito, as reuniões “conspiratórias e preparadoras do movimento” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 6) eram realizadas na residência do sargento Gregório Bezerra, localizada na rua do Forte n. 74, bairro de São José, 1º distrito policial da capital Recife.
De acordo com as declarações prestadas pelo sargento Gregório Bezerra, a finalidade do Comitê Antimil “consistia em se efetuar forte propaganda nos meios militares contra o integralismo e procurar captar a simpatia das pessoas com quem se entrasse em contato para com a Aliança Nacional Libertadora” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 5). Além disso, um dos papéis dessa organização era enaltecer “as qualidades de Luiz Carlos Prestes, o qual seria chefe do governo popular-revolucionário que se implantaria no Brasil por meio do movimento armado que já então se articulava” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 5).
Besouchet ainda seria citado nos relatórios “dos que tomaram parte nos acontecimentos verificados entre Largo da Paz e Morenos (Recife)” pelo cabo José Agenor Santiago – que assumiu o comando do destacamento local em Jaboatão por ordem do tenente Besouchet – e por Benvindo Ferreira de Paula, que “além de ter pegado em armas, ocultou, por vários dias, o tenente Besouchet, em sua residência, depois dos acontecimentos de novembro” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 3).
Em seu depoimento, o sargento Henrique Borges assinalou que, em Jaboatão, “exercitava os civis no manuseio das armas de guerra, enviava-os para a frente e distribuía víveres retirados das cargas da estrada de ferro” e que “recebia ordens e instruções do tenente Besouchet, recolhido ao Hotel Familiar naquela cidade” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 3). Por fim, Besouchet ainda seria mencionado por Etelvino Lins e Ranulfo Cunha, encarregados do referido inquérito: “Após o levante de Socorro, onde foi, aliás, levemente ferido, dirigiu-se a Jaboatão e Morenos, cujos quartéis ocupou, apoderando-se, nessa última cidade, de todo o armamento e munição existentes no tiro de guerra local” (PRONTUÁRIO N. 1753..., 1936, p. 2).
Lídia Besouchet salientou que, depois de ferido Alberto, foi levado para uma casa particular em Recife, onde lhe curaram à base de iodo. Vestido de civil, Alberto seguiu viagem de Recife pelo sertão, até a cidade de Vitória, no Espírito Santo, onde se escondeu na casa de sua irmã mais velha, Esther (FREITAS, 1981). Augusto forneceu mais algumas pistas sobre a trajetória de Alberto depois do levante de Recife: “foi ele o único que conseguiu, embora ferido na perna, escapar chegando a Caruaru, onde disfarçado de matuto viaja a pé até Penedo, terra de meus avós paternos, todos alagoanos” (BESOUCHET, 1981).
Depois de passar alguns meses se recuperando em Vitória/ES, Alberto seguiu viagem ao Rio, onde voltou a reencontrar os irmãos Augusto e Marino em 1936[8]. Nessa ocasião, diz Augusto, “tanto eu como Marino e penso também Lídia, estávamos em luta contra Prestes e seu golpismo e isso nos aproximou dos trotskistas e de Mário Pedrosa, que militou em Berlim em uma célula comunista favorável a Trotsky ainda na Rússia” (BESOUCHET, 1981). Augusto sublinhou ainda a posição divergente dele e de seus irmãos (com exceção de Alberto) com as orientações do PCB antes mesmo de explodir os levantes de novembro de 1935:
[...] escrevemos longo memorial a Prestes, advertindo-o do grande perigo que adviria de qualquer tentativa de perturbação da ordem. Sabíamos todos e eu particularmente que conhecia a extrema debilidade do Partido no Rio (eu era até poucos dias antes do Secretariado Regional e sabia que não funcionava na ocasião nenhuma célula), em São Paulo onde meu irmão Marino me informara que estava inteiramente desarticulado o Partido e em Pernambuco onde Alberto me escrevera dizendo que funcionava apenas a célula militar, composta de alguns oficiais e sargentos. O golpe iminente, poucos dias antes vimos manifestos do Partido conclamando o povo (operários, camponeses, soldados e marinheiros) a pegar em armas; era uma loucura que ia redundar seguramente numa ditadura que levaria 20 anos. Nosso prognóstico só não se confirmou totalmente por ter eclodido a Segunda Guerra Mundial e o Brasil ter sido levado a tomar o partido dos aliados (BESOUCHET, 1981).
Augusto, Marino e Alberto trabalharam como jornalistas nos Diários Associados, onde foram companheiros e amigos do jornalista David Nasser. Na mais completa clandestinidade, “pegávamos o bonde quase na porta do jornal e íamos para Copacabana onde morávamos nos porões, mudando frequentemente de quartos” (BESOUCHET, 1981). Augusto foi enfático ao dizer que ele e os irmãos estavam ligados aos “trotskistas” e que, embora tocassem com frequência no tema, Alberto “nunca deu a entender que estava de acordo com as nossas ideias” (BESOUCHET, 1981).
