http://dx.doi.org/10.5965/2175180315382023e0108
Recebido: 12/05/2021
Aprovado: 02/11/2021
Everton de Oliveira Moraes
Universidade Federal do Espírito Santo
lattes.cnpq.br/7818932710501334
moraes.everton@gmail.com
orcid.org/0000-0002-7632-0559
Murilo Prado Cleto
Universidade Federal do Paraná
lattes.cnpq.br/9908371106804516
murilocleto@ufpr.br
orcid.org/0000-0003-0771-9475
Palavras-chave: negacionismo; historicidade; historicismo; atualismo; história do Brasil.
A produtora audiovisual Brasil Paralelo é uma empresa ligada às novas direitas brasileiras, fundada em 2016, no contexto da crise democrática pós-2013 (OLIVEIRA, 2021), com uma iniciativa cujo objetivo é participar da articulação do que Filipe Valerim, sócio e apresentador dos filmes, chamou de uma “reforma cultural”, isto é, um projeto que visa combater uma alegada hegemonia de esquerda nos meios culturais do país. A partir da sua admiração pelo cineasta Christopher Nolan e pela obra “Interestelar”, o mesmo Valerim justifica a escolha do nome e do design da empresa: “o logotipo [...] tem o formato de um buraco de minhoca justamente para dar a ideia de que a marca é a conexão com a realidade paralela. No caso, paralela ao que as pessoas estavam acostumadas a ver na grande mídia” (2018).
A ideia de uma “reforma cultural” não é gratuita. No documentário 1964: o Brasil entre armas e livros, de longe o maior sucesso da produtora, com 5 milhões de visualizações em apenas duas semanas, a meia hora final é dedicada a explicar como, segundo o raciocínio do intelectual Olavo de Carvalho – brasileiro radicado nos Estados Unidos e autor de uma série de best-sellers especialmente caros à direita brasileira, além de uma espécie de patrono da Brasil Paralelo –, a esquerda se imiscuiu na cultura para, sorrateiramente, destruir os valores da civilização ocidental. Trata-se, de acordo com esse conjunto de ideias, de uma estratégia que teria deliberadamente deslocado o marxismo do campo da luta política revolucionária, onde teria sido derrotado, para as universidades, para as artes e para a imprensa.
Não é por acaso que a empresa privilegia a história como modo de levar a cabo tal “reforma”, afinal, o que se busca ali é precisamente responder a uma demanda social por narrativas capazes de fornecer alguma orientação temporal. Como afirma Hans Ulrich Gumbrecht (2011), a crise das metanarrativas historicistas e o declínio da ideia de progresso histórico produziram uma experiência de desorientação temporal e desencantamento em relação à possibilidade de investimento libidinal no futuro. Diante dessa carência de sentido histórico, emergiu um desejo renovado por narrativas capazes de orientar e fascinar, o que ajudaria a explicar o crescente interesse pela história (GUMBRECHT, 2011, p. 26-27). Assim, assistimos à multiplicação de canais do YouTube, podcasts, séries, filmes e livros que, produzidos por uma enorme gama de agentes sociais, recorrem a formas mais ou menos reconhecidas de narrativa histórica, com graus muito variados de sucesso. Para citar apenas um exemplo dentre os casos mais exitosos, o podcast mais escutado do Brasil divulgou serem os episódios de história os mais ouvidos/baixados entre um universo de temas como política, arte, games, humor, cotidiano, empreendedorismo, etc (NERDCAST, 2021).
A tarefa que a Brasil Paralelo se coloca é, desse modo, a de produzir uma narrativa histórica que funcione como parte do supracitado projeto de reforma cultural. Os seis episódios de Brasil: a Última Cruzada, a produção aqui escrutinada, tentam dar conta dessa tarefa que procura estabelecer um fio condutor das Cruzadas até a Era Vargas. Na visão que ampara a fatura da série, o conservadorismo ali defendido estaria perdendo a guerra contra a história “esquerdista” e seria necessário um esforço de recontar a história do Brasil sob um viés que se reivindica isento. É este o argumento que ampara a narrativa negacionista da produtora. E por negacionismo entende-se aqui, a partir de Arthur Avila e Mateus Pereira, o conjunto de omissões factuais, distorções e silêncios que objetivam negar mesmo os aspectos mais bem conhecidos e estabelecidos sobre o passado no interior do saber historiográfico (AVILA, 2019) em favor de um discurso que busca afirmar uma verdade previamente determinada e “levar à dissimulação, à falsificação, à fantasia [...] e ao embaralhamento” (PEREIRA, 2015, p. 865-866). Já no primeiro episódio, temos amostras da tarefa acima mencionada. Na abertura da série, por exemplo, o narrador afirma que estamos “prestes a conhecer uma história de sacrifício, virtude e coragem que por muito tempo nos foi negada” (BRASIL PARALELO, 2017a).[1] Olavo de Carvalho sustenta, também nos minutos iniciais, que celebrar os heróis nacionais teria se tornado algo proibido no Brasil, uma vez que, para a esquerda, eles seriam parte da cultura dominante a ser combatida. Nesse sentido, a pretensão do documentário, nas palavras do professor entrevistado Thomas Giulliano Ferreira Santos, seria a de “dar um pouco de Brasil para as pessoas”.
O objetivo deste artigo é compreender os modos de historicidade presentes na série documental Brasil: a Última Cruzada, da produtora Brasil Paralelo. O que se defende aqui é que a produção articula algo que se poderia chamar de uma “visão de mundo” atualista, ávida por encontrar (projetar) no passado os empreendedores de outrora com um imaginário conservador e historicista, inspirado sobretudo pelo pensamento de Olavo de Carvalho. Mas, para isso, precisamos primeiro compreender o contexto de emergência desse projeto que visa disputar passados, presentes e futuros do Brasil.
