1. Introdução[1]
Dentre os muitos temas que se tornaram objeto de preocupação da medicina psiquiátrica, sobretudo a partir do século XIX, dois ganharam vulto significativo: o abuso de substâncias psicoativas – especialmente as ilegais – e o suicídio (CFP, 2013; LOPES, 2008). Políticas sociais, de saúde e segurança públicas, com massivo investimento financeiro, não poupam esforços para “debelar” estes “problemas”, considerados enormes males da nossa sociedade, sem, no entanto, vermos reduzidos os números dos que sofrem (BERTOLOTE; DE LEO, 2012; FERREIRA JR., 2015; OECD, 2014; SILVEIRA et al., 2014; WHO, 2014). O que nos leva a perguntar: as empreitadas para reduzir os índices de suicídio e de agravos por uso de drogas têm sido eficazes? Elas têm por objetivo, realmente, minimizar os danos às pessoas e às populações? A qual ideal de saúde e de sociedade correspondem tais discursos? A partir das noções foucaultianas de anatomopolítica dos corpos e biopolítica das populações, este texto discute a associação estatística entre suicídio e uso de substâncias psicoativas, recorrentemente referida em diversos estudos, manuais e protocolos de saúde mental (BERTOLOTE; FLEISCHMAN, 2004; GORWOOD, 2001; INSKIP; HARRIS; BARRACLOUGH, 1998; PREUSS et al., 2002; PREUSS et al., 2003; SILVEIRA et al., 2004; WOJNAR et al., 2007; WHO, 2014). Mais além ou mais aquém da atribuição de causalidade, importa elucidar qual a função biopolítica de certo uso da epidemiologia e da saúde promocional nesta temática.
Para os propósitos deste artigo, usaremos preferencialmente o termo genérico “droga” para designar substâncias de abuso/recreativas, sejam lícitas, sejam ilícitas. Em que pese termos motivos para incluir fármacos desenvolvidos inicialmente como medicamentos, em função de seus efeitos no organismo (MONCRIEFF, 2008), queremos privilegiar a circunscrição, pelo discurso médico, de experiências que inicialmente não estavam por ele abarcados.
Neste sentido, a noção de medicalização é central para o nosso debate. Sabemos, desde Foucault, que o tema da medicalização pode se referir a dois processos historicamente interligados, ainda que descontínuos. O primeiro deles diz respeito ao desenvolvimento da medicina social, a partir da sanitarização das cidades na Europa, no período entre o final do século XVII e o final do século XIX, com a racionalização do espaço urbano, o esquadrinhamento da população, o controle de doenças e epidemias e a participação da medicina na administração pública e na gestão dos trabalhadores (FOUCAULT, 1984). O segundo processo corresponde à ampliação do discurso da medicina e da autoridade médica para tratar de temas que originalmente não lhe competiam – como no caso exemplar das mais diversas práticas sexuais, do onanismo infantil à homossexualidade, mas também nas escolas, nos tribunais e no seio das famílias ((FOUCAULT, 2005; 2012; 2018). Ocorre que, a partir do século XX, a presença de um conselheiro ou perito médico passou a ser requisitada e naturalizada nestes diversos espaços de produção da vida e das subjetividades, de tal modo que o campo da intervenção médica não se resume mais à prevenção e à terapêutica visando corpos (e cidades) saudáveis. Para além disso, o saber médico assume o status de discurso verdadeiro sobre tudo o que envolve o corpo e as relações. Na medida em que todas as condutas humanas são subsumidas ao campo da biomedicina e a seu léxico, também podemos afirmar que todo o domínio da vida passa a ser objeto de gestão (do) social: biopolítica.