Os irmãos Besouchet passaram a militar no Partido Operário Leninista (POL), resultado da fusão entre os remanescentes da Liga Comunista Internacionalista (LCI) e os membros da Oposição Classista (OC). O único irmão que no auge da crise com o Comitê Central do PCB não alterou sua posição política foi Alberto. É provável que Lídia, Augusto e Marino tenham descoberto que o irmão caçula era um dos oficiais insurgentes de Recife quando Alberto chegou ferido ao Espírito Santo para se esconder na casa de Esther. A própria condição de foragido dificultou o contato de Alberto com os irmãos, o que poderia ter contribuído para que ele decidisse “de qual lado da batalha ideológica iria lutar, se com os stalinistas, como pressupunha sua filiação ainda não desfeita no PCB, ou se daria um giro a favor da IV Internacional[9], tornando-se um trotskista” (RANGEL, 2016, p. 136-137).
Em dezembro de 1935, o episódio da expulsão dos irmãos Besouchet ganhou destaque nas páginas do jornal A Classe Operária, órgão oficial do PCB. Com o título “Expulsões” (SOBRINHO; MACEDO, 1935), os irmãos Besouchet foram caracterizados pelo periódico como “fracionistas” ligados ao “trotskismo contrarrevolucionário” que teriam se infiltrado no movimento sindical e nas fileiras do partido. Acusados de tramarem contra a unidade, a linha e a direção da agremiação, as expulsões das fileiras do PCB pelo Comitê Regional do Rio foram confirmadas por unanimidade pelo Pleno ampliado do Comitê Central. No final da nota, o Comitê Central conclamou pela intensificação do recrutamento de bons quadros operários nas fábricas, quartéis, navios, fazendas etc., bem como maior empenho no trabalho de formação teórica e política dos militantes comunistas para afastar os “oportunistas podres” e “inimigos da Revolução Nacional Libertadora” (SOBRINHO; MACEDO, 1935).
Augusto Besouchet, que era bancário na época, afirmou que seu relacionamento com o PCB era péssimo e que ser “trotskista” naquela época era pior do que ser “leproso, algo como o diabo”. No início da carta a Paulo Roberto de Almeida, Augusto assume que sempre teve um “complexo de culpabilidade” em relação ao irmão seis anos mais jovem, principalmente por torná-lo um militante comunista e, também, pelo fato de ter estimulado Alberto a ir para a Espanha combater o fascismo (BESOUCHET, 1981). A este respeito, Augusto enfatizou que os irmãos não hesitaram “em favorecer a sua ânsia de guerrear contra os fascistas, conseguindo meios financeiros para se deslocar até Buenos Aires, que era, na ocasião, um dos portos preferidos na América do Sul para viajar para a França e daí para a Espanha” (BESOUCHET, 1981). Essa passagem sugere que a viagem de Alberto teve mesmo o apoio dos “trotskistas”. Depois de conseguir escapar com êxito da polícia de Recife e de uma breve passagem pelo Rio, Alberto iniciou sua jornada em direção ao Sul do país, trajeto que levou cerca de sessenta dias para ser cumprido (RANGEL, 2016, p. 137-138).
Antes da partida de Alberto para a Espanha, pairava certa dúvida entre os dirigentes do PCB sobre seu posicionamento político, que estava longe de ser consistente. É provável que a prova acusatória contra o personagem não seja propriamente o conteúdo da carta a seguir, publicada em novembro de 1936, mas sim o fato de ela ter sido publicada num jornal dissidente chamado A Luta de Classe[10], veículo oficial da LCI:
Após vencer um sem número de dificuldades, oriundas da minha vida ilegal, consigo, finalmente, o prêmio de minha obstinação: dentro de poucos dias pisarei o solo da Espanha dos Trabalhadores!
Desde o início da terrível e emocionante luta em que o proletariado espanhol, em formidável frente única com as massas trabalhadoras e camponesas, vem quebrando sistematicamente, um a um, os dentes podres da burguesia internacional; senti o insopitável desejo de aplicar os conhecimentos adquiridos na minha carreira militar e política na formidável empresa que se levanta no território da futura ESPANHA SOVIÉTICA. Da realização desse desejo existente no espírito de milhões de trabalhadores (pois só na URSS esses milhões se elevam talvez a 170), depende que eu venha colocar mais tarde meu grão de areia, então consideravelmente aumentado pela experiência adquirida, na construção do nosso futuro BRASIL SOVIÉTICO!
Companheiros! A segunda etapa para a Revolução Proletária Mundial que se está agora iniciando na Espanha depende em grande medida do apoio do proletariado de todos os países. Não é necessário que vos lembre que o maior auxílio que poderá prestar o proletariado do Brasil a causa revolucionária da Espanha é a luta contra os feudais e burgueses que dominam, em ostensiva colaboração com os vários imperialismos, a economia e a política brasileiras.
Camaradas! Lembrai-vos dos 30.000 ex-prisioneiros proletários da Espanha que realizam hoje, com armas na mão, a tarefa revolucionária que lhes correspondia. Breve chegarei a Espanha e direi então aos ex-prisioneiros de Gil Robles que os prisioneiros políticos do Brasil os saúdam e afirmam sua vontade de, mobilizando as massas de nosso país, organizar um regime mais justo e humano (BESOUCHET, 1936, grifo do autor).
