Introdução
No artigo Colonialidade e modernidade-racionalidade, de 1989, Aníbal Quijano vincula a colonialidade do poder nas esferas política e econômica à colonialidade do conhecimento. Segundo ele, trata-se de um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista, “e baseia-se na imposição de uma classificação racial/étnica da população mundial como a pedra angular desse padrão de poder e opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivos, da existência cotidiana e em escala social” (QUIJANO, 2014, p. 285).
A colonialidade seria, então, o modo mais geral de dominação no mundo atual, haja vista que o colonialismo como ordem política explícita foi destruído com os processos de descolonização. Porém, essa destruição não esgota as condições e nem as formas de exploração e dominação que existem entre as diversas populações do globo. Colonialidade é, assim, diferente de colonialismo. De acordo com Ballestrin (2003, p. 99-100), o conceito de colonialidade possui uma dupla pretensão. Por um lado, denuncia a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais. Por outro lado, possui uma capacidade explicativa que atualiza e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados, assimilados ou superados pela modernidade[1].
Para Mignolo (2017, p. 2), a colonialidade nomeia a lógica subjacente da fundação e do desdobramento da civilização ocidental desde o Renascimento até hoje, da qual colonialismos históricos têm sido uma dimensão constituinte, embora minimizada. Assim, a colonialidade foi concebida e explorada por Mignolo (2017) como “o lado mais escuro da modernidade”. De acordo com Walsh (2008, p. 136), a colonialidade concentra sua autoridade em quatro áreas ou eixos entrelaçados: do poder, do conhecimento, do ser, e, por fim, da mãe natureza e da própria vida. O primeiro eixo refere-se ao estabelecimento de um sistema de classificação social baseado na hierarquia racial e sexual, e na formação e distribuição de identidades sociais de superior a inferior: brancos, mestiços, índios, negros. É o uso da “raça” como um padrão de poder conflituoso e permanente que, desde a colônia até hoje, mantém uma escala de identidades sociais com o branco masculino no topo e os indígenas e negros nos degraus finais, estes últimos como identidades homogêneas e negativas (WALSH, 2008, p. 136).
O segundo eixo, a colonialidade do conhecimento, é o posicionamento do eurocentrismo como uma perspectiva única do conhecimento, que exclui a existência e a viabilidade de outras lógicas epistêmicas que não sejam a dos homens brancos europeus ou europeizados (WALSH, 2008, p. 137). Essa categoria conceitual refere-se especificamente às formas de controle do conhecimento associadas à geopolítica global traçada pela colonialidade do poder. Nesse sentido, o eurocentrismo funciona como um lócus epistêmico no qual se constrói um modelo de conhecimento que universaliza a experiência local europeia como modelo a seguir e indicam seus dispositivos de conhecimento universalmente válidos.
A colonialidade do ser é aquela que é exercida através da inferiorização, subalternização e desumanização. Ela aponta a relação entre razão/racionalidade e humanidade, isto é, os mais humanos são aqueles que fazem parte da racionalidade formal, a racionalidade modernidade concebida a partir do indivíduo “civilizado” (WALSH, 2008, p. 138). A colonialidade do ser, proposta por Maldonado-Torres (2007), entende a modernidade como uma conquista permanente na qual o constructo “raça” vem justificar a prolongação da guerra, que permite o avassalamento total da humanidade do outro. O autor aponta a relação entre a colonialidade do saber e do ser, sustentando que é a partir da centralidade do conhecimento na modernidade que se pode produzir uma desqualificação epistêmica do outro. Tal desqualificação representa uma tentativa de negação ontológica.
O quarto eixo é a colonialidade da natureza. Ela é a que se “fixa na diferença binária cartesiana entre homem/natureza, categorizando como não modernas, primitivas e pagãs as relações espirituais e sagradas, que conectam os mundos de cima para baixo, com a terra e com os ancestrais como seres vivos” (WALSH, 2008, p. 135). A colonialidade da natureza é entendida tanto como resultado da construção no interior da modernidade de formas econômico-instrumentais de se pensar e explorar o meio ambiente, quanto como expressão de processos concretos de expropriação territorial que sustentam a lógica prevalecente da acumulação capitalista e mantém em funcionamento o sistema-mundo colonial (ASSIS, 2014, p. 615), e que envolve, por exemplo, a produção de riquezas através das monoculturas, como no caso da Estação Florestal[2], posteriormente Parque Florestal Manoel Enrique da Silva.
No Parque, o que orienta os trabalhos do silvicultor Ernesto da Silva Araújo é a silvicultura[3] científica, a qual surgiu na Alemanha no final do século XVIII e fundamentou várias escolas de silvicultura em todo o mundo, visando a criação de reservas florestais sob o controle do Estado, que tinham como objetivo a produção madeireira. Na direção de uma produção sustentada de madeira, baseada numa ideia regular e sistemática da floresta, as obras de Georg Ludwig Hartig (1764–1837) e Heinrich Cotta (1763-1844) constituíram textos clássicos. Ambos desenvolveram uma metodologia de tratamento dos povoamentos, cuja prática florestal incluía o inventário, o cálculo da produção, a subdivisão, a regulação e organização das matas, que deveriam ser geridas durante seu ciclo a partir de instrumentos mais eficientes de gestão e planejamento, tal como “a matemática florestal quantitativa”, elaborada com base nos três princípios quantitativos que moldaram o campo da ciência florestal: diversidade mínima, cálculo fiscal e rentabilidade assegurada (IORIS, 2014, p. 103). Essa perspectiva de gestão florestal científica levou à produção de florestas monocultoras (árvores da mesma espécie e da mesma idade), e que se tornaram um modelo a ser seguido no mundo todo para ordenar uma natureza desprovida de ciência, de simetria.
