DOI: 10.5965/2175180305102013133
http://dx.doi.org/10.5965/2175180305102013133



“Somos guardiões da memória...”: uma coleção homenageia os “vitoriosos” de 31 de março de 1964


Eduardo dos Santos Chaves

Graduado e Mestre em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutorando na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
educhaves4@hotmail.com

Resumo
No presente artigo apresento um breve histórico das iniciativas das Forças Armadas em narrar a sua história pelos projetos de história oral, para em seguida analisar o surgimento de um desses resultados, a coleção “1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e sua história”. Procuro, dessa forma, examinar o significado dessa coleção de entrevistas como resultado da disputa pela memória da ditadura brasileira, bem como uma homenagem àqueles que eles consideram “salvadores da pátria”. Da mesma forma, analiso a maneira pela qual o Exército procurou fazer história oral, assim como ele a entende quando da elaboração de seus acervos.

Palavras-chave: Ditadura civil-militar. Exército. Acervos.

Introdução

As Forças Armadas, marcadas por convicções elaboradas em momentos diversos do passado brasileiro, atribuem aos militares a função de tutores da nação, guardiões da ordem e da pátria, face ao perigo comunista (CASTRO, 2002; MENDES, 2003; MOTTA, 2004). Quando procuram escrever a história recente do Brasil, sustentam que em 1964 iniciou no país uma “revolução democrática” e não um golpe de estado que instaurou uma ditadura civil-militar.[1] Quando indagados a respeito das cassações de mandatos, afirmam que as fizeram em nome da democracia e da ordem. E continuam persistentemente defendendo a ideia de que, além de livrar o país do comunismo, trouxeram prosperidade e paz a uma nação mergulhada em caos econômico e social. No entanto, como bem destacou Daniel Aarão Reis Filho (2010), parece uma esquizofrenia social, pois de um lado temos um Estado, a partir da Comissão de Anistia, pedindo desculpas aos torturados pelos males provocados pelas torturas e pelos torturadores, indenizando-os de acordo com a lei. De outro, as Forças Armadas, instituições deste mesmo Estado, negando a existência de torturas, salvo cometidas por indivíduos isolados, atribuindo glórias a uma “revolução”[2]. Essa narrativa, elaborada dentro das Forças Armadas, é interessante de ser observada com cuidado, na medida em que revela a complexidade existente no exame do regime civil-militar, assim como um quisto autoritário, ainda firme na corporação, atrelado, a seu modo, a uma cultura política presente entre militares brasileiros.[3]

Os Projetos de História Oral nas Forças Armadas

Não é novidade nas Forças Armadas o desejo de narrar sua trajetória, quase sempre atrelada aos grandes acontecimentos políticos e a seus personagens, que acreditam mais representativos. Diversos artigos, livros e coleções de livros foram publicados pelos órgãos ligados aos militares com o objetivo de levar ao público interno e externo a “grandiosidade” das Forças Armadas na História do Brasil. Em sua grande maioria, são textos produzidos por membros das Forças Armadas com propósitos claros de levar aos leitores uma narrativa “verdadeira” e indiscutível acerca dos “grandes feitos” do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.[4]

Além de livros e revistas, publicados em grande profusão, as Forças Armadas nos últimos anos estiveram, da mesma forma, atentas à produção de depoimentos e a sua posterior publicação em coleções para consulta de pesquisadores e estudantes, assim como para a afirmação daquilo que eles chamam de “história viva”. A elaboração de entrevistas estava relacionada aos projetos e subprojetos, todos em torno de temáticas muito bem definidas, dependendo da força – Exército, Marinha e Aeronáutica – em que este se encontrava.

Na Marinha, por exemplo, procurou-se, com o projeto de História Oral, “preservar e divulgar o patrimônio histórico e cultural da Marinha, contribuindo para a conservação de sua memória e para o desenvolvimento da consciência marítima do país” (GUSMÃO, 2008). Da mesma forma, a Aeronáutica, que coletou depoimentos de destacadas personalidades que serviriam de “[...] paradigma e farol orientador para futuras gerações, no sentido de bem servir à FAB e à Pátria” (GUSMÃO, 2008).

É perceptível a intenção, tanto da Marinha quanto da Aeronáutica de figurarem como “guardiãs da memória” e únicas capazes de escrever sua própria história. Ambas e pelos mesmos meios se colocam como portadoras da “verdade” a respeito do passado das instituições e buscam que os depoimentos sirvam de exemplo para as “futuras gerações”.

No Exército não é diferente. Vem de longa data a produção de textos sobre a própria história daquela arma. No século XX, duas organizações se empenharam na construção da memória institucional do Exército, congregando de forma sistemática sua história: o Instituto de Geografia e História Militar do Brasil (IGHMB), fundado em 1936; e a Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB), fundada em 1996.

Porém, programas que têm como propósito a salvaguarda da memória a partir de fontes orais foram constituídos posteriormente. Criado por meio de Portaria Ministerial pelo então Ministro do Exército, General de Exército Gleuber Vieira[5], em fins de 1999, o Programa de História Oral do Exército foi implementado a partir de 2000. Foi executado por uma Coordenadoria Geral, tendo à sua frente um oficial general que tinha a seu cargo seis Coordenadorias Regionais, localizadas no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Recife, Fortaleza e Brasília.[6]

Em relação à coordenadoria geral, o nome escolhido foi o do General de Brigada Aricildes de Moraes Motta que, por sua vez, escolheria, posteriormente, as coordenadorias regionais.[7] A escolha do General Motta para coordenar os projetos vinha ao encontro do que pensava o Ministro Gleuber Vieira sobre os acontecimentos recentes da História do Brasil, além da amizade de longa data (MOTTA, 2010). Segundo Aricildes de Moraes Motta (2010), Gleuber Vieira percebia a necessidade de ouvir o “outro lado da colina”[8], assim como percebia que muitos dos homens que não haviam exposto o que viveram durante o regime militar estavam com idade bem avançada.

Tal qual nos projetos da Marinha e da Aeronáutica, o Programa de História Oral do Exército tinha como finalidade a construção de um acervo para consulta e pesquisa por todos os interessados e, de forma especial, pelos integrantes das Forças Armadas. O intuito do Exército era fazer com que as narrativas de seus personagens servissem de exemplo para todos os brasileiros e, especialmente, aos futuros “defensores da pátria” - os militares. Os depoentes seriam os “gurus” na condução de uma “história mestra”, que elevaria os personagens ao patamar de “salvadores da pátria” e seus feitos a grandes “epopeias”.