Alberto Besouchet teria sido chamado de “canalha”, “safado”, entre outros adjetivos pelos “burocratas stalinistas” do PCB. Logo depois de publicar a declaração do ex-combatente, uma nota explicativa afirmava que, mesmo “[...] sabendo-o stalinista, o grupo bolchevique-leninista tomou imediatamente posição e auxiliou-o, conseguindo a maior parte da quantia para sua viagem”[11] (NOTA..., 1936, p. 5). Nas palavras dos redatores do jornal, o que motivou o ódio e o ressentimento em relação à postura política de Besouchet foi o uso de expressões como “Espanha Soviética”, “Revolução proletária mundial”, “burguesia internacional”, utilizadas somente pelos “trotskistas contrarrevolucionários”.
Qualificando a posição política de Alberto como ainda “vacilante e intermediária entre a linha de colaboração de classes da Internacional Comunista e a linha proletária revolucionária dos bolcheviques-leninistas partidários da IV Internacional”[12] (NOTA..., 1936, p. 5), os comunistas dissidentes esperavam que o embarque para a Espanha representasse para Besouchet uma ótima oportunidade para “tirar as últimas vendas dos olhos” e perceber que os stalinistas eram os mais “decididos inimigos da implantação dos soviets”. Depois da publicação citada, o jornal não publicou mais nenhum artigo e/ou matéria sobre os desdobramentos da viagem de Besouchet à Espanha e o seu posterior desaparecimento.
A Guerra Civil Espanhola havia se tornado o principal tema debatido entre os militantes do PCB presos depois dos levantes de novembro de 1935. Tanto é que havia entre eles um acordo: aqueles que fossem libertados e tivessem condições participariam da guerra como forma de prestar solidariedade à República, combatendo o fascismo onde era possível, pois “no Brasil as condições eram muito difíceis” (REIS, 1989). Ao sair da prisão, Dinarco Reis garantiu que a decisão de incorporar voluntários brasileiros para apoiar os republicanos partiu da direção do PCB. A meta inicial era enviar cerca de 100 pessoas, “mas a repressão do governo Vargas acabou dificultando os planos”, “motivo pelo qual apenas 22 voluntários ligados ao partido embarcaram para a Espanha, mas, desses 22, apenas 16 combateram” (BATTIBUGLI, 2004, p. 87).
Em 18 de julho de 1936, momento em que Franco se sublevou contra as autoridades da República espanhola, o início do conflito irá conferir ao apelo antifascista uma capacidade de mobilização inigualável até aquele momento. A luta pela liberdade na Espanha parecia ser também a luta pela liberdade latino-americana. Portanto, a Guerra Civil Espanhola foi fundamental para transmitir os ecos da disputa fascismo-antifascismo na América Latina (BISSO, 2000, p. 98).
A carta aberta aos camaradas do PCB e da ANL circulou quando Besouchet já não estava no Brasil. Mesmo que o texto em si tenha sido um chamado à luta, o PCB não o difundiu, uma vez que “sabedores de suas relações com os trotskistas, os comunistas recusaram-se a fazê-lo” (KAREPOVS, 2006, p. 5). Clandestino, Alberto foi para a Europa partindo de Buenos Aires, bordo de um navio com um grupo de voluntários alemães, portando passaporte cubano e com o nome falso de Ernesto Torres. Desembarcou no porto de Antuérpia em janeiro de 1937 (conforme cartão postal enviado aos familiares no Brasil) e, com a identidade verdadeira, chegou a Perpignan em fevereiro de 1937 (carta remetida de Astúrias a um amigo na França) (FREITAS, 1979).
Numa carta confidencial enviada em 24 de janeiro de 1937 ao departamento de quadros do Comitê Central do Partido Comunista Espanhol (PCE), a agente da polícia secreta soviética “María” (pseudônimo de Tina Modotti) faz menção ao recebimento de um comunicado do PCB, no qual o partido brasileiro já demonstrava seu interesse em estigmatizar Besouchet como “trotskista”. O documento a seguir comprova a tese de que, ao longo dos anos 1930, as margens de divergência no interior dos partidos comunistas haviam se restringido de maneira significativa (AGOSTI, 1988, p. 137). De fato, a partir de 1929, quando Stálin extinguiu as lutas internas no Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o monolitismo e o clima de intolerância passaram a ser reinantes na IC (AGOSTI, 1988, p. 161-162):
El teniente Alberto Besouchet se encuentra actualmente en España. Después de su salida del Brasil se ha descubierto que Besouchet ha pasado al trotskismo. Él ha dejado una prueba que es una verdadera provocación contra la revolución de liberación nacional y contra el gobierno español. Si es posible encontrarlo hay que detenerlo y también urge notificar todos los camaradas a fin de que no le permitan utilizar el nombre del Partido Comunista del Brasil (MODOTTI, 1937).
A biógrafa e historiadora Patricia Albers assinalou que a artista italiana Tina Modotti trabalhou no setor administrativo do Socorro Rojo Internacional, um braço da IC, em Valência e, posteriormente, participou de atividades de contraespionagem em Albacete, quartel general das brigadas internacionais. Tina Modotti provavelmente nunca esteve com Alberto Besouchet. Contudo, ela compreendia que, agindo como informante do PCE e assumindo a responsabilidade de notificar o comissário político das Brigadas Giuseppe Di Vittorio, ela estava condenando o voluntário brasileiro à prisão e, possivelmente, à morte. Desesperada para ganhar a guerra e acreditando que sua atitude contribuiria para o bem da causa, Tina sacrificou Alberto Besouchet e sem dúvida outros combatentes (ALBERS, 2002, p. 301-304).