Neste texto, tomamos a silvicultura científica como um agente da modernização que reorganiza progressivamente os grandes domínios do mundo social e do mundo natural do Parque, sujeitando-os a novas formas de controle.
A ciência e a simplificação radical
As plantações de Araucaria angustifolia, para além das preocupações econômicas do INP, são possibilidades de se colocar e se ordenar o espaço. A diversidade de tempos, os tocos, as curvas, as ondulações, as cores, o inço, as formigas, as perdizes, a geada, as vertentes de água, o sombreamento, o raizame e as taquaras, vão sendo substituídos pelas linhas retas dos talhões. Como resultado, o que se pretendia era uma paisagem hegemônica.
Do ponto de vista técnico, por talhonamento se entende as atividades de divisão da área a ser plantada em unidades, os talhões. Nesse processo, medidas exatas de distanciamento das mudas são pré-definidas. No planejamento da área a ser plantada, a sua divisão deverá ser feita de tal forma que haja a seleção dos melhores locais para o plantio. Mas, mais do que a divisão, planejamento e seleção de áreas de um terreno a ser plantado em unidades, o talhão é a expressão da matematização da terra. A matemática é efeito e agente de uma forma de pensar e, portanto, uma forma de representar e de operar no mundo. É a linguagem matemática dos talhões que materializa, neste contexto, o modo como ela serve ao capital, possibilitando o aproveitamento econômico da natureza ao máximo, e levando ao mínimo os custos de produção.
Ao analisarmos o FINPI[4] do talhão 21, sabemos que ele foi plantado em junho de 1953 com 206.842 covas. De acordo com o documento, o seu terreno era de campo sujo, com ocorrência de vassourinha e árvores mais grossas, que foram derrubadas a trator. Esse terreno passou por um processo de limpeza e esquadrinhamento: de terreno composto com capoeira grossa ele se transforma em talhão. No conjunto de operações pelas quais passou, podemos dizer que ele foi matematizado. Vejamos: ele é escolhido, desbravado, roçado, destocado, encoivarado, queimado, gradeado, piqueteado, alinhado, coveado e, finalmente, plantado.
O talhão 11, plantado em maio de 1953, é outro exemplo da disciplinarização do espaço no Parque. De acordo com o seu FINPI, essa área já havia sido plantada em 1947, mas o seu plantio foi destruído em 1952 pela geada. A leitura do documento indica que o plantio antigo havia sido feito em terreno bruto, composto de capoeiras e remanescentes de pinheiros. O plantio ficou vários anos abandonado, “coberto de vegetação arbórea com predominância de vassourinha, tupichava composta e tiguera. Após desbravamento total, com destoca a trator, aração e gradagem, ele foi replantado em 1953” (FINPI, talhão 11). As expressões utilizadas (terreno bruto, terreno sujo, vassourinha, tupichava composta, tigüera) implicam “a observação de coisas e sujeitos que parecem abalar as classes estabelecidas – e é precisamente nessas frestas que se situam as poluições” (DOUGLAS, 2010). Por outro lado, as expressões aração e gradagem indicam o seu aplainamento.
Mary Douglas (2010) utiliza o exemplo da poluição e, em particular, de nossa percepção sobre o que conta como “sujo”. Segundo ela, nossas concepções sobre “sujeira” são “compostas de duas coisas: cuidado com a higiene e respeito pelas convenções”. (DOUGLAS, 2010). A autora argumenta que a sujeira ofende a ordem, mas que não existe nada que se possa chamar de sujeira absoluta. A sujeira é “matéria fora de lugar” e “não vemos nada de errado com a terra que encontramos no jardim, mas ela ‘não está no lugar certo’ quando a encontramos no tapete da sala” (DOUGLAS, 2010, p. 12). Assim, a geada, a vassourinha, a brutalidade do terreno, a tiguera, estão no lugar errado, haja vista que formam o caos ao qual se quer dar ordem.
Os ecossistemas dessas paisagens, caóticos na ótica do capital, vão sendo ordenados geometricamente por aparatos mecânicos que os aplainam, que os delimitam e os funcionalizam em claras porções aráveis, controláveis, para assegurar divisas[5] segundo os desígnios da valorização econômica e da cobiça da civilização capitalista (GIRALDO, 2013, p. 34). Cria-se, então, uma floresta[6] racionalizada, homogênea e alinhada. A natureza já não é aquela que controla os homens; agora se trata do seu inverso: o homem como senhor e possuidor da mesma. Consolida-se, com o advento da ciência moderna, o desejo pela ordem e pela criação de um método seguro, que garanta a chegada ao conhecimento e, justo por isso, o domínio humano sobre a natureza (HENNING, 2019, p. 769).
Como assegura Leff (2004, p. XIV), o conhecimento já não apenas nomeia, descreve, explica ou compreende a realidade. A ciência e a tecnologia moderna alteram, transtornam e desequilibram o mundo que buscam conhecer; intervêm na natureza, recodificando-a, capitalizando-a, sobreeconomizando-a, convertendo-a em um recurso útil para a produção. No caso do Parque isso valia para os pinheiros cientificamente plantados. Tocos e refugos de pinheiros explorados desordenadamente, ou pinheiros misturados com outras espécies de grande porte, embora de menos valor econômico, como imbuias, bracatinga, monjoleiros, canelas, cerejeira e araçá, por exemplo, representam a sujeira, um inconveniente. A sua limpeza ou derrubada são consideradas um processo antieconômico, conforme podemos ler no Relatório de 1960. Além disso, Ernesto de Araújo dizia que, quando se pretende plantar em terreno de capoeira natural, devem-se eliminar todos os pinheiros existentes para facilitar a limpeza por meio do fogo (ARAÚJO, 1960, p. 1ss).
