Márcio Seligmann-Silva
Resumo
O texto divide-se em quatro partes. Na primeira, apresenta-se uma análise do conceito de testemunho, pensado em termos etimológicos, e de seu significado como categoria que significa uma relação particular com o “real”. Na segunda parte, estuda-se a relação do testemunho com as modalidades de escritas do Eu, com ênfase nos conceitos de diário e autobiografia. Em um terceiro momento, apresenta-se o significado político do testemunho, como instrumento de construção de uma memória contra o esquecimento e de um “trabalho de memória” com relação aos traumas sociais. Na quarta parte, estuda-se a situação sui generis do Brasil, onde ainda não se conseguiu instituir uma prática do testemunho e da sua recepção, com relação à ditadura civil-militar de 1964-1985. Este artigo retoma a fala do autor no “I Congresso Internacional da Cátedra Jorge de Sena - Andanças Prodigiosas da Literatura”, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em outubro de 2009, bem como, em determinados momentos, partes de outros artigos dedicados à questão do testemunho que escreveu nos últimos anos.
Palavras-Chave: Testemunho. Memória. Trauma. Ditadura brasileira.
Leo Spitzer, em um pequeno artigo sobre o termo “témoin”, publicado em 1938, já destacara que, com este termo:
Nous sommes donc en présence d’un des nombreux cas ou celui qui exerce une fonction est confundu avec celle-ci (cfr. esp. uncura, fr. guide> [...]). Peut-être pourrait-on inférer de la coexistence des deux sens, qu’il s’agit pas à proprement dire de deux sens, mais que le personage et son rôle ne sont pas distincts dans la conscience de l’individu parlant (1938, p. 374).
Um dos exemplos de Spitzer é o português, idioma em que testemunho e testemunha também indicam esta confusão entre personagem (que testemunha) e seu papel de portador de um testemunho. Mais ainda, pode-se dizer que há uma confusão entre o personagem e o testemunho em si, da mesma forma que tendemos a ver o diário como uma parte de seu autor e as marcas da sua presença.i
Lendo Benveniste, fica claro que o testemunho implica tanto uma proximidade, uma primeiridade (pensando em termos peirceanos), como, em outro sentido, uma capacidade de julgar. Isto não apenas em termos do testemunho jurídico contemporâneo. Desde a Antiguidade, vincula-se testemunha e testemunho a visão. Benveniste recorda que o sânscrito vettar também tem o mesmo sentido de testemunha (témoin) e significa “o que vê”; em gótico, weitwops, particípio perfeito, [...] é aquele que sabe por ter visto; [...]. O grego ístor entra na mesma série”ii (1995, p. 174). O autor cita um texto do Satapatha-Brahmana: “e o valor próprio dessa raiz *wid- se esclarece na regra enunciada no Satapatha-Brahmana: ‘se agora dois homens disputam entre si (têm um litígio), um dizendo ‘eu vi’, o outro ‘eu ouvi’, o que diz ‘eu vi’, é nele que devemos acreditar” (1995, p. 175). Benveniste ainda nota que originalmente arbiter significava também “testemunha” e apenas posteriormente assumiu o sentido de “árbitro”. A testemunha, no sentido de “o que vê”, se aproxima tanto dos paradigmas da historiografia como da cena do tribunal. Neste último sentido, o termo mantém ecos de sua origem em “terstis”, terceiro, enquanto instância para decisão em um julgamento entre duas partes.
Benveniste destaca outro parentesco semântico da noção de testemunha, que pode nos ajudar a pensar melhor a situação do sobrevivente, paradigmática para o século XX. Superstes, como ele comenta, “não é somente ‘ter sobrevivido a uma desgraça, à morte’, mas também ‘ter passado por um acontecimento qualquer e subsistir muito mais além desse acontecimento’; de ter sido, portanto, ‘testemunha’ de tal fato” (1995, p. 277). Vale recordar também esta outra passagem:
Verificamos a diferença entre superstes e testis. Etimologicamente, testis é aquele que assiste como um “terceiro” (terstis) a um caso em que dois personagens estão envolvidos; e essa concepção remonta ao período indo-europeu comum. Um texto sânscrito enuncia: “todas as vezes em que duas pessoas estão presentes, Mitra está lá como terceira pessoa”; assim o deus Mitra é, por natureza, a “testemunha”. Mas superstes descreve a “testemunha” seja como aquele “que subsiste além de”, testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como “aquele que se mantém no fato”, que está aí presente (1995, p. 278).
Benveniste não toca na proximidade e contaminação semântica entre os dois sentidos latinos de testis (que significa tanto testemunho como testículo)iii.
O “manter-se no fato” do superstes remete à situação singular do sobrevivente como alguém que habita na clausura de um acontecimento extremo que o aproximou da morte. Nosso mártir moderno está mais perto deste sentido do que do testemunho como testis. O modelo do testemunho como superstes tem a audição e não a visão em seu centro. Pensar a história a partir dele significa aprender a diminuir o papel dado ao ístor do termo e se pensar em uma história mais auricular: aberta aos testemunhos e também ao próprio evento do testemunhar, sem reduzir o testemunho a meio. O modelo do testemunho como testis é visual e corresponde ao modelo do saber representacionista do positivismo, com sua concepção instrumental da linguagem e que crê na possibilidade de se transitar entre o tempo da cena histórica (ou a “cena do crime”) e o tempo em que se escreve a história (ou se desenrola o tribunal). A crítica do testemunho que ocorre na psicologia, especificamente na psicologia forense, parte deste paradigma visual ao pôr em questão a capacidade de percepção da cena, de seu armazenamento e da sua restituição.iv Ao voltarmo-nos para o paradigma do superstes, os valores são outros. Aqui, pressupõe-se uma incomensurabilidade entre as palavras e esta experiência da morte, um topos na bibliografia sobre o testemunho no século XX.
Na cena do testemunho como superstes, o presente do ato testemunhal ganha precedência.v Creio, no entanto, que não se trata de simplesmente trocar um modelo pelo outro. Valorizar o paradigma do superstes não deve implicar uma negação da possibilidade do testemunho como testis (como, por exemplo, Giorgio Agamben o sugerevi). Entendo que os caminhos da memória e do esquecimento do mal sofrido passem também pela construção da história e pelos julgamentos propriamente jurídicos. O essencial, no entanto, é ter claro que não existe a possibilidade de se separar os dois sentidos de testemunho, assim como não se deveria separar de modo rígido historiografia da memória. Devemos aceitar o testemunho com o seu sentido profundamente aporético de exemplaridade possível e impossível, de singularidade que nega o universal da linguagem e nos remete para “diante da lei”, “Vor dem Gesetz”, para lembrarmos Kafka, mas ao mesmo tempo exige e cobra esta mesma lei.vii Ao invés de reduzir o testemunho ao paradigma visual, falocêntrico e violento (que tende a uma espetacularização da dor), e sem esquecer testis a favor apenas de superstes, minha proposta é entender o testemunho na sua complexidade enquanto misto entre visão, oralidade narrativa e capacidade de julgar: um elemento complementa o outro, mas eles relacionam-se também de modo conflituoso. O testemunho revela a linguagem e a lei como constructos dinâmicos, que carregam a marca de uma passagem constante, necessária e impossível entre o “real” e o simbólico, entre o “passado” e o “presente”.