Certa vez ela teceu um comentário amargo ao general espanhol Valentín González, que, na ocasião, discutiu com Vittorio Vidali (chefe da seção antitrotskismo das Brigadas e companheiro de Tina Modotti), que pode ser uma pista de como ela se sentiu perturbada por conta das prisões e das eliminações de dissidentes: “Você deveria ter atirado nele. Você teria feito uma coisa boa. Ele é um assassino. Ele me arrastou para um crime monstruoso. No entanto, apesar disso, devo segui-lo até a morte” (ALBERS, 2002, p. 304-305).
A carta de Alberto Besouchet escrita no jornal A Luta de Classe reverberou na correspondência trocada entre o dirigente do PCB Honório de Freitas Guimarães e o camarada “Jack”[13]. Nessa carta, Guimarães relata que, a pedido de Besouchet, o PCB o mandou ao Uruguai e em seguida à Espanha. Os comunistas uruguaios foram avisados que os irmãos mais velhos de Alberto eram “trotskistas” e que, portanto, ele deveria ser “vigiado e ajudado politicamente a superar as tendências ‘esquerdistas’” (GUIMARÃES, 1937).
Honório de Freitas Guimarães, que assinou a carta com o pseudônimo “Castro”, sublinhou que estava informado sobre as relações entre Alberto e seus irmãos “trotskistas” e que a prova cabal do estreitamento desses laços era o manifesto de Alberto que os dirigentes do PCB não publicaram “por causa de sua linha ‘esquerdista’”, mas que uma semana depois, “os trotskistas publicaram o dito manifesto em seu jornal com as provocações usuais contra o Partido” (GUIMARÃES, 1937). Outro indício da aproximação de Alberto com os “trotskistas” teria sido sua ligação com a cantora de jazz Elsie Houston, divorciada do poeta surrealista Benjamin Péret e cunhada do líder e intelectual “trotskista” Mário Pedrosa.
Mais adiante, Guimarães chamou atenção para a necessidade do controle de suas atividades “e que, se nada mais sério for encontrado, que nossos camaradas espanhóis o façam entender que ele deve cortar todas as relações com pessoas que estão inteiramente do outro lado da barricada” (GUIMARÃES, 1937). O ideal para o dirigente do PCB seria que Alberto fosse levado a fazer declarações escritas contra o trotskismo e a posição de seus irmãos e que, posteriormente, pudessem ser “publicadas em nossa imprensa”. Ao que tudo indica, a carta de Guimarães foi utilizada para compor uma peça de acusação contra Besouchet. Desse modo, ela pode ser considerada uma sentença de morte (KAREPOVS, 2006, p. 9-10).
Os partidos comunistas aspiravam formar um tipo de quadro totalmente devotado à causa, ou seja, militantes dispostos a sacrificarem inteiramente sua vida privada. O militante ideal era aquele cujo capital político dependia inteiramente deste e que, por consequência, devia tudo ao partido. No limite, o ideal buscado era a transparência absoluta. O militante não devia esconder nada do partido, uma vez que isso significaria falta de confiança e uma adesão “sob reservas” (GROPPO, 2012, p. 230).
Uma das poucas fontes na imprensa sobre a atuação de Alberto Besouchet no conflito civil espanhol foi uma matéria publicada no Diário de Pernambuco em junho de 1937 pelo jornalista francês Jean Richard Bloch. Descrito como “herói na batalha de Guadalajara”, o jovem oficial do novo Exército Popular Republicano se portou com destemor “nos momentos críticos em que as forças governamentais recuaram” e depois participou do famoso contra-ataque que “levaram o general Miaja voltar as suas vistas para o tenente Besouchet, que já era aclamado coronel pelos seus companheiros de trincheira” (BLOCH, 1937, p. 3).
Ferido na batalha de Guadalajara por um estilhaço de granada na perna, Besouchet foi tratado num hospital e lá narrou aos médicos e enfermeiros que havia fugido do Brasil, “onde participara de um levante, no qual também tinha fugido”. Finalizado o levante em Pernambuco, fugiu para Buenos Aires, onde se dirigiu a Paris. Da capital francesa, alcançou Barcelona. Somente depois de revelar sua identidade e “comprovadas as suas ideias foi admitido no Exército Popular espanhol, com o posto que possuía naquela pátria”. Depois de passar quinze dias numa enfermaria em Madri, o ex-oficial brasileiro foi chamado a participar do Estado-Maior do general Miaja, participando de combates em Barcelona, Andújar (região de Andalucía) e Carabanchel (Madri). Comandou uma brigada nos campos de Madri e, em seguida, foi destacado para as frentes de Sevilla e Córdoba.
A primeira vez que se levantou a hipótese a respeito das circunstâncias envolvendo sua morte foi por meio de um memorando assinado por A. M. Elliot em 15 de janeiro de 1939: “Tuvo relaciones con trotskistas. Murió en los acontecimientos de mayo [1937]. Información dada por el mayor Da Costa Leite”[14] (ELLIOT, 1939). Ao que tudo indica, Elliot estava mal informado sobre a data da morte de Besouchet, sobretudo se levarmos em conta que, em setembro de 1937, o dirigente do PCB, Honório de Freitas Guimarães, vulgo “Castro”, enviou uma carta a “Jack”, levantando acusações sobre suas relações suspeitas com os irmãos trotskistas (ALBERS, 2002, p. 303). Outra pista que contraria a hipótese anteriormente citada é um informe de 05 de julho de 1938 em que Besouchet aparece fichado como “trotskista” na capa da pasta n. 20949, “o que nos leva a crer que ele pudesse estar vivo nessa data” (FERNANDEZ, 2003, p. 305-306).