Se Foucault e outros teóricos da medicalização, como Illich, Zola e Szasz, deram grande ênfase ao controle social operado pela medicina e, diretamente, pelos médicos, é com Peter Conrad (2007) que a noção de medicalização toma os contornos mais precisos em relação à realidade dos séculos XX e XXI. Mais do que compreender a pressão que a profissão médica exerce sobre os indivíduos, ele faz notar a difusão do discurso médico operado por leigos. Cada pessoa passa a se enxergar como paciente ou, mais precisamente, como consumidor de diagnósticos e de tratamentos – mesmo sem consultar um médico. O fato tão corriqueiro de buscar os modos de produzir “saúde” e de prevenir doenças acaba por configurar a medicalização como um fenômeno estrutural, não demarcado apenas pela figura do médico (ZORZANELLI; ORTEGA; BEZERRA JUNIOR, 2014).
E é neste sentido que queremos propor o debate sobre um elo, que estamos chamando de biopolítico, entre o uso de drogas e o suicídio: se são consideradas ocorrências individuais e, se hoje aqueles que as vivenciam se consideram doentes, é porque este é o estatuto que, nas descontinuidades históricas, corresponde à mentalidade hegemônica desde a Modernidade. Mais recentemente, como bem demonstram Dardot e Laval (2016), o desenvolvimento da razão neoliberal só fez acentuar essa face destacada por Conrad, a saber, que a medicalização é fruto da ação de diversos atores e pode independer da intervenção de profissionais médicos. Ela se configura, portanto, como um modo de produzir subjetividades: ainda corpos dóceis e úteis, ou tão úteis quanto forem dóceis, como no desenvolvimento das sociedades disciplinares; mas agora sujeitos autorresponsáveis, que vigiam a si mesmos, que devem produzir saúde, gozo, consumo. Os suicídios e certas formas de uso de drogas são, como discutiremos, antinômicas a essa razão neoliberal.
2.Substâncias psicoativas, estado e discurso médico
A expressão droog, raiz de onde deriva o termo “droga”, foi inicialmente usada para designar as especiarias – como o café, o tabaco, a noz-moscada e os chás – comercializadas entre os portos ao redor do mundo, sobretudo pelos holandeses, com função alimentar, medicinal ou estética. Somado ao comércio de bebidas alcoólicas, impulsionaram o mercantilismo europeu dos séculos XVII e XVIII, descaracterizando as funções culturais originais, ligadas à vida no campo e à produção e ao consumo domésticos (CARNEIRO, 2005). Como afirmam Max e Danziato:
Com a formação do capitalismo imperialista, o mercado das drogas foi utilizado como ferramenta de dominação política e econômica. O império britânico promoveu, no século XIX, as Guerras do Ópio (1839 a 1842 e 1856 a 1860) contra a China, obrigando este país a receber como pagamento ópio em vez de prata na importação de chá. Outros países europeus, como França e Espanha, também impuseram o comércio de drogas às suas colônias na Indochina e Filipinas. Tais fatos revelam a função do Estado como agenciador da violência em função de seus interesses soberanos. (MAX; DANZIATO, 2015, p. 420)
De condutores da ampliação do comércio e do consumo de substâncias psicoativas, os Estados nacionais passaram a, pelo menos oficialmente, regulá-las ou coibi-las. A maconha, que tinha, para os colonizadores portugueses, na forma de linho-cânhamo, grande valor comercial e na fabricação de velas para os navios, estava também associada às práticas culturais dos negros escravos. Por este motivo, após a abolição da escravidão legalizada, o consumo de cannabis fica proscrito no Brasil por ser ligado aos já marginalizados. Importa notar que foi justamente a representação diplomática do Brasil que manifestou, perante a Liga das Nações em 1924, o repúdio à maconha como um risco social, em petição para que a cannabis fosse combatida mundialmente, como já se discutia a respeito do ópio (CFP, 2013). Muito antes de ser identificada aos movimentos contraculturais da década de 1960, quando a alcunha de “drogado” passa a carregar valor moral de vergonha e falência pessoal e social, os governos localizaram nas substâncias psicoativas um inimigo a ser combatido.