Assim, como resultado desse processo, temos o que Tsing (2019, p. 59, grifo do original) chama de “ciência das plantations”, cujo bem-estar é uma fórmula calculada a partir de cima e o dano colateral é esperado. Vemos, então, “nesta caminhada do sistema agroecológico capitalista, um movimento em direção à simplificação radical, a monocultura, que conjugou a ciência moderna e sua aplicação aos problemas agrícolas” (WORSTER, 2003, p. 35). Contudo, mesmo a tríade economia, ciência e tecnologia tendo sido fundamental na colonização da natureza (ACHINTE; ROSERO, 2016, p. 29), de maneira geral, e no Parque de maneira particular, os problemas não deixaram de se fazer presentes.
Ao lermos os relatórios de Ernesto Araújo e os FINPIs dos talhões, nos deparamos com vários desses problemas, ou vulnerabilidades, como nos diz Worster (2003). Segundo ele, as vulnerabilidades inerentes à monocultura moderna incluem:
[...] um grau sem precedentes de suscetibilidades à doença, à depredação e às explosões populacionais de pragas; uma elevada instabilidade total do sistema; uma tendência constante do administrador humano em se arriscar por lucros de curto prazo [...]; uma dependência crescente dos substitutos tecnológicos dos produtos das plantas e dos animais; uma dependência dos insumos químicos que muitas vezes têm sido altamente tóxicos aos humanos e a outros organismos; [...]. (WORSTER, 2003, p. 38)
Ao longo dos documentos, encontramos vários exemplos dessas vulnerabilidades, sendo que a maior delas eram as formigas, cujas incontáveis tentativas de extinção representam um exemplo da luta constante do silvicultor contra a natureza insubmissa. No final não se sabe se o silvicultor acabou com as saúvas, mas o que sabemos é que elas acabavam encarecendo a mão de obra, uma de suas reclamações. No primeiro relatório redigido por Ernesto da Silva Araújo, datado de 1950, ele fazia as autoridades saberem que “São regulares os prejuízos provocados por formiga saúva e quem-quem nas plantações de pinheiro, principalmente na primeira fase de desenvolvimento; um operário é encarregado de combate às mesmas, o que é feito empregando-se bi-sulfureto de carbono com máquina agri-defesa” (ARAÚJO, 1950, p. 3).
O talhão 20 foi plantado em junho de 1953 com 246 mil covas. Em novembro de 1955 foi feita uma contagem, que indicou a presença de 194.523 pés. Quatro anos depois esse número era de 110 mil, haja vista que “sofreu com as secas e também sofreu com a presença de formigas” (FINPI do talhão 20). O talhão 10, de 8,5 hectares, foi plantado com 85 mil covas em julho de 1953. Três anos depois uma contagem indicou a presença de 38.584 pés (percentual de falhas de 55%). O grande problema desse talhão foram as formigas: entre outubro de 1953 e fevereiro de 1956 foram feitas nove tentativas de extinção. Mas nenhum talhão sofreu tanto com as formigas quanto o talhão 13, de 1954. Ele era um “terreno de capoeira grossa com presença forte de taquara, plantado em agosto de 1954 com exatas 91.461 covas” (FINPI do talhão 13). Em 1959, restavam apenas 30.270 pés (perda de 64%). O problema se fazia notar de tal maneira que, entre setembro de 1954 e março de 1958, foram 15 tentativas de exterminar a saúva e a quem-quem.
Outro problema recorrente eram as chuvas. Exemplos são os talhões 14 e 16, ambos plantados em 1950, com, respectivamente, 60 e 200 mil covas. Em uma folha anexa ao FINPI do talhão 14, podemos ler que “Nas manchas de represamento da água das chuvas e vertentes houve perda total dos pinheiros nascidos. A insistência do replantio nestas manchas foram negativas” (FINPI do talhão 14). Este erro de redação poderia, eventualmente, ser creditado a um problema simples de concordância. Contudo, ao analisar melhor a situação, somos levados a crer que não se tratava apenas disso. A expressão “A insistência” indica que foi uma vez que se tentou replantar os pinheiros. Contudo, o final da frase (“foram negativas”) nos leva a pensar que houve mais do que uma tentativa. Assim, “insistência” e “replantio” caracterizam a “tendência em apostar alto contra a natureza” (WORSTER, 2003, p. 38).
A partir do FINPI do talhão 16, sabemos que, entre abril de 1952 e julho de 1959, foram realizados três desbastes nas zonas onde a densidade da chuva era forte. O talhão apresentava, porém, zonas em que as falhas são quase totais em decorrência do excesso de umidade por ocasião de chuvas abundantes. Diante disso, nos perguntamos: que racionalidade é essa, quanto de científico existe na ideia de se plantar em áreas de represamento de água? E mais. Replantar na mesma área quando a primeira plantação morre? Seria a insistência no replantio uma constante aposta contra a natureza, “num esforço febril para evitar o insucesso”? (WORSTER, 2003, p. 38).