Em julho de 1939, Augusto escreveu a Lídia relatando o caso da morte do irmão caçula, a quem chamou de “Garibaldi”, e demonstrou um profundo desapontamento pelas informações controversas que recebeu:
Minha querida amiga: faz meses que não recebo nenhuma carta tua. [...] a minha última carta não tinha grande importância. Tratava do Garibaldi. Ou melhor era um desabafo íntimo. [...] a notícia do seu desgraçado fim provocou reações inesperadas. Torturava-me sobretudo a ideia de que ele houvesse sido sacrificado por suspeitas, por denúncias, ou por um fato local ou circunstancial. Era isso o que mais me preocupava: que ele tivesse morrido sem compreender o alcance de seu sacrifício. As últimas notícias tranquilizaram-se um pouco a esse respeito: preso na sede do POUM, com armas na mão, e fuzilado. Isso em maio de 1937. Embora se possa duvidar seriamente da data – pois tivemos muitas notícias dele, parecendo pouco provável que todas elas se referissem ao curto período de janeiro a maio de 1937 – o simples fato da afirmação das circunstâncias parece indicar que ele tinha tomado atitudes bastante claras. De outra maneira – embora possa ser falsa a notícia em seus detalhes: Barcelona, sede do POUM e maio de 1937 – dificilmente poderia ter se inventado tal notícia. Não sei se me fiz compreender. Todas as tentativas que fiz para apurar a verdade fracassaram. O que me relatou a referida notícia disse que ele estava em Barcelona no hospital nessa ocasião. Não tenho elementos para poder certificar-me. Outros cantantes dão versões diversas: morto em combate; preso e processado por ter abandonado a frente de Aragão em sinal de solidariedade com o coronel Rovira (um dos poucos oficiais de alta categoria provindos diretamente do meio operário) que tinha sido destituído ou fuzilado, etc. etc. Mas ninguém afirma direito: soube, consta. E a gente nunca pode saber se algumas dessas versões não foram forjadas aqui para apagar a péssima impressão causada. De todos os brasileiros foi ele o que mais se distinguiu e ficou popularizado. Foi ferido em Guadalajara e em outra frente. Por sua brilhante atuação em Guadalajara foi promovido. De tudo isso me parece positivo duas coisas: que está morto e que foi uma das inúmeras vítimas dos republicanos (BESOUCHET, 1939).
Mesmo que nem a data e o local de sua morte sejam precisos, dada a carência de fontes documentais, o fato é que Alberto Besouchet foi perseguido pelos comunistas espanhóis com o apoio e a campanha do PCB. As três versões que concorrem para explicar seu destino trágico são: a) a de que morreu nas “jornadas de maio” de 1937, marcadas por uma série de confrontos na cidade de Barcelona entre poumistas e anarquistas contra comunistas; b) sua morte teria ocorrido em fins de 1938, na leva de fuzilamentos de presos anarquistas e trotskistas que se deu com a retirada das brigadas internacionais[15] do território espanhol; c) e a que situa o fim de Alberto nos expurgos praticados a partir de junho de 1937, com a supressão do POUM. De todo modo, a versão que melhor se sustenta é a que atribui o caso Besouchet à política de extermínio do regime de Stálin (RANGEL, 2016, p. 140).
A polícia política brasileira não acreditava na versão da morte de Alberto Besouchet, preferindo crer que ele estaria escondido em Pernambuco[16] ou até mesmo exilado. Quase dez anos depois de seu desaparecimento e com o decreto de anistia promulgado por Vargas, que incluía, entre os militares anistiados, o tenente Besouchet, Lídia encaminhou para o cônsul do Brasil na Espanha uma carta solicitando informações sobre o irmão, mas nenhuma autoridade diplomática “deu qualquer depoimento satisfatório e por muitos anos Lídia continuaria buscando respostas” (RANGEL, 2016, 200-201).
No final dos anos 1970, quando morou em Madri, Lídia Besouchet – jornalista e escritora feminista que, durante sua trajetória, manteve laços de amizade com intelectuais argentinos e espanhóis exilados da Guerra Civil Espanhola – enviou cartas a diversos historiadores, políticos e ex-combatentes da Espanha pedindo notícias do irmão. Apenas Julián Gorkin, ex-dirigente do Comitê Executivo do POUM, respondeu e lamentou a impossibilidade de ajudá-la nessa dolorosa investigação. Num trecho de sua carta, Gorkin recordava o propósito das ações dos agentes soviéticos na Espanha:
Antes, durante y después de las famosas jornadas de mayo de 1937 hubo no pocas victimas bajo la dirección de los agentes de Stalin en España, y principalmente Cataluña. La provocación de este movimiento tenía un fin: destruir la resistencia que oponíamos a Moscú tanto los poumistas como los anarcosindicalistas. Y sus consecuencias fueron tremendas (GORKIN, 1980).
