Introdução
São Paulo, 10 de março de 1976. Os agentes do Serviço Nacional de Informação (SNI) interceptaram, violaram e reproduziram uma correspondência destinada à Therezinha Zerbine, líder do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA). Segundo o documento produzido nesse órgão, os agentes locais receberam informações do setor de segurança da Empresa de Correios e Telégrafos, na área de Controle do Tráfego Postal de São Paulo a partir da intercepção da carta. Dessa forma, a Comunidade de Informação levantou uma série de dados sobre a troca de correspondência entre Zerbine e ativistas dos direitos humanos residentes na Suécia, Europa.
No documento foram registrados os contatos entre Therezinha Zerbine e representantes do Brasiliem Kommittén, doravante Comitê Sueco pela Anistia no Brasil, da cidade de Lund.[1] Em outro trecho do mesmo documento, foi apresentado um detalhe fundamental: essa carta foi apreendida do “original da correspondência em anexo, que após ter sido aberta e xerocopiada, voltou ao fluxo normal dos Correios” (INFORMAÇÃO [...], 1976, p. [2]).
Segundo os analistas do SNI, a correspondência foi enviada por J. Monteiro, responsável pelo Comitê Sueco pela Anistia no Brasil, e tratava dos preparativos da visita de Zerbine ao país escandinavo. Nesse sentido, a narrativa da Comunidade de Informação sugere que a finalidade da visita de Therezinha Zerbine seria promover “um grande desenvolvimento da campanha contra o Brasil no exterior, notadamente na Suécia” (INFORMAÇÃO [..., 1976, p. [2-3]).
Na missiva interceptada foram apresentados relatos de contatos com entidades de defesa de direitos humanos e diversos partidos políticos suecos. Em outro trecho, há detalhes sobre a campanha de coleta de assinaturas realizada pelos integrantes do Comitê Sueco. Por fim, o representante do Comitê indica que deveriam constar no itinerário de divulgação da campanha as cidades Estocolmo, Gotemburgo e Lund (INFORMAÇÃO [...], 1976, p. [3]).
Entre 1975 e 1977, enquanto no Brasil, o MFPA tentava ampliar sua rede de núcleos pelos estados, do outro lado do Atlântico, diversos brasileiros, exilados e banidos, também intensificavam sua atuação nas mobilizações pela Anistia. Salienta-se que, desde 1964, existiam iniciativas no exterior de solidariedade aos atingidos pela repressão política no Brasil.
Inicialmente, os milhares de quilômetros entre Brasil e Europa deram a sensação de segurança aos exilados. O fato de estarem supostamente protegidos e distantes dos órgãos de repressão permitiu a diferentes grupos de brasileiros retomar sua militância política. No entanto, apesar de distantes, tais indivíduos continuaram no “radar” dos órgãos de informação. Contudo, antes de apresentar as organizações e os discursos no exterior, é importante destacar a origem dos chamados Movimentos pela Anistia.
No Brasil e no exterior: repressão sem fronteiras
O surgimento do Movimento Feminino pela Anistia (MFPA) coincide com duas datas especiais. A primeira foi a celebração do Ano Internacional da Mulher, em 1975, ano escolhido pela Organização das Nações Unidas (ONU) para realizar eventos sobre o papel transformador da mulher nas sociedades. A segunda, como observa Carla Rodeghero (2014), referia-se às comemorações dos 30 anos da Anistia, após o fim da Ditadura do Estado Novo (1937-1945). Ambas as celebrações, nos planos interno e externo, permeariam as ações da MFPA.
Em 1975, a ONU organizou a primeira Conferência Internacional sobre as Mulheres, realizada na Cidade do México. Como representante das mulheres brasileiras, Zerbine discursou durante o evento. Segundo Ana Rita Fonteles Duarte (2019), participar de um ato da ONU, um dos marcos do Ano Internacional da Mulher, serviu de inspiração e deu visibilidade para a futura líder das militantes da Anistia. De fato, pouco depois, em 23 de junho de 1975, Zerbine reuniu-se com um grupo de mulheres em São Paulo e fundou o Movimento Feminino pela Anistia. Esse seria o primeiro de muitos núcleos que o MFPA teria pelo Brasil.
A criação da MFPA foi um primeiro episódio dos chamados Movimentos pela Anistia, que entre 1975 e 1979, representaram a unificação e a convergência das oposições para uma pauta comum: a luta pela Anistia.