Outro exemplo desse “esforço febril” é o talhão 18, plantado em junho de 1950 com 90 mil covas. Igual a muitos outros terrenos, esse também era de campo sujo, com parte de capoeira alta e uma parte baixa sujeita à estagnação de água em época de chuvas abundantes. O plantio foi abandonado em 1951, haja vista o grande número de mortes causadas pelo excesso de sombra. Depois de passar por um investimento de tempo e dinheiro, o plantio no talhão 18 foi abandonado por causa das mortes causadas pelo excesso de sombra (FINPI do talhão 18). Além disso, ele também foi “bastante prejudicado por formiga saúva ou mineira” (FINPI do talhão 18). Dessa forma, o abandono ou o completo replantio dos talhões, representa uma vitória de quem? Da racionalidade instrumental do silvicultor ou da natureza? Assim, “[...] o outro lado deste impressionante sucesso [da monocultura] foi (e é) uma tendência em apostar alto contra a natureza, em elevar as apostas constantemente [...] e por vezes, perder a aposta e perder muito” (WORSTER, 2003, p. 38).
Além das formigas, perdizes, taquara, geadas, tocos, raizame, tiguera, enchentes, inços e o sombreamento, em 1959, ocorreu o ataque em vários talhões da larva Laspeyresia sp., “[...] intensamente disseminada pelas zonas de ocorrência natural dessa conífera no Sul do Brasil” (ARAÚJO, 1960, p. 9). Segundo Ernesto Araújo, as primeiras observações da praga foram feitas em maio de 1959 quando do desbaste do talhão 17, plantado em 1950. A situação estava tão séria que o Ministério da Agricultura, mediante contrato com o INP, chegou a vir para Irati para realizar um tratamento nos plantios com polvilhamento aéreo com helicóptero[7].
A colonialidade do ser e do saber
Em 1950 foi redigido o primeiro relatório a respeito da situação do Parque. Na página 2 do relatório lemos que:
Primitivamente, a área da fazenda era coberta de maciços florestais que continham pinheiros, imbuia, cedro, herva-mate e outras essências em menor quantidade, exploradas intensamente durante os últimos 20 anos, restando desta derrubada, hoje, capoeiras altas e alguns remanescentes de Araucária e Phoebe porosa deixados por imprestáveis para a serraria. (ARAÚJO, 1950, p. 2)
Logo de início, Ernesto Araújo nos diz que “Primitivamente, a área era coberta [...]”. Do que ela era coberta nós sabemos pelo relatório, mas não sabemos ao que, exatamente, se refere o “primitivamente”. Poderia ser, em hipótese, anteriormente? Nesse caso, a que, ou a qual, anterior ele se referia: a um passado muito distante ou ao tempo mais próximo, que seria possível ver seus vestígios logo após a compra das terras pelo INP? Ao longo desse, e de outros relatórios, somos levados a crer que o “primitivamente” estava mais perto do que pensávamos. Na verdade, o silvicultor empreendeu uma batalha pessoal contra tudo o que ele considerava primitivo, seja dentro ou fora do Parque, em um processo de “colonialização de tudo”.
Continuando a leitura do relatório, sabemos que os maciços florestais “continham pinheiros, imbuia, cedro, erva-mate e outras essências em menor quantidade” e que “foram explorados intensamente nos últimos 20 anos”, ou seja, desde meados da década de 1920. E mais. O que restou dos maciços florestais foi “deixado por imprestáveis para a serraria”. O que existe antes da compra das terras pelo INP, mesmo que tenha sido feito sob uma lógica de exploração intensa ou desordenada, como ele diz em outros relatórios, tal como feito pelas serrarias, é descaracterizado: o que importa para Ernesto da Silva Araújo, o silvicultor, é a nova racionalidade, a racionalidade da gerência, da uniformização, do quadriculamento, do plantio e da exploração ordenada.
Além disso:
Antes da aquisição pelo INP a fazenda foi ocupada em várias áreas com culturas agrícolas esporádicas. A parte da fazenda que era de propriedade dos Chuchene apresenta grande área coberta por campo nativo que foi usada como pastagens de engorda do gado e, portanto, submetida anualmente ao fogo. (ARAÚJO, 1950, p. 2)
Aqui, novamente, assim como da utilização da expressão primitivamente, acima, temos a sua tentativa da marcação dos tempos: o que havia antes eram as culturas esporádicas, pastagens de engorda do gado e terras submetidas ao fogo. O que temos agora é a racionalidade da silvicultura científica e a busca da lucratividade, expressas na monocultura de Araucária angustifólia e na geometria dos talhões. Não sabemos quais culturas esporádicas eram plantadas. Teria sido esquecimento do silvicultor? Ou seriam tão insignificantes que não merecem sequer serem mencionadas? Contudo, mesmo que as culturas esporádicas fossem feitas pelo antigo proprietário da fazenda, não invalida a sua ideia: o que foi feito “antes”, pelo “antigo” proprietário, não conta. Talvez, no máximo, sirvam para indicar o que não deva ser feito daqui por diante: pastagens e engorda de gado.
Contudo, primitiva era, ainda, a forma como a antiga administração fazia os registros da então Estação Florestal. Assim, podemos notar também certo desprezo, ou quem sabe, desconfiança, pela forma como o Parque foi administrado antes dele. Parece-nos que tudo estava a ser feito nas terras, e que a administração anterior deixou muito a desejar. É a partir de sua administração, por exemplo, que os talhões são registrados, bem como os trabalhos neles realizados passam a ser devidamente registrados e relatados à Diretoria Regional do INP, em Curitiba.
A frase do relatório “Entretanto, os dados relativos ao período anterior à nossa gerência são baseados em informações colhidas aqui e ali” (ARAÚJO, 1950, p. 6), indica que a administração anterior não tinha sido cuidadosa em relação aos registros, de maneira geral, mas principalmente a respeito de cálculos das áreas dos talhões, uma vez que eles estavam “aqui” e “ali”, ou seja, dispersos em registros ou mesmo na memória dos trabalhadores mais antigos, a quem o silvicultor teve que recorrer para saber mais a respeito das plantações e das terras. Ora, a racionalidade a ser implantada não podia se contentar com registros dispersos, informações que estavam “aqui” e “ali”, ou na memória de uns e outros, mas devem estar sistematizadas e organizadas.