A rivalidade entre as distintas posições de esquerda, sobretudo entre comunistas e libertários, pautou-se na disputa pelos espaços de sociabilidade e poder. Mesmo que não tenham sido centrais para o desenrolar e o desfecho da guerra, as ações de violência em alguns lugares da retaguarda republicana – que acabaram resultando em crimes e assassinatos de integrantes de diversas tendências antifascistas – haviam se tornado um problema permanente para a República espanhola. A Catalunha foi o palco onde os conflitos alcançaram maior grau de violência. Em Barcelona, por exemplo, o que ocorreu em maio de 1937 foi um golpe de força para marcar diferença de quem tinha maior influência e força no campo republicano (VADILLO MUÑOZ, 2017, p. 9-10).
Depois da acusação inverossímil de colaboração com o fascismo, os dirigentes do POUM foram detidos e julgados em outubro de 1938, em um processo judicial que levou à ilegalização do partido. Antes disso, seu líder, Andreu Nin, foi detido de forma ilegal, torturado e assassinado no verão de 1937 em uma prisão em Alcalá de Henares. O vínculo dos serviços secretos soviéticos é evidente, diz Vadillo Muñoz, e muitos dirigentes do PCE tiveram conhecimento do episódio. Estava claro, portanto, que a luta internacional de Stálin contra seus inimigos políticos teve um episódio na Espanha na própria luta contra o POUM (VADILLO MUÑOZ, 2017, p. 13).
Para os comunistas espanhóis e os dirigentes soviéticos, o processo contra o POUM, além de eliminar um concorrente político, tinha como propósito eliminar toda divergência comunista, qualificando-a de trotskismo. Nesse sentido, o processo que ocorreu na Espanha republicana poderia ter uma dupla vantagem: a de tornar plausível a ideia de que se tratava de uma “rede trotskista aliada aos fascistas” e não de um problema circunscrito às fronteiras da União Soviética (GODICHEAU, 2004, p. 850).
Lídia estava convencida de que a morte de Alberto tinha ligações com o processo do dirigente do POUM Andreu Nin. Em carta a Paulo Roberto de Almeida, ela se queixava de que ambos estavam “girando sempre sobre o mesmo ponto” e que somente com a abertura do processo de Nin seria possível encontrar uma resposta “que por intuição e dedução julgo definitiva” (FREITAS, 1981).
Na avaliação de Paulo Roberto de Almeida, o caso de Alberto teria ocorrido em outro contexto: “creio que a eliminação de Alberto interveio numa fase ulterior ao dos processos contra os poumistas e gostaria precisamente de descobrir as condições e o momento dessa reviravolta”. Se a informação do major Carlos da Costa Leite estivesse correta, no sentido de que Alberto teria permanecido preso em Barcelona e sido fuzilado quase no final da guerra, “é possível que se obtenha alguma coisa nessa fonte” (ALMEIDA, 1981a).
No dia 13 de julho de 1986, na edição especial sobre os cinquenta anos da guerra de Espanha e da participação dos brasileiros no conflito (BERABA, 1986, p. 18), Lídia Besouchet revelou, em entrevista à Folha de São Paulo, que, em 1939, quando morava em Buenos Aires, recebeu a notícia do ex-membro do Comitê Central do PCB, major Costa Leite[17], de que Alberto Besouchet foi fuzilado por comunistas na retirada das brigadas internacionais em Barcelona junto com os anarquistas e trotskistas prisioneiros nos cárceres daquela cidade[18]. Lídia Besouchet disse que a mesma versão teria sido confirmada anos depois pelo próprio Costa Leite na casa do então governador da Guanabara, Carlos Lacerda: “O Alberto foi fuzilado porque era dissidente” (BERADA, 1986, p. 18). Numa carta endereçada a Paulo Roberto de Almeida, Augusto Besouchet disse o seguinte:
Não me recordo e não sei o ano que Costa Leite me deu a notícia da morte de Alberto. Pela maneira que falou, ar comprimido e fala grave e baixa informou-me que Alberto morrera e que não podia ter sido de outra maneira. Entendi logo que o partido o condenara à morte. Não morte natural em guerra e sim imposta pelas circunstâncias (BESOUCHET, 1981).
Na mesma edição da Folha, o ex-tenente Dinarco Reis e membro do Comitê Central do PCB discordou da versão apresentada, dizendo que “as histórias que têm sido contadas naturalmente por anarquistas, por socialistas e por trotskistas, gente que não sabe da história, mas gosta de elaborar lendas, não estão baseadas em provas” (BERABA, 1986, p. 18). Dinarco Reis disse que foi amigo de Besouchet e que, na época, tentou descobrir, sem sucesso, seu paradeiro, tendo em vista que “muitas pessoas desapareceram nas lutas de rua em Barcelona” (BERABA, 1986, p. 18).
Logo após o depoimento de Dinarco Reis, Apolônio de Carvalho sustentou que nunca ouviu de Costa Leite a confirmação de que Besouchet teria sido assassinado pelos comunistas, levantando duas hipóteses para o caso: “Besouchet tanto pode ter sido morto em combate contra os comunistas como morto na prisão”. O que chama atenção é que, em sua obra autobiográfica, Apolônio é taxativo ao sustentar a versão de que Besouchet foi assassinado pela esquerda stalinista (CARVALHO, 1997, p. 123). Vale ressaltar que, numa entrevista à revista Teoria e Debate, publicada em 1989, Apolônio já defendia a hipótese de que Besouchet tinha sido assassinado: “foi para a Espanha, apresentado a Andreu Nin pelo velho Mário Pedrosa, era oficial do Exército Republicano, foi preso e acabou assassinado na prisão como figura ligada ao trotskismo, portanto, ao POUM” (VENCESLAU, 1989, p. 10).