É que a esta altura, ao lado da associação ao álcool, as ameaçadoras rebeliões urbanas, expressivas da primeira geração de afrodescendentes, socialmente impedidos de qualquer integração e ascensão social via a participação produtiva, assumem uma condição ameaçadora, reforçando a associação do hábito do uso da maconha como “coisa de negros”, “desordeiros”, “marginais”, “criminosos”. Tal como a alcunha de “cachaceiro” a desqualificação social e moral imputada à condição de “maconheiro” antecipa e antecede, em mais de meio século, àquela caracterização que viria ser mais recentemente conhecida derivada do sucesso que essa droga viria angariar no âmbito da juventude de classe média, nos anos sessenta, ligada aos protestos políticos e comportamentais referidos na contracultura (MAX; DANZIATO, 2015, p. 23).
Antes disso, em 1910, na tentativa de fazer frente ao comércio de ópio entre a Inglaterra e a China, o governo dos Estados Unidos propõe, em conferência realizada em Haia, a proibição do uso não médico do ópio. A Inglaterra, visando desmantelar o domínio da Alemanha na produção industrial de cocaína, inclui na pauta que esta droga também seja “banida”. A partir daí, o “problema do ópio” é transformado no “problema das drogas”, que “atinge seu paroxismo a partir da ‘war on drugs’ declarada no governo Reagan [...], que declarava, no contexto da Guerra Fria, que o narcotráfico ao lado comunismo eram as principais ameaças aos EUA e ao hemisfério ocidental” (SANCHES; ROCHA, 2011, p. 78-79). O efeito da chamada “guerra às drogas”, uma guerra feita para ser mantida, mais do que para ser vencida, é a estratificação da sociedade a partir da categoria “drogado” e das subcategorias “cachaceiro”, “maconheiro” e, mais recentemente, “crackeiro”, com o apoio dos veículos de comunicação de massa para disseminar a ideia de uma epidemia que não se resume ao agente patogênico (a substância psicoativa, neste caso) e ao sofrimento pessoal (do doente-drogado), mas incorre na degeneração moral e social que ameaça destruir lares, bairros e cidades, bem como põe em risco a própria estrutura da sociedade ocidental[2]. A lógica proibicionista engendrou, assim, o mito das classes perigosas (COIMBRA, 2001) incorporado na ralé (SOUZA et al., 2009), como justificativa para o combate massivo ao mal personificado pelos negros, pobres, delinquentes.
Ao discurso da segurança pública (da propriedade privada) e da moralidade, somou-se nova justificativa para a suposta repressão ao uso de drogas: a patologização, decorrente da ampliação da esfera religiosa/moral para a esfera da biomedicina (ROMANINI; ROSO, 2013). A ênfase na dimensão “psicoativa” das substâncias e na noção de dependência química exclui a singularidade do sujeito e de sua relação histórica – diríamos, psicossocial – com os objetos-droga e com seu entorno. Com efeito, o final do século XX e o início do século XXI vêm radicalizando os discursos individualizantes, procurando marcadores biológicos para as adicções (ELKASHEF; VOCCI, 2003; SINHA, 2013). Tal esforço corresponde, a seu modo, à constituição da racionalidade moderna em que, mais além dos achados da genômica e da neurofisiologia, vemos florescer um discurso de responsabilização e de culpabilização individual, orientado para o controle dos riscos e para a gestão do não-normal/não-saudável (CASTIEL; DIAZ, 2007). A terapêutica possível nesse cenário não é senão a proposta da abstinência e da segregação (nas instituições asilares contemporâneas, as Comunidades Terapêuticas).
Conclui-se, assim, a síntese da questão das drogas que, com “a miséria econômica associada à marca de raça e de classe, antecipa o risco do desenvolvimento da miséria moral, condição de uma desqualificação plena daqueles indivíduos que não foram ‘fortes o bastante’, ‘resilientes’ e ‘sucumbiram ao mal’” (CFP, 2013, p. 24), em um movimento muito semelhante ao que ocorre com a temática do suicídio.