Se o “real” pode ser pensado como um “desencontro” (algo que nos escapa como o sobrevivente o demonstra a partir de sua situação radical), não deixa de ser verdade que a linguagem e, sobretudo, a linguagem da poesia e da literatura, busca este encontro impossível. Vendo o testemunho como o vértice entre a história e a memória, entre os “fatos” e as narrativas, entre, em suma, o simbólico e o indivíduo, esta necessidade de um pensamento aberto para a linguagem da poesia no contexto testemunhal fica mais clara. Paul Celan remeteu insistentemente, no seu famoso discurso “Der Meridien” (de 22.10.1962), a esta ideia de um “encontro misterioso”, “geheimnis Begegnung”, que implica justamente a capacidade “trópica” da língua de unir e cortar pontos aparentemente isolados uns dos outros. “Niemand /zeugt für den/ Zeugen”, lemos no poema “Aschenglorie”: ninguém testemunha para quem testemunhou, para quem vivenciou o invivível. Mas o testemunho ocorre, “se dá” e é prova e manifestação destes encontros. Voltaremos a este ponto mais adiante.
O diário como autoescritura performática e exemplo do local do testemunho
Permito-me fazer aqui um pequeno excurso sobre o diário, para tentar mostrar especificamente o local do testemunho no campo literário. Em um ensaio recente, Philippe Lejeune contrapõe a autobiografia e o “journal”.viii Para ele, a autobiografia flertaria com a ficção, enquanto o diário teria uma tendência para a verdade: “l’autobiographie vit sous le charme de la fiction, le journal a le béguin pour la vérité” (LEJEUNE, 2009, p. 3). Lejeune prefere manter bem separados os campos de força da ficção e da autoescritura. “J’aime l’autobiographie, j’aime la fiction, j’aime moins leur mélange” (LEJEUNE, 2009, p. 3). Para ele, o diário seria um bom meio para se atingir tal objetivo. O diário é, segundo ele, “antificção”, assim como falamos em uma pista “antiderrapante” (LEJEUNE, 2009, p. 4). De resto, ele se orgulha de ter formulado o que seria a primeira teoria da antificção. Mas, antes, creio que Lejeune deveria se questionar por que, de modo acertado, a teoria literária havia até ele evitado este “palavrão”. Pois, se Lejeune acredita, com Ricoeur, que somos hommes-récits (homens-narrativas) ele também quer impedir qualquer suspeita de que sejamos o que ele chama de hommes-mensonges(homens-mentiras). Em Lejeune, tudo se passa como se, para garantir nossas identidades, tivéssemos de construir barreiras de gênero em torno da autoescritura. Esta crença em um gênero que poderia travar o que pode ser denominado de processo de ficcionalização, que considero inerente a toda narrativa, parece-me questionável.ix Já o grande teórico do testemunho, Jean Norton Cru (1929)x, caiu neste erro — que pode se justificável em um positivista em 1929, mas que talvez seja imperdoável em um teórico da literatura em 2007. Equacionar ficção e mentira também é complicado, pois, além de a fantasia não ser necessariamente avessa à verdade, da mesma forma a mentira não existe dentro e fora da literatura.
Por outro lado, é inegável que podemos identificar no diário algo como as marcas e traços do presente de sua escritura. O diário produz páginas que se embaralham com a vida de seu autor-protagonista.xi Nele somos tocados pelo ar que o personagem respirava. Tendemos e ver nele um testemunho, ou seja, um índice, metonímia, e não uma metáfora, que é tradução imagética e mais distanciada dos fatos arrolados. Além disto, o diário possui também uma respiração, um ritmo, que expressa a situação anímica e corpórea de seu autor e para ela aponta. Os traços materiais inscritos no diário — que muitas vezes se desdobram em características bem sensíveis, matéricas, como o estado do papel, a caligrafia, os borrões de tinta, as rasuras, etc. — reforçam o teor testemunhalix do diário. Quando falamos de diário, mais do que nunca sua base matérica — o suporte do diário — se torna importante e elemento essencial da obra. Vemos o diário como parte do evento narrado, e não como observação de segunda ordem — por mais equivocada que esta percepção possa ser em alguns casos. Não se trata de uma “antificção”, como quer Lejeune, mas de uma inscrição da vida — e da morte, vale acrescentar, pensando em toda escrita como autotanatobiomitografiaxii; — na qual a fantasia e a literatura não impedem que acreditemos no “real” que estava na sua origem. É como se no diário se fundissem “autor”, texto e temporalidade.
Tamanha é a força perlocutória de convencimento do ato de escrita do diário, que ela reverbera em boa parte da literatura, sobretudo desde o Romantismo, como vemos em Goethe, Dostoievski, Kafka, Graciliano Ramos, Thomas Bernhard, Georges Perec, W.G. Sebald, J.M. Coetzee, entre tantos outros autores. Seu convencimento estético é reforçado por um elemento ético. A escrita é vista tanto como ducto por onde escorre a vida privada, como também, em muitos diários, neste duto misturam-se de modo claro as águas da vida pública. O texto, nestes casos, se transforma em um dique. A potência que guarda pode ser transformada em energia mesmo muitos anos depois de passados os fatos, justamente porque na estrutura do texto se entrecruzam, em uma trama, a vida íntima com a pública, o trabalho literário com as marcas do “real”. No limite, tendemos a ver nestes diários uma escrita performática. Não podemos separar, como pretendeu Lejeune no referido artigo, o literário e a ficção. Não se trata apenas do fato de que o autor do diário elege o que vai inscrever do real que o cerca. A electio (seleção) retórica é parte de todo discurso. O autor cria um universo íntimo e a realidade que o envolve, conforme sua capacidade de transpor imagens e palavras, palavras e imagens e saltar entre elas. Tradução, como o próprio Benjamin observou em um texto famoso, é uma forma: não é mera mímesis, imitação, cópia em outra língua.Ao invés da visão corriqueira que vê no diário uma representação e imitação dos fatos da vida, aprendemos agora a ler, nestas páginas, fragmentos de um presente que se amontoa diante de nós: de um passado que não passou. Pretérito presente, presente do passado. Fruto de um trabalho de coletor e de arranjador de fragmentos.