Percebe-se como as informações sobre a trajetória de Besouchet na Espanha são desconexas e fragmentadas. Enquanto algumas fontes dizem que serviu no staff do general Miaja, outros indicam que teria se alistado nas BI. Em outra versão, também se afirma que Besouchet partiu do Brasil levando uma carta de recomendação de Mário Pedrosa, apresentando-o a Andreu Nin, o chefe do POUM (FERNANDEZ, 2003, p. 305). Mas o que o teria impulsionado a militar no POUM (se é que o fez)? Infelizmente não sabemos os detalhes, mas há indícios de que Alberto morreu por causa de suas ligações com militantes “trotskistas”.
O movimento comunista internacional criou uma política sistemática de seleção e de controle dos quadros em sua fase stalinista. Nesse sentido, os trotskistas eram vistos como “provocadores, ladrões, vigaristas e traidores”. De maneira geral, essa política de vigilância era aceita e perpetuada pelos próprios militantes (PENNETIER; PUDAL, 2004, p. 423), conforme se depreende a partir do artigo 13 dos estatutos do próprio PCB: “Nenhum membro pode manter relações pessoais, familiares ou políticas com trotskistas ou com outros inimigos reconhecidos do Partido, da classe operária e do povo” (KAREPOVS, 2003b, p. 28).
O alcance da repressão no interior das BI – que não pode ser reduzida à “caça aos trotskistas” – se intensificou a partir do decreto sobre as deserções de 18 de junho de 1937, editado pelo ministro da Defesa Indalecio Prieto, e era aplicável a qualquer outra formação do exército republicano. O artigo 10, por exemplo, prescrevia o seguinte: “Aquele militar que frente ao inimigo e aos rebeldes, ou em qualquer serviço, armado ou não, desobedecer às ordens de seus superiores será castigado com uma pena que pode variar de vinte anos de reclusão à pena de morte” (SKOUTELSKY, 2006, p. 352). Para Remi Skoutelsky, o que mais obscurece a imagem das BI como símbolo da solidariedade antifascista é o espantoso tratamento reservado, em alguns casos, aos voluntários encarcerados (por alguns dias ou até meses) por motivos disciplinares (SKOUTELSKY, 2006, p. 355). Teria sido este o destino de Alberto Besouchet?
Embora a militância no PCB tenha conformado uma “memória padrão” no que diz respeito à participação dos voluntários brasileiros na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), notamos a presença de dissensos e fraturas internas nessa memória canônica. O episódio envolvendo o desaparecimento de Besouchet contribuiu para romper com o que Michel Pollack chamou de “enquadramento da memória”. Desse modo, torna-se plausível destacar que, quando é debatido seu desaparecimento, ocorre uma clivagem entre memória oficial/dominante e as chamadas “memórias subterrâneas”, entendidas aqui como lembranças dissidentes – como foi o caso das cartas e depoimentos de Lídia e Augusto Besouchet –, que esperam o momento propício para serem expressas e, por conseguinte, buscam romper determinados tabus (POLLAK, 1989, p. 5).
Enzo Traverso afirma que a “visibilidade” e o reconhecimento de uma memória dependem, em boa medida, da força de quem as sustenta. Dito de outra maneira, há memórias “fortes” e memórias “frágeis”. A memória comunista, por exemplo, foi poderosa em uma época em que a União Soviética era uma grande potência e o movimento operário dispunha de uma força social e política considerável (TRAVERSO, 2007, p. 48-49). Ou seja, quanto mais forte é a memória – em termos de reconhecimento público e institucional – mais o passado se torna suscetível de ser explorado e elaborado como História (TRAVERSO, 2007, p. 54-55).
A edição especial sobre o cinquentenário do conflito civil espanhol, publicada pela Folha, trouxe para o primeiro plano memórias fragmentadas e internamente divididas (PORTELLI, 2006, p. 106) que podem ser vistas como expressões de um aspecto dramático do conflito, qual seja, os enfrentamentos entre as próprias forças políticas republicanas. O papel que estas últimas desempenharam na guerra civil espanhola foi utilizado como arma nas incessantes controvérsias entre socialistas, republicanos, libertários e comunistas no contexto pós-guerra civil (HÉRNANDEZ SÁNCHEZ, 2010, p. 15).
Se, por um lado, o depoimento de Dinarco Reis expõe as profundas divergências e rivalidades que fragmentaram o campo das esquerdas na década de 1930, de outro, evidencia que toda cultura política pressupõe uma tradição calcada em símbolos e elementos discursivos estáveis, compartilhados e resistentes à mudança. Ademais, os níveis de coerência e de jogo de linguagens e práticas que permitem conformar uma cultura política (como é, neste caso, a comunista) em boa medida, como apontou Isabel Burdiel, “un producto de la las luchas por el poder no sólo entre culturas diferentes, sino dentro de cada una de ellas” (BURDIEL, 2014, p. 60).