3. Suicídio, saber médico e responsabilidade
Não é “fato natural” o modo como compreendemos os comportamentos suicidas na atualidade. Em outros tempos e culturas, diversas foram as abordagens (filosóficas, morais, religiosas, jurídicas) sobre esta temática e nem sempre a condenaram. Uma importante inflexão, no entanto, ocorre no século IV, com a decisão de Constantino, no Concílio de Arles, de condenar os suicidas com o confisco de suas propriedades (DE LEO, 2012). O caráter político desta ação era notório, mas recoberto pelas assertivas de cunho teológico sobre o quinto mandamento (“não matarás”) que, desde Santo Agostinho, incluía a proibição à morte autoprovocada. Os mais de quinze séculos subsequentes só fizeram acentuar o estigma do suicídio como um grande mal. Mesmo eminentes estudiosos contemporâneos parecem não hesitar em fazer afirmações carregadas de juízos de valor, como bem vaticina De Leo (2012, p. 12): “O suicídio é a pior de todas as tragédias humanas. Não apenas representa a culminância de um sofrimento insuportável para o indivíduo, mas também significa uma dor perpétua e um questionamento torturante, infindável, para os que ficam.”
Os discursos religiosos no Ocidente imputaram ao suicida a responsabilidade por suas ações, pois provocar a própria morte era considerado uma ofensa aos desígnios divinos, uma negação ao dom da vida, um pecado. Como decorrências do ato ignominioso, assomavam a infâmia à desgraça para a família, à proibição de um sepultamento honroso e à privação dos bens (BASTOS, 2006; BERTOLOTE, 2012). Ainda que pudesse servir a interesses econômicos e políticos, o edifício ideológico e moral desta visão não conseguiu se sustentar sem críticas. Afinal, para muitas famílias abastadas e influentes, mas nem por isso imunes à ocorrência de suicídios entre seus membros, a possibilidade da destituição de seu renome e de suas riquezas tornava problemático o regime oficial. Assim, vimos serem erigidos novos discursos que advogavam que o suicídio não se tratava necessariamente de uma ação pela qual o indivíduo pudesse ser responsabilizado. Em verdade, os séculos XVII e XVIII produziram muitas e variadas formas de abordar o tema, mais ligadas aos valores humanísticos do que ao misticismo imperante na Igreja e no Estado absolutista (LOPES, 2008). A liberdade individual e os critérios de razoabilidade da morte voluntária foram os motes para questionar o estatuto do suicídio.
A modernidade trouxe consistência às teses clássicas sobre a imanência do psiquismo nos corpos físicos e, com os contratualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau, alavancou a organização da sociedade segundo padrões de racionalidade científica. Estes dois âmbitos – o da privacidade da consciência e o do discurso científico – instauraram modos de governo pretensamente inspirados no ideal de liberdade: da Razão, do mercado, da iniciativa individual. E, também, sugeriram um novo estatuto para o suicídio: a loucura sob o ponto de vista médico. A distinção entre loucura e razão convocou a classe médica a responder sobre as questões existenciais que os filósofos abriram, reelaborando, inclusive, a problemática da responsabilização:
Foi, portanto, a experiência médica científica social e masculina do século XIX que passou a ordenar os conceitos, as referências, os diagnósticos e os prognósticos em torno do suicídio, visando encontrar sua verdade total e final. Para que fosse legitimado, o saber médico recusou todos os discursos que não se enquadravam em tais perspectivas e orientações. Paulatinamente, como fruto de um minucioso processo, o saber médico rechaçou todo e qualquer saber sobre o suicídio que não fosse produzido no âmbito da medicina social, própria do século XIX (LOPES, 2008, p. 67).