Essa nova racionalidade devia ser aplicada também aos vizinhos. Um primeiro grupo de vizinhos é aquele que tem áreas contíguas ao parque. Ao levantar a questão das dificuldades para a realização dos plantios, principalmente por causa da cobertura vegetal das terras do Parque (poucos terrenos limpos de capoeira ou livres de troncos e de árvores grandes), Ernesto Araújo dizia que seria melhor se concentrar apenas em plantios onde já havia um preparo mínimo da terra, bem como nos tratos culturais dos já plantados. Contudo, “se o Instituto conseguisse, realmente, controlar as áreas de maciços puros pertencentes a particulares ou que esses, espontaneamente, submetessem seus trabalhos a um plano racional de corte” (ARAÚJO, 1950, p. 1), seria possível ampliar a quantidade dos plantios.
Outro grupo de vizinhos era o dos “moradores dos arredores [que] têm o mau hábito de criações soltas” (ARAÚJO, 1950, p. 3), Segundo o relatório, foram reformadas as cercas antigas e construídos exatos 5.825 metros de cerca nova. Por isso, o gado dos vizinhos não causava mais danos nas plantações, como acontecia anteriormente. Porém, porcos e outros animais pequenos que continuavam a invadir as plantações, eram mortos. É o Parque e sua forma de organização/administração, materializada na pessoa do silvicultor, que marca a divisão dos tempos: antes o gado entrava, agora não entra mais. O Parque, por assim dizer, cria uma disciplina, e “a disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. A disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo” (FOUCAULT, 1987, p. 168).
Assim, o que se pretende é cada qual no seu lugar, e separados por uma cerca, que define lugares a serem ocupados nessa nova racionalidade. Há uma cerca e ela deve ser respeitada, seja por quem for. Porém, observamos que nem todos os animais respeitavam a nova racionalidade expressa nas cercas: porcos e outros animais pequenos continuam entrando, e, por isso eram eliminados.
Mas, primitivas não eram apenas a terra antes da compra pelo INP, os registros da estação e os plantios dos vizinhos. Primitivos eram também seus trabalhadores, “os elementos humanos da região”, os caboclos e seus costumes arraigados[8], conforme podemos ler no mesmo relatório. Com certo pesar, Ernesto Araújo escreve que procurava melhorar os trabalhadores do Parque com saúde e educação, mas que não estava tendo muito progresso, “principalmente, pela desconfiança com que o elemento humano dessa região, o caboclo, analisa tudo que é contrário aos seus costumes primitivos e arraigados” (ARAÚJO, 1950, p. 5).
Neste fragmento do relatório se espraia toda a lógica da racionalidade que move nosso silvicultor. O seu discurso, e principalmente a sua prática, estão operando dentro de uma lógica de subalternização do “outro”[9]. E o relatório diz mais. Dizia que, em 1949, o número de trabalhadores de campo foi reduzido: de 62 passou para 35. Aqueles 62 trabalhadores recebiam “ordenados que variavam de C$18,00, C$20,00 e C$23,00 por dia e estavam em completa indisciplina de trabalho, comparecendo ao serviço quando bem entendiam” (ARAÚJO, 1950, p. 5).
Esses mesmos trabalhadores eram, também, muito caros, conforme podemos observar nos relatórios de 1953, 1958 e 1960. No caso de 1953[11], o processo de desbravamento[10] de alguns terrenos acabou ficando muito caro por causa da grande quantidade de pinheiros que existiam, os quais foram aproveitados para toras através do serviço braçal. Já em 1958, o preparo de alguns terrenos encareceu ainda mais porque, além de se perder muito material lenhoso, com o fogo, por exemplo, os plantios tiveram que ser feitos “no toco”. A destoca, logo após a derrubada da mata, principalmente a de pinheiro, também era impraticável por conta dos tratores que o Parque possuía, conforme veremos abaixo. Por isso, as áreas de plantio diminuíam, enquanto os serviços manuais de preparo ficavam mais caros[12].
Em 1960, após detalhar os procedimentos de preparo do terreno do talhão 28 (derrubada, queima e encoivaramento), Ernesto Araújo dizia que a explicação desse processo era necessária para ressaltar os inconvenientes do plantio de pinhão em terrenos sujos. Por isso, as diversas operações de preparação do terreno ficavam caras e demoradas; havia também a necessidade de exterminação de formigueiros, que iam se formando no raizame e tocos. Todo esse trabalho era realizado com a mão de obra de trabalhadores do Parque, “mais cara, porque sujeita ao regime de 8 horas e salário família” (ARAÚJO, 1960, p. 2). As reclamações do silvicultor não eram dirigidas apenas contra o preço da mão de obra. Elas também eram dirigidas aos tratores e implementos que possuíam, e que começaram a chegar em 1952.
A mecanização e a colonialidade da natureza
No caso do Parque, e de acordo com Ernesto da Silva de Araújo, com a mecanização seria possível preparar um terreno, ou limpá-lo, de forma mais rápida e econômica. Contudo, a persistência de práticas tidas como atrasadas, como a plantação “no toco”, indicam que nem tudo se resolvia com a técnica e o trator.