Mas é claro que não existe um acesso direto a estas ruínas. Elas se misturam com as de nossos presentes. À escrita performática do diário responde a nossa própria leitura performática, na qual nos lemos no espelho do diário. Refletimo-nos, assim, nos cacos e estilhaços dos diários que lemos. Trata-se de uma leitura, portanto, particularmente autorreflexiva e que será tanto mais demandada quanto mais nossa autoimagem estiver em crise. Desde o Romantismo, mais e mais esta escrita-espelho da autoescritura — sobretudo do diário — é performatizada e hoje vivemos um verdadeiro boom da escrita e da leitura de diários ou de textos literários profundamente contaminados por este ato linguístico-literário. O mesmo se passa nas artes plásticas e no mundo da web, com sua blogosfera pontilhada por milhões de diários. A autoficção virou moda.
Lejeune lembra de Barthes que, em seu último curso sobre a preparação do romance, formulou a incompatibilidade entre o tempo presente e a ficção. O romance (ou a ficcionalização) exigiria uma distância. Ora, mas é justamente este modelo do romance que implicava certa distância que está em crise no século XX. Este distanciamento tornou-se impossível, ou, caso seja simulado, aparece agora ao leitor como um truque sem graça. Na sua rejeição desta mistura entre ficção e agora, Lejeune equaciona a reconstrução imaginária do presente não só com a mentira, mas também com a loucura. Com efeito, trata-se de uma escritura louca, a do diário, se aceitarmos que ele não é pura factografia, mas trabalho de acumulação criativa de fragmentos. Na verdade, o diário é uma aporia, vale dizer: é a aporia. Ele mostra e atua (no sentido de uma mise en scène) o enfrentamento do real, do simbólico e do imaginário. É o grande fantasma da literatura desde o Romantismo, que vem sendo exorcizado pelos adeptos da “arte pela arte” de diferentes matizes e gerações, mas que comungam deste mesmo purismo e aversão ao real. Eles são os entusiastas da torre de marfim e tentam resolver a crise romântica do indivíduo burguês — que se vê obrigado a mergulhar na prosa da vida para sobreviver — com uma suposta capacidade da poesia de criar uma u-topia limpa, um local livre deste real “sujo” do mundo das relações prosaicas (econômicas). A literatura desde o Romantismo vive desta crise, que se desdobra na questão da autoria da obra: campo assombrado pelas figuras do autor, do narrador e dos personagens. Do ponto de vista romântico, a obra é tanto uma voz sempre parcial, parte de um canto polifônico de uma grande obra em processo, como também, e paradoxalmente, fruto original e singular de uma mente “genial”. Este conflito entre o todo e o indivíduo desdobra-se na visão da literatura, a partir de então, como o campo de embate entre um “Eu” sem pátria, moderno, e um “mundo” que lhe é estranho. Daí também todos os dilemas e oscilações entre a terceira pessoa — supostamente mais objetiva, realista e naturalista — e a primeira, subjetiva, e a criação do discurso indireto livre. Os grandes autores pós-românticos – como Baudelaire, Dostoievski, Proust, Joyce, Beckett e tantos outros – foram aqueles que não tentaram resolver este dilema que divide a existência burguesa entre as forças da prosa e as da poesia, entre o ele e o eu. O testemunho e o diário são dispositivos que surgem na literatura dentro deste embate entre este Eu moderno e o Mundo, sobretudo quando o mundo se apresenta como uma manifestação violenta. Testemunho e diário são marcas ou pegadas do indivíduo na era da sua desaparição. Este indivíduo precisa se apegar a um Eu que ele está recriando e reafirmando tanto quanto lhe é permitido por um mundo que o puxa, se não para o extermínio, ao menos para o anonimato e para a sua insignificância.
Lejeune tem o mérito de, de dentro da referida tradição purista, valorizar o diário. Mas por motivos que considero equivocados. Ele traça esta linha entre o diário e a ficção que é não só facilitadora e confortável, mas também equivocada (positivista), e bloqueia justamente o que o diário possui de mais rico e complexo: a “indizibilidade” entre o real e a ficção. Mas Lejeune está com razão quando afirma, por exemplo, que “Le journal est une sorte d’‘installation’, qui joue sur la fragmentation et la dérive, dans une esthétique de la répétition et du vertige très différente de celle du récit classique.”xiv Ele também acerta ao notar que o diário “contesta os modelos estéticos clássicos” e exige do leitor um papel mais ativo.xv O diário nos ensina a ler com outros olhos, a rever o campo literário que ainda se encontra — apesar dos duzentos anos de crítica romântica e pós-romântica — submetido aos ditames neoclássicos do estético.
A incomensurabilidade do real
A referida incomensurabilidade entre as palavras e a experiência da morte, de onde deriva a peculiaridade das escritas com alto teor de testemunho, está na origem de várias questões centraisxvi: uma delas é a do negacionismo. Hélène Piralianxvii tratou desta questão em um importante livro de ensaios sobre o genocídio dos armênios em 1915-16, que ela aborda sob o signo de uma escritura contra o negacionismo. Aquele genocídio, que atingiu cerca de 1.200.000 armênios do então Império Otomano, de uma população total de cerca de 1.800.0000, até hoje é negado pelo governo da Turquia. Ainda em 2005, um congresso sobre este genocídio, que deveria ocorrer na Universidade de Bogazici, foi impedido pelo governo turco.xviii Para Piralian, o desafio do testemunho deste genocídio negado — que assim matou duas vezes suas vítimas e continua a assassiná-las simbolicamente — é o de se construir em termos coletivos espaços para além do desejo da vingança, da parte dos descendentes das vítimas, e com a renúncia da negação, do lado dos turcos. Apenas deste modo ela crê que se poderia finalmente proceder ao trabalho de luto, que até o momento foi travado e impedido por conta da negação. O negacionismo, neste caso, é apenas um caso particularmente radical de um movimento que acompanha o gesto genocida. O genocida sempre visa à total eliminação do grupo inimigo para impedir as narrativas do terror e qualquer possibilidade de vingança. Os algozes sempre procuram também apagar as marcas do seu crime. Esta é uma questão central, que assombra o testemunho do sobrevivente em mais de um sentido. Em primeiro lugar, porque o sobrevivente vive o sentimento paradoxal da culpa da sobrevivência. A situação radicalmente outra, na qual todos deveriam morrer, constitui sua origem negativa. A indizibilidade do testemunho ganha com este aspecto um peso inaudito. Mas o negacionismo é também perverso, porque toca no sentimento de irrealidade da situação vivida. O teor de irrealidade é sabidamente característico quando se trata da percepção da memória do trauma. Mas, para o sobrevivente, esta “irrealidade” da cena encriptada desconstrói o próprio teor de realidade do restante do mundo. E mais, o negacionista parece coincidir com o sentimento comum que afirma a impossibilidade de algo tão excepcional. O apagamento dos locais e das marcas das atrocidades corresponde àquilo que no imaginário posterior também tende a se afirmar: não foi verdade. A resistência, quando se trata de enfrentar o real, parece estar do lado do negacionismo. Este sentimento comum mora no próprio sobrevivente e o tortura, gerando uma visão cindida da realidade. Piralian nota que o testemunho visa à integração do passado traumático. Esta integração só pode ser conquistada contra o negacionismo. Não por acaso se conta que Hitler, em um discurso a seus chefes militares em 22 de agosto de 1939, às vésperas da invasão da Polônia, teria dito “Quem se lembra hoje do extermínio dos armênios [durante a Primeira Guerra Mundial]?” Sua intenção era clara: apenas o lado heróico da guerra seria lembrado; a impunidade estaria garantida. A negação antecedeu o próprio ato, ou seja, a tentativa de extermínio dos judeus europeus. A memória da barbárie tem, portanto, também este momento iluminista: preservar contra o negacionismo, como que em uma admoestação, as imagens de sangue do passado.xix
