Apresentação do Dossiê
Canção popular, mercado musical e política no Brasil do século XXI
Organizadores do Dossiê
Sheyla Castro Diniz
Universidade de São Paulo (USP)
São Paulo, SP – Brasil
Tulane University (TU)
Nova Orleans, LA – Estados Unidos
lattes.cnpq.br/2264998924057944
Lucas Marcelo Tomaz de Souza
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira (Unilab)
Redenção, CE - Brasil
lattes.cnpq.br/6161759843282082
A música popular, sobretudo a canção, alcançou uma relevância inquestionável no panorama artístico-cultural e político da sociedade brasileira ao longo do último século. Já foi dito, aliás, que o século XX é o século da canção[1], o que, todavia, só se efetivou pois foi também o século do disco[2]. Samba, Bossa Nova, MPB e Tropicalismo, cada qual ancorado num determinado estágio de desenvolvimento da indústria cultural/fonográfica durante os anos de 1920 a 1960 – arco temporal concebido como a expressão de um ciclo vanguardista ou modernista[3] –, estabeleceram uma espécie de “linha evolutiva” paradigmática de nossa canção popular, elevando-a entre os pares, o público e a crítica ao status de intérprete do Brasil.
Tais gêneros, estilos e/ou movimentos fundacionais balizaram por muito tempo as pesquisas sobre canção na grande área das Humanidades, o que naturalmente se relaciona com a problemática do cânone junto à recente constituição de um campo de estudos sobre a música popular no Brasil. Hoje, entretanto, já circula um volume significativo de trabalhos sobre canção e cancionistas situados para além dos anos de 1960 e para além do cânone, embora este seja não raras vezes incontornável. A canção da década de 1970 tem ganhado destaque, por exemplo, em pesquisas sobre rock e MPB, contracultura, “música cafona”, censura, mercado e resistência artístico-cultural à ditadura militar. Análises sobre a canção da década de 1980 geralmente abordam MPB e redemocratização, rock nacional, black music, cena punk e música independente ante a hegemonia das gravadoras multinacionais. E, da canção que desponta nos anos de 1990 e no início dos anos de 2000, pesquisas vêm se ocupando do funk carioca, do rap paulistano, do chamado “sertanejo universitário” e de outras tantas manifestações e “cenas musicais” dentro ou fora do eixo Rio-São Paulo; temas que conquistaram espaço na academia sob diferentes perspectivas e metodologias, sendo normalmente cotejados com marcadores de região, classe, raça ou gênero.
Diagnóstico implícito ou explícito nesses trabalhos, a canção que vai se delineando pós-década de 1960 incorpora e traduz em sua matéria musical, social e histórica uma diversidade cada vez mais predominante de interesses e pautas político-ideológicas num mercado cultural altamente segmentado, comum à era da mundialização[4]. O novo século expôs ainda mais a fragilidade de um ideário que, por anos, e no limite conciliador, associou a abundância e a qualidade de nossa música popular ao horizonte de uma modernização progressista de país[5]. Não por acaso, uma entrevista de Chico Buarque à Folha de S. Paulo, em 2004, acendeu debates já esboçados sobre a “morte da canção”. Vários estudiosos se pronunciaram para esclarecer o que estaria nas entrelinhas do insight de que a canção tal qual a conhecemos, em contraste com as novidades do funk e do rap, talvez tenha sido um fenômeno do século passado[6].
Mutatis mutandis, obviamente a canção não desapareceu como forma musical. Pelo contrário: a internet, os sons eletrônicos e as novas tecnologias de estúdio ou portáteis possibilitaram formas variadas e descentradas de se fazer canção[7]. Mas o legado da canção de tradição canônica, da qual fez/faz parte um dos mais icônicos músicos brasileiros, sofreu um abalo em sua função social. Deslocado sob a emergência de novos movimentos sociais e das identidades fragmentárias, seu potencial de representação do “povo brasileiro” seria hoje rarefeito senão nulo[8].
Num contexto no qual a “nação” já não detém o monopólio da organização simbólica do social, para que problemáticas se deslocou, portanto, o potencial crítico da canção no Brasil do século XXI? Viva e comercializada sob os mais diversificados gostos e estilos, que condicionantes técnicos, políticos, mercadológicos, socioculturais e ideológicos orientam suas transformações? De que modo a canção dos últimos 20 anos materializa ou decodifica na forma e linguagem as contradições, mudanças, crises e dilemas contemporâneos? E em que medida aquela “linha evolutiva” reverbera na canção recente de músicos consagrados ou na canção de músicos que emergiram neste século?