O FINPI do talhão 28 apresenta uma série de detalhes do terreno e de sua preparação para o plantio, em julho de 1957. Esse terreno apresentava capoeira e tiguera, em sua maior extensão. Essa parte foi roçada, queimada e destocada com grade pesada, a Rome Plow. Outra parte do terreno era composta de capoeira grossa mesclada com pinheiros. Nessa parte, ele foi roçado, encoivarado e queimado em várias parcelas. Em ambas, o plantio foi realizado “no toco”. Como vemos, o terreno era de capoeira e tiguera, e capoeira grossa e pinheiros noutra parte. Essa composição chama atenção pela presença de tiguera, que resulta dos restos de uma plantação de milho, mas que também pode ser entendida como vegetação baixa, mais rala, mas não menos daninha, pelo menos de acordo com a silvicultura científica. Por isso, deve ser eliminada pela roçada e pela queimada. A outra composição do terreno foi queimada, destocada, depois encoivarada e novamente queimada. O plantio em ambas foi feito “no toco”.
Estamos em 1957 e Ernesto da Silva Araújo é o administrador do Parque desde 1949, quando começa a implantar a silvicultura científica, e o que nos chama a atenção são as técnicas que ainda utiliza para a preparação do terreno: roçada, queimada e coivara; e para a plantação: o plantio “no toco”. Comumente, essas são técnicas utilizadas por indígenas, negros, populações pobres de maneira geral; pelos caboclos, que ele chama de primitivos. São parte, dessa forma, de uma agricultura tida como irracional, do cultivo da terra feito através de métodos considerados “arcaicos”, que não se utilizam de preceitos científicos ou maquinário agrícola.
Causa surpresa, então, que, em se tratando de plantações levadas a efeito sob as premissas da silvicultura científica, e que ele está no parque há oito anos, quase todas as plantações foram feitas com essas técnicas[13]. Diante disso, podemos nos perguntar: seria essa técnica utilizada pelos moradores locais, o caboclo, o elemento humano da região, primitivo e arraigado em seus costumes? Se for, por que então se utilizar de uma técnica primitiva para plantação baseada na silvicultura científica, como aponta o próprio silvicultor em seu relatório de 1952[14]?
No caso do Parque e seu silvicultor, a mecanização[15] poderia ser a chave para desbravar os segredos de sua natureza. A chegada de tratores, em 1952/1953, está envolta em demoras e promessas da Divisão de Florestamento e Reflorestamento do INP, que comprometia a preparação dos terrenos para o plantio. Contudo, aquilo que parecia ser a salvação, se transformou em pesadelo. Um trator chegou em abril de 1952, mas veio sem o arado e só começou a trabalhar dias depois. Logo depois, ele apresentou vários problemas e ficou mais de um mês parado. Assim, sem saber quando o trator poderia iniciar os trabalhos, Ernesto Araújo decidiu plantar em uma área já preparada e deixar o restante para 1953 (ARAÚJO, 1952, p. 3-4).
Em 1953, o Parque possuía três tratores[16], uma maquinaria que esbarra em vários problemas, como era o caso do trator John Deere, modelo “R”, que servia para aração, mas apenas quando o terreno permitia (ARAÚJO, 1952, 6). Ao descrever como foi realizado o serviço de desbravamento do talhão 11, em 1952, Ernesto Araújo conta que o seu desbravamento constou de derrubada de árvores, inclusive pinheiros, destoca e retirada de toras. Contudo, o trator Allis Chalmers não conseguia realizar o serviço sozinho, precisando do “auxílio de braços” para cavar em torno dos pinheiros e cortando as raízes laterais (ARAÚJO, 1952, 6).
Em 1953, Ernesto da Silva Araújo relatava à DRF que estava conseguindo realizar o plantio de acordo com o planejado, graças ao auxílio dos tratores que chegaram. Segundo ele, isso vinha provar a eficiência e a rapidez da mecanização nas operações de preparo de terrenos. Porém, elas ainda eram caras, principalmente por causa da natureza dos terrenos trabalhados, geralmente cobertos de capoeira grossa e grande quantidade de tocos, principalmente de pinheiros (ARAÚJO, 1953, 1). A mecanização, assim, enroscava nos tipos de terrenos existentes no Parque e indicava, na verdade, a inadequação dos tratores no processo de desbravamento.
Em 1954, na descrição do que era um processo de desbravamento, Ernesto Araújo nos diz que o desbravamento manual corresponde às operações de ajuntamento de raizame e tocos pequenos para queima ou remoção por meio de carroças, e no trabalho auxiliar na derrubada de pinheiros e árvores de grande porte, serviço que o trator HD-5, o Allis Chalmers equipado com “bulldozer”[17], não consegue fazer sozinho (ARAÚJO, 1954, p. 2). A expressão “fazer sozinho” pode nos levar a pensar em sua onipotência, que o trator tem a qualidade de um ser com capacidade ilimitada para fazer qualquer coisa, mas não. Sua onipotência é colocada em xeque pelo terreno, uma vez que o trator de esteiras só consegue fazer, sozinho, serviços que a natureza permite.
Diante disso, e seguindo a racionalidade instrumental, nada melhor para resolver o problema dos terrenos do que ter mais tratores, só que mais possantes e melhor equipados. Assim, Ernesto Araújo pedia, em 1953, dois tratores equipados com “bulldozer”: um para os trabalhos de destoca e derrubadas mais pesadas, e outro, menos possante, para a destoca mais leve e serviço de limpeza de área, tal como o arrastamento de tocos e árvores para fora da zona a ser beneficiada (ARAÚJO, 1953, p. 1).