Para Piralian, a simbolização do evento implica a “(re)construção de um espaço simbólico de vida”.xx Esta simbolização deve gerar um retemporalização do fato antes embalsamado. Ele se junta, assim, ao fluxo dos demais fatos da vida. Piralian fala também, e de modo muito feliz, de uma tridimensionalidade advinda da simbolização. Em vez da imagem calcada e decalcada, chata, advinda do choque traumático, a cena simbolizada adquire tridimensionalidade. A linearidade da narrativa, suas repetições, a construção de metáforas, tudo trabalha no sentido de dar esta nova dimensão aos fatos antes enterrados. Conquistar esta nova dimensão equivale a conseguir sair da posição do sobrevivente para voltar à vida. Significa ir da sobrevida à vida. É claro que nunca a simbolização é integral e nunca esta introjeção é completa. Falando na língua da melancolia, podemos pensar que algo da cena traumática sempre permanece incorporado, como um corpo estranho, dentro do sobrevivente. Na cena do trabalho do trauma, nunca podemos contar com uma introjeção absoluta. Esta cena nos ensina a ser menos ambiciosos ou idealistas em nossos objetivos terapêuticos. Para o sobrevivente, sempre restará este estranhamento do mundo, que lhe vem do do fato de ele ter morado como que “do outro lado” do campo simbólico. O testemunho funciona para ele como uma ponte para fora da sobrevida e de entrada (volta) na vida. Neste testemunho, misturam-se fragmentos, como que estilhaços (metonímias) do seu passado traumático, a uma narrativa instável e normalmente imprecisa, mas que permite criar o referido “volume” e, portanto, um novo local fértil para a vida.xxi
O caso da ditadura civil-militar no Brasil ou o não-lugar do testemunho
Considero essencial, ao tratar do testemunho, ou seja um gesto marcado pelo presente, tratarmos também de nosso aqui e agora. No Brasil assistimos, nas últimas décadas, a um debate sobre a memória da ditadura civil-militar de 1964-1985, que merece ser ao menos mencionado aqui. Recentemente, Rosalina Santa Cruz, na abertura do “Seminário Internacional 30 anos da Anistia no Brasil: o direito à memória, à verdade e à justiça”xxii, falou que gostaria de propor novamente, como ela o fizera em 1979, uma CPI da tortura. Esta proposta, que para quem não conhece a história recente do Brasil pode parecer insólita, é emblemática com relação ao enfrentamento do terror de Estado no Brasil pós-ditadura. Trinta anos após a Anistia, está mais do que claro que aquela manobra dos donos do poder, ou seja, a lei de Anistia, visava antes de mais nada a garantir a impunidade. De 1979 a 2009, com relação à revelação da verdade e ao julgamento dos responsáveis pelos crimes cometidos pelas garras do poder, é como se o tempo se tivesse estancado. Rosalina disse também que não falava em seu nome, mas no de uma coletividade. Este gesto é típico, como sabemos, de boa parte dos depoimentos e da escrita testemunhal de catástrofes. A memória, antes de ser individual, é coletiva. No caso específico dos que sofreram sob o terrorismo de Estado, esta coletividade é a daqueles que se opuseram ao Estado de exceção. Mas sabemos também – como vimos com Celan – que é impossível testemunhar pelo outro. Testemunhar, assim como atestar, tem a ver com “ter visto” e não podemos ver pelo outro. A coletividade, no entanto, se constrói primeiro como um grupo com laços políticos. Esse grupo se tornou vítima da violência. A memória do mal passou a ser algo compartilhado por esse grupo e o século XX viu inúmeras sociedades serem fragmentadas em grupos que compartilhavam a experiência comum de uma barbárie. O século XX foi um século de catástrofes, de genocídios e de perseguições em massa. Ele gerou um número de mortes e de sociedades devastadas pela violência como nunca antes se vira. Muitas populações ocuparam este lugar de vítima.xxiii No Brasil, desde a última ditadura, constitui-se uma sociedade da qual uma fração se identifica com o desejo de busca da verdade dos fatos ocorridos sob a ditadura. Essa fração luta pela memória e pela justiça. Este grupo é constituído pelas vítimas, pelos solidários com elas e por muitos que acreditam na importância de se estabelecer justiça como condição de construção de um Estado de direito autenticamente justo e democrático.
Aqueles que foram perseguidos no período de exceção são, antes de mais nada, vítimas. Mas existe a possibilidade de esta comunidade sair desta posição de vítima. O testemunho pode, justamente, servir de caminho para a construção de uma nova identidade pós-catástrofe. A uma era de violência e de acúmulo de crimes contra a humanidade corresponde também uma nova cultura do testemunho. O testemunho tanto artístico/literário como o jurídico pode servir para se fazer um novo espaço político para além dos traumas que serviram tanto para esfacelar a sociedade como para construir novos laços políticos. Esta passagem pelo testemunho é, portanto, fundamental tanto para indivíduos que vivenciaram experiências-limite, como para sociedades pós-ditadura. No caso da América Latina, existe uma vastíssima produção de cunho testemunhal. A esta produção somam-se os inúmeros testemunhos que estão sendo realizados já há alguns anos em tribunais. Mas este caminho testemunhal, que países como Argentina, Chile e Uruguai estão trilhando, é muito pouco compartilhado pelo Brasil. Nesse país, a transição para a democracia foi engasgada por articulações políticas que — com leis como a da Anistia (tal como ela foi formulada e é interpretada) e com a continuidade de políticos como Sarney no coração do Estado — impediram a passagem pelo testemunho. Nossas vítimas não puderam se transformar em acusadores, os eventos da ditadura não puderam sequer ser transformados em fatos. O fantástico e escandaloso sequestro das provas e dos testemunhos mantém o Brasil como que congelado no tempo, quando se trata do enfrentamento político-jurídico e do trabalho de memória da nossa ditadura. As elites simplesmente decidiram que “a página da história deve ser virada”. Elas estigmatizam as tentativas de se estabelecer a verdade e a justiça como meros atos de revanchismo. Como Eugenia Fávero colocou muito bem no referido seminário sobre a anistia de 2009, nossos juízes defendem a interpretação da conectividade dos crimes, tratada na lei de Anistia, como um impedimento e bloqueio a qualquer tentativa de se abrir processos contra os torturadores e seus mandatários. Trata-se de uma querela de interpretação, ou seja, de um debate antes de mais nada político.