Canção popular, mercado musical e política no Brasil do século XXI, este dossiê enfrenta parte dessas questões ao reunir pesquisadoras(es) de diferentes regiões e instituições do país, vinculadas à Música, à Sociologia, à História, Letras, Comunicação e outros campos do conhecimento. Os recortes analíticos e enfoques interdisciplinares sobre canção, mercado e política se somam a uma recente agenda de pesquisa sobre a música popular deste século XX, auxiliando-nos a compreender suas relações com impasses e mudanças pelos quais tem passado a sociedade brasileira, marcada por fatores como a consolidação da era digital, a reafirmação do neoliberalismo, a relativa emergência social e simbólica das minorias e a ascensão da extrema-direita.
Em “Sobre crianças, quadris, pesadelos e lições de casa: diáspora africana, orgulho negro e opressão racial em disco de Emicida”, Adelcio Camilo Machado e Raul Ayrton Franco tomam o álbum como unidade de análise, identificando em cada faixa aspectos-chave que compõem a narrativa sócio-sonora como um todo: ora centrada na denúncia e crítica social dos diversos tipos de opressão à população negra, ora celebrando os legados e símbolos da diáspora africana no Brasil. Lançado em 2015, Sobre crianças... reforçaria uma “nova condição do rap” da qual Emicida seria exemplar. Para os autores, essa nova condição não se explica apenas via mudanças contextuais, já que, num exercício de análise imanente, é constitutiva da própria estrutura e linguagem do álbum. Já Vanessa Vilas Bôas Gatti analisa canções de Alvos da Lei e Trilha Sonora do Gueto em “‘Os heróis nunca morrem’: a constituição da posição social do rapper no início do século XXI”. Segundo a autora, há na conduta e prática desses e outros rappers de São Paulo uma “missão” implícita herdada de seus precursores: demarcar o pertencimento à periferia como um lócus de reconhecimento e legitimidade[9]. Tal conduta reatualizaria uma cisão do rap em relação àquele ideário progressista também sustentado pelo elogio acrítico à miscigenação.
Em “Táticas de escuta de música nos serviços de streaming: uma etnografia digital multissituada”, Leonardo De Marchi e Marlon Câmera Leal Figueiredo dedicam parte do artigo às transformações ocorridas na indústria fonográfica nos últimos 20 anos para, na sequência, analisarem dados e entrevistas inéditas de usuários de serviços de streaming em diferentes países. Buscam assim detectar, em diálogo com noções de Michel de Certeau, que táticas de escuta de música têm sido adotadas diante das estratégias dos Serviços de Recomendação Automática (SRA) gerados por inteligência artificial. Tal etnografia digital multissituada aponta caminhos metodológicos para novas pesquisas. Em “A musealização da fonografia ‘plataformizada’: canção popular brasileira como acervo aural no século XXI”, Luiz Henrique Assis Garcia explora outra problemática inerente à era digital. Que políticas de salvaguarda têm sido criadas por acervos de tipologias da imagem e do som haja vista a plataforma streaming como o formato fonográfico hoje predominante? O autor discute alternativas aos desafios colocados, realçando, para isso, projeto o “Estéreo MIS”, acervo do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) que consiste em registrar e disponibilizar, online, shows e entrevistas de músicos independentes.
Renato Gonçalves Ferreira Filho trata de música eletrônica, estética queer, crítica social e ocupação do espaço urbano ao caracterizar “Os ‘corpos em aliança’ nas intersecções entre o coletivo musical Teto Preto e o contexto da festa Mamba Negra”. Seu artigo pioneiro no assunto nos conduz ao contexto dessa festa gestada numa São Paulo efervescente em meio às “jornadas de junho” de 2013. As intersecções com o coletivo Teto Preto, cria direta de Mamba Negra, são interpretadas à luz da “teoria performativa de assembleia” de Judith Butler, com destaque para os videoclipes mencionados e para a articulação entre música, gênero, performance e política. Articulações semelhantes perpassam o artigo de Jaimeson Machado Garcia e Ana Luiza Martins. “Cancelamento e resiliência através da canção: de Carmen Miranda a Karol Conká” aborda como as duas artistas, sob circunstâncias e pressões diversas, e em momentos bem distintos de nossa história, responderam através da canção – respectivamente “Disseram que voltei americanizada” e “Paredawn” – às críticas de seus respectivos públicos e às tentativas de isolamento midiático.