Pedro Ernesto Fagundes (2019), define os Movimentos pela Anistia como um conjunto de personagens e entidades que, na segunda metade da década de 1970, protagonizaram uma série de ações – com diferentes volumes, intensidade e ritmos – reivindicando a redemocratização do país, no geral, e a Anistia, em especial. Suas atuações ocorreram de forma assimétrica, fragmentada, descentralizada e com intensidades diferentes. Uma de suas marcas principais, tratava-se da pluralidade. Esse aspecto abriu possibilidades para que no interior dos “Movimentos” surgissem iniciativas individuais e coletivas que, mesmo com sintonias diferentes, buscassem uma solução em comum: a Anistia.
É possível afirmar que na primeira linha das entidades que compuseram os Movimentos estavam o MFPA, os comitês de exilados no exterior, os grupos de familiares de presos políticos, o Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA) e as entidades estudantis. Sem estabelecer gradações ou nivelamentos em relação às entidades citadas acima, afirmamos que todas – ressalvadas sempre suas particularidades e dessemelhanças – foram legítimas protagonistas das mobilizações pela Anistia.
Nesse cenário de mobilizações os comitês de exilados no exterior se destacaram. Durante a Ditadura, uma das maiores preocupações do governo militar era com a “imagem do Brasil” no exterior. Em decorrência disso, foram criados ou remodelados órgãos da Comunidade de Informação, direcionados exclusivamente à tarefa de acompanhar as atividades dos exilados, assim como as manifestações e intercâmbios de brasileiros com entidades, imprensa e personalidades estrangeiras. Isto posto, apresentamos a seguir a estrutura repressiva da Ditadura utilizada para monitorar esses setores.
Como indica o acervo do SNI, custodiado no Arquivo Nacional (AN), mesmo em outro continente, as iniciativas dos exilados continuaram sendo vigiadas pelos agentes da Comunidade de Informação. Segundo esses documentos, foram monitoradas tanto as atividades de solidariedade organizadas por estrangeiros quanto as iniciativas protagonizadas por brasileiros no exílio.
Trocas de correspondência, eventos, viagens, congressos, publicações e manifestações estiveram na mira dos agentes dos órgãos de informação. Em síntese, qualquer atividade que pudesse causar constrangimento ao governo no exterior.
A partir da análise do fundo documental do SNI, é possível afirmar que as atividades dos exilados na Europa, sobretudo em Portugal e na França, foram os alvos preferenciais dos documentos produzidos pela Comunidade de Informação.
Antes de prosseguir, é importante destacar dois pontos relativos a essa conjuntura: os milhares de brasileiros que recorreram ao exílio como forma de sobrevivência e os órgãos de informação voltados para acompanhar, especificamente, a atuação desses militantes fora do Brasil. Ambos, o exílio e a vigilância no exterior, foram eventos que ocorreram simultaneamente.
O exílio sob o olhar da Comunidade de Informação
O exílio foi uma alternativa para os opositores à Ditadura driblarem as perseguições e a repressão instaurada no Brasil no pós-1964, garantindo-lhes sobrevivência física e liberdade de atuação política.
Denise Rollemberg (1999) indica a existência de duas gerações de exilados ao longo da Ditadura brasileira, a “Geração 1964” e a “Geração 1968”. A primeira, é composta, majoritariamente, por parlamentares cassados, sindicalistas e militantes estudantis que saíram do país no imediato pós-golpe de 1964. Enquanto a segunda, é formada, sobretudo, por líderes estudantis e outros cidadãos que deixaram o Brasil após 1968, como consequência do AI-5. Muitos dos integrantes da chamada “Geração de 68” tiveram passagem nas organizações da Luta Armada e, posteriormente, foram presos, torturados e banidos do território nacional.
Depois do AI-5, instaurado em 13 de dezembro de 1968, o quadro político tornou-se ainda mais complexo. Nesse ambiente autoritário, seria possível aos militares suspender o direito ao habeas corpus, processar civis, julgar os acusados de crimes políticos em tribunas militares, demitir, remover, aposentar funcionários civis, militares, juízes e decretar Estado de Sítio sem restrições. Essa situação adversa resultou na saída forçada de uma grande leva de brasileiros para o exterior.
Inicialmente, como ressalta Rollemberg (1999), o maior contingente dos exilados brasileiros procurou abrigo nos países do Cone Sul, notadamente, Uruguai, Argentina e Chile. Entretanto, com a destituição do governo chileno de Salvador Allende, após um golpe militar, em 1973, a maioria dos exilados buscou novo refúgio, especialmente, no continente europeu. Foi exatamente nesse contexto que se intensificaram as mobilizações pela Anistia na Europa.
Desde 1964, a movimentação dos “opositores do regime” no exterior despertou a preocupação da cúpula do governo militar. Tal fato motivou a criação de órgãos de informações exclusivos para atuarem fora do país. Inicialmente, a missão de monitorar os “maus brasileiros” além das fronteiras foi realizada por dois órgãos de vigilância: o Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a Divisão de Segurança e Informação do Ministério das Relações Exteriores (DSI/MRE).
Como indica Carlos Fico (2001), a estruturação da chamada “Comunidade de Informação” teve início nas primeiras medidas pós-golpe. Logo que tomaram o poder, os militares criaram um órgão voltado à vigilância, ao monitoramento e ao controle político de atividades que representassem oposição de alguma natureza ao regime instaurado no Brasil. Em 13 de junho de 1964 surgia o SNI, através da Lei nº. 4.341/1964. Posteriormente, a espionagem realizada se estendeu também para vigiar opositores no exterior. Para cumprir essa missão, em 1966, foi criado o Centro de Informações do Exterior (CIEX), no interior do Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty).
Em tese, o objetivo desse órgão era monitorar possíveis casos de corrupção e a atuação de “comunistas” dentro e fora do país. Na prática, de acordo com pesquisa realizada por Pio Penna Filho (2008), no acervo do CIEX, o modus operandi do Centro era essencialmente semelhante ao de outras agências da Comunidade de Informação atuantes na época. Com base na documentação disponível, Penna Filho (2008) afirma, ainda, que os agentes do órgão, durante quase vinte anos de atividade, produziram mais de oito mil páginas de documentos entre relatórios, telegramas e informes. Durante essa fase inicial, os alvos prioritários do CIEX eram ex-parlamentares, sindicalistas e militantes estudantis que viviam em países do Cone Sul.
Como mencionado, o golpe de Estado chileno alterou profundamente a situação política na região. Em 1973, com apoio da maioria das Forças Armadas e de setores civis, o general Augusto Pinochet liderou um golpe contra o governo do presidente Salvador Allende. O cenário pós-golpe no Chile modificou abruptamente a situação dos exilados brasileiros que procuraram abrigo na Europa. Por essas razões, os agentes da Comunidade de Informação no exterior acabaram concentrando suas ações de espionagem no continente europeu e não mais na América do Sul.
Em 1967, com vista a consolidar e ampliar o campo de atuação da Comunidade de Informação foram criadas as chamadas Divisões de Segurança e Informação (DSI),[2] que deveriam atuar no interior dos órgãos governamentais. Essas agências foram implantadas em inúmeros segmentos da estrutura estatal: ministérios civis, ministérios militares, autarquias, fundações e outras instituições públicas. Entre as inúmeras DSIs, uma das mais importantes e ativas funcionou no Ministério das Relações Exteriores, a mencionada DSI/MRE.
Durante a década de 1970, o CIEX e a DSI/MRE concentraram seus esforços de vigilância nas atividades realizadas por brasileiros na Europa, principalmente durante o período das mobilizações pela Anistia. Nessa conjuntura, sublinha-se que uma das prioridades dos militares foi conter a divulgação de informações negativas sobre o Brasil na comunidade internacional, sobretudo, referentes a denúncias de tortura e morte de opositores. Como expresso, o adensamento das atividades dos comitês pela Europa resultou no incremento da elaboração de documentos sigilosos sobre as mobilizações pela Anistia
Em regra, para os analistas dos órgãos de informação, as atividades dos exilados pretendiam “constranger” e “prejudicar a imagem” do governo brasileiro. Por conseguinte, a partir de 1975, os comitês de Anistia no exterior, tornaram-se tema recorrente nos documentos da Comunidade de Informação.
Na sequência, trataremos dos contatos e da importância do discurso transnacional sobre direitos humanos para os Movimentos de Anistia.
Uma rede internacional de solidariedade aos brasileiros
Desde os anos finais da década de 1960, surgiram denúncias sobre violações dos direitos humanos praticadas pelo governo brasileiro contra opositores políticos, na Europa e nos Estados Unidos, destacam Denise Rollemberg (1999) e James Green (2009). A divulgação das acusações foi possível a partir da troca de informações entre ativistas brasileiros, sobretudo, de grupos religiosos e partidos políticos e entidades acadêmicas do exterior.
Nos Estados Unidos, James Green (2009) relata que desde a década de 1960, emergiram grupos voltados para divulgar o quadro repressivo brasileiro. Com esse intuito, escolas, universidades e igrejas serviram de palco para palestras e conferências sobre a temática. Inclusive, durante a visita oficial do presidente Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) a Washington, D.C., em 1971, foram realizados protestos e apresentações artísticas contra a presença do mandatário brasileiro (GREEN, 2009, p. 366-375). [3]
Contudo, o agravamento do cenário repressivo interno, após o AI-5, alertou a comunidade internacional sobre casos de perseguição a intelectuais, religiosos e parlamentares. Assim, ganhou corpo uma rede internacional de solidariedade, materializada em moções de repúdio, cartas, impressos, notas oficiais, enfim, uma variedade de iniciativas que denunciavam as graves violações cometidas pelo governo militar.
Em um segundo momento, durante os anos iniciais da década de 1970, surgiram documentos nominando torturadores. Igualmente, o acúmulo dos relatos de ex-presos políticos chegando à Europa permitiu que novas denúncias sobre o funcionamento de centros, técnicas e instrumentos de tortura circulassem na comunidade internacional. Durante essa fase, foi fundamental a solidariedade de organizações estrangeiras, em especial, da Amnesty International e do Tribunal Bertrand Russell II.
A Amnesty International, doravante Anistia Internacional (AI), surgiu na Inglaterra, em 1961, a partir da iniciativa do advogado Peter Benenson. Nesse momento, a organização notabilizou-se por coordenar campanhas internacionais contra os abusos e violações dos direitos humanos. Rollemberg (1999, p. 250) define a entidade como “uma organização mundial que atua na defesa dos direitos individuais fundamentais, independentemente de todo governo, partido político ou religião”. Tal instituição defendia soluções pacíficas, sem uso da violência, como alternativa para superar os regimes autoritários.
A primeira menção ao Brasil em um documento da Anistia Internacional surgiu no Relatório Anual datado de junho de 1966 a maio de 1967. Esse relatório denunciava prisões e perseguições infligidas aos membros da oposição à Ditadura brasileira. Em 1972, a AI publicou um dos mais contundentes documentos sobre as violações dos direitos humanos da época, o Relatório sobre as acusações de tortura no Brasil (ROLLEMBERG, 1999, p. 251).
A partir dessa iniciativa, os hierarcas do governo militar passaram a considerar a entidade “inimiga externa” do Brasil. Adiante, em 1977, o esforço da AI foi reconhecido com o Prêmio Nobel da Paz por sua campanha contra a tortura. Ainda, em 1978, a entidade foi agraciada com o Prêmio dos Direitos Humanos, na ONU. Outro espaço igualmente importante para a rede de solidariedade transnacional foi o chamado Tribunal Bertrand Russell II.
A trajetória do Tribunal Bertrand Russell teve início durante a década de 1960. Nessa conjuntura, em razão da Guerra do Vietnã, o filósofo britânico Bertrand Russell organizou, em 15 de novembro de 1966, um tribunal de opinião: o primeiro Tribunal Bertrand Russell. Seu objetivo era denunciar os crimes de guerra cometidos contra a população vietnamita pelo Exército dos Estados Unidos. Assim, sua característica central foi a defesa moral dos direitos humanos (ROLLEMBERG, 1999, p. 233). A edição inaugural do Tribunal Bertrand Russell, conhecido também como “Tribunal Internacional para os Crimes de Guerra”, teve sua primeira atuação em Estocolmo, em 12 de maio de 1967, sob a presidência de Jean Paul Sartre, filósofo e ativista francês.
Mais tarde, diante da escalada repressiva das ditaduras militares e, sobretudo, das denúncias de graves violações dos direitos humanos feitas por exilados, Lelio Basso, jurista, professor e senador do Partido Socialista Italiano (PSI), conduziu o chamado “Tribunal Bertrand Russel II para a repressão no Brasil, Chile e América Latina” (ROLLEMBERG, 1999, p. 233). Assim, em 1973, durante os debates do Tribunal Bertrand Russel II foram organizadas sessões específicas para tratar das violações dos direitos humanos na região.
Ainda sob coordenação de Lelio Basso, em 1974, houve uma nova sessão do Tribunal Bertrand Russel II em Roma. O tema central do evento foi a situação chilena pós-golpe militar de 1973. Por conseguinte, o foco dos debates foram denúncias dos exilados chilenos contra o ditador Augusto Pinochet (1973-1990). Por fim, entre 10 e 17 de janeiro de 1976, novamente em Roma, foi realizada a 3ª sessão do Tribunal Bertrand Russel II (ROLLEMBERG, 1999, p. 243).
As edições do Tribunal Bertrand Russel se configuraram em um espaço de “radicalização” das denúncias de torturas, mortes e desaparecimentos cometidos pelas ditaduras latino-americanas, além de espaço de troca de experiências e de formação política dos exilados brasileiros (ROLLEMBERG, 1999, p. 243). Inicialmente na França, esse apoio e intercâmbio foram fundamentais para a articulação dos comitês na Europa e sua interação com os Movimentos pela Anistia no Brasil.
Rompendo fronteiras: os Comitês pela Anistia na Europa
O primeiro Comitê pela Anistia no Brasil, criado na Europa, surgiu em 1975, na capital da França. A cidade de Paris recebeu, em 10 de maio de 1975, dezenas de exilados brasileiros e cidadãos franceses, representando organizações partidárias, sindicatos, igrejas, durante o lançamento do Comite Brésil pour L’Amnistie, doravante Comitê Brasil pela Anistia (CBA).
Maud Chirio (2004) investigou a trajetória política, profissional e intelectual dos exilados na França. Com base em entrevistas e documentos, a pesquisadora francesa procurou traçar um perfil dos brasileiros que se refugiaram em seu país no pós-1973. As articulações dos grupos de esquerda do Brasil entre seus conterrâneos e com outras organizações estrangeiras foram um dos temas de seu trabalho.
Através do manifesto/programa, publicado nas páginas do chamado Brésil Dossier (CAMPAGNE […], 1976, p. 1) – órgão informativo do CBA de Paris – os ativistas reivindicavam o desmonte do aparato repressivo brasileiro, em especial, dos centros de tortura (CHIRIO, 2004). Se, internamente, o governo militar, por meio da censura, da propaganda política e da repressão, tentava minimizar as denúncias sobre as graves violações dos direitos humanos, as mobilizações dos exilados conseguiam romper esses obstáculos divulgando sem filtros no cenário transnacional a situação repressiva brasileira.
Entre os destaques do documento do CBA de Paris, salientam-se aqueles que, futuramente, fariam parte da pauta de reivindicações dos Movimentos pela Anistia no Brasil, especialmente, da agenda política do Comitê Brasileiro pela Anistia (CBA), entidade criada, em 1978, no Brasil. Dos pontos em comum, cabe destacar a libertação de todos os presos políticos, o restabelecimento do habeas corpus, o retorno dos exilados e banidos, a revogação das cassações dos direitos políticos, a supressão da pena de morte e a imediata suspensão e proibição de julgamentos de civis em tribunais militares.
Destarte, os contatos entre os militantes das oposições foram fundamentais para as mobilizações pela Anistia – no exterior e no Brasil. Nesse território transnacional foram construídas redes de solidariedade que deixaram marcas particulares e identitárias, sobretudo, na elaboração dos discursos em defesa dos direitos humanos. Nesse sentido, essas mobilizações influenciaram o acúmulo de lutas políticas em nível nacional e global, num movimento de retroalimentação. As diferentes escalas de ação se encontram interconectadas, permitindo uma oxigenação política das esquerdas brasileiras. Outro canal de transmissão surgiu através do intermédio de agentes de circulação (personagens políticos, livros, cartas e, principalmente, jornais) das bandeiras dos direitos humanos.
Sobre essa questão, Denise Rollemberg (1999) pondera, que nos países da Europa Ocidental o clima de relativa liberdade política favoreceu os contatos entre setores da esquerda brasileira e da esquerda europeia. A partir desse intercâmbio, parte dos exilados brasileiros iniciou um processo de transformação de suas concepções políticas.
Na França, essa renovação das esquerdas foi uma das principais consequências do movimento conhecido por “maio de 1968”. Entre os brasileiros, essa transformação trouxe novas demandas em torno de temas como meio ambiente, feminismo, direitos das minorias (negros e homossexuais) e, de forma ampla, dos direitos humanos. Como resultado do fluxo de exilados brasileiros, observa-se o movimento de reformulação das esquerdas sobre as chamadas “questões democráticas”. Isto é, essa experiência transnacional refletiu na mudança de discurso e nas mobilizações pela Anistia na França, sobretudo, em Paris. Desta forma, entre os exilados, o intercâmbio na Europa resultou na entrada de questões dos direitos humanos na agenda política das esquerdas brasileiras (ROLLEMBERG, 1999, p. 233-245).
Conforme analisamos, o CBA de Paris foi o catalisador de outros comitês congêneres em diferentes países europeus. Entre 1975 e 1977, surgiram entidades análogas em Portugal, na Itália, na Alemanha Ocidental, na Bélgica e na Suécia. Todas elas adotaram, como orientação política, os preceitos do manifesto/programa do CBA francês, especialmente quanto ao discurso sobre os direitos humanos. Nessa fase, os militantes portugueses estiveram entre os mais ativos. Os exilados brasileiros em Portugal, dentro da mesma linha combativa do comitê instalado na França, organizaram-se e criaram o Comitê Pró-Anistia Geral no Brasil (CAB). Por razões históricas e culturais, durante a década de 1970, Portugal foi o destino preferencial da maioria dos exilados brasileiros.
A origem do CAB, inscreve-se no cenário da chamada Revolução dos Cravos. Também conhecida como Revolução de 25 de abril, esse movimento político e social marcou, em 1974, o fim do regime ditatorial em Portugal (MARTINHO, 2013). O denominado “Estado Novo Português”, iniciado em 1933 e comandado por António de Oliveira Salazar, foi um regime autoritário que defendeu o isolamento português e a manutenção das colônias lusas.
Após a morte de Salazar, em 1970, as bases de seu legado foram mantidas pelo sucessor, Marcelo Caetano. Contudo, distúrbios políticos entre membros das Forças Armadas e dificuldades decorrentes da crise econômica abalaram essas bases. Nesse contexto, setores militares iniciaram um movimento que culminou na formação, em 26 de abril de 1974, da Junta de Salvação Nacional (MARTINHO, 2013).
Apesar da instabilidade política, em 25 de abril de 1975, ocorreram eleições diretas para a Assembleia Nacional, evento que marcou o processo de reconstitucionalização do país. O Partido Socialista (PS), vencedor do pleito, comandou os debates da Assembleia Constituinte. Esse fato abriu caminho para a democratização do país (MARTINHO, 2013). Finalmente, em 1976, a Constituição portuguesa foi aprovada e passou a balizar as medidas adotadas durante o governo do socialista Mário Soares (1976-1985). Em suma, esses episódios marcaram o início da transição política. Foi nesse cenário que os exilados brasileiros iniciaram as articulações para a fundação do CAB.
Um elemento que merece ser ressaltado foi a preocupação do governo brasileiro com a existência de atividades políticas de militantes em Portugal. Américo Freire (2011) destaca tentativas de setores da Embaixada brasileira em Lisboa para realizar pactos com o governo português por meio do corpo diplomático. O objetivo dos contatos foi discutir questões relativas à diplomacia, ao controle e à fiscalização da atuação dos exilados.
A preocupação em controlar as atividades políticas dos exilados foi proporcional à afluência de brasileiros em Portugal. Sobre esse aspecto, Américo Freire (2017) afirma que o fluxo de exilados no país se tornou mais intenso entre 1975 e 1979, em decorrência dos acontecimentos que marcaram o Golpe Militar no Chile, em 1973, e a Revolução dos Cravos portuguesa, em 1974. Nessa época, segundo o autor, integrantes da “geração 64” e da “geração 68” acentuaram seu trânsito em Portugal. Neste trabalho, analisamos que a criação do CAB consolidou as afinidades entre militantes da esquerda portuguesa e brasileira.
Simultaneamente ao crescimento das ações do Comitê, surgiram inúmeros documentos dos integrantes da Comunidade de Informação sobre tais atividades. Por exemplo, em 30 de março de 1976, os agentes do CIEX apresentaram dados sobre uma reunião, ocorrida em 15 de fevereiro, em Lisboa. Segundo o Informe n.º 080/CIEX/76, (1976, p. [2]), o evento contou com a participação de “asilados brasileiros”, ainda servindo para a realização de uma assembleia do CAB.
O Informe do CIEX registrou também uma reunião anterior, em 8 de fevereiro de 1976, que aprovou os estatutos da entidade. Prosseguindo na análise, o agente do órgão registrou, no primeiro tópico do documento, o local do encontro, a rua Antônio Maria Cardoso, n.º 68, 1º andar, em Lisboa. Ademais, a pauta única do encontro teria sido a discussão e a eleição da nova diretoria da entidade para o biênio 1976/1977.
Via de regra, o documento indica que os agentes detinham muitas informações sobre os militantes e as organizações da esquerda portuguesa. Pode-se perceber pela anotação dos dados completos – nomes e organizações que atuavam – de todos os diretores portugueses da entidade que prestava solidariedade aos exilados brasileiros. No documento, são relacionados os seguintes nomes: Major do Exército Pedroza Marques (diretor da Rádio-Televisão Portuguesa – RTP), Miguel Urbano Rodrigues (diretor do matutino comunista O Diário e membro do Comitê Central do Partido Comunista Português – PCP), César de Oliveira (membro do GIS – Grupo de Intervenção Socialista) e Nuno Teotônio Pereira (membro do Comitê Central do MES – Movimento de Esquerda Socialista) (INFORME [...], 1976a, p. [2-3]).
Deste modo, entre 1975 e 1979, outro foco de preocupação da Comunidade de Informação era acompanhar os impressos produzidos pelos militantes brasileiros espalhados pela Europa. Esses textos, que circulavam clandestinamente no Brasil, foram fundamentais para difundir no plano interno as denúncias internacionais sobre as violações dos direitos humanos, no geral, e sobre as mobilizações pela Anistia, em especial. Destaca-se que, segundo Denise Rollemberg (1999), os exilados brasileiros na Europa lançaram cerca de 50 publicações sobre a situação do seu país. Para os ativistas dos comitês europeus, entre 1975 e 1979, os impressos funcionavam como principal meio de divulgação das denúncias sobre as arbitrariedades da Ditadura (ROLLEMBERG, 2002, p. 451).
A preocupação dos integrantes da Comunidade de Informação com as publicações lançadas pelos exilados brasileiros passou a integrar a rotina de vigilância em diversos países europeus (ROLLEMBERG, 2002, p. 451). As publicações também foram utilizadas para convocar as mobilizações da oposição e divulgar as atividades dos comitês de Anistia na Europa. Outra finalidade dos impressos foi promover debates para discutir novos temas, por exemplo, a autocrítica da luta armada, a democracia, os direitos jurídicos, a criação de um partido político, o feminismo e a autonomia sindical. Todas, reflexões decorrentes da chamada “nova esquerda” brasileira durante o exílio, sobretudo, na Europa Ocidental (ROLLEMBERG, 2007).
Por outro lado, para os analistas da Comunidade de Informação, os impressos tornaram-se uma fonte permanente de tensão. Para os integrantes da cúpula militar, em seu conjunto, as publicações seriam uma espécie de “Frente de imprensa antigoverno”, cuja missão seria realizar uma constante “campanha antibrasileira de âmbito internacional”. Para citar um exemplo, essa visão foi registrada no Informe CISA n.º 00/89, produzido originalmente pelo CIEX, indicando que os “subversivos” brasileiros e portugueses utilizavam a imprensa visando um grande objetivo: depreciar o governo militar (INFORME [...], 1976b, p. [2]).
Em Portugal, os militantes brasileiros, com a colaboração dos partidos de esquerda portugueses, editaram um dos mais importantes impressos voltados aos exilados, o jornal Amnistia, publicação oficial do CAB, lançada em abril de 1976 (FREIRE, 2017).
Em Portugal e no Brasil, as informações sobre o lançamento do jornal Amnistia passaram a constar rotineiramente nos documentos dos órgãos de vigilância. Um exemplo dessa dinâmica pode ser verificado por esse Informe produzido pelos agentes do CIEX e, possivelmente, reproduzido por várias agências do SNI, a exemplo do documento repassado pelo Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), citado acima. O objetivo do relatório era difundir informações sobre as futuras atividades dos militantes luso-brasileiros.
1- Por iniciativa de grupo de refugiados brasileiros ligados ao núcleo do “Partido Comunista Brasileiro (PCB)” em Portugal e por José Maria Crispim, foi convocada uma ”assembléia geral extraordinária” do Comitê Pró-Anistia Geral no Brasil (CPAGB, a realizar-se no próximo dia 02 de maio de 1976, às 15:00 horas, no anfiteatro do Instituto Superior de Economia (ISE), sito à rua das Quelhas número 6 em Lisboa (INFORME [...], 1976c, p. [1]).
No Informe do CIEX, foram anexados ainda dois impressos, tratando-se de uma convocatória para a referida reunião e uma matéria do jornal Amnistia. Como o documento indica, o jornal também se transformou em fonte de informações para os agentes dos órgãos de informação – no Brasil e no exterior.
Por exemplo, em dezembro de 1977, a circulação do Amnistia concentrou as atenções e foi objeto de troca de informações entre as superintendências da Polícia Federal do Rio de Janeiro e do Espírito Santo. Segundo o documento, em 16 de dezembro de 1977, a Delegacia de Polícia Federal do Estado do Espírito Santo (DPF/ES) recebeu quinze cópias xerox desses exemplares. O remetente foi à Delegacia de Polícia Federal do Estado do Rio de Janeiro (DPF/RJ), que não relatou mais informações sobre a origem da apreensão dos exemplares do jornal (ENCAMINHAMENTO [...], 1977, p. [4]).[4] Entretanto, tal documento evidencia que esse impresso, editado na Europa, circulava no Brasil entre os setores da oposição.
Em suma, a partir de 1975, as denúncias de graves violações dos direitos humanos no Brasil atingiram um novo patamar. Esse fato foi também consequência das atividades que visavam mobilizar os exilados na Europa (dentre conferências, palestras, viagens, congressos, publicações e manifestações). Simultaneamente, essa interação entre militantes do Brasil e do exterior foi fundamental para ampliar a repercussão e difundir as atividades dos Movimentos pela Anistia – no Brasil e na Europa.
Considerações finais
Neste texto, procuramos resgatar parte da trajetória dos Movimentos pela Anistia. Essas organizações e personalidades estabeleceram redes de solidariedade que conectaram, durante a década de 1970, militantes e movimentos políticos brasileiros e europeus.
A título de exemplo, em relação aos impressos de exilados na Europa, Denise Rollemberg (1999) afirma que, entre os militantes das esquerdas brasileiras ocorreu uma mudança no eixo político durante o período de desterro. Essa transformação serviu para atualizar as práticas e os discursos de setores da esquerda no exílio. O modelo revolucionário – a partir da experiência da Revolução Cubana – foi sendo relativizado. Ancorados nas palavras de ordem “Liberdades Democráticas” e “Anistia Ampla”, parte da esquerda no exílio incorporou as temáticas sobre os direitos humanos em seu discurso. O debate sobre os direitos humanos, segundo Rollemberg (1999), foi um elemento fundamental para a aproximação entre militantes brasileiros e organizações dos direitos humanos na Europa, sobretudo da AmnestyInternational (ROLLEMBERG, 1999).
Todo esse cenário impactou diretamente os exilados brasileiros na Europa. No geral, essas novas ideias e programas orientaram e influenciaram parte dos militantes da esquerda brasileira, sobretudo no que se refere às bandeiras sobre a defesa dos direitos humanos. Na prática, os exilados brasileiros, ao aderirem a essas reivindicações, renovaram seus discursos e agendas políticas.
Incorporando propostas mais plurais e diversificadas, essa renovação teve duas consequências. A primeira, como mencionado, introduziu temas como a defesa dos direitos humanos na pauta dos grupos e indivíduos no exílio, fato que trouxe credibilidade política para os exilados brasileiros perante a comunidade internacional. A segunda consequência, desenhou-se pela articulação na Europa de uma rede de solidariedade à causa da Anistia no Brasil. Em síntese, essa aproximação teve impacto direto na oxigenação das oposições à Ditadura, em especial, em setores da esquerda brasileira que se notabilizaram nas mobilizações pela redemocratização ao longo dos anos 1980.
Nesse momento, foi notável a capacidade dos comitês europeus em reunir a “geração 964” e a “geração 1968” na defesa de uma única bandeira. Em torno da proposta de Anistia, uniram-se exilados dos mais diferentes setores, entre eles o movimento sindical, o movimento estudantil, as organizações religiosas e os partidos políticos de diversas orientações e tendências: comunistas, socialistas, social-democratas e trabalhistas.
Na prática, existem alguns motivos que justificam o sucesso e a repercussão das atividades dos comitês europeus pela Anistia no Brasil. Primeiro, essas entidades foram permeáveis a todos os setores que eram favoráveis à Anistia, ou seja, naquele contexto, essas entidades conseguiram mobilizar mulheres, homens, brasileiros, estrangeiros, ex-parlamentares, ex-guerrilheiros, organizações partidárias, representantes das igrejas e da imprensa.
A segunda razão que permitiu o sucesso desses comitês foi seu caráter suprapartidário, amplo e aberto a todas as lideranças, forças e agrupamentos políticos. Apesar das inúmeras divergências referentes às “estratégias e táticas” das esquerdas brasileiras, esses comitês europeus conseguiram manter um mínimo de unidade em torno de um objetivo coletivo: a Anistia.
Um terceiro fator que consideramos, tratou-se dos contatos e intercâmbios entre os integrantes dos comitês na Europa e as militantes da Anistia no Brasil a partir, sobretudo, da circulação de impressos, das trocas de correspondências e das viagens de ativistas brasileiras para Europa. Efetivamente, a circulação desses impressos – entre eles a Amnystia e o Brésil Dossier – foi mais um elemento que colaborou na ampliação das pautas políticas dos Movimentos pela Anistia no Brasil, sobretudo, a radicalização do discurso em relação ao desmonte e à punição dos envolvidos no aparato repressivo.
Mesmo considerando que, desde a década de 1960, internamente alguns setores – notadamente, familiares e advogados de presos políticos, militantes estudantis e as Comissões de Justiça e Paz da Igreja Católica – apresentavam isoladamente algumas dessas pautas, o surgimento dos Movimentos pela Anistia ampliou o volume e a visibilidade política da causa, principalmente no exterior, a partir da colaboração e suporte de entidades como a Amnesty International e do Tribunal Bertrand Russell II.
Em síntese, entre 1975 e 1976, houve a consolidação de fato dos Movimentos pela Anistia. A fundação do MFPA, no Brasil, e os primeiros comitês de exilados, no exterior, são marcos dessa época, assim como a ampliação da pauta de reivindicações dos militantes pela Anistia, em especial, em torno dos direitos humanos.
Referências
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[1] Lund é uma cidade localizada no sudoeste da Suécia, a 601 km da capital Estocolmo.