Em entrevista à Folha, Dinarco Reis ainda criticou os socialistas e, especialmente, os anarquistas e “trotskistas”, pois “eram rebeldes e resistiam à disciplina militar”. E que o PCE “tinha prestígio, porque suas orientações eram justas e corretas” (BERABA, 1986, p. 18). O que tais disputas revelam é que são duas memórias geridas por campos políticos e institucionais opostos: a primeira seria uma leitura canônica difundida pelos voluntários vinculados ao PCB, em que a guerra é descrita como a grande causa do internacionalismo e que nesta luta épica – que arregimentou a solidariedade dos trabalhadores e antifascistas ao redor do mundo – o PCE apostou acertadamente na formação de um bloco plural de forças populares para criar uma República de novo tipo (HÉRNANDEZ SÁNCHEZ, 2010, p. 463-464); já a segunda teria como eixo central o luto e a dor dos irmãos Besouchet, que, na reportagem, acusaram a polícia secreta soviética de ter executado Alberto. Note-se também, especialmente da parte de Augusto Besouchet, o “ressentimento”[19] por ter contribuído para que o irmão caçula se tornasse um militante comunista e pegasse em armas para defender a República espanhola.
É necessário não perder de vista, como recorda Hugo García, a historicidade do antifascismo enquanto movimento político e social de massa que se modificou ao longo de sua curta trajetória. Se a cultura antifascista que dominou a Espanha legalista durante a guerra civil foi capaz de reconciliar forças políticas antagônicas (republicanos e comunistas, católicos e anarquistas, espanhóis e nacionalistas catalães e bascos), ela também foi uma “cultura de guerra” que poderia justificar ou silenciar o massacre de mais de cinquenta mil supostos fascistas, incluindo “traidores” antifascistas, como o líder comunista catalão Andreu Nin e o anarquista italiano Camilo Bernieri. Entretanto, o debate ficaria incompleto se não chamássemos atenção para o fato de que a cultura antifascista dos anos 1930 estava em formação na Espanha antes de ser brutalmente reprimida pelos nacionalistas e seus aliados fascistas (GARCÍA, 2016a, p. 103).
Além de ter se tornado uma referência na formação de uma cultura antifascista global na década de 1930, a Guerra Civil Espanhola representou um choque entre culturas políticas distintas (desde a extrema-direita fascista à direita conservadora, militar e católica até a vertente liberal ou as distintas esquerdas, sejam elas anarquistas, socialistas, comunistas e trotskistas), o que reflete a diversidade dos combatentes de 1936-1939. Apesar das diferenças profundas no campo das esquerdas, há de se destacar dois pontos em comum, quais sejam, o rechaço ao capitalismo e a crença na justiça social (GARCÍA, 2013, p. 14).
Não há dúvidas que o conflito seguirá repleto de “áreas cinzentas”, e que por vezes este é um tema que oferece obstáculos à nossa compreensão, como foi o episódio da morte de Besouchet. Em que pese a falta de evidências documentais e as versões controversas sobre seu desaparecimento e morte, o caso de Alberto Besouchet demonstra que, na época do stalinismo, o simples fato de ter pertencido no passado a (ou ter simpatizado com) uma corrente caída em desgraça era suficiente para fazer de um militante um suspeito de desvio ou de dissidência e para expô-lo à repressão (GROPPO, 2012, p. 231-232).
A morte de Alberto gerou na família e nos irmãos, que jamais desistiram de tentar apurar os fatos, um trauma profundo. A culpa que sentiam por Alberto ter sido considerado suspeito de ser um dissidente pelos dirigentes do PCB, porque os irmãos haviam aderido à corrente “trotskista”, gerou amargura e contribuiu para aumentar o descontentamento com a militância. Por conseguinte, a confirmação do assassinato de Alberto, a crise na IV Internacional e a morte violenta de Trotsky só reforçariam em Lídia e Augusto “a frustração, a descrença e a certeza do rompimento” (RANGEL, 2016, p. 201).
No exílio, Lídia tentou atuar junto aos grupos trotskistas argentinos, porém, acabou se afastando da militância política. A partir de 1940, Lídia e seu companheiro Newton Freitas resolveram se dedicar ao trabalho cultural em Buenos Aires, promovendo atividades literárias na imprensa, investindo na publicação de livros e intermediando contatos intelectuais e editoriais. Com o fim do Estado Novo, Augusto e Marino Besouchet militaram na Esquerda Democrática, movimento socialista de oposição a Vargas que surgiu no Rio de Janeiro em agosto de 1945 e era formado por antigos trotskistas e ex-comunistas (RANGEL, 2016, 201-205).
Por fim, cabe destacar que Alberto Besouchet é um personagem importante da história do movimento comunista brasileiro. Na carta aberta aos camaradas do PCB e da ANL, Besouchet expressou uma evidente consciência transnacional que explica, por exemplo, a radicalização do compromisso que assumiu com a Espanha republicana. Em duas passagens da referida carta, em que o autor reivindica o modelo soviético como exemplo a seguir, Besouchet sinaliza que o antifascismo revolucionário implicou também uma idealização do futuro (ACLEY-KREYSING, 2017, p. 174), servindo não apenas para vislumbrar uma nova Espanha, como um novo Brasil num mundo pós-fascista. Desse modo, pode-se afirmar que sua vida foi forjada no calor da mobilização antifascista tanto no Brasil como na Espanha.