Contudo, a técnica e a mecanização, símbolos do pensamento do silvicultor, esbarram nas condições objetivas dos terrenos do Parque, de forma que para se poder prepará-los para os plantios, era necessário o braço dos trabalhadores. A ordem e a simetria que tanto se desejava, às quais o trator daria materialização, encontravam uma série de complicadores para se efetivar e expressavam várias contradições. Essas contradições se tornaram mais visíveis em 1954. Mesmo com três tratores, os serviços de preparação dos terrenos, bem como a limpeza dos talhões, não eram realizados sem os braços dos trabalhadores caboclos.
No relatório referente ao período de setembro de 1953 a março de 1954, Ernesto Araújo dá conta de que a área que estava sendo desbravada havia sido derrubada desordenadamente e depois queimada para agricultura, tornando-se impossível o aproveitamento total para lenha. Além de fazer essa crítica ao que considera uma derrubada desordenada e à agricultura, ele nos diz que seria necessário “derrubar parte de um capão de mato para corrigir as linhas do futuro talhão [...]” (ARAÚJO, 1954, p. 2). O relatório continua e nos apresenta outra dificuldade: a grande quantidade de nós de pinho, cuja retirada era indispensável devido à futura limpeza mecanizada.
Ao lermos o relatório, somos levados a problematizar qual seria a ideia de uma derrubada desordenada. Seria aquela feita pelas serrarias desde a década de 1920? Mas somos levados a pensar, também, que exista uma derrubada ordenada. Nesse caso, qual seria? Seria a derrubada das matas segundo a silvicultura científica? Seria aquela que, a partir do momento em que foi efetivada, bem como os futuros talhões, daria ordem ao caos?
A possível resposta, podemos encontrar no texto de Edmundo Navarro de Andrade, quando na década de 1920 faz a defesa do reflorestamento. Para ele:
O que é preciso, indispensável mesmo, é cuidar do reflorestamento do nosso país [...]. Precisamos pensar em matas uniformes, homogêneas, de uma só, ou de reduzido número de espécies, cuja exploração possa ser, mais tarde, feita segundo as regras da silvicultura e cujos lucros correspondam aos que se podem e devem obter da cultura florestal, sem o processo bárbaro de derrubar muitas árvores para aproveitar alguns metros cúbicos de uma determinada essência e sem a necessidade de vender, a um preço irrisório, como lenha, madeira de inestimável valor. (ANDRADE, 1923, p. 13-14)
Outros problemas aparecem e vão mostrando as contradições, tanto da monocultura que se pretende com os plantios de pinheiro, como das dificuldades em realizar os serviços de “limpeza”. Uma tentativa em limpar parte do talhão 17 teve que ser abandonada, uma vez que “a grade do disco lesava a parte inferior do pinheiro” (ARAÚJO, 1954, p. 3). A limpeza com a Rotary Hoe, ainda no talhão 17, também não teve muito sucesso. Segundo o relatório, esse trabalho, embora perfeito, era moroso, e poderia ser suplantado pelo trator GH, que era mais econômico e muito mais rápido. Contudo, o trabalho continuou sendo feito pela Rotary Hoe, que gastou no serviço nove dias. A justificativa? O terreno estava tão sujo de mato que o mesmo embaraçava-se nas enxadinhas da máquina, tornando-se necessário, a qualquer momento, limpá-la.
Os talhões 1,11 e 21 revelam mais contradições da mecanização. Em todos eles o mato cobria as linhas de pinheiros, e se, anteriormente as tentativas de limpeza foram feitas com grade animal e Rotary Hoe, agora ela foi feita com o trator GH. E aqui, novamente, a natureza complicou a tecnologia. Em primeiro lugar, houve a necessidade de um ajudante para ir balizando as linhas com taquara. Depois, o espaçamento em que foram plantados os pinheiros não dava “regulagem para o trator”, não permitindo a limpeza cruzada. A solução foi passar o trator apenas nas linhas de dois metros, sendo o restante deixado para ser feito a enxada.
Observamos, dessa forma, que mesmo a mecanização, a técnica e a racionalidade universal do capital não dão conta de determinados tipos de cobertura vegetal. Por exemplo: a limpeza do talhão 11, de 44,45 hectares, e plantado com 222.728 covas em 1953, foi feita, segundo o FINPI do talhão, com carpideira animal e trator GH nas entrelinhas, completando-se o serviço com a enxada. Outro exemplo da (ir)racionalidade da simplificação radical, isto é, a monocultura, foi o espaçamento do talhão 17, plantado em junho de 1950. No seu FINPI, lemos que foi realizado um desbaste por conta do compasso curto entre as linhas. Em 1954 foi realizado outro desbaste, ficando o compasso acima de 0,50 centímetros – inicialmente ele era de 2 x 0,20 metros – entre as plantas.
Assim, várias questões apresentadas no relatório fazem-nos pensar na racionalidade, ou como nos diz Dussel (2001, apud ACHINTE; ROSERO, 2016, p. 30) “a irracionalidade da racionalidade ocidental”, do negócio do Parque: talhões cobertos de mato, em cujas linhas o trator não consegue se locomover sozinho, necessitando de um balizamento a taquara, um trator que não dá regulagem, espaçamentos que não dão no tamanho do trator, a limpeza mecanizada que não pode ser feita sem a retirada do nó de pinho[18], uma máquina de limpeza que precisa ser limpa a cada instante porque se enrosca no mato, e espaçamentos muito pequenos e que precisam ser aumentados, depois, à custa da eliminação de pinheiros.