Na trajetória do Programa de História Oral do Exército foram realizados os seguintes projetos: Segunda Guerra Mundial (8 volumes)[9]; Projeto Rondon (4 volumes)[10]; Engenharia Militar (1 volume); e 1964, 31 de Março (15 volumes). Outros projetos se encontram em desenvolvimento, como: Artilharia de Costa; Escola Militar do Realengo; Memória Militar; e Operações de Paz.

Coleção “1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e sua história”

Em novembro de 1999, por determinação do General Gleuber Vieira, então Comandante do Exército, por intermédio de duas portarias, respectivamente de maio e outubro daquele ano, foram postos em execução dois projetos de história oral: um sobre a participação da Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial e outro sobre a “Revolução de 31 de março de 1964”.

Conforme o Coordenador Geral da coleção, Aricildes de Moraes Motta (s/d), os procedimentos iniciais foram regulados pela Secretaria Geral do Exército, por intermédio da Ordem de Serviço nº 15.[11] Esse documento normativo autorizava o Coordenador Geral daqueles projetos a indicar seis coordenadores regionais para cada uma das sedes já estabelecidas: Brasília, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro/Minas Gerais, Porto Alegre e São Paulo.

Aos seis coordenadores regionais caberia, então, a escolha das “personalidades”[12] que, direta ou indiretamente, participaram dos acontecimentos de março de 1964 e do regime civil-militar. "Escolhidos a dedo", os entrevistados mostraram-se sempre entusiasmados com o empreendimento do Exército. Na seleção dos entrevistados, deu-se preferência àqueles que ocuparam cargos importantes durante os “governos revolucionários” ou que tenham estado em episódios “importantes” do período (MOTTA, 2010).

Os coordenadores regionais, de certa forma, também apresentaram uma estreita relação com as visões largamente difundidas pelo Exército acerca dos episódios de 31 de março de 1964 e seus desdobramentos. Exemplo disso é a entrevista concedida pelo Coordenador Regional do Rio de Janeiro/Minas Gerais ao projeto, General Geraldo Luiz Nery da Silva.

Convidado pelo General Aricildes de Moraes Motta, o General Geraldo Nery da Silva apresenta no início de seu depoimento um parecer que deixa claro a maneira pela qual ele operacionalizou a escolha de outros depoentes para a seção Rio de Janeiro/Minas Gerais. Nery da Silva deu preferência à escolha de figuras militares e civis que tivessem uma aproximação com a "revolução" e a ditadura civil-militar, narrando de maneira positiva o período.

O nosso escopo, portanto, é apresentar os fatos reais vividos nos pródromos, na eclosão e durante o desenvolvimento da Revolução de 31 de Março, totalmente deturpados pelos revanchistas – esquerdistas internacionalistas – derrotados fragorosamente no campo militar pela Revolução, para que o Brasil permanecesse democrático, crescesse e prosperasse, com ordem e segurança (MOTTA, 2003, t.10, p.196).

Apenas dois coordenadores regionais concederam entrevistas ao projeto, o General Nery da Silva e o General Rotta.  Eram militares que defendiam, no momento da execução do projeto, a intervenção feita em março de 1964 e destacam como justificativa as dificuldades enfrentadas dentro das Forças Armadas durante o governo de João Goulart. Nery da Silva salienta os problemas que enfrentou como 1o Tenente, Comandante da Linha de Fogo da 1a Bateria de Obuses do I/2o RO 105 – Regimento Deodoro, Itu/SP.

Era preciso reagir!... E começamos modestamente... Os tenentes do Regimento passaram a fazer um programa anticomunista na Rádio Convenção, de Itu, o qual era gravado em instalações da Igreja Matriz, o que retrata, de maneira clara, a posição da Igreja na época, em sua grande maioria contrária às artimanhas daquele Governo, voltado para a implantação do comunismo ateu. A Igreja, além do incentivo, oferecia-nos todo o apoio (MOTTA, 2003, t. 10, p.197).

O General Nery da Silva compôs uma rede de depoentes afinados com sua visão a respeito do ocorrido entre 1964 e 1985, sendo que todos os entrevistados por ele tinham sentimentos de repulsa ao comunismo e encaravam os comunistas como “germes” a serem eliminados de um corpo. Conforme Rodrigo Patto Sá Motta (2002, p. 53), a caracterização do comunismo como coisa ruim, maléfica, possui uma outra ordem de representações que tem importância significativa. Trata-se, segundo o autor, de referências associando a ação revolucionária “[...] a doenças e temas correlatos como peste, praga, bacilo, veneno, vírus, câncer etc.”. Para o historiador, representava-se o comunismo como enfermidade que remete ao tema “infiltração”. Sendo assim, tal qual uma doença, os comunistas foram denunciados como um grupo dedicado a infiltrar-se nos organismos sociais, debilitando-os internamente.

Os demais coordenadores regionais, todos ligados por laços de amizade e de companheirismo como o Coordenador Geral, o General Aricildes de Moraes Motta, tiveram, assim como o General Nery da Silva, a incumbência de selecionar uma rede de indivíduos que fosse importante para os propósitos do Exército e, posteriormente, entrevistá-los. Se os demais coordenadores regionais não concederam depoimentos, isso não os isenta de modo algum de terem sob sua responsabilidade a seleção de homens com as mesmas premissas ideológicas sobre o tema a ser tratado. Com base na leitura dos depoimentos, fica evidente que quase todos os sujeitos escolhidos para entrevistas partem das mesmas considerações a respeito dos episódios que se sucederam em 31 de março de 1964 e no período subsequente.

O número de volumes na coleção relativa a 1964, maior do que nos demais projetos, mostra a preocupação do Exército com questões do tempo presente. Duas razões são pertinentes e talvez expliquem o empreendimento: a primeira é pelo fato de que os personagens ainda encontravam-se vivos, oferecendo à corporação uma “narrativa gloriosa” do 31 de março de 1964 frente aos desafios do debate sobre o regime civil-militar. A segunda se refere à maneira como é tratado o tema ditadura. Visto pela sociedade como algo “terrível” a ser “abominado”, as Forças Armadas sentem-se pressionadas a responder às investidas daqueles que elas chamam de “revanchistas”.

A coleção “1964 - 31 de março: o movimento revolucionário e sua história” foi publicada pela Editora da Biblioteca do Exército (BIBLIEX), entre os anos de 2003 e 2004, sob a coordenação do General Aricildes de Moraes Motta. A coletânea foi dividida em 15 volumes, com cerca de 10 entrevistas cada. Ao todo foram publicados 247 depoimentos de militares e civis que atuaram, em grande maioria, na defesa do regime civil-militar.[13] Como o objetivo dos organizadores era coletar um grande número de informações em todo o território brasileiro acerca do “movimento revolucionário de 1964” e o posterior “período revolucionário” que se prolongou por mais de 20 anos, os coordenadores regionais realizaram uma divisão na qual os entrevistados foram organizados naqueles estados da federação em que atuavam durante a ditadura civil-militar.

Assim como outras instituições preocupadas com a metodologia e os usos da história oral, o Exército, nesse caso, afirma, nas páginas iniciais de todos os tomos da coleção, ter se comprometido em utilizar ferramentas comuns aos centros acadêmicos nacionais. Pelo que se observa, a partir da leitura da apresentação, a história oral seria uma preocupação central e sua utilização pelo Exército não poderia deixar de estar atrelada a estudos já realizados por especialistas na área.[14]

No caso específico do Programa de História Oral do Exército foram realizadas as entrevistas em vídeo e áudio para depois serem transcritos e textualizados os depoimentos, segundo uma metodologia específica, tendo em vista colocar à disposição de historiadores, professores e estudiosos de uma maneira geral um material rico, “[...] à disposição de quantos se interessarem pela riqueza da história das Forças Armadas” (GUSMÃO, 2008).

Os depoimentos foram centrados em uma história oral temática que permeou significativa parte das narrativas, as quais visaram um conhecimento completo sobre a trajetória do entrevistado durante e após o 31 de março de 1964, bem como suas considerações sobre diversos assuntos que envolviam o regime civil-militar. Foram usados questionários pré-estabelecidos, em que se buscava uma narrativa ligando o tema central - no caso a “revolução de 1964” e os “governos revolucionários” - com a trajetória de vida do entrevistado. Ou seja, muitos questionamentos foram feitos em torno de um pré-conhecimento das trajetórias dos entrevistados, tendo em vista sua vida profissional e, principalmente, seu conhecimento e seu ponto de vista acerca do golpe e da ditadura civil-militar. Não são todas as entrevistas que apresentam trechos das histórias de vida dos depoentes. O principal a ser discutido parece ser os temas sobre o período (1964-1985), tendo em vista que o entrevistador e entrevistado devem construir uma narrativa positiva do período.

O principal objetivo com esse planejamento “rigoroso” era o de buscar a verdade com insistência, “verdade de quem presenciou um acontecimento ou dele tenha alguma versão para ser cotejada com a de outras procedências”, ressaltou o coordenador geral, Aricildes de Moraes Motta (2010).

A riqueza de informações apresentadas nas narrativas forneceu subsídios importantes para a compreensão da história e da memória do Exército sobre o passado recente do Brasil. Nesse sentido, abordar uma coleção de depoimentos sobre os acontecimentos de 31 de março de 1964 e seus desdobramentos surge como um desafio, na medida em que as narrativas coletadas, além de serem apresentadas como fontes de pesquisa, são tidas, também, como história magistra vitae, produto de valor indiscutível que deve servir de base para a compreensão dos “verdadeiros fatos”.

Todas as entrevistas publicadas passaram pelas três fases que, usualmente, correspondem às etapas de um trabalho de história oral: a pré-entrevista, a entrevista propriamente dita e a pós-entrevista.

A pré- entrevista é o planejamento da entrevista, em que se iniciam os contatos entre o pesquisador e/ou entrevistador e o colaborador/entrevistado. Nessa primeira fase, têm-se as primeiras conversas entre ambas as partes, em que o entrevistador procura coletar informações necessárias para a posterior fase. Esses primeiros contatos servem para que o entrevistador/pesquisador informe ao depoente sobre a finalidade do projeto, bem como a importância de sua participação no conjunto do trabalho.

No caso da coleção examinada, conforme destacou em entrevista o seu coordenador, houve a constituição de uma lista com inúmeros nomes de colaboradores que necessitava ser examinada com atenção. O organizador afirma que foi necessário retirar alguns dos indivíduos listados que tiveram atuação importante durante a “revolução”, pois eram muitos e, desse modo, não haveria condições de finalizar o trabalho. Sendo assim, foram priorizados aqueles que tiveram “muitas experiências” a relatar (MOTTA, 2010).

Na fase da pré-entrevista procura-se também incentivar o depoente a fornecer documentos como livros, artigos, diários, relatórios, cartas etc., o que contribui na elaboração de um roteiro para a entrevista e, no caso da coleção, para a elaboração de um questionário com perguntas fechadas a ser aplicado aos depoentes.

Atualmente, observa-se, nas descrições de muitos trabalhos com história oral, a elaboração prévia de um roteiro para a entrevista. Isso significa que, na fase da pré-entrevista, algum material referente ao entrevistado foi examinado pelo entrevistador e/ou pesquisador que, mediante isso, elaborou uma listagem com itens que podem ser explorados no decorrer da entrevista. Para muitos, essa perspectiva sugere que o depoimento seja fundamentado num diálogo mais livre, sem questões preestabelecidas. Diferentemente fizeram os organizadores da coleção que, antes das entrevistas, levaram aos colaboradores um questionário com as perguntas básicas preestabelecidas. O coordenador da coleção afirma que o objetivo disso foi o de orientar a preparação dos colaboradores para a entrevista. Além do questionário, foi enviado também um modelo de currículum vitae[15], com objetivo de padronizar o plano de entrevista em todas as Coordenadorias Regionais, o que, segundo Motta (2003, t. 1, p. 16), “[...] avulta em importância por refletir essa homogeneização em todas as coletâneas, independente do local onde sejam organizadas”.

Como pode ser observado, procurou-se padronizar um modelo de entrevista, em que os assuntos tivessem um sentido lógico com o tema central do projeto. Contudo, ainda na fase da pré-entrevista, com a coleta de documentos apresentados pelos colaboradores, pode-se dizer que certa relativização foi operada na estruturação dos depoimentos. Isso significou a elaboração de questionários com perguntas específicas para alguns colaboradores sobre episódios por eles vivenciados. De acordo com Aricildes de Moraes Motta (2003, t. 1, p. 17):

Dos documentos referentes à Revolução de 31 de Março de 1964, que permitem a elaboração de perguntas adicionais em proveito da maior eficácia das entrevistas, citamos os relatórios, boletins internos e históricos da organização militar do colaborador; livros e artigos da lavra do entrevistado ou de integrantes de sua Unidade; jornais e revistas da época da eclosão do Movimento de 1964 e do período dos governos revolucionários.

Ainda nessa fase, foram remetidos aos entrevistados os questionários que poderiam sofrer modificações caso eles não se sentissem à vontade com algumas perguntas. Ou seja, poder-se-ia deixar de abordar determinados aspectos que não dizem respeito à vivência do entrevistado, ou também a acontecimentos incômodos. Porém, como a coleção parte de uma instituição que deseja “glorificar” seus componentes, fica longe a ideia de se realizar um depoimento que questione a vocação “democrática” e “cristã” das Forças Armadas. E para que isso não acontecesse o Programa de História Oral do Exército definiu junto ao entrevistado o tipo de entrevista que deveria ser realizada.

Seriam de dois tipos: o primeiro é quando o entrevistado faz um breve relato de sua participação no evento tratado no projeto e, após, responde a perguntas selecionadas do questionário. O segundo é quando “o entrevistado responde exclusivamente às indagações do questionário recebido, as quais poderão ser acrescidas outras, formuladas, como vimos, com base na documentação entregue ao entrevistador” (GUSMÃO, 2008). Nesse tipo de entrevista, antes de iniciar as perguntas, pode-se dar a palavra ao depoente que faz considerações sobre sua participação no projeto. Em muitos depoimentos, o entrevistado iniciou sua entrevista relatando brevemente sua trajetória de vida atrelada ao 31 de março de 1964 e seus desdobramentos, como fez o General de Exército Ruy de Paula Couto, por exemplo, que em 1964 era Coronel. É interessante observar, além da forma pela qual o General relata sua trajetória durante a “revolução de 1964”, a maneira como foi feita a pergunta por parte da equipe da coleção:

P: É uma satisfação tê-lo como entrevistado neste Projeto de História Oral do Exército na Revolução de 1964. O senhor é um oficial brilhante, primeiro colocado em sua turma do Realengo e menção “Muito Bem” (MB) na ECEME; galgou todos os postos da carreira militar, sendo hoje General de Exército.
O então Coronel Ruy participou intensamente da Revolução de 1964, pois era Comandante do Mallet (3º Regimento de Obuses 105 mm – 3º RO 105) e Comandante interino da AD/3, Unidade e Grande Unidade integrantes da maior guarnição militar do interior do Brasil, situada em Santa Maria, no coração do Rio Grande do Sul. O senhor dispõe de um tempo livre para relatar a sua vivência e os fatos marcantes daquela época conturbada e, depois passaremos às perguntas, se for o caso.
R: É uma satisfação estar aqui e, satisfação maior ainda, ver esta iniciativa de realizar entrevistas com os companheiros que assistiram, acompanharam e participaram da Revolução de 1964; quase todos esquecidos no decorrer do tempo. Hoje em dia, poucas pessoas têm conhecimento daqueles fatos; então se não perpetuarem esse conhecimento, ele se perde na história.
Comandei o Forte de Copacabana entre 1961 e abril de 1963. Nesse período, preparei a Unidade para combater a subversão, deixando-a treinadíssima para cumprir qualquer operação de controle de tumulto e tudo o mais que fosse exigido, tanto é que foi a primeira a envolver-se e a revoltar-se na época da Revolução (MOTTA, 2003, t.13, p.29).

É interessante observar pelo trecho acima, que tanto a equipe de coordenação e realização do projeto, por meio das pergunta realizadas, quanto os entrevistados produzem narrativas que, de certo modo, se mesclam, o que corrobora o sentido político do projeto. Ou seja, partem de uma mesma perspectiva em relação ao período e, nesse sentido, narram semelhantemente o regime. No trecho citado anteriormente o entrevistador, ao apresentar o entrevistado como um brilhante oficial que havia participado intensamente da "Revolução de 1964", abre espaço para a continuidade de uma narrativa "gloriosa" dos acontecimentos.

A segunda etapa corresponde à fase da entrevista. Os depoimentos da coleção tiveram duração máxima de quatro horas. Conforme Gusmão (2008), “os colaboradores têm utilizado, normalmente, cerca de duas horas, havendo, no entanto, entrevistas mais longas, com três horas de duração, e umas poucas que se aproximam do limite estabelecido”. Essa fase parece ter se constituído na mais delicada, pois os entrevistadores tinham que se deslocar muitas vezes até as residências dos entrevistados, além de questões de rotina que envolve o trabalho com história oral. De acordo com Aricildes de Moraes Motta (2010), em relação aos trabalhos realizados no Rio de Janeiro:

Muitos dos entrevistados foram entrevistados em casa. Não tinham condições, muitas vezes, de sair, porque tinham limitações de locomoção. Então, fizemos nas casas, levávamos a câmera, levávamos os gravadores e fazíamos nas residências deles. Ou então, nós fazíamos na Seção de Meios Auxiliares do Comando Militar do Leste, que tem um estúdio muito bem montado. Aqui no Rio de Janeiro fizemos assim. O Coronel...Roosevelt [Roosevelt de Sant’Ana] fazia no Centro de Comunicação Social do Exército, que tem lá, são estúdios da melhor qualidade.

A terceira e última etapa se refere à transcrição absoluta e à edição dos depoimentos. A transcrição absoluta é o momento de reproduzir em texto escrito toda a entrevista, mantendo exatamente a ordem dos vocábulos e a gramática (ALBERTI, 2005). Nessa transcrição pura aparecem as falhas da linguagem coloquial, assim como a descontração natural da entrevista, marcas da oralidade que desaparecem dos depoimentos da coleção examinada. Já na transcrição editada, o texto da transcrição absoluta é depurado, tornando-se gramaticalmente correto, eliminando os vícios de linguagem e as palavras repetidas, como foi feito com os depoimentos da coletânea.[16]

Outro passo em relação à transcrição de depoimentos é a textualização, fusão das respostas realizadas durante a entrevista, na busca de estabelecer um texto coeso e coerente. Nesse sentido, o texto é necessariamente do narrador, eliminando do depoimento um de seus mais importantes sujeitos, o entrevistador. Isso não significa afirmar que o entrevistador, no caso da coletânea de livros examinada, apresente-se como um elemento determinante na condução dos depoimentos. Como as entrevistas tiveram questionários prontos, em que os colaboradores já conheciam as questões antes de sua aplicação, parece que a importância dos entrevistadores da coleção não foi significativa a ponto de determinar por completo o depoimento. Muito embora eles tenham dialogado com os entrevistados, isso não foi determinante em muitos dos depoimentos.

Sobre esse item, não se quer dizer que o Exército errou ao não apresentar em algumas situações os entrevistadores e suas questões, mas afirmar que o diálogo entre entrevistador e entrevistado é fundamental para a constituição de um documento oral. Segundo Alberti (2005, p. 102):

O ideal, numa situação de entrevista, é que se caminhe em direção a um diálogo informal e sincero, que permita a cumplicidade entre entrevistado e entrevistadores, à medida que ambos se engajam na reconstrução, na reflexão e na interpretação do passado. Essa cumplicidade pressupõe necessariamente que ambos reconheçam suas diferenças e respeitem o outro enquanto portador de uma visão de mundo diferente, dada por sua experiência de vida, sua formação e sua cultura.

Se o Exército não procedeu quanto aos depoimentos como exposto acima, cabe pensarmos de que forma ele pensou a coleção e em que sentido ele acreditou estar fazendo história. Longe do certo e/ou do errado, o que se pretende é verificar por que razões os depoimentos são apresentados daquela forma, com a mínima presença, em alguns casos, do entrevistador, com perguntas que confortariam o entrevistado no que se refere ao 31 de março de 1964 e o regime civil-militar e, como aconteceu, com intervenções indutivas do entrevistador.

De acordo com Gusmão (2008), o Exército utilizou o seguinte esquema, no que se refere à passagem do código oral para o escrito: 1) texto gravado da entrevista; 2) transcrição absoluta, constituindo-se o primeiro documento escrito; 3) transcrição com edição, o segundo documento escrito; e 4) textualização, o terceiro documento escrito. Além disso, na fase pós-entrevista, o Exército ainda procurou entregar a seus depoentes as Cartas de Cessão de Direitos e a entrevista para que eles realizassem as devidas observações, assim como buscou receber outros documentos que seriam colocados junto a essas entrevistas para posteriores consultas.[17]

A constituição dos Programas de História Oral das Forças Armadas visou primordialmente à construção de uma memória institucional daqueles que eles acreditam ser os “grandes defensores da nação”. No caso específico da coleção, ao se colocarem como aqueles que narram a verdade sobre os acontecimentos históricos, acabam também se colocando como guardiões da memória sobre o regime civil-militar, como únicos autorizados a falar a respeito.

Dessa forma, de acordo com os executores do projeto, a coleção de depoimentos surgiu da necessidade de levar ao público (a sociedade) a voz daqueles que estão sufocados pelas mentiras do “revanchismo” de esquerda que domina as universidades brasileiras e o meio intelectual (MOTTA, 2003, t.1, p. 9). Conforme Aricildes de Moraes Motta (2003, t.1, p. 9), “esta coletânea, sobre o Movimento armado de 1964, visa tornar mais conhecido o processo revolucionário, especialmente pela palavra daqueles que, agora, ganham a oportunidade de expor suas motivações, identificar seus propósitos e narrar suas ações”.

A História Oral na Perspectiva da Coleção

Como já foi exposto, o Exército utilizou a metodologia de história oral em seus projetos de pesquisa que tinham como mote a constituição de acervos com depoimentos orais.

Segundo anotações constantes nos referenciais metodológicos, que constam em todos os tomos da coleção, o Exército procurou se aproximar de outros centros de pesquisa que tinham como horizonte a história oral, além de uma bibliografia consagrada a respeito desse tema. Dessa forma, seguiram a linha que define que a história oral carece de uma maior especificação teórica, embora já possua uma conceituação metodológica apreciável. Além disso, consideram que “seu estatuto está mais ligado à prática do que a um pensamento teórico estruturado” (MOTTA, 2003, t.1, p.15).

Nesse sentido, a história oral, para os organizadores da coleção, é “mais do que um campo novo de reflexão, pois tem servido a outras disciplinas, como metodologia de obtenção de dados ou, mesmo, como técnica auxiliar” (MOTTA, 2003, t.1, p.15).

O Exército utilizou como centro de referência para a elaboração de seu acervo o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea da Fundação Getúlio Vargas, o CPDOC/FGV. O trabalho que esta instituição vem realizando ao longo de vários anos fez com que outras instituições se espelhem em suas práticas. Os organizadores do projeto e, sobretudo, o coordenador geral tomaram conhecimento de parte da bibliografia produzida pelo CPDOC/FGV pelas leituras e encontros na própria instituição. Contudo, embora o Exército tenha seguido as várias etapas na elaboração dos depoimentos, desde a formação da rede à edição das entrevistas, a condução desses depoimentos tinha propósitos muito claros, que acabavam definindo o viés ideológico com o qual a instituição estava comprometida.

Além do CPDOC/FGV, o Exército procurou seguir outras referências que tenham feito alguma reflexão em torno da história oral. Um dos autores citados nas considerações metodológicas é José Carlos Sebe Bom Meihy (2005, p. 10), que considera História Oral como:

[...] recurso moderno de apreensão de fontes orais que se tornam registros de situações que se comportam em três ramos principais: história oral de vida; história oral temática e tradição oral. Cada um destes itens implica procedimentos próprios, independentes, mas que se encaminham para os mesmos objetivos, isto é, favorecer estudos de memória e identidade.

Seguindo as considerações de Meihy, a História Oral seria um conjunto de procedimentos que se iniciam com a elaboração de um projeto, desdobrando-se em entrevistas e cuidados com o estabelecimento de textos/documentos que podem ser analisados e arquivados para uso público. Destaca, ainda, que ela deverá ter um sentido social, pois corresponde aos anseios de um grupo ou comunidade que percebe a necessidade de levar a público as suas lembranças sobre determinados acontecimentos.

A coleção examinada optou em realizar suas entrevistas em torno de uma história oral temática, na qual buscou “recolher um maior número de informações” sobre um determinado evento ou situação, no caso a “revolução de 1964” e seus desdobramentos, a ser esclarecida segundo o estabelecimento de questionários orientados para fins específicos.

Sobre esse aspecto, cabe notar que a coleção examinada partiu do Exército que sentiu a necessidade de lembrar seu passado de maneira "nobre" e "patriótica". Vale assinalar que o Exército, embora não representa os militares, é formado por militares e, no caso em questão, representa uma perspectiva política que se vê representada por militares. Para os organizadores da coleção, sua relevância social está no fato de contribuir para mais uma “versão” sobre os fatos. Ou seja, ao saber da existência de outras “versões” sobre a ditadura, acreditam que sua “versão” responderia às esquerdas que omitem a “verdade” sobre 1964 e a ditadura civil-militar. Nesse sentido, o Exército argumenta que a coleção, ao desmentir os “revanchistas”, contribui para que a sociedade possa conhecer o que realmente aconteceu.

Nas considerações de Meihy, História Oral subverte o conceito tradicional de História, comprometendo a sincronia em favor da diacronia, além de provocar uma crise no conceito usual de documento. Porém, essas premissas não corroboram com a coleção sobre 1964. Esta, por sua vez, vem para consolidar uma memória, torná-la cristalizada, base para uma história, de maneira tradicional, linear, sem fragmentos e compreendida pela lógica dos “grandes heróis”. O método, nesse sentido, serviu para alocar grandes personagens, civis e militares, em histórias patrióticas, de defesa do país contra a “comunização”, ao invés de subverter a narrativa tradicional, destacada por Meihy.

Se levarmos em consideração o que o Exército pensa sobre a constituição de um documento oral, talvez possamos perceber que aqueles produzidos pelos militares não diferem muito daqueles produzidos por terceiros e guardados em arquivos, museus ou coleções. Sabe-se que documento em história oral é o texto produzido diretamente, em contato pessoal entre partes que se integram num mesmo projeto.

Sobre os projetos de história oral encabeçados pelas Forças Armadas e sua relação com o crescimento dos acervos orais, é interessante pensarmos na constituição de outros acervos que consideram a história oral como ferramenta fundamental na preservação de suas memórias. Além de centros de pesquisa e universidades, famílias, grupos de trabalho, participantes de instituições variadas estabelecem parâmetros comuns e organizam discursos que também solidificam uma memória que se quer única. Pensando dessa forma, fica visível que a história oral pode servir para alimentar discursos e representações de grupos e sujeitos de instituições como o Exército, por exemplo. Ela relacionaria memória e identidade do grupo de maneira a fornecer subsídios que delimitassem os discursos daqueles de fora, bem como os de dentro do grupo.

Muitos historiadores e estudiosos destacaram que a história oral deve ter um comprometimento prioritário com grupos silenciados, seja pela marginalização socioeconômica, censura, analfabetismo e interdições variadas. Além disso, dar-se-ia prioridades a pesquisas e estudos sobre os grupos, partidos e sujeitos situados à esquerda do espectro político. E foi o que aconteceu em muitos centros universitários e instituições ligadas aos direitos humanos. Diversas pesquisas foram desenvolvidas sobre sindicalistas, operários, comunistas, anarquistas, trabalhistas etc.

Mas esse perfil não foi o único, a metodologia foi igualmente empregada em pesquisas sobre as elites políticas, militares e outros grupos conservadores que haviam sido silenciados pela historiografia. Um exemplo disso são as pesquisas do próprio CPDOC/FGV e o Programa de História Oral do Exército, criado no final da década de 1990, produtor da coleção de depoimentos, ora examinada.

Diante disso, uma questão chama a atenção: os arquitetos dessas memórias, ou melhor, os lugares dessa memória. Há, pelo menos, dois artífices de depoimentos que destacamos acima: os acadêmicos, ligados aos programas de pós-graduação, e as instituições de memória, que se constituíram em torno de laços étnicos, sociais e/ou profissionais, como os militares e o Exército.

Muitos estudiosos, como Paul Thompson (1992, p. 44), acreditam que a história oral é “subversiva”, pois contemplaria os marginalizados da história, dando voz a esses sujeitos que foram silenciados durante muito tempo. Assim, ela propõe um desafio aos mitos consagrados da história, ao juízo autoritário inerente à sua tradição. E oferece os meios para uma transformação radical no sentido social da história.

Mas será que essas instituições que focaram seus trabalhos em torno da história oral quiseram ser “subversivas”, desafiadoras da história tradicional? Essa é uma pergunta difícil de ser respondida para o caso da coleção sobre 1964. Além disso, outra questão pode surgir: se a história da ditadura civil-militar esteve consolidada com base em uma memória social, em que a sociedade foi vitimizada e os militares demonizados, será que, nesse sentido, a coleção não se apresenta de forma desafiadora?

Acredito que não, pois, ao invés de desafiar, estabelece outro discurso cristalizado, no qual militares e civis estiveram empenhados na eliminação dos comunistas que assolavam o governo de João Goulart. Ao representar a golpe como uma "revolução" e ao caracterizar as esquerdas como "terroristas", a coleção elaborou um discurso maniqueísta, atribuindo às esquerdas a pecha de "demônios", homens que representavam o mal. Os militares surgem, conforme as narrativas, para salvar o país de uma possível desgraça, o comunismo.

O que coube aos pesquisadores foi um maior cuidado ao trabalhar com as fontes orais, repensando as relações entre passado e presente e, da mesma forma, a importância em se atentar para as armadilhas apresentadas pela memória, assim como seus usos e sua relação com a história. Conforme Marieta de Moraes Ferreira (1998, p. 22), os novos estudos “demonstraram também de forma inequívoca que o passado é construído segundo as necessidades do presente e que, portanto, se pode fazer usos políticos do passado”. Contudo, trabalhar com fontes orais implica necessariamente cuidado para que a investigação feita não resulte apenas na gravação de uma série de testemunhos usados posteriormente como citações para “ilustrar” o que está se falando. O uso de fontes orais requer crítica. Ou seja, a narrativa testemunhal está permeada pelos deslizes da memória, no qual perdura a seletividade, parcialidade e o interesse. Como qualquer fonte, exige trabalho cuidadoso e análise da sua produção.

Joan Del Alcázar Garrido (1993, p. 39) alerta para o fato de que, embora haja muitos argumentos de caráter defensivo no que concerne ao uso de fontes orais em trabalhos científicos, os testemunhos devem passar por um “filtro crítico”.

Isso não quer dizer que só se conservará tal ou qual testemunho, mas que o pesquisador deverá saber distinguir separadamente o fenômeno histórico e a memória que o indivíduo ou o grupo de indivíduos mantêm daquele fenômeno. Um dos aspectos mais interessantes do uso das fontes orais é que não apenas se chega a um conhecimento dos fatos, mas também à forma como um grupo os vivenciou e percebeu. É de importância capital resgatar a subjetividade, mas é um grave erro passar a confundi-la com fatos objetivos.

Chama a atenção no trecho acima o cuidado na interpretação das fontes orais. Isso não significa procurar sempre algo calunioso ou dissimulado nos testemunhos. Mas cabe dizer que a análise deve ser cuidadosa, percebendo os caminhos traiçoeiros da memória. No caso da coleção, os depoimentos foram realizados por duas pessoas que desejam narrar o golpe e a ditadura como uma “revolução” que levou o país ao sucesso. Entrevistador e entrevistado, quase sempre militares, partiram de uma mesma perspectiva sobre os fatos, procurando levar a cabo uma história “magistral” da “revolução”. Ou seja, uma espécie de “versão oficial” acerca dos acontecimentos relativos ao 31 de março de 1964.

O uso de fontes orais, além de permitir, como já foi dito, o aprofundamento histórico dos grupos que foram marginalizados, também visa, como bem pontuou Garrido (1993, p. 43), “[...] penetrar na percepção do processo histórico feita por indivíduos ou grupos concretos”. Mas e o entrevistador, é agente importante na elaboração do documento oral?

Seguindo as observações de Garrido (1993, p. 43), em que adverte sobre os cuidados que o entrevistador deve ter:

[...] o mais adequado é que as intervenções do entrevistador sejam mínimas e as mais breves possíveis. Em função disso, o tipo de pergunta deve ser suficientemente genérica, sem que isso implique trivialização, para que o informante se encontre na obrigação e com capacidade para dar respostas ao que lhe foi colocado.

No entanto, não são todos os projetos que seguem essa perspectiva. Embora a organização da coleção examinada tenha se prontificado a seguir uma metodologia séria em torno da História Oral, apresentou elementos que precisam ser discutidos. Os testemunhos envolvidos no empreendimento além de pertencerem, em sua maioria, ao mesmo grupo (militares), são entrevistados por colegas de farda que, como foi destacado na apresentação da coleção, contribuíram “[...] com suas valiosas experiências e insopitável patriotismo” (MOTTA, 2003, t.1, p. 9). Além disso, considera que os fatos sobre os acontecimentos do 31 de março de 1964 e o posterior regime, agora publicados em livros, poderão ser analisados “[...] de forma justa, limpa e honesta”, por aqueles que ganharam a oportunidade de expor suas motivações, de identificar seus propósitos e narrar suas ações. Para o Coordenador Geral da coleção, o General Aricildes de Moraes Motta (2003, t.1, p. 9), as respostas para o uso de terminologias que definem o que ocorreu entre 1964 e 1985, se houve no Brasil uma ditadura, um regime autoritário, uma revolução, uma contrarrevolução, um golpe militar ou um contra golpe, são encontradas na coletânea de depoimentos.

Dessa forma, a coleção apresenta-se de duas maneiras: como história e como fonte. Para o coordenador da coleção, as lembranças dos colaboradores remetem necessariamente ao passado de quem vivenciou aquele período de forma justa, limpa e honesta, como foi destacado acima. A intenção é fazer com que essas entrevistas sejam utilizadas por estudantes, pesquisadores e estudiosos em geral como a “única” história a ser contada.  Por outro lado, a coletânea de depoimentos figura, da mesma forma, como fonte escrita, visto que é mencionado na apresentação que esta seria mais uma “versão” a ser consultada por pesquisadores, e também pelo próprio coordenador geral (MOTTA, 2010). Em todos os volumes foram apresentados, antes das entrevistas, os três objetivos que nortearam a realização do presente trabalho pelo Projeto de História Oral do Exército:

1) Registrar os relatos das personalidades que, direta ou indiretamente, participaram da Revolução de 31 de Março de 1964;
2) Recuperar dados e informações sobre fatos e episódios importantes para a História do Brasil, ocorridos no evento supracitado; e
3) Construir um acervo, adequadamente preparado, para consultas, pesquisas e outros misteres de fundamental interesse para a Força Terrestre (MOTTA, 2003, t. 1, p. 15).

Para o coordenador da coleção, os entrevistadores deveriam, antes de tudo, encorajar os entrevistados, criando um ambiente agradável para a entrevista. No entanto, por mais que o convencimento e a constituição de um ambiente agradável sejam elementos importantes para qualquer projeto de pesquisa que queira êxito, é importante considerar que os princípios que orientaram o projeto de História do Oral do Exército sobre a “revolução de 1964” e o regime civil-militar foi o “árduo” trabalho dos organizadores em elaborar uma “história pátria”, longe do “revanchismo”. Nessa história, por sua vez, estariam alocados os grandes personagens e seus “graúdos feitos”, narrados por “[...] aqueles que foram compelidos a agir em favor da sociedade ameaçada, em conjuntura tão delicada para o nosso País” (MOTTA, 2003, t.1, p. 10). Provavelmente, o encorajamento que o Exército realizou sobre os depoentes para que falassem de maneira “enobrecedora” sobre a “revolução” de 1964 e seus governos, contribuiu para um sentimento de pertencimento a uma corporação, que, segundo acreditam, realizou uma intervenção desejada pela sociedade. Esse sentimento, no caso dos entrevistados militares, faz parte de um “espírito militar”, no qual, de acordo com Castro (1990, p. 17), o ser militar se faz presente desde o processo de socialização vivido pelo cadete nas escolas militares.

Em quase todas as entrevistas há uma breve apresentação do colaborador, que elogia a iniciativa do Exército, como fez o General de Exército Antônio Jorge Corrêa, que em 1964 era Coronel Subcomandante da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN):

É com emoção que presto depoimento sobre a participação da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) no Movimento de Descomunização do Brasil, em março de 1964, em defesa dos ideais democráticos do povo brasileiro, buscando também participar do processo de restauração da disciplina e hierarquia no Exército. [...]
Creio que o esforço que este Projeto vem desenvolvendo, no sentido de resgatar a memória da participação do Exército em fatos importantes, colocará um ponto final nos conceitos desabonadores, frutos da ignorância, da maledicência ou de má fé, com relação ao assunto em questão (MOTTA, 2003, t. 1, p. 30).

Entusiasmadas e recheadas de orgulho, essas mensagens revelam não somente a concepção a respeito da “revolução de 1964”, o que continua no decorrer da entrevista, mas também a crença de que lembrando e registrando suas narrativas sobre os acontecimentos em questão, beneficiariam a sociedade e a corporação militar. De acordo com o General de Exército Antônio Jorge Correa (MOTTA, 2003, t. 1, p. 30), é lamentável o desconhecimento por parte da corporação da verdadeira versão dos fatos, muitas vezes objeto de ironia e até de maldosa crítica. Talvez, mais do que para a sociedade, para alguns dos depoentes a coleção visasse elaborar para a própria corporação sua visão e interpretação dos acontecimentos. É importante pensar que a formação desse acervo por parte do Exército constitui-se na tentativa de narrar os fatos a seu modo, criando um ambiente propício para isso. Ou seja, as entrevistas e os possíveis documentos escritos comporiam as “provas” necessárias que forneceriam legitimidade à “revolução de 31 de março de 1964” e sustentação ao regime civil-militar.

 

Referências

ALBERTI, Verena. Manual de história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.

ALBERTI, Verena. De "versão" a narrativa no manual de história oral. História Oral, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 159-166, jul.-dez. 2012.

BRASIL. Ordem de Serviço (OS) n. 015-SG/3, de 29 de outubro de 1999. Normatiza os projetos de história oral do Exército. Brasília, Secretaria Geral do Exército, 1999.

CASTRO, Celso. A invenção do Exército brasileiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.

CASTRO, Celso. O Espírito Militar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

FERREIRA, Marieta de Moraes. Desafios e dilemas da história oral nos anos 90: o caso do Brasil. História Oral, São Paulo, n.1, p.19-30, jun. 1998.

GARRIDO, Joan Del Alcàzar. As fontes orais na pesquisa histórica: uma contribuição ao debate. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.13, n.25/26, p. 33-54, 1993.

GUSMÃO, Daniel Martins. Os Centros de Pesquisa em História Oral das Forças Armadas: ma breve avaliação. In: Anais do VIII Encontro Regional Sudeste de História Oral, 2008. (anais eletrônicos). Disponível em: < www.fafich.ufmg.br/viiiencontrohistoriaoral/>. Acesso em: 22 out. 2010.

MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Loyola, 2000.

MENDES, Ricardo Antônio Souza. As direitas e o anticomunismo no Brasil: 1961-1965. LOCUS – Revista de História, Juiz de Fora, UFJF, v.10, n.1, p. 79-97, 2004.

MENDES, Ricardo Antônio Souza.. Visões das direitas no Brasil. Tese  (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense, Doutorado em História, Niterói, 2003.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O anticomunismo militar. In: FICO, Carlos (Org.). 1964-2004: 40 anos do golpe – ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de janeiro: 7 Letras, 2004, p. 290-305.

MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo: Perspectiva: 2002.

MOTTA, Aricildes de Moraes. Depoimento, 07 de abril de 2010. Entrevistador Eduardo dos Santos Chaves. Rio de Janeiro, 2010. 01 cd sonoro.

MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.)  31 de março:o movimento revolucionário e sua história. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2003. 15 tomos.

MOTTA, Aricildes de Moraes (Coord.). Segunda Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 2001. 8 tomos.

MOTTA, Aricildes de Moraes História oral: como tudo começou. Texto produzido ao final do projeto, s/d.
REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura, anistia e reconciliação. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.23, n.45, p.171-186, jan./jun. 2010.

THOMPSON, Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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[1] Entendo que a expressão "ditadura militar", comumente utilizada, acaba silenciando os apoios, a colaboração de que o regime dos cinco generais presidentes contou. Ela obscurece a participação de parcela da sociedade na construção da ditadura desde 1964 até a transição democrática em 1985. Embora a ditadura brasileira tenha contado com a militarização de diversos setores políticos, sociais e culturais, não podemos esquecer da atuação de civis nos governos municipais, estaduais, nos ministérios e secretárias, na elaboração de manifestações em apoio ao regime e, por que não dizer, na tomada de decisões em relação às políticas restritivas adotadas ao longo de sua existência. Nesse sentido, o conceito ditadura civil-militar possibilita a compreensão do passado recente, longe do maniqueísmo sociedade versus militares.

[2] Utilizo o termo “revolução”, entre aspas, ao me referir ao Golpe Civil-Militar de 1964, pelo fato da coleção ter empregado a mesma expressão durante os depoimentos.

[3] Partilho das contribuições de Verena Alberti (2012, p. 163) em relação ao emprego do termo "narrativa", "entrevista" ou "relato" na análise de documentos orais, ao invés de "versão". De acordo com Alberti, o termo "versão" apresenta uma certa reivindicação de verdade, algo menor e suscetível ao erro. No entanto, cabe dizer que a expressão "narrativa", empregada ao longo do texto, não significa o mesmo que "ficção".

[4] A editora da Biblioteca do Exército (BIBLIEX), seria a grande “porta-voz” da memória das Forças Armadas, tendo publicado diversas obras sobre inúmeros aspectos relacionados à história do Exército, da Marinha e da Aeronáutica.

[5]Foi o último ministro do Exército do Brasil, entre 1º de janeiro de 1999 e 9 de junho de 1999, no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Com a criação do Ministério da Defesa, assumiu o cargo de comandante do Exército, no qual permaneceu até o fim do governo, em 2003.

[6]A supervisão deste programa está sob as diretrizes da Diretoria do Patrimônio Histórico e Cultural do Exército (DPHCEx), subordinada ao Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx), que por sua vez está subordinado ao Comandante do Exército.

[7] Os coordenadores regionais foram: General Geraldo Luiz Nery da Silva, da seção Rio de Janeiro/Minas Gerais; Coronel Tarcísio dos Santos Vieira, da seção Ceará; Tenente Coronel Ivan Ferreira Neiva e Coronel Roosevelt Wilson de Sant’Ana, da seção do Distrito do Federal; Coronel Ilo Francisco Marques de Barros Barreto, da seção de Pernambuco; Coronel José Gustavo Petito, da Seção de São Paulo; e General José Carlos Rotta, da seção do Rio Grande do Sul.

[8] Expressão utilizada por Aricildes Motta ao se referir aos sujeitos que avaliam positivamente a ditadura civil-militar.

[9] O projeto sobre a Segunda Guerra Mundial foi o primeiro a ser desenvolvido, resultando em oito volumes publicados em 2001. Para maiores informações, ver: MOTTA, 2001.

[10] Os quatro volumes foram publicados em 2007.

[11] BRASIL. Ordem de Serviço (OS) nº 015-SG/3, de 29 de outubro de 1999. Normatiza os projetos de história oral do Exército. Brasília, Secretaria Geral do Exército, 1999.

[12] Essa expressão encontra-se na OS nº 015-SG/3 e se refere aos indivíduos que seriam entrevistados.

[13] Dentre os 247 depoimentos publicados, encontram-se 27 generais de Exército, 21 generais de divisão, 37 generais de brigada, 79 coronéis, 23 tenentes coronéis, 3 majores, 3 capitães, 2 primeiros tenentes, 2 contra almirante, 2 brigadeiros do ar, 1 major brigadeiro do ar, 1 tenente brigadeiro do ar, 1 coronel aviador e 1 tenente coronel aviador. Entre os civis há 41 depoentes, distribuídos entre as profissões de jornalista, professores, desembargadores, ministros, engenheiros e advogados.

[14] Na OS nº. 015-SG/3, no item Prescrições Diversas, ressalta-se o cuidado que deveria ser tomado pelo coordenador geral do projeto antes de iniciar o seu planejamento. Consta que este deveria examinar os estudos já realizados e efetuar uma visita ao Centro de Pesquisa e Documentação da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV).

[15] Muito embora a coleção não tenha como foco a história de vida dos entrevistados, acredito que o curriculum vitae tenha colaborado na realização das entrevistas, fornecendo aos coordenadores regionais elementos sobre a trajetória do colaborador.

[16] No acervo audiovisual do Arquivo Histórico do Exército, no Rio de Janeiro, pode-se consultar os vídeos das entrevistas publicadas na coleção sobre 1964. Nestes, os depoimentos parecem outros, pois são carregados de vícios de linguagem, o que explica, em certa medida, insegurança em falar a respeito de algum tema, desconforto sobre alguma questão, credibilidade em narrar algum acontecimento etc.

[17] Em contato com o Arquivo Histórico do Exército (AHEx), no Rio de Janeiro, fui informado da inexistência de documentos a esse respeito.

Recebido em: 28/08/2013
Aprovado em: 05/11/2013

Revista Tempo e Argumento
Volume 05 - Número 10 - Ano 2013
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