Em um duplo e engenhoso movimento, se consolida a localização da “causa” do comportamento suicida (que leva ou não à morte) no indivíduo, ao mesmo tempo em que não o responsabiliza, pois agora tudo se deve à loucura, à alienação da razão. O louco, o homem tomado de paixão, é descrito como doente. É a doença, como outro-da-razão, quem decide pela morte. E se o sujeito não é, ele próprio, capaz de tomar decisões racionais, passa a ser plausível que um agente externo (o médico) seja autorizado a fazer de tudo para impedir a consumação do ato suicida.
Vemos repetir-se, então, com o tema do suicídio, uma série de assertivas que já havíamos aventado quando falávamos sobre a clínica e as políticas sobre drogas: 1) a proibição; 2) a identificação do suicida como “fraco”, pouco resiliente às agruras que a vida impõe; 3) a recomendação de vigilância constante e a internação como medida de tratamento, e 4) a supressão do reconhecimento da capacidade de fazer escolhas por si. Repete-se também, com o final do século XX e início do XXI, a busca por marcadores biológicos dos comportamentos suicidas (BREZO et al., 2008; JOINER et al., 2002).
A naturalização do discurso sobre as doenças mentais e sobre a melancolia incurável aos chamados Transtornos de Humor acaba por justificar um grande leque de ações e esforços de caráter preventivista por parte de governos e entidades transnacionais, tanto em grande escala, quanto no atendimento direto aos sujeitos considerados doentes. A noção de risco (materializada nos assim chamados “fatores de risco”) carrega, por certo, forte caráter disciplinar e biopolítico, como queremos discutir a seguir.
4. Biopolítica, risco e associação entre suicídio e uso de drogas
A noção de risco tem sido amplamente utilizada, sobretudo desde a eclosão da AIDS, associada inicialmente a grupos marginalizados que, pelo compartilhamento de seringas e agulhas para uso de drogas injetáveis e por fazerem sexo sem camisinha, foram identificados como mais suscetíveis ao contágio. Com o refinamento da ideia de grupos de risco para a de comportamentos de risco, vimos a preocupação com a gestão dos modos de vida se ampliar enormemente. Conforme Castiel e Diaz:
Os discursos sobre a saúde nunca se referem tão-somente a dimensões da saúde. Se tais discursos significam modos de pensar, escrever, falar sobre a saúde e suas práticas, é preciso situá-los em determinados momentos históricos e saber as razões por que se legitimam ao acompanharem a ordem econômica, política e social onde são gerados, sustentados e replicados e se ajustarem a ela. Discursos sobre a saúde (e, mais especificamente, sobre riscos à saúde) consistem em construções contingentes, de caráter normativo, inapelavelmente vinculadas a outros interesses. Dependem, explicitamente ou não, de definições sobre o que é ser humano, o tipo de sociedade que se almeja e os modos de atingi-la. (CASTIEL; DIAZ, 2007, p. 25)
As estratégias de prevenção e promoção de saúde ganham, a partir da segunda metade do século XX, um vulto nunca antes visto (CASTIEL, 2012). Não restam dúvidas que se trata, aqui, daquilo que Foucault denomina de anatomopolítica dos corpos e biopolítica das populações. O biopoder consiste na forma como, a partir da Época Clássica, ocorre uma transformação dos mecanismos de poder. Do poder do soberano para deixar viver e fazer morrer, surge uma perspectiva diversa: fazer viver ou abandonar à morte:
Concretamente, esse poder sobre a vida desenvolveu-se a partir do século XVII, em duas formas principais; que não são antitéticas e constituem, ao contrário, dois polos de desenvolvimento interligados por todo um feixe intermediário de relações. Um dos polos, o primeiro a ser formado, ao que parece, centrou-se no corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos – tudo isso assegurado por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas: anátomo-política do corpo humano. O segundo, que se formou um pouco mais tarde, por volta da metade do século XVIII, centrou-se no corpo-espécie, no corpo transpassado pela mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar; tais processos são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma bio-política da população. (FOUCAULT, 2012, p. 151-152, grifo do autor)