Aqui, somos inclinados a pensar que, mais uma vez, o gerenciamento não deu certo: quem planta com um espaçamento sabendo que é pequeno? Quem planta para depois ralear? Quem planta para posteriormente eliminar pinheiros? Que racionalidade é essa que planta 217 mil covas pinheiro e depois elimina 70 mil pés, como foi o caso do talhão 28, plantado em junho de 1959? Por outro lado, somos levados a pensar que, de forma nenhuma, se negociava com a natureza. À ela se impõe uma lógica e se segue nela do começo ao fim, mesmo que isso não dê certo, isto é, que a natureza “diga” outra coisa. Em suma, parece que tudo caminhava a taquara e compasso[19] pelas bandas do Parque, e a enxada, a coivara, o “toco” e a taquara, antes símbolos do atraso frente à glorificação da figura do trator e do arado, é que conseguiam “salvar a lavoura”.
Em 1960, o Parque possuía quatro tratores, um a mais do que em 1953, o trator Hoeard Twelve com enxada rotativa (PAES LEME, 1961, p. 4). Contudo, devido à natureza das terras a serem preparadas, eles trabalharam poucas horas. É interessante observar que a lógica dos “danos colaterais esperados” (TSING, 2019) que é aplicada, por exemplo, aos pinheiros que não se desenvolveram satisfatoriamente e são eliminados nos processos de desbaste, também vale para os tratores e implementos do Parque.
Fernão Paes Leme, em relatório de 1961 – o único assinado por ele – é muito direto em suas palavras. Segundo ele, os arados e os tratores não seriam mais utilizados no parque dada a natureza da cobertura do solo. Dessa forma, os tratores John Deere GH, com o respectivo implemento, e o trator Hoeard Twelve poderiam ser vendidos ou transferidos para outros serviços “por não terem mais serventia neste parque”, por “serem impróprios aos nossos serviços de reflorestamento” (PAES LEME, 1961, p. 4).
Como vemos, o trator é uma entidade enquanto serve. Depois, dependendo do terreno, é impróprio e pode ser vendido. O trator, símbolo do progresso, se torna impróprio para os trabalhos do Parque, assim como a política de mecanização dos serviços de reflorestamento do INP tenha sido, de acordo com Fernão Paes Leme, “mal planejada e mal distribuída pelos parques do INP” (PAES LEME, 1961, p. 4).
Considerações finais
Sustentamos ao longo do texto que processo de transformação da fazenda em Parque foi mediado pelo conceito da colonialidade. Ocorreu não apenas a colonização da natureza, mas também do saber e do ser. O processo não foi apenas econômico, foi também do imaginário. Assim, mesmo que os resultados esperados não tenham sido alcançados na sua totalidade, ou que tenham passado por uma série de dificuldades, a natureza foi transformada de forma a dar lugar aos talhões, à monocultura do pinheiro-do-paraná.
O processo de transformação da fazenda em Parque Florestal, em 1946, foi marcado pela colonialidade, uma vez que a ideia de “parque” já é uma expressão dessa colonização. Os talhões, com sua linguagem matemática, deram forma a uma terra, a fazenda, que, primitivamente, era composta de capoeiras, campos de engorda de gado, terras de agricultura submetidas ao fogo e tocos e restos de madeiras imprestáveis para as serrarias.
Depois, com o Parque, lugares com formigueiros, taquara, tiguera e tocos imprestáveis, que sofriam com as chuvas, com a seca, com as geadas e com as perdizes, vão ganhando forma com a ajuda de arados, grades, cultivadores, riscadores, enxada rotativa e tratores. A técnica e a mecanização trabalhavam juntas nesse processo de colonialização da natureza. Nem sempre, ressalta-se, com a vitória dos primeiros.
Quase tudo se modifica no Parque. A construção de cercas, por exemplo, não só tentava impedir animais de entrarem nos plantios, como também marcava os lugares de cada um, e os porcos e outros animais pequenos que não entendiam essa nova racionalidade acabavam mortos quando as ultrapassam. É o recurso da eliminação que, inclusive, acontece com os pinheirinhos que não alcançam determinado crescimento, mesmo que tenham sido plantados em lugares com sombreamento denso ou em lugares de represamento de água. Descartados são também os trabalhadores, que passam de 62 a 35, uma vez que “viviam em completa indisciplina de trabalho”. Eliminados seriam também os tratores e implementos que não serviam mais aos processos de desbravamento do Parque.
Derrubar as matas, ordenar as terras, plantar em linhas, quadricular o espaço, eliminar animais, afastar as pessoas, pinheiros e tratores, são exemplos do pensamento antropocêntrico, próprio do legado do pensamento ocidental em relação à natureza. Ou seja, um conhecimento específico, o ocidental, é tido como conhecimento objetivo e universal, e se expressa na idéia de controle, de dominação. Essa pretensão de controle pode ser notada no dualismo entre o homem e a natureza, em que esta última passou a ser a inimiga daquele e, por isso, deve ser subjugada. A natureza, transformada em terra[20], “[...] e tudo que ela contém, passa de força a coisa.” (SILVA, 1997, p. 20, grifo do autor). O controle da natureza implica a anulação de sua atividade, de seu fazer-se por si só, o que dá através da técnica, com a qual o silvicultor está identificado.
A natureza do Parque, fonte/possibilidade de riqueza, era também um obstáculo ao seu progresso e modernização, dada a sua composição de curvas, ondulações, águas, pragas e animais, que tiveram que ser explorados e igualmente dominados pela racionalidade que se instaurava. Contudo, além de mutilar, simplificar e esquadrinhar a natureza, a expertise das monoculturas quer provar a todo instante que está certa, “num esforço febril para evitar o insucesso” (Worster, 2003). Por outro lado, mesmo com as altas apostas em favor da técnica e da mecanização, o Parque caminhava a taquara e compasso, sendo que em muitos talhões quem dava as cartas eram as saúvas e as quem-quem.
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