Buscando radiografar o que se convencionou chamar de “novas direitas brasileiras”, Camila Rocha faz, em sua tese, um longo percurso que remonta aos anos 1940, mas se concentra, sobretudo, no pacto ultraliberal-conservador forjado ainda no auge do lulismo e que resultou, não sem uma série de condicionantes externos e tensões internas, no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, bem como na eleição de Jair Messias Bolsonaro, em 2018. Nesse trajeto, Rocha detecta a emergência daquilo que Nancy Fraser chama de “contrapúblicos”. Segundo a teórica, os contrapúblicos seriam formados por uma massa de sujeitos que se enxergam como subalternizados, excluídos, relegados aos limites da esfera pública habermasiana (operários, mulheres, negros, etc.) e, portanto, constituídos em oposição aos “públicos dominantes”, formados por sujeitos que se reconhecem como participantes de uma esfera comum de atuação social positiva. Essa noção foi ampliada pelo crítico literário Michael Werner e pelos estudiosos da Comunicação John Downey e Natalie Fenton para sustentar a ideia de que, especialmente com a popularização da internet, poderiam compor esses contrapúblicos quaisquer grupos que, fora dos espaços consagrados de produção e difusão de informação, constituíssem um tipo de identidade própria com a finalidade de estreitar laços e expandir sua atuação. Nesse sentido, são contrapúblicos grupos tão dialmetralmente opostos como os zapatistas, no México, e os negacionistas do Holocausto, na Alemanha, por exemplo (ROCHA, 2018).
Essas “novas direitas brasileiras” não são, desse modo, simplesmente os quadros tradicionais do PSDB ou do conservadorismo mainstream, habitués dos palácios federativos e meios de comunicação, que, com o passar dos anos na Nova República, foram se distanciando cada vez mais das esquerdas no espectro político. Elas teriam emergido, especialmente, a partir de setores de uma direita envergonhada pelo peso de uma experiência traumática como a da Ditadura Militar e que passam a se reunir em fóruns virtuais, especialmente a partir de 2005-2006, com a popularização do Orkut e com a primeira grande crise política dos governos petistas (ROCHA, 2018). Desde então, “têm se expandido por surfar melhor na agitação do fluxo de atualizações” (PEREIRA; ARAUJO, 2021, p. 3) características da internet e, mais particularmente, das redes sociais.
A noção de contrapúblicos permite compreender como um discurso que é fundamentalmente ultrassistêmico se apresentaria – como faz até hoje, mesmo com farta representatividade no governo – a partir do rótulo de “antiestablishment”, uma expressão frequentemente utilizada por Filipe Martins, assessor para assuntos internacionais da Presidência da República sob o comando de Bolsonaro, discípulo fiel de Olavo de Carvalho (COSTA, 2019) e notável escritor de longas sequências de tuítes em defesa desse projeto de poder que se apresenta como uma contraofensiva. Não é por acaso, portanto, que seus signatários apostam na estratégia de eleger inimigos, como o Foro de São Paulo,[2] por exemplo.
Essa estratégia de contraofensiva parece convocar a experiência da historicidade que poderíamos chamar, como indicam Mateus Pereira e Valdei Araújo, de atualista (2018). A atualização (update), aqui, tem não apenas o sentido de uma adaptação ao presente, mas também o de uma soberania do atual, de redução das outras temporalidades a este tempo da urgência. Na conduta temporal atualista,[3] a necessidade de transformação não responde a uma busca por progresso ou orientação no passado, mas a um tornar sempre atual o passado e o futuro, e surfar nos fluxos e nas constantes ondas de transformação (MORAES, 2019, p. 268). No que diz respeito às novas direitas, está em jogo uma atuação fluida, sempre disposta a mudar as táticas, discursos e justificativas, que se desloca constantemente para disputar diversos espaços de poder no momento presente. Exemplo dessa conduta é a inserção nas redes sociais por meio do impulsionamento de hashtags, disparos de mensagens, lives e vídeos constantemente utilizados para justificar, complementar e dar legitimidade aos ataques, defesas, avanços e recuos do governo federal. Em vez de buscar amparo da credibilidade nas instituições ou em projetos políticos de futuro, as direitas investem na mobilização constante de contrapúblicos, sempre alarmados por demandas “urgentes” (uma conspiração parlamentar, um ataque vindo do poder judiciário, a sempre iminente ameaça comunista em diversas esferas sociais, etc.)
Os vídeos da Brasil Paralelo, bastião audiovisual dessas novas direitas, também são exemplos dessa estratégia e dessa conduta temporal atualista. Eles foram idealizados em um contexto de incremento da produção comercial sobre a história do Brasil, decorrente da crise democrática que explode a partir de 2013, e constituem uma tentativa de participação nas disputas pela história que tem lugar desde então. Essa produção parece partir da noção “de que a crise brasileira é, antes de qualquer coisa, uma crise de ideias” (OLIVEIRA, 2021, p. 21); de um lado, um discurso de direita em sua luta contra o excesso de intervenção estatal, corrupção e a ideologia esquerdista-marxista que avançaria sobre o país, impedindo sua atualização e o colocando sob o signo do atraso (Leandro Narloch, Jorge Caldeira, etc.); de outro, uma retórica de esquerda, com a tese do patrimonialismo das elites (Jessé Souza, Lilia Schwarz, etc.) que impede a consolidação de direitos para amplas parcelas da população. A Brasil Paralelo parece fazer da crise a sua oportunidade de crescimento, uma vez que não se trata ali de sugerir saídas, mas de produzir narrativas heroicas e empreendedoras para sujeitos atordoados por estas crises.
Com menos ênfase na produção de livros, a Brasil Paralelo opta por usar a internet como principal forma de intervenção nesse debate, o que implica, entre outras coisas, um mergulho nas disputas mais imediatas pelo imaginário coletivo. Ela traz, muitas vezes, de forma explícita ou implícita, denúncias de “censuras”, “ataques” e “boicotes” sofridos, acompanhadas da ênfase na necessidade de campanhas de financiamento coletivo que tornariam a iniciativa viável, além de isenta de quaisquer influências ideológicas. O objetivo destas parece ser, sobretudo, reforçar o aspecto orgânico e pretensamente subversivo dessas produções. A crise da pandemia de covid-19 exacerbou esse discurso lamurioso e denuncista, tanto que, além das costumeiras introduções críticas, passaram a ser lançados vídeos específicos, mais curtos e alarmistas. Um exemplo é o que leva o título “Atenção: nossas redes sociais correm risco”, de apenas um minuto. De saída, o espectador já se depara com uma imagem de miniatura com a frase: “Atenção! O YouTube proibiu a divulgação do nosso documentário”, escrita em caixa alta, com letras vermelhas. Ao entrar no vídeo, ele pode perceber uma tentativa de simular certa precariedade, ainda que com recursos estéticos bastante sofisticados e profissionais: a escolha do preto e branco, a presença do carimbo de data e hora, o efeito de interferência e falha, entre outros que remetem às gravações analógicas. Em seguida, ele ouve uma música de fundo que sugere suspense, permeada por sons de sirenes de alarme, criando um tom de gravidade que complementa o discurso de denúncia. No conteúdo, porém, não se encontra qualquer comentário sobre alguma proibição ou remoção efetiva de vídeos, apenas um alerta genérico sugerindo que a política de restrição de alcance da plataforma, que afeta vídeos que trazem no título a expressão ou façam menções a “covid-19”, teria como objetivo cercear o contraponto às informações oficiais sobre o assunto. Seria possível citar ainda outros vídeos, como o intitulado “Felipe Neto e Sleeping Giants sabotaram a Brasil Paralelo?”, que evoca ainda mais marcadamente a ideia de simplicidade e precariedade a partir do recurso da gravação artesanal, tremida e sem enquadramento fixo. Em pouco mais de dois minutos, localiza nos seus alvos apontados no título os algozes que, no limite, seriam representantes da supracitada hegemonia de esquerda.[4]
Nos dois casos temos o que Jair Ramos (2019) chama de “performance de autenticidade”. Trata-se de uma atuação que, ao reivindicar uma fala franca e pessoal que enuncia a verdade “nua e crua” contra as “mentiras” do outro, busca articular uma “linguagem íntima e emocional” com seu público, ainda que se trate o tempo todo de uma tentativa de participação no debate político. A aparência artesanal dos vídeos, mesmo quando é claramente encenada, parece ter sido associada à certa autenticidade e familiaridade com o público, capazes de fazê-lo se sentir entrando em um espaço secreto, livre da autoridade repressora, típica do “estilo youtuber” (MÁRQUEZ, ARDEVÒL, 2018). Assim, essas direitas colapsam a distinção entre público e privado e buscam fazer da política um local da projeção de suas fantasias de perseguição, e não do confronto de forças sociais (DUNKER, 2020, p. 277-283). Ao se reivindicarem sempre como contra-hegemônicas, portanto, não o fazem para articular projetos e propostas de futuro, mas para estabelecer um modo de atuação no espaço midiático do YouTube por meio de uma série de intervenções sempre atualizadas de acordo com as demandas das disputas em questão, ora simulando a precariedade, ora ostentando profissionalismo e primor técnico.
Ao mesmo tempo e de forma aparentemente paradoxal, outro tipo de conduta temporal aparece nas produções da Brasil Paralelo, especialmente por meio do discurso de Olavo de Carvalho. Nas suas falas presentes nos vídeos, podemos perceber a recorrência do cronotopo historicista, entendido aqui não como o ideal de uma historiografia científica, mas como uma experiência do tempo que implica na “historicização e narrativização” de “amplas camadas da realidade” (ARAUJO, 2011, p. 284) e na tentativa de colocar o presente em perspectiva a partir do passado em vista de um futuro a ser articulado (MARTINS, 2011, p. 17). Trata-se, portanto, da criação de “narrativas historicizadas” que buscam “se resguardar da instabilidade provocada pela ‘aceleração do tempo’”, característica da modernidade, “por uma espécie de recurso derradeiro à ideia de progresso” (RANGEL; RODRIGUES, 2009, p. 69).
A filosofia da história estabelecida por Olavo de Carvalho (OLIVEIRA, 2019), que, em grande medida, orienta a fatura de filmes como os que compõem a série A Última Cruzada, pode ser descrita, desse modo, como marcada pelo cronotopo historicista, ainda que com um forte acento cristão. De acordo com ela [a filosofia da história de Carvalho], o cristianismo, ao se apropriar do legado do pensamento grego e do direito romano, teria instaurado um caminho para o progresso da assim chamada civilização ocidental, para o controle de seus impulsos violentos e para a constituição de uma ética humana universalizável. A dimensão mística da existência seria um elemento estruturante desta ética e o fundamento de qualquer ideia de harmonia social, uma vez que ela seria capaz de conservar certa estabilidade sobre a qual as transformações da humanidade poderiam ocorrer de maneira ordenada e civilizada. O “desencantamento do mundo” promovido pela modernidade, desse modo, com a progressiva racionalização das atividades humanas, teria instaurado um processo de decadência civilizacional. Assim, todo seu pensamento se volta para uma crítica dos materialismos e para um trabalho de retomada da espiritualidade. Apesar do misticismo antimodernista, a narrativização e historicização do tempo e a ideia de progresso ainda são os pilares do discurso.
Mas como essas condutas temporais se articulam na narrativa da série? Ao assistir aos filmes e analisar as narrativas, é impossível não perceber ali certo desejo de restauração do cronotopo historicista, de reconstituição do sentido histórico perdido com a crise das metanarrativas no século XX, de recuperação das figuras heroicas e da imagem da Nação como origem e destino da história. No entanto, não podemos deixar de atentar para o fato de que a lógica de produção, apresentação e distribuição da série aponta também, simultaneamente, para um desejo atualista, uma vez que a Brasil Paralelo faz algo mais que se conectar com os públicos fragmentados das redes ou criar uma narrativa que possa ser instrumentalizada no presente, etc. Para além disso, a narrativa mobilizada pelo documentário procura fazer do passado um instrumento de autoafirmação no presente, uma vez que se trata não apenas de reconhecer nos heróis do passado os seus antecessores, mas de se identificar com os empreendedores de outrora. Passemos agora para uma análise mais pormenorizada dessas experiências.
Em primeiro lugar, falemos do desejo de recuperação do cronotopo historicista. Brasil: a Última Cruzada tem como objetivo reconstituir uma história da Nação, reestabelecendo ligações com o passado para lhe configurar um destino. E ali isso se dá tanto pelo que o documentário mostra, como pelo que ele oculta. Contrapondo-se às abordagens historiográficas que vigoram desde, pelo menos, meados do século XX, ele busca reabilitar os heróis e os “grandes homens” e eventos da consciência nacional. Não se encontram, por exemplo, muitas referências aos sujeitos subalternizados, como indígenas, escravizados e pobres que, quando aparecem, surgem na condição de objeto da ação dos verdadeiros protagonistas da história. Estes últimos seriam os portugueses, seus descendentes e os integrantes da família real, os verdadeiros olvidados por uma historiografia esquerdizante interessada em destruir os valores ligados ao cultivo do amor pátrio. Logo na abertura do filme, a narração em off de Filipe Valerim diz que “nossa pátria não pode ser compreendida apartada daquela que a concebeu e gestou”, reforçando o argumento de que essa narrativa histórica, dita verdadeira, teria sido negada aos brasileiros no interior desse alegado projeto de doutrinação.
No primeiro episódio, denominado “A Cruz e a Espada”, a voz em off afirma categoricamente que “não podemos deixar que roubem os degraus da nossa civilização” (BRASIL PARALELO, 2017a). A declaração é sintomática, posto que revela não apenas essa disposição em performar como resistência, mas também a noção de história da qual a produtora parte. Como bem nota Fernando Nicolazzi (2020), trata-se de um pensamento histórico que em muito se assemelha àquele do século XIX, com um apego significativo ao factual, o já mencionado uso recorrente de elogios aos “grandes varões” do passado, bem como a afirmação de neutralidade. Num outro momento, a narração diz, por exemplo, que “a história é uma grande galeria de quadros de personagens ilustres” (BRASIL PARALELO, 2017a). Olavo de Carvalho também recorre, noutro trecho, a um princípio essencialista, típico também das narrativas desse modelo oitocentista de que “a história é a própria identidade nacional” e ainda que “a identidade nacional é a memória coletiva de feitos realizados em comum, que dão às pessoas um senso da retaguarda das suas próprias vidas, da origem dos seus sentimentos e valores” (BRASIL PARALELO, 2017a).
De acordo com o pensamento histórico de Carvalho, figura fundamental na elaboração do discurso da série, seria preciso produzir uma história do país capaz de inseri-lo nessa grande narrativa da história ocidental. Ele reivindica, desse modo, uma história (que aqui pode se expressar por meio da literatura, do cinema, das artes plásticas, etc.) pautada pela “realidade”, e não pelas ficções e convenções discursivas fabricadas pela historiografia de viés esquerdizante. Não deixa de reconhecer, porém, que essa história precisa estar amparada por determinadas convenções narrativas. A história que reivindica deve, por exemplo, tomar a Nação como ponto de referência de onde tudo parte e para onde tudo converge. Ela também deve se lembrar da sua dívida para com os heróis (D. João, D. Pedro II, Joaquim Nabuco, etc.), guerreiros dotados de uma coragem física e intelectual, e denunciar os falsos ícones da esquerda (Fidel Castro, Marighella, Guevara, entre outros). Seria necessário ressaltar a memória dos grandes feitos realizados em comum, dentre os quais destacam-se, inclusive, para Carvalho, os protestos de 2015 pelo impedimento de Dilma Rousseff, um dos eventos por ele apontados como marcos da emergência da consciência nacional e do qual o primeiro exemplo seria a “expulsão dos holandeses” e, o maior, a Guerra do Paraguai. Nesse modo de ler o tempo, a ação no presente exige uma visão integral da história do país, uma consciência histórica. Essa visão integral, por sua vez, pressupõe uma unidade de consciência própria à formação de um povo e reflexo dela. A dimensão histórica do projeto de poder da esquerda no país, por outro lado, consistiria em se aproveitar dos momentos em que esta consciência está enfraquecida para tentar criar uma unidade artificial, pautada em uma racionalização e desmistificação, destruindo a unidade original e destituindo as pessoas de sua capacidade de conceber sua própria grandeza, tornando-as frágeis e manipuláveis. Para Carvalho, seria preciso devolver ao imaginário popular essa potencialidade (VIEIRA, 2021).
“A Cruz e a Espada” descreve ainda o que seria o início de uma grande ofensiva civilizacional do Ocidente: primeiro, no evento conhecido como Reconquista, para expulsar os muçulmanos do continente europeu – reforçando mais uma vez a narrativa maniqueísta –; depois, por meio da expansão marítima, para expandir a fé cristã pelo mundo (BRASIL PARALELO, 2017a). A “descoberta” e a colonização do Brasil, por sua vez, seriam parte desse processo de universalização da ética cristã e, ao mesmo tempo, o produto de uma iniciativa corajosa e guerreira, inspirada pela Providência. Olavo de Carvalho afirma isso categoricamente ao dizer que “a civilização ocidental é o ponto mais alto que a humanidade chegou até agora” (BRASIL PARALELO, 2017a), e o Brasil, segundo ele, “é fruto disso”. Ao escolher a Europa como ponto de partida de sua história do Brasil, os produtores da série delimitam sua ancestralidade e descrevem seu mito de origem. Se a própria historiografia disciplinar se constitui como saber eurocentrado, para a empresa, se trata de assumir radicalmente a defesa daquilo que há de mais tradicional da cultura ocidental por meio do culto de suas figuras heroicas, homens brancos e cristãos que assumiram a tarefa de tomar a história em suas próprias mãos e conduzi-la rumo à civilização. Então, uma vez apresentados os heróis desta narrativa, passa-se, nos episódios seguintes, à sua jornada, repleta de desafios e obstáculos.
No segundo episódio, essa visão teleológica da história do Brasil, carregada de juízos etnocêntricos, lança sua luz sobre as culturas indígenas. Para o entrevistado Thomas Giulliano Ferreira Santos, cuja fala é acompanhada por uma trilha que evoca gravidade, haveria um conjunto de evidências sistematicamente negligenciadas pela historiografia sobre a brutalidade dos nativos. É novamente Olavo de Carvalho o responsável por enunciar os juízos mais severos sobre eles: “uma sociedade que tem esse costume”, diz, “não é um primor de moralidade”. De acordo com o guru conservador, “o parâmetro ocidental é racionalmente defensável. Você tem dois milênios de tradição, de argumento, exame, análise etc. e etc. E a cultura indígena não tem sequer alfabeto” (BRASIL PARALELO, 2017b). A estas falas seguem-se algumas exposições que destacam as divisões internas dos indígenas e a violência dos botocudos, entre outros hábitos supostamente bárbaros. E essa barbárie é explicada pelo jornalista Leandro Narloch, outro entrevistado da série:
A América ficou isolada. E acontece muito com sociedades humanas: quando ela fica isolada, ela emburrece. Ela fica pobre culturalmente. Então quando a gente teve essa reconexão dos americanos com os europeus, isso foi dos episódios mais extraordinários da história do mundo (BRASIL PARALELO, 2017b).
A colonização adquire – ou readquire –, portanto, o aspecto de um esforço civilizatório. Reforçando esta narrativa, Olavo de Carvalho emula a perspectiva jesuítica ao argumentar que “‘a música desses índios aqui tem 4 notas, meu Deus. Vamos ensinar aqui uma escala de 12 notas’. Então eles pegam comunidades aqui indígenas no Brasil e levam do paleolítico ao barroco em 20 anos” (BRASIL PARALELO, 2017b). Nessa retórica, como já se disse aqui, a religiosidade católica assume papel central na condução da narrativa do processo de civilização dos nativos. Isso porque, na série, assim como em boa parte da historiografia brasileira do século XIX, os indígenas são desqualificados como ancestrais e vistos como insuficientemente industriosos e demasiado primitivos em comparação com outras sociedades ancestrais (ARAUJO, 2008, p. 160 e seguintes).
Vale citar brevemente o terceiro episódio da série, “A Guilhotina da Igualdade” (BRASIL PARALELO, 2017c), ainda que este se desvie da história do Brasil propriamente dita, pois propõe que o caldeirão de ideias e revoluções políticas do século XVIII foi decisivo para os desdobramentos da trajetória da nação. É particularmente importante ressaltar que esse episódio tem como um de seus objetivos localizar os primórdios da mentalidade revolucionária da esquerda. Como o próprio título sugere, há um esforço de argumentação voltado a uma tentativa de condenar o radicalismo jacobino, que chega a ser descrito como a origem da conduta inerentemente violenta e destrutiva do “esquerdismo”. Aparece ali a ideia de um inimigo que atua incessantemente em favor da desarticulação das conquistas civilizatórias.
Em “Independência ou Morte” (BRASIL PARALELO, 2017d), o quarto episódio, observa-se um exemplo característico do modo de acesso ao passado que é ali praticado. O Hino Imperial não é mobilizado como fonte ou objeto de análise crítica, mas como parte da trilha sonora que emoldura a narrativa. A descrição dos conflitos pós-Independência é acompanhada por um rufar de tambores, gerando um suspense e uma tensão que se resolve com a “redenção” levada a cabo por D. Pedro.
Buscando afirmar as virtudes da colonização lusitana, marcando sua oposição em relação às teses que ressaltam a importância da presença holandesa em Pernambuco, Ferreira Santos afirma que “na verdade, quem civilizou o Brasil, que antes tinha características bárbaras, pré-históricas, foram os portugueses” (BRASIL PARALELO, 2017d). Logo depois, a série utiliza o verbo “roubar”, sem maiores rigores, para desqualificar a colonização holandesa. Segundo Olavo de Carvalho, inclusive, a expulsão dos holandeses teria sido a primeira grande experiência de construção de uma identidade nacional brasileira, uma vez que teria colocado lado a lado indígenas e portugueses no combate aos “invasores” (BRASIL PARALELO, 2017d).
São incontáveis os exemplos de elogios, na série, à presença portuguesa no Brasil. Mas um desses elogios chama a atenção. Rejeitando o rótulo de ufanista, Thomas Giulliano Ferreira Santos crava: “a nossa história monárquica é uma história rica [...]. Rica porque nós conseguimos fabricar, em profusão, grandes homens” (BRASIL PARALELO, 2018). O que a série transmite, então, é a ideia de uma continuidade algo natural entre os períodos colonial, joanino e imperial, só interrompida pela República, com seus ideais positivistas e sua tentativa de apagar qualquer ligação com o passado monárquico e rompendo com sua suposta estabilidade. Esse pensamento nostálgico da monarquia é recorrente nas novas direitas brasileiras. Em artigo assinado no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, os historiadores Thiago Krause e Paulo Pachá definem a nostalgia que os bolsonaristas sentem do Império como uma “fantasia reacionária”: “É uma visão”, dizem, “que parte dos fracassos da República para erigir um contraexemplo idealizado, um que nos diz mais das aspirações conservadoras que sobre o que realmente ocorreu” (KRAUSE; PACHÁ, 2020). No governo, essa relação se explicita através do aumento significativo de nomeações, principalmente na Secretaria Especial da Cultura, sob o comando do ator Mário Frias, de integrantes do movimento monarquista, alguns deles indicados pelos próprios descendentes da família imperial (ZANINI, 2020).
A escravidão, no entanto, que é tratada no segundo e quinto episódios da série, parece ser um fardo pesado demais mesmo para estes entusiastas do projeto colonizador. O historiador Fernando Nicolazzi, em entrevista ao canal Historiar-se, chama atenção para o truque retórico que consiste em fazer a escravidão aparecer como uma “chaga”, um problema moral ou uma espécie de acidente de percurso, e não como um sustentáculo fundamental à economia da época, assim como à própria estrutura colonial e imperial (NICOLAZZI, 2019). D. Pedro II chega a ser citado como um quase-abolicionista, muito contrariado com a situação dos descendentes africanos, que, apesar de não possuir todos os meios para dar fim a escravidão, dava o exemplo ao não ser escoltado por escravos na rua. Segundo a interpretação do episódio “O Último Reinado” (BRASIL PARALELO, 2018), o quinto da série, a abolição não havia acontecido antes porque as elites não a permitiram, pois não aceitaram perder seus privilégios. Rafael Nogueira, professor de história nomeado presidente da Biblioteca Nacional por Bolsonaro, que é presença quase constante nas produções da Brasil Paralelo, defende, como símbolo dessa boa vontade do imperador, que a Lei Eusébio de Queirós havia sido responsável por abolir, “de fato”, o tráfico negreiro, enquanto a Lei Feijó, aprovada durante o período regencial, teria servido apenas “para inglês ver” (CLETO, 2021). O que faz a série, em certo sentido, é projetar na imagem do imperador um atributo comumente associado a líderes populistas das novas direitas, que é o de supostamente combater o que seria o “verdadeiro poder” por dentro. Dessa forma, resolvem retoricamente o eventual paradoxo de serem, simultaneamente, governo e antissistema (CLETO, 2021).
Como não poderia deixar de ser, a série também reforça, no quinto episódio, a ideia, repetida à exaustão pelas novas direitas brasileiras, de que os próprios negros, tão logo tinham esta possibilidade, tratavam de adquirir e manter seus próprios escravos. Paulo Cruz, outro intelectual entrevistado, diz que “não era difícil encontrar negros que se tornavam senhores e que tinham seus escravos também” (BRASIL PARALELO, 2018). Conta também, com ares de novidade, que, no continente africano, já havia um comércio de escravos. Ainda que muito tímidas, as ponderações ficam a cargo de Thomas Giulliano Ferreira Santos: “claro que são casos que são minoritários, mas são especificidades muito pouco comentadas” (BRASIL PARALELO, 2018). Por meio desse discurso, “a escravidão africana/afro-brasileira e o tráfico atlântico de seres humanos são igualmente esvaziados de seus horrores e violências” (AVILA, 2021).
Ainda que, como dito acima, a presença do cronotopo historicista não seja sinônimo de uma visão historiográfica cientificista, podemos perceber como estes tópicos convergem com aquela historiografia novecentista em muitos aspectos: a busca por filiação à história da civilização ocidental conjugada à procura das singularidades brasileiras que fariam do país uma Nação com destino próprio; à celebração dos grandes vultos que edificam o caminho da civilização nacional rumo ao progresso e à independência; ao menosprezo dos indígenas, entendidos como sujeitos de uma pré-história menor frente à ancestralidade de outras sociedades; e, sobretudo, à narrativa historicizante que se esforça para homogeneizar a história do Brasil em busca das origens do presente que ajudariam a mapear as tendências futuras. Mas, não nos enganemos, esse aparente retorno do topos historicista é mobilizado a partir de um outro modo de historicidade.
Podemos passar agora à análise da dimensão atualista da experiência temporal colocada em jogo pelo documentário. Comecemos por ressaltar uma ambiguidade. Não apenas em Brasil: a Última Cruzada, mas em todos os outros vídeos da Brasil Paralelo, uma questão que parece fundamental é a ambiguidade dessa relação: ao mesmo tempo em que ataca constantemente as universidades e os saberes acadêmicos em virtude da sua participação ativa no projeto de dominação marxista cultural, recorre não apenas à estética e ao gestual associados aos intelectuais, mas também, sempre que possível, enfatiza os títulos acadêmicos dos entrevistados como incremento de legitimidade (GRUNER; CLETO, 2021). Como entender esta ambiguidade? Se a série documental não se limita a apresentar uma verdade alternativa sobre a história, mas também almeja emular uma fala acadêmica, qual o princípio que orienta sua relação com o passado? Não é muito difícil perceber que essa tentativa de emulação de um discurso acadêmico é, no fim das contas, não tanto uma busca por legitimação intelectual, mas uma performance que busca tornar o produto audiovisual mais atrativo, capaz de vender a imagem de um documentário sério, isto é, que é algo mais do que mera criação ideológica vazia. O passado ali evocado é também mais do que uma trajetória linear de acontecimentos que conduzem ao presente. Ele aparece também como um repositório de identidades, um lugar no qual seria possível recolher imagens e mobilizá-las em favor de certas identificações. É nesse ponto que seria preciso evocar um personagem conceitual caro à Brasil Paralelo, o do empreendedor.
Em A última cruzada, não se trata de mostrar uma narrativa neutra e desinteressada, da qual os narradores seriam apenas uma voz legitimadora, como acontece nos documentários tradicionais. Por isso, a fala dos entrevistados é um elemento central para se compreender a função que a série ocupa no imaginário dessas novas direitas. Eles não apenas falam sobre os heróis, mas eles próprios também se colocam como heróis de seu presente, dispostos a entrar nesse jogo contra a esquerda, contra tudo e contra todos para contar uma história que vem sendo negada e escondida em função de interesses que se dissimulam (VIEIRA, 2018). Trata-se de uma visão empreendedora da fatura historiográfica: é preciso colocar o passado ao seu dispor, fazê-lo funcionar a seu favor, atualizá-lo. A pretexto de fazer homenagem aos grandes homens do passado, está em questão “submetê-los” aos seus objetivos, traçar uma linha de continuidade com eles, pois se eles, no passado, enxergaram mais longe, o olhar que os recupera é aquele que também é capaz dessa projeção visionária. Tem-se, dessa maneira, uma tentativa de estabelecer uma soberania sobre os passados nacionais, entrando em conflito com outros discursos que abordam esses passados.
O empreendedor, no discurso ao qual a produtora se filia, se caracteriza pela capacidade de mobilizar as situações em seu favor, perseverar, apesar dos obstáculos, e superar as dificuldades. Ele é visto, desse modo, como uma versão atualizada da figura do herói, um modo de expressão da soberania, isto é, da subjetividade que assume o risco de uma luta de “vida ou morte” pelo estabelecimento de uma verdade. Os grandes homens do passado, na série, são atualizados como empreendedores: os cavaleiros templários, os navegadores, os reis portugueses, os colonizadores, os jesuítas, José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Dom Pedro II, etc. seriam todos sujeitos que lutaram por seus ideais e objetivos, apesar de todas as situações adversas que apareceram diante deles. Por diversas vezes, a série reforça a ideia de que as “pessoas comuns” são, em geral, inertes e sugestionáveis, e caberia a alguns homens de iniciativa levar o país à frente. Esses heróis são descritos como indivíduos abnegados, que tomam o poder nas mãos, mas nunca em benefício próprio, e, sim, pelo bem da Nação. Ao passo que alguns outros sujeitos, ressentidos e invejosos, geralmente identificados com o espírito destrutivo da esquerda (aqui projetado no passado), tomariam sempre o poder em benefício próprio e de seu grupo. Se o empreendedorismo funciona no presente como um discurso de base mística (ainda que se apresente como técnico), quando projetado para o passado, ele efetua um reencantamento e uma remistificação da relação com o tempo.
Nesse jogo, mais do que dar a ver o passado a partir de um lugar de fala neutro, os “especialistas” entrevistados performam um papel no filme. A voz deles (além do narrador em off) é que comanda a narrativa que é soberana, que deve assenhorar-se das imagens do passado e atualizá-las, isto é, disponibilizá-las para um uso atual(ista). É ela quem desmascara e subverte a historiografia acadêmica/oficial da esquerda. Não se trata simplesmente, como no formato canônico dos documentários tradicionais, de abstrair o lugar de enunciação em favor de uma ênfase no conteúdo, mas de salientar esses efusivos narradores. A fala é fetichizada, eloquente, marcada por gestos inflamados e acompanhada por uma vestimenta formal e elegante.
O próprio título da série documental já traz implícita a duplicidade da iniciativa, marcada tanto pelo cronotopo historicista, como pelo atualista. Como atenta Fernando Nicolazzi (2020), a ideia de cruzada presente no título remete à Reconquista ibérica, evento apresentado como origem remota do Brasil, mas também ao combate ao comunismo/esquerdismo no presente. É nesse ponto que uma mistificação do passado é colocada em cena, pois, como já se disse, não se trata de ver nele um ponto em uma trajetória, mas um objeto de fascinação e inspiração. Desse modo, o título remete não apenas aos eventos históricos abordados, mas também à tática utilizada pela empresa para gerar adesão nas redes: a luta contra o inimigo. O discurso histórico, para além de reproduzir o ideário olavista, se estrutura também pela tentativa de captar as demandas conservadoras, buscando contemplar um público que não se sente representado pela historiografia acadêmica, que se enxerga como um grupo de “vencidos antissistêmicos”, e criar uma história terapêutica (NICOLAZZI, 2020). Assim, a figura do empreendedor se mistura e se confunde com a do cruzado, e a luta contra o infiel do passado é identificada com a luta contra o comunismo na atualidade.
O uso do YouTube como plataforma de veiculação dos vídeos também cumpre uma função estratégica nessa mobilização de uma temporalidade atualista e empreendedora. Primeiro porque, como uma mídia social, ele funciona segundo uma demanda constante por engajamento, modo de funcionamento bem adaptado às necessidades das novas direitas. A assinatura do canal e, mais ainda, o “tornar-se membro” [opção da plataforma que permite que o inscrito contribua financeiramente com o produtor de conteúdo] atuam como mecanismos de inserção dos assinantes no projeto e, consequentemente, de sua participação em um empreendimento heroico. Os sujeitos excluídos do debate público, da esfera das decisões políticas, mas também da narrativa histórica acadêmica e da memória pública, os contrapúblicos, retornam de maneira triunfal como empreendedores, capazes de criar uma rede de colaboradores que sustente a invenção de uma história com a qual podem, enfim, se identificar.
A plataforma de mídia social também é pertinente para a série porque funciona produzindo formas de identificação das pessoas com certos narradores capazes de transmitir um estilo de vida e um modo de ação política. Dessa forma, ela se mostra propícia a uma atmosfera de “intimidade e familiaridade com o público” (MARQUEZ; ARDÈVOL, 2018) com esses narradores, sujeitos entendidos como possuidores de credibilidade e confiança em função precisamente de sua performance narrativa familiar, que se declara franca e autêntica. Cria-se, então, um espaço virtual no qual seria possível finalmente enunciar e expor uma versão alternativa dos fatos, uma “história paralela”, contra uma historiografia acadêmica, ali descrita como hegemônica, manipuladora e opressiva. Assim como para os jovens youtubers a produção de vídeos a partir de seus quartos demarca um espaço íntimo marcado por uma fantasia de proteção contra as pressões do mundo adulto (MARQUEZ; ARDÈVOL, 2018), o recurso de narradores fortes, mais do que mera retórica, é uma encenação de resistência que visa a criação e o fortalecimento de laços de confiança. Utilizando esta plataforma de maneira muito eficaz, articulam uma performance que é explicitamente feita para um público de YouTube para engajar e fidelizar o espectador com os passados que lhes são vendidos como úteis para a melhor condução de um estilo de vida empreendedor. A própria atuação da produtora na plataforma pode ser entendida, desse modo, como um caso de “empreendedorismo digital”, uma vez que seus membros “se especializam em entender os padrões de ação dos algoritmos e a ação sobre suas atividades, obtendo resultados que os beneficiem” (RAMOS, 2019, p. 15).
A produção da série faz uso de imagens (pinturas de época, ilustrações, filmagens panorâmicas contemporâneas dos cenários de eventos históricos, etc.) que aparentemente pretendem ilustrar os temas abordados, um recurso de linguagem familiar tanto para o YouTube, como para os documentários tradicionais. Neste caso, porém, para além de emular estes últimos, se trata de evocar uma atmosfera mística, cheia de grandiosidade e gravidade. Compondo com a ambiência trazida pelas falas e com a trilha sonora, as filmagens panorâmicas e pinturas históricas ajudam a reforçar a ideia de uma história aristocrática, comandada pelos grandes varões empreendedores sem “povo” e sem crítica. Nesse sentido, as imagens não são abordadas nem como monumentos, nem como documentos, mas como parte da composição dos climas. A operação consiste em evitar a historicidade própria das imagens, mas também recusa seu caráter de representação fidedigna do passado. O que esse uso faz é justamente produzir disponibilidade: os produtores da série se apropriam livremente das imagens, assim como os criadores de memes nas redes sociais se apoderam de toda e qualquer imagem para articular seus sentidos.
O passado, na série, não é um lugar de aprendizado no mesmo sentido em que era na história magistra vittae, na qual era portador de uma autoridade sobre o presente. Tampouco a narrativa atua apenas como modo de produzir um sentido de continuidade e progresso. Antes de tudo, os filmes funcionam como um repositório de imagens domesticadas e prontas para uso. O que está em jogo é o já mencionado “fascínio pelo passado”, sobre o qual fala Hans Ulrich Gumbrecht. Mas, se o crítico aproxima esse fascínio a uma espécie de curiosidade despretensiosa pelo passado, reconhecendo nessas imagens um objeto de intensa curiosidade e fruição, mas não de aprendizado temporal efetivo, seria possível pensar que existe aí algo a mais. O que esse sentimento possibilita também é uma imediata disponibilidade do passado, que pode ser manipulado, remixado e convertido em uma infinidade de imagens, inclusive para serem postadas nas redes sociais. É o atual, portanto, que exerce sua soberania em relação ao passado, invertendo a fórmula da história magistra.
Tal articulação entre a busca de sentido e fascínio pelo passado é produto do encontro entre a perspectiva empresarial e atualista de alguns dos sócios, com a perspectiva historicista e conservadora do grupo ligado a Olavo de Carvalho. Esta última responde em maior grau pela instrumentalização historicista do passado e por uma reafirmação da dependência do presente em relação à história. A primeira, por sua vez, torna viável a manipulação e transformação dos passados em imagens com as quais é possível se identificar e se inspirar em sua ação empreendedora. Se afastando da tese de Gumbrecht, seria possível afirmar que o fascínio pelo passado não torna impossível ou inútil qualquer tentativa de mobilizá-lo, mas modifica as formas de fazê-lo.
Em 2019, num episódio que gerou polêmica, a Brasil Paralelo assinou com o MEC um contrato de cessão gratuita dos direitos de exibição de Brasil: a Última Cruzada pela TV Escola. No dia em que chamou Paulo Freire de “energúmeno”, o presidente Jair Bolsonaro, reverberando os já referidos pressupostos olavistas, disse que a emissora “desinforma” e promove “ideologia de gênero”, além de ter uma programação “totalmente de esquerda” (MAZUI, 2019). Já Eduardo Bolsonaro, quando cogitado para assumir o posto de embaixador do Brasil nos Estados Unidos, afirmou estar estudando história para a sabatina no senado justamente com os episódios da série (ROMANO, 2019).[5] Tais exemplos revelam que as iniciativas da produtora não apenas são apoiadas e legitimadas, mas participam ativamente da cena política das novas direitas brasileiras com sua contribuição, a saber, dando-lhe um passado utilizável.
O alvo da iniciativa, desse modo, não seria apenas a historiografia acadêmica que, no discurso dessas novas direitas, funcionaria como mero suporte dos verdadeiros alvos, isto é, as reivindicações de “direito à memória”, trazidas à tona pelos movimentos sociais nas últimas décadas, com suas demandas por políticas públicas (NAPOLITANO, 2019). É nesse complexo cenário de disputas pelo passado que a empresa Brasil Paralelo se situa e busca articular suas políticas do tempo e suas lutas pela soberania das narrativas, as do passado e as do presente. Mas esses empreendedores buscam jogar diferentemente esse jogo. Não operam segundo as regras de validação pelos pares, como fazem os historiadores, tampouco buscam se reconectar com as memórias constitutivas do presente para reencená-las criticamente (ABREU; BIANCHI; PEREIRA, 2018, p. 291-295). Não afirmam apenas possuir o discurso verdadeiro ou a memória mais legítima, mas também procuram apresentar uma narrativa capaz de fascinar e suscitar identificação. Quando se colocam como alternativas, o fazem para se apresentar como heróis capazes de mobilizar os tempos pretéritos a seu favor, almejando outro tipo de acesso ao passado, agora transformado em mercadoria disponível para consumo imediato. Essa narrativa, mais do que anular as outras pela sua supressão ou deslegitimação, busca desvalorizá-las no interior de um mercado de narrativas e apresentar sua ineficácia, sua incapacidade de produzir sujeitos ativos e empreendedores.
A partir destas considerações, a hipótese que se esboça aqui é a de que a conduta temporal atualista é predominante na atuação da Brasil Paralelo e de que é a partir dela, portanto, que o cronotopo historicista é mobilizado pela série. Ao suspender a alteridade temporal, tal conduta torna a multiplicidade dos tempos disponível e atualizável, isto é, redutível ao atual. Desse modo, a série parece integrar um movimento de insurreição contra as memórias dos grupos minoritários e contra a historiografia acadêmica brasileira que, ao apontar para as tensões e contradições da história do país, tem procurado dar conta de uma realidade complexa, marcada por autoritarismos e violências de toda ordem, desmistificando as imagens cristalizadas da dita consciência nacional e apontando para a multiplicidade temporal. Inspirada pela leitura olavista da história, a Brasil Paralelo se apropria dela para converter seus heróis e guerreiros em empreendedores precursores dos sujeitos idealizados no presente e para produzir narrativas capazes de desestabilizar os discursos constituídos no interior da tradição crítica (acadêmica ou não). É por isso que a série pode afirmar, por exemplo, que o legado judaico-cristão é subestimado pela educação histórica formal brasileira, que, mesmo sendo um golpe, 1964 foi necessário, que a memória de Zumbi mais contribui para o racismo do que para o seu fim, ou que o tratamento destinado pelos portugueses aos indígenas e negros escravizados pode ser caracterizado como “diplomacia”.
Em outras palavras, tais produções visam oferecer versões alternativas dos passados nacionais, capazes de combater tanto a historiografia acadêmica, como as histórias reivindicadas pelos movimentos sociais. Articulam uma política da história que pretende estar à altura das disputas pelo passado que estão em curso no país e, de modo mais amplo, se constituem como parte importante da supracitada atuação política das novas direitas brasileiras.
Justiça seja feita, essas direitas, políticas e/ou intelectuais têm obtido sucesso e ganhado muito espaço nessas disputas. Bernardo Esteves (2020), repórter de ciência da revista Piauí, conta que, entre os 50 congressistas mais populares no YouTube em 2019, só 15 eram de oposição ao governo Bolsonaro. Entre os 320 canais que a equipe do Monitor do Debate Público no Meio Digital da USP mapeou, os 10 mais seguidos são de direita – com mais de 1,5 milhão de inscritos cada. Atuando nesse âmbito, os filmes da Brasil Paralelo são, sem dúvidas, um exemplo bem-sucedido de história pública negacionista. Gestada no contexto das mídias e redes sociais e da crise democrática pós-2013, a produtora soube como se colocar nesse mercado e, desde a fundação, só tem crescido. O YouTube, principal plataforma de exibição desses conteúdos, não é simplesmente um depósito de vídeos do canal, mas um lugar a partir do qual se mobiliza uma estratégia de atuação política e conquista de engajamento. Como podemos observar, esta estratégia tem funcionado.