Como elemento indispensável à formação do capitalismo, a utilidade e a docilização dos corpos tornam a vida, em suas dimensões biológica, comportamental, social, no objeto da política. A biopolítica não é senão o modo pelo qual se buscou racionalizar, a partir do século XVIII, o governo dos fenômenos próprios da população (conjunto de viventes), tomando o indivíduo como máquina para produzir – bens, riquezas, outros indivíduos – e como corpo adestrável (FOUCAULT, 1994a; 1994b). O próprio Foucault cita o interesse da sociologia pelo tema do suicídio como exemplar da mentalidade biopolítica:
Não deve surpreender que o suicídio – outrora crime, pois era um modo de usurpar o direito de morte que somente os soberanos, o daqui debaixo ou o do além, tinham o direito de exercer – tenha-se tornado, no decorrer do século XIX, uma das primeiras condutas que entraram no campo da análise sociológica; ele fazia aparecer, nas fronteiras e nos interstícios do poder exercido sobre a vida, o direito individual e privado de morrer. Essa obstinação em morrer, tão estranha e contudo tão regular, tão constante em suas manifestações, portanto tampouco explicável pelas particularidades ou acidentes individuais, foi uma das primeiras surpresas de uma sociedade em que o poder político acabava de assumir a tarefa de gerir a vida. (FOUCAULT, 2012, p. 151)
A estratégia de normalização da sociedade atende a um duplo movimento, de individualização e totalização, característica do poder moderno (FOUCAULT, 1994b), efetivada nos procedimentos de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar (idem, 2012). As características dos discursos sobre uso de drogas e sobre suicídio, discutidas anteriormente, refletem com exatidão o caráter disciplinar e biopolítico, como explicitado no curso Em defesa da sociedade (idem, 2005). Enquanto as disciplinas, como a psiquiatria, tomam o corpo individual como objeto e suas ocorrências singulares, a biopolítica considera os fenômenos de massa, em série e de longa duração, o corpo múltiplo da população e o homem como pertencente a uma espécie biológica. Os mecanismos disciplinares de adestramento do corpo (vigilância hierárquica, exames individuais, exercícios repetitivos) são justamente os prescritos àqueles que apresentam comportamentos suicidas e/ou uso de substâncias psicoativas como formas de “tratamento” para o “mal” que os acomete. A finalidade, vale repetir, não é senão a de obter corpos economicamente úteis e politicamente dóceis.
A dimensão biopolítica do poder moderno, por sua vez, consiste na busca pelo equilíbrio da população, sua homeostase e sua regulação através de mecanismos de previsão, estimativa estatística e medidas globais. Um elemento central e articulador da biopolítica das populações é a ideia de antecipação de riscos, detecção precoce de casos, identificação de padrões populacionais definidos por curvas estatísticas que estabelecem padrões de normalidade e desvio (CAPONI, 2013). A identificação de fatores risco é considerada fundamental para definir políticas públicas de prevenção e antecipação de casos de suicídio. Tais fatores de risco são apresentados para a população como tendo valor preditivo. Características étnicas, etárias, sexo, condição socioeconômica, vínculos familiares e, sobretudo, uso de substâncias psicoativas e transtornos mentais são considerados preditores para a ocorrência de tentativas de suicídio. Importa notar, no entanto, que “o cálculo e a avaliação de riscos em diversas áreas da vida social informam pouco ou nada sobre a presença real de perigos ou ameaças e muito mais sobre as racionalidades, os interesses e os padrões culturais que organizam a percepção e a codificação de tais ameaças e medos” (MITJAVILA, 2015, p. 120). A codificação dos padrões culturais de normalidade sob a lógica dos fatores de risco permite inferir, de correlações estatísticas, relações causais. O salto interpretativo que atribui ao usuário de drogas uma maior probabilidade de cometer suicídio – tema deste estudo – estabelece uma sorte de futurologia baseada em um uso da epidemiologia, que perde seu valor heurístico ao ignorar o caráter retrospectivo dos estudos. A pergunta que se faz, visando estabelecer correlações estatísticas, é: daqueles que apresentaram comportamento suicida, quantos faziam uso de substâncias psicoativas? Não resulta difícil compreender que a resposta não indica que o uso de drogas causa suicídio, nem que determinada pessoa tem, especificamente, maior probabilidade de atentar contra a própria vida. Como atestam Castiel e Diaz (2007, p. 56-57):
A epidemiologia é um campo de conhecimentos necessários para o âmbito das análises e intervenções sanitárias. Mas está longe de ser suficiente como, por vezes, aparenta. Como disciplina empiricista, não consegue proporcionar compreensão satisfatória (nem assume sua fragilidade neste sentido) diante da complexa dinâmica entre a situação de saúde de pessoas/populações e as aceleradas mudanças socioculturais e subjetivas (que tendem a ser categorizadas de modo demasiadamente simplificador sob a égide das ‘variáveis psicossociais’), uma vez que tais variáveis se mostram ainda limitadamente inteligíveis. (CASTIEL; DIAZ, 2007, p. 56-57)
Não à toa, Castiel (2010) introduz o termo “epidemiopoder”, levando em conta a função normatizadora deste campo sobre seu objeto, a saúde e a vida das populações[3]. Trata-se do uso de um discurso lógico com a função de recolocar padrões e expectativas sociais e, consequentemente, descrever e catalogar comportamentos desviantes, sob uma linguagem medicalizada e aparentemente desprovida de julgamentos morais[4], mas que, em verdade, carrega forte dimensão culpabilizante:
Menciona-se o fato de os conhecimentos epidemiológicos não haverem sido transformados em políticas de mudança de comportamentos. Em relação à obesidade e ao tabagismo, entre outros problemas, o foco da questão se localiza na débil ‘força de vontade’ das pessoas, solapada pela força da adição ou do hábito. Para isto, é preciso educá-las para mudar comportamento de modo a viabilizar o ‘autocontrole’ para que se faça a prevenção, para não se ‘chegar tarde’ demais. O argumento se torna culpabilizante ao enfatizar que se deve facultar dimensões como a “autonomia responsável”, o “autodomínio de uma personalidade madura”. Ora, os que não têm autodomínio passam a ser vistos como “criaturas passivas, preguiçosas e conformistas”, destituídos da capacidade de realizar esforços, diante dos estímulos de contextos culturais inevitavelmente dominados por poderosas indústrias e empresas de comunicação. (CASTIEL; DIAZ, 2007, p. 26-27)
Esta forma de associar dois comportamentos considerados desviantes e socialmente inaceitáveis (o abuso de substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas e o suicídio) embasa uma série de ações (de saúde?) coercitivas com vistas ao aprofundamento dos modos de governo na contemporaneidade. Médicos, psicólogos, enfermeiros e assistentes sociais, entre outros, são alçados à tarefa de coibir e regular condutas que, segundo padrões morais, culturais e econômicos, colidem com as expectativas do “bem viver”. Não se trata, obviamente, de minimizar a relevância dos achados epidemiológicos sobre esta temática, nem sequer de ignorar o sofrimento com o qual os profissionais e os beneficiários de serviços de saúde se deparam, mas, sim, de depreender a função social de tais discursos e das práticas deles decorrentes na configuração de subjetividades (inclusive profissionais) no mundo contemporâneo.
5. Vida nua e perspectiva compreensiva da correlação estatística entre uso de drogas e suicídio
Prescindindo da abordagem causalista, que postula haver maior predisposição a comportamentos suicidas em pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas, que descreve este como “fator de risco” para aqueles, ainda resta propor hipóteses que elucidem a correlação estatística significativa entre um fenômeno e outro, deixando espaço para futuros estudos.
Ao contrário da perspectiva moderna que, como discutido anteriormente, é, ao mesmo tempo, totalizante e individualista, a proposta que ora se apresenta leva em conta os determinantes sociais – e, portanto, intersubjetivos – das experiências singulares, inclusive as de “adoecimento” (ALVES; RODRIGUES, 2010). Nossa intuição provisória, pois que carece de ser demonstrada, é a de que ambos os comportamentos tratados até aqui estão subsumidos a um mesmo olhar social e sujeitos a demandas comuns, descritas por Agamben (2004) sob o paradigma da “vida nua”, vida que não vale a pena ser vivida. O que sugerimos é que tanto os “drogados/dependentes químicos”, quanto os “suicidas/depressivos” são contados entre aqueles cuja existência, pela inaptidão em enquadrar-se ao sistema produtivo, são excluídos e, pari passu, englobados pelo regime de direitos e normas sociais. Como no caso do homo sacer, figura do direito romano arcaico, tornou-se justificável matar um traficante ou um morador de rua usuário de álcool ou crack – e com eles uma multidão de jovens negros e pobres – em função de um perigo que representam para a sociedade. Ou mesmo trancafiá-los, sem o devido julgamento, em instituições com suposta finalidade de tratamento (como hospitais psiquiátricos ou as chamadas comunidades terapêuticas) com características prisionais.
No que concerne ao suicídio e à expectativa de prevenção e evitação da morte, a proposição de uma vida nua está vinculada ao estatuto da loucura ou à doença mental atrelado ao suicídio. Ainda que o autoextermínio seja proibido pelas legislações nacionais, não é tomado como crime na ocorrência de agravos psiquiátricos, pois, ainda que submetido ao regime jurídico, o louco ou o doente já é considerado um “morto” para o direito, por estar apartado da Razão (BASTOS, 2006). Está fora do consenso social. Quem o vigiar, o aprisionar e o dissuadir, ainda que coercitivamente, não incorre em falta.
“O mais importante de tudo”, em nossa sociedade, “é aprender a estar de acordo”, profetiza Brecht (1988, p. 217). Falta grave é “dizer não” à vida moderada, regulada e configurada pelo estatuto da Modernidade e da produção de riqueza – seja por lançar-se às drogas, à morte, seja ao pensamento divergente.
Referências
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[1] Artigo derivado da dissertação de Diogo Boccardi, "Viver não é preciso: discursos sobre suicídio no século XXI", apresentada ao Programa de Mestrado Profissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial na Universidade Federal de Santa Catarina em 2018.
[2] “Em 1909, claramente, o governo dos EUA – conclamado pela delegação chinesa em Xangai a liderar ‘a grande cruzada moral do século XX’ em nome da ‘eterna lei do céu’, assim como da ‘consciência cristã’ – posicionou-se pela imediata proibição do uso não médico do ópio” (SCHEERER, 1993 apud SANCHES; ROCHA, 2011, p. 78).
[3] “O epidemiopoder ocupa um lugar hegemônico no confronto das definições que se autorizam para estabelecer as decisões quanto ao rumo ‘correto’ das políticas, dos arcabouços administrativos legais e institucionais e das ações, baseadas nos padrões ditados pela expertise técnica vigente. Mais ainda, o epidemiopoder participa ativamente da geração de uma cultura científica que configura nosso pensamento e a ideia que a sociedade moderna tem a seu respeito, com base em uma ética estatística da era técnica, baseada, sobretudo, na curva normal, sem nenhuma necessidade de se referir a qualquer imperativo ético de fato” (CASTIEL, 2010, p. 163).
[4] “Nesse sentido, é preciso levar em consideração que o comportamento desviante não existe em si mesmo; sua existência é sempre construída por referência a normas. Assim, para que um comportamento possa ser medicalizado, é necessário que seja previamente avaliado e classificado de acordo com algum parâmetro de normalidade. E a medicina, sem sombra de dúvidas, tem se convertido em uma gigantesca fábrica de normas sociais” (MITJAVILA, 2015, p. 130).