O bloqueio e o sequestro do testemunho impedem que este se dê tanto em sua forma jurídica — que se quer objetiva —, como também nos moldes dos demais testemunhos falados e escritos. Nossa literatura testemunhal é comparativamente muito pequena. Alguns livros coletam testemunhos de ex-prisioneiros, como o de Alípio Freire sobre o presídio Tiradentes.xxiv Apenas recentemente, em 2009, um projeto coordenado por Marcelo Ridente e Zilda Márcia Iokoi, e que conta com Janaina Teles como sua principal pesquisadora, está iniciando um trabalho de entrevistas com ex-combatentes do regime civil-militar. Trata-se de um trabalho fundamental, mas os trinta anos de “atraso” não deixam de nos assustar. É verdade que existe um filme fundamental, quando se trata de testemunho da ditadura no Brasil - Que Bom te ver viva -, de Lúcia Murat, de 1989; mas ele também é uma exceção. Em nossa literatura, é forte a tradição de apresentar a violência. Autores como Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Drummond apresentaram muitos aspectos da violência que marca profundamente nossas estruturas sociais desde sempre. Com relação à ditadura de 1964-85, temos autores como Antonio Callado, Paulo Francis, Carlos Sussekind e Renato Pompeu que, em suas obras, fizeram um interessante enfrentamento da questão da violência e de sua representação.
Mais recentemente, o livro de Tatiana Salem Levy, A chave de casa (2007), apresentou de um modo que me parece bastante convincente esta situação de parte da sociedade brasileira que só pode se relacionar com o passado violento da ditadura como um terrível peso, uma herança que nos oprime e que não pode ser transformada em discurso; não consegue ser processada tanto no sentido simbólico como no jurídico. Não há processo aqui; apenas estancamento. O livro narra a história de uma mulher que nasceu em Lisboa, filha de pais brasileiros exilados, e que retorna ao Brasil no mesmo ano, logo após a anistia. Ela nasceu, de modo simbólico, no ano de 1979, ano que deveria representar uma virada, um início de democratização e de acerto de contas com o passado. Não por acaso essa personagem é obcecada por seu passado. Ela decide persegui-lo para tentar exorcizá-lo. O percurso narrado é o de uma busca isolada, individual, de enfrentamento desse passado, das torturas e do exílio dos pais. Neste sentido, o livro, que joga com o registro da autoficção, é muito realista. Na sua viagem, a personagem volta à sua terra natal, Lisboa, e o que encontra lá é uma relação carnal. É como se a redenção passasse agora pelo corpo, pelo indivíduo. Esta personagem, quase alegórica, apresenta um mundo pós-utópico e mergulhado na melancolia. Após o desencanto e os sofrimentos provocados pela grande política, é como se a saída fossem os “cuidados de si”. Mas esta obra e os demais autores que mencionei acima não são suficientes para criar uma cultura da memória, como a que percebemos em outros países da América Latina. Daí críticas como a de Beatriz Sarloxxv a esta cultura da memória e aos “excessos” de testemunho não ter nada a ver com a nossa realidade. Mal começamos a testemunhar. Não temos o testemunho como testis, ou seja, o testemunho jurídico, nem o testemunho como superstes, o testemunho como a fala de um sobrevivente que não consegue dar forma à sua experiência única. Nossos testemunhos estão sufocados pelas amarras de uma “política do esquecimento” que não conseguimos até agora desmontar. De certa maneira, podemos dizer que as vítimas e aqueles que lutam pela verdade, pela memória e pela justiça ficam relegados pelos donos do poder a uma posição melancólica, difícil de aceitar e de com ela conviver. Ela destrói. O grande desafio que se coloca hoje, 30 anos depois da anistia, é quebrar as barreiras que até hoje impediram este trabalho de testemunho de entrar em funcionamento.
É evidente que muito trabalho foi feito, com destaque para as realizações da Comissão de Familiares de Mortos e de Desaparecidos Políticos, que tem levado adiante lutas pela abertura de arquivos, pela construção de memoriais, pela reversão do efeito perverso da lei de Anistia de 1979. Exemplo desse trabalho é a recente publicação do volume Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985), o mais completo estudo realizado até hoje sobre o tema, que contém a lista de 426 mortos e desaparecidos por perseguição política na ditadura civil-militar brasileira, com informações inéditas e vários novos nomes de vítimas daquele regime. O referido evento sobre a anistia de 2009 decerto também não teria acontecido se não fossem os esforços dessa Comissão de Familiares. Muito já foi feito e devemos reconhecer os avanços, como a vitória obtida no processo contra o coronel Ustra, movido pela família Teles. Mas a luta desta e de outras comissões tem sido até agora uma luta de Davi contra Golias, mas sem a vitória do primeiro. Trata-se de uma luta que ainda não conquistou a sociedade e que está muito dependente de iniciativas das vítimas. Quando os testemunhos dos sobreviventes se tornarem parte dos currículos escolares, quando arquivos forem abertos, mais memoriais debatidos e construídos, quando os tribunais forem abertos aos testemunhos dos que sofreram sob a ditadura, quando a verdade começar a se delinear e os responsáveis forem levados a pagar pelo que fizeram, aí sim teremos a nossa cultura da memória. Aí poderemos debater também de modo mais claro os limites da fala testemunhal. Por enquanto, este debate no Brasil é feito a partir de outras culturas da memória, como a do Holocausto e a de nossos países vizinhos.
Para desenvolver esta ideia, gostaria de citar uma passagem de Jean-François Lyotard, do seu Le différend, de 1983, e comentar em que medida sua reflexão sobre o colapso do testemunho se aplica a nós. Recordo apenas que este seu livro foi escrito contra as ondas revisionistas e negacionistas do Holocausto. Tratava-se de pensar uma postura crítica com relação ao testemunho, mas sobretudo de uma tentativa de salvá-lo das máquinas negacionistas. Cito e comento uma passagem do referido ensaio desse autor:
É característico da vítima não poder provar que ela sofreu um dano. Um sujeito que acusa [plaignant] é alguém que sofreu um prejuízo e que dispõe de meios para prová-lo. Ele os perde se, por exemplo, o autor do prejuízo acontece de ser diretamente ou indiretamente o seu juiz.
No Brasil, isto em parte aconteceu graças a um processo de redemocratização, orquestrado pelos algozes e seus cúmplices. A transição ficou nas mãos dos que realizaram a violência e de seus aliados, o que até hoje tem cerceado a busca de verdade e justiça. “Este [juiz], continua Lyotard, “possui a autoridade de rejeitar seu testemunho como falso ou a capacidade de impedir a sua publicação. Mas este é apenas um caso particular”.
No Brasil até hoje se cerceiam as tentativa de apresentação das provas. Os arquivos estão fechados e os cadáveres, desaparecidos. No caso dos que procuram testemunhar, eles não encontram eco na sociedade. Mesmo ocorrendo a publicação, estes testemunhos não se tornam públicos, no sentido de que não entram na esfera pública. Sem um ouvido, não se dá o testemunho. Testemunhar é um ato que ocorre no presente. Nosso presente ainda não se abriu para estes testemunhos. “De um modo geral aquele que acusa torna-se uma vítima quando não é possível nenhuma apresentação do dano que ele afirma ter sofrido.” (id., op. cit.)
Entre nós é isto que ocorre. Esta apresentação do dano é reprimida até o limite máximo, mas quando ela se dá, não existe recepção do testemunho e das provas. Os meios (a mídia e os agentes de opinião) como que fazem um trabalho de destruição deste material: ele é ao mesmo tempo apresentado e anulado, encarado como um resquício indesejável de um passado que deve ser considerado passado.
Reciprocamente, o “crime perfeito” não consistiria em matar a vítima ou as testemunhas (ou seja, acrescentar novos crimes ao primeiro e assim agravar a dificuldade de apagar tudo), mas antes em obter o silêncio das testemunhas, a surdez dos juízes e a inconsistência (a insanidade) do testemunho. (LYOTARD, 1983, 22)
No Brasil é esta desconstrução do testemunho que sempre esteve em jogo. Mas se isto também ocorreu em outros países da América Latina, a originalidade do caso brasileiro está em, mesmo encerrado o período da ditadura, ter sido mantida esta máquina de esquecimento. O debate político não conseguiu por em movimento a vítima no sentido de ela se transformar em um sujeito que acusa. A sociedade negou às vítimas o direito à acusação. A vítima foi tratada como alguém alheio à esfera do direito, como um menor a ser tutelado e tratado com migalhas de justiça e de verbas. É evidente que a Anistia de 1979 foi uma peça fundamental nesta desmontagem do testemunho, neste cerceamento da comprovação e do tornar-se públicos os crimes cometidos dos anos 1960 em diante. O crime perfeito da nossa ditadura civil-militar consistiu em conseguir de fato silenciar as testemunhas — por mais que elas fossem a público —, em articular a surdez jurídica (lembremos das inúmeras interpretações forçadas da lei da Anistia, que a transformaram em uma anulação de qualquer teor criminal dos terríveis feitos durante a ditadura realizados pelos braços do poder). Por fim, aqueles criminosos conseguiram — com ajuda da mídia — convencer a sociedade de que toda busca pela memória, verdade e justiça seria apenas revanchismo. Os que tentam se tornar acusadores são imediatamente transformados em vítimas que apenas sofrem de feridas que já deveriam ter sido fechadas. Na batalha pela memória-verdade-justiça, os donos do poder — de ontem e de hoje – impõem a lei da mordaça e do silêncio. Mesmo a voz que soa não encontra ouvidos nesta sociedade “cordial”. “Neutraliza-se o destinador, o destinatário, o sentido do testemunho; tudo se passa então como se ele não tivesse um referente (um prejuízo) (LYOTARD 22).
No Brasil vale observar como esta equação pode ser compreendida. O destinador, ou seja, aquele que transmite a mensagem, é transformado em vítima que sofre uma patologia da memória. Projeta-se nele a figura do vingador, de alguém sem controle e, portanto, um menor em termos jurídicos. O destinatário é neutralizado porque a sociedade é mobilizada contra a luta pela tríade memória-verdade-justiça. Dentro da sociedade, o sistema jurídico faz valer sua fama de labirinto kafkiano que emperra eternamente os processos dos “pequenos” e funciona de modo instantâneo para os poderosos. Já o sentido do testemunho é neutralizado pelas duas operações anteriores e pelo impedimento de que mais testemunhos e provas venham à tona. Os poucos testemunhos publicados no Brasil, como afirmei, nem de longe tiveram o impacto da literatura testemunhal de nossos vizinhos. Se no Brasil tínhamos, é verdade, uma potente música de forte caráter testemunhal, também ela foi rapidamente esquecida e transformada em artigo de museu após 1985. Ao se tratar dos testemunhos publicados no Brasil, de Renato Tapajós, Fernando Gabeira, Salinas Fortes, Flávio Tavares, entre outros, devemos, antes de mais nada, tentar falar sobre a ausência deste testemunho; descobrir em que medida não temos uma cultura da memória. Estes testemunhos são exceções e, como tais, tampouco foram capazes de quebrar a barreira de silêncio que o establishment impõe com relação a tudo que se reporte à tríade memória-verdade-justiça. Se é verdadeiro que é impossível falar-se estas palavras no singular, por outro lado, justamente o modelo de memória da ditadura que predominou até agora entre nós (desenhado em grande parte ainda durante aquela ditadura, com base no mito do “milagre econômico”), também não pode ser mantido como a face da verdade. Muito menos o casuísmo provocado pela lei da Anistia de 79, que tem servido para bloquear qualquer movimento — novamente com raríssimas exceções — pode ser equacionado com o que deveríamos aceitar por justiça. O escândalo desta situação no Brasil é que o referente, ou seja, aquilo que deveria ser testemunhado, desaparece de nosso campo visual e simbólico. Isto vale não apenas com relação à justiça, mas com relação à verdade dos fatos e também com relação à memória. A falta de uma topografia da memória do mal em nossas cidades e em nossas mentes é patente. Ainda temos poucos memoriais em homenagem aos perseguidos e aos desaparecidos, assim como, por conta desta forte propaganda anti-memória da ditadura, não nos identificamos com a cultura da memória de nossos vizinhos. No Brasil, a política do aniquilamento da memória acaba por aniquilar os fatos. Segundo palavras de ??? Lyotard: “Se não existe ninguém para administrar a prova, ninguém para a admitir, e/ou se a argumentação que a sustenta é considerada absurda, aquele que acusa é indeferido, o dano do qual ele se queixa não pode ser atestado.”
Ou seja, voltando ao nosso caso, o testemunho não acontece. Nem a cena que permitiria a apresentação do testemunho existe, seja o literário, seja o jurídico. Não há espaço para a literatura de teor testemunhal que trate da ditadura, assim como na esfera jurídica os tribunais estão fechados pela lei da Anistia. É sintomático como, em livrarias de cidades como Buenos Aires, Santiago do Chile e Montevidéu, se reservou um generoso espaço para as obras relativas ao período da ditadura. Isto não ocorre no Brasil. Eu gostaria de escrever: isto ainda não ocorre no Brasil. Se não há espaço para as publicações testemunhais, tampouco há espaço para o testemunho jurídico. A esfera jurídica está imobilizada. Ela não pôde ainda nos facultar o importante local do tribunal no qual os testemunhos também possam se tornar públicos. Terminemos de ler a passagem de Lyotard: “Ele se torna uma vítima. Se ele persiste em invocar este dano como se ele existisse (destinador, destinatário, expert comentando o testemunho) o farão facilmente se passar por louco.” [...]xxvi
Assim, retomando as palavras de Rosalina Santa Cruz, creio que devamos nos mobilizar no sentido de romper este estancamento temporal. Devemos recolocar idéias como uma CPI da tortura, ou uma Comissão de Verdade. Devemos por o processo em processo. A luta pelo testemunho é uma luta política que costura necessidades individuais às coletivas e às da sociedade. Se a frase de Borges é correta, “Solo una cosa no hay, el olvido”, então devemos mostrar que esta cultura do esquecimento é apenas o outro lado de uma cultura do encobrimento. O testemunho, com todos seus conhecidos limites, buracos e impossibilidades, pode ser um caminho para esta volta do que foi e ainda é recalcado pelas nossas elites.
Abstract
This text has four parts. 1) First it focuses on the concept of testimony, analyzing its etymology and meaning as a special category that implies a singular relation with the “real”. 2) It also discusses the relationship between the testimony and others modalities of the writing in first person with emphasis on the concepts of diary and autobiography. 3) After that, the text presents the political meaning of the testimony, that works as a means of construction of a memory against the oblivion as well as a “work of memory” concerning social traumas. 4) The last section is dedicated to the study of the singular position of Brazil as a country in Latin America that has not been able to create a political and cultural space for the memory of the 1964-1985 dictatorship. This article resumes the paper presented at the “I Congresso Internacional da Cátedra Jorge de Sena - Andanças Prodigiosas da Literatura”, that took place at the Faculdade de Letras of the Universidade Federal do Rio de Janeiro, in October 2009, and it includes as well in some moments parts of other already published articles.
Keywords: Testimony. Memory. Trauma. Brazilian dictatorship.
NOTAS
i Spitzer, Leo. “Témoin”, in: Archivum Romanicum, v. 22, 1938, p. 372-375.
ii Benveniste, O Vocabulário das Instituições Indo-européias. V. 2: Poder, Direito, religião, trad. D. Bottmann, Campinas: UNICAMP, 1995, p. 174s.
iii Com relação a este ponto, eis o que lemos em dois dicionários on-line. Online Etymology Dictionary: “TESTIS: (pl. testes), 1704, do latim testis ‘testículo’, um uso especial de testis ‘testemunha’ [witness], presumivelmente porque “dá testemunho” [‘bears witness’] da virilidade (cf. Grego. parastates, lit. ‘o que presencia algo’; e o termo usual francês témoins, lit., ‘testemunhos’). Mas Buck acha que o grego parastatai ‘testículos’ foi erroneamente associado com o sentido legal de parastates ‘defensor’ [‘supporter, defender’] e sugere ao invés parastatai no sentido de um duplo “pilar de suporte, suporte de um mastro” etc. etc. The American Heritage® Dictionary of the English Language (Fourth Edition, 2000): “A semelhança entre testemunho, testificar, testis e testículo mostra uma relação etimológica, mas os linguístas não têm um consenso quanto a como o inglês testis veio a ter seu sentido atual [ou seja, de testículo]. O termo latino testis originalmente significa ‘testemunho’ e etimologicamente significa ‘uma terceira (pessoa) que presencia algo’: o te- vem de um tri- mais antigo, uma forma combinada da palavra ‘três’, e –stis é um nome derivado da raiz indo-européia st- significando ‘estar de pé’. Não há consenso quanto a como isto veio a referir a parte(s) do corpo. Uma teoria antiga afirma que os romanos colocavam sua mão direita sobre os testículos e juravam por eles antes de testemunhar na corte. Outra teoria afirma que o sentido de testículo no latim testis tem origem em uma falsa tradução do grego. O termo grego parastats significa ‘defensor (na lei)’ [‘defender (in law), supporter’] (para- ‘junto, ao lado de’, como em paramilitar e –stats de histamai, ‘estar de pé’). No número duplo utilizado em muitas línguas para pares que existem naturalmente, em contraste ou complementares, como por exemplo mãos, olhos e orelhas, parastats tinha o sentido técnico médico de ‘testículos’, ou seja ‘duas glândulas lado a lado’. Os romanos simplesmente tomaram este sentido de parastats e adicionaram-no ao de testis, a palavra latina para defensor legal, testemunha.” Desenvolvi a questão da masculinidade de um determinado tipo de testemunho testis em um ensaio no qual tento interpretar o Grande Sertão: Veredas de Rosa como uma encenação literária deste tipo de testemunho: “Grande Sertão: Veredas como gesto testemunhal e confessional”, in: Alea : Estudos Neolatinos, vol.11 no.1, Rio de Janeiro Jan./June 2009, p. 130-147.
iv Cf. Renaud Dulong, Le témoin oculaire. Les conditions sociales de l’attestation personnelle. Paris: EHESS, 1998, p. 25ss.
v Um bom exemplo de testemunho mais auricular e menos marcado pela “espetacularização” da violência é o livro de Ruth Klüger Weiter leben. Eine Jugend (DTV, 1991). Klüger opta por uma escritura que programaticamente oscila entre o passado da experiência da guerra e dos campos de concentração nazistas e o presente de sua escritura, em 1990. O fato de ela não descrever a violência e o mundo militar e focar seu relato na sua visão, na sua experiência, faz com que seu texto testemunhe sua história sem apresentar ostensivamente os seus horrores. Não se trata de “higienização” do passado, pois tudo está dito (ou, no mínimo, sugerido). Klüger escreve após centenas de outros sobreviventes e parte desta situação do horizonte de expectativas de seus leitores. Dizer que seu texto não faz um “espetáculo” da violência não significa, por outro lado, que sempre o testemunho como testis o faz. Mas pode-se dizer que a tendência para a visualidade e a apresentação das provas da violência abre o testemunho para esta via. Não é necessário repetir que na cena jurídica esta apresentação é essencial.
vi Cf. Giorgio Agamben, Quel che resta di Auschwitz. L’archivio e il testimone. Torino: Bollati Boringhieri editore, 1998.
vii Penso aqui no texto de Kafka “Vor dem Gesetz”, que pode ser traduzido tanto como “diante da lei”, como também como “antes da lei”, fora dela, uma vez que este “fora” reproduz a estrutura psicanalítica da cripta, do encriptamento/recalcamento, do banimento para o interior. Cf. J. Derrida, “Fora. As palavras angulosas de Nicolas Abraham e Maria Torok”. Trad. F. Landa. In: Fábio Landa, Ensaio sobre a criação teórica em psicanálise. Seguido de Fora de Jacques Derrida. S. Paulo: UNESP/FAPESP, 1999, p. 269-319 e Derrida “Préjugés. Devant la loi”.. In: J.F. Lyotard e outros. La Faculté de Juger. Paris: Les Éditions de Minuit, 1985, p. 87-139.
viii Lejeune, Philippe. «Le journal comme "antifiction" ». Poétique, n. 149, fév. 2007. p. 3.
ix Em outra passagem, Lejeune afirma de modo peremptório, deixando entrever o verdadeiro “perigo” que ele projeta na ficção: “Au contact de la fiction le journal s’étiole, s’évanouit, ou fait une crise d’urticaire. Au contact de la fiction les autobiographies, les biographies, les livres d’histoire sont contaminés, ils ont la fiction dans le sang” (Id., p. 8). A metáfora biológica é sintomática da visão do universo literário defendida por Lejeune. Blanchot, na sua conhecida crítica do diário, também lembrada por Lejeune no mesmo artigo de 2007, acusa este gênero de “proteger-se da escrita”. (O livro por vir. Trad. L. Perrone-Moisés, S.Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 270). O pacto do diário seria com o calendário e com a verdade: o que resultaria na superficialidade deste tipo de escrita. O diário exigiria a constatação e a prova e se oporia à profundidade da narrativa, submetida ao acaso. Blanchot, com esta concepção, acaba se mostrando vítima de uma visão positivista do diário – neste ponto ele concordaria com Lejeune – ,já que atribui a esta forma uma factografia com grau zero de ficcionalidade. Por outro lado, é justamente a estética da superficialidade, do acúmulo de escombros, de ruínas, o que restou de mais “nobre” da literatura no século XX. Blanchot ainda tentou salvar uma noção de nobreza do récit. Ele defendeu o modelo romântico da inspiração do autor (Id., p. 293) e o “espaço fechado, separado e sagrado que é o espaço literário” (Id., p. 302). Nada disto pode ser mais sustentado sem uma ponta de cinismo no século XX, após as vanguardas e a revelação do suposto nobre périplo do Espírito pelo Tempo como manifestação e vir à tona do abjeto. Por outro lado, é importante notar que o diário e o testemunho querem ser narrativa: mas percebem a impossibilidade desta narrativa. Derrida, de modo genial e irônico, percebeu como o próprio Blanchot em sua narrativa foi um exímio autor de testemunhos (Derrida, Demeure. Maurice Blanchot, Paris: Galilée, 1998).
x Témoins, Ed. Les Etincelles, 1929.
xi Para uma história erudita do diário, cf. Hocke, Gustav René. Europäische Tagebücher aus vier Jahrhunderten, Frankfurt/M. : 1991.
xii Desenvolvi o conceito de “teor testemunhal” em outros textos (cf. Seligmann-Silva, M., org., História, Memória, Literatura. O testemunho na era das catástrofes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003). Para tanto, parti dos conceitos benjaminianos de “teor de verdade” (Wahrheitsgehalt) e de “teor coisal” (Sachgehalt), que ele desenvolveu em seu ensaio As afinidades eletivas de Goethe e, por outro lado, da sua famosa frase, segundo a qual “es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein solches der Babarei zu sein”. (“Nunca existiu um documento da cultura que não fosse ao mesmo tempo um [documento] da barbárie.” Benjamin, Walter. Gesammelte Schriften, v. 2. Aufsätze, Essays, Vorträge. 1974, p. 696). Considero mais produtivo estudar os traços característicos deste teor testemunhal, que pode ser encontrado em qualquer produção cultural, do que falar em um gênero “literatura de testemunho”. Esta expressão, por outro lado, tem sido aplicada às obras programaticamente nascidas para testemunhar catástrofes no século XX. Não considero errado falar em literatura de testemunho, mas creio que não devemos reduzir o estudo do teor testemunhal a esta produção específica.
xiii Derrida, Jacques. Circonfession. In: J. D. e G. Bennington. Jacques Derrida. Paris: Seuil, 1991, p. 198.
xiv Op. cit., p. 5. “O diário é um tipo de ‘instalação’ que joga com a fragmentação e a deriva, dentro de uma estética da repetição e da vertigem, muito diferente daquela da arte clássica.”
xv Id., p. 10.
xvi Cf. M. Seligmann-Silva. “O testemunho entre a ficção e o ‘real’”. In: Seligmann-Silva, 2003, op. cit., p. 375-390.
xvii Hélène Piralian. Genocidio y transmisión. Trad. Horácio Pons, México/Buenos Aires: Fondo de Cultura, 2000.
xviii Cf. Folha de S.Paulo, 24.09.2005: A27.
xix Se existe, de um lado ,o negacionismo,como uma prática tradicional dos autores de crimes e sobretudo dos autores coletivos de crimes contra a humanidade, e, do outro lado, a tendência do sobrevivente e da vítima a querer se “esquecer” do seu passado traumático, podemos distinguir ainda uma terceira modalidade de resistência ao real, que seria a marca de nossa atual sociedade, caracterizada pela presença traumatizante da violência. Em Freud, a teoria da defesa diante da “vivência da dor” contém, neste sentido, ensinamentos preciosos. O mesmo vale para seu conceito de Verleugnung, recusa da realidade. Vale lembrar uma passagem do dicionário de Laplanche/ Pontalis, ao tratar deste último termo: “Na medida em que a recusa incide na realidade exterior, Freud vê nela, em oposição ao recalcamento, o primeiro momento da psicose: enquanto o neurótico começa por recalcar as exigências do id, o psicótico começa por recusar a realidade” (J. Laplanche e J.-B. Pontalis, Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 10ª ed., 1988, p. 562s).
xx Op. Cit, p. 21.
xxi Mas sabemos que muitas vezes o testemunho não leva a este outro local. São inúmeros os casos de sobreviventes que testemunharam e, mesmo assim, acabaram levantando a mão contra si.
xxii Realizado em 08/2009 na Faculdade de Direito da USP e organizado pelo LEI-USP, Projeto Escritas da Violência/ IEL e Goethe Institut São Paulo.
xxiii Por uma questão demográfica e de paralelo desenvolvimento das técnicas de guerra e de extermínio, o século XX é de longe aquele que mais produziu assassinatos, extermínios e violência. É claro que a história da humanidade pode (e deve) ser vista como uma história de violências, mas esta situação do século XX fica ainda mais gritante, porque destoa daquilo que o Ocidente se autoimputou, ou seja, a sua capacidade “civilizatória” do mundo. O mundo “civilizado” exala o cheiro da podridão de cadáveres.
xxiv Tiradentes, um presídio da ditadura. Editora Scipione, 1997.
xxv Beatriz Sarlo. Tiempo pasado: cultura de la memoria y giro subjetivo. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2005.
xxvi J-F. Lyotard. Le differend, Paris: Éditions de Minuit, 1983, p. 22s.
Recebido em : Março / 2010
Aprovado em : Maio / 2010