Assinado por Lucas Bitencourt Fortes, “Hibridismo cultural e pedagogias culturais no saravá metal da banda Gangrena Gasosa” mostra-nos como essa banda carioca, ativa desde os anos de 1990, justapõe universos aparentemente incomunicáveis ao mesclar hardcore e heavy metal com uma série de elementos provenientes de religiões de matriz africana, tudo isso somado a um tom pedagógico e humorístico no álbum Gente ruim só manda lembrança pra quem não presta (2018). Por fim, no artigo “O miasma pelo cômodo: sampleagem e neoliberalismo em Makalister”, Vinícius de Oliveira Prusch busca costurar os potenciais elos existentes entre a dicção e as técnicas de montagem do rap em Makalister, jovem rapper catarinense, e o avanço do neoliberalismo no Brasil do século XXI.
Nosso dossiê também conta com “Movimento e transformação: uma entrevista com o saxofonista Thiago França, por Sheyla Diniz”, e com uma resenha de Lucas Marcelo Tomaz de Souza para o livro “Criar um mundo do nada: a invenção de uma historiografia da música popular no Brasil” (São Paulo: Intermeios, 2019), de autoria de José Geraldo Vinci de Moraes. A entrevista do músico Thiago França concedida a Sheyla Diniz evidencia o itinerário artístico, as parcerias, os desafios profissionais e a linguagem estética desse que é um dos mais representativos nomes da atual “cena paulistana independente”, conhecido por integrar o aclamado trio Metá Metá, ao lado da cantora Juçara Marçal e do violonista/guitarrista Kiko Dinucci, e por idealizar projetos igualmente emblemáticos como a Espetacular Charanga do França. Já a resenha de Lucas Souza revisita as análises de Vinci de Moraes, cujo livro é fruto de sua tese de livre-docência defendida na USP em 2017, sobre a constituição de uma historiografia da música popular no Brasil. Tal processo iniciado há aproximadamente 100 anos por cronistas e memorialistas incidiu décadas a fio sobre a escrita da história de nossa música popular, sendo hoje matéria de revisão crítica.
Para nós, organizadores, é imensamente satisfatório ter reunido esse material agora apresentado como resultado do dossiê – uma iniciativa motivada por Simpósio de Pesquisa Pós-graduada (SPG) que coordenamos nas edições de 2022 e 2023 da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Ciências Sociais (Anpocs) – “Canção popular, mercado musical e política no Brasil do século XXI: transformações, crises e perspectivas de análise”. Reiteramos, aqui, portanto, nosso empenho em criar espaços de interlocução, reflexão e divulgação científica sobre objeto de estudos tão fascinante e não menos desafiador que é a música/canção popular, considerando ainda sua diversidade e complexidades no Brasil do tempo presente. Esperamos que os artigos, a entrevista e a resenha possam contribuir com pesquisadoras(es) e demais interessadas(os) no tema. Agradecemos sinceramente às autoras e autores que nos confiaram seus textos, aos pareceristas convidados e à equipe editorial da revista Percursos. Boa leitura!
Sheyla Castro Diniz
Universidade de São Paulo (USP)
Tulane University (TU)
Lucas Marcelo Tomaz de Souza
Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab)
Organizador/a
[1] TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê, 2004.
[2] MAMMÌ, Lorenzo. “A era do disco”. In: A fugitiva: ensaios sobre música. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
[3] Ver RIDENTI, Marcelo. “Cultura e política nos anos 1970: o fim do ciclo das vanguardas no Brasil”. In: SARTI, I. (org.). Ciência, política e sociedade: as Ciências Sociais na América do Sul. Porto Alegre: Sulina/Ed. UFRGS, 2007, p. 161-166; e NAPOLITANO, Marcos. “Arte e política no Brasil: história e historiografia”. In: EGG, A.; FREITAS, A.; KAMINSKI, R. (orgs.). Arte e política no Brasil: modernidades. São Paulo: Perspectiva, 2014.
[4] Ver ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2007; e NICOLAU NETTO, Michel. Música brasileira e identidade nacional na mundialização. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2009.
[5] WISNIK, José Miguel. “Global e mundial”. In: Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004.
[6] Ver BARROS E SILVA, Fernando. “O fim da canção (em torno do último Chico)”, Serrote, São Paulo, n. 3, nov. 2009; e NOBRE, Marcos; ZAN, José Roberto. “A vida após a morte da canção”, Serrote, São Paulo, n. 6, nov. 2010.
[7] DAVINO, Leonardo. Sujeito cancional: verbivocoperformance poética contemporânea, Ipotesi, Juiz de Fora, v. 20, n. 1, p. 87-100, jan./jun., 2016.
[8] DINIZ, Sheyla Castro. “MPB (Música Popular Brasileira)”. In: CLARK, W. (org.). Grove Music Online: Ibero-Latin update Project. 1.º ed. Oxford: Oxford University Press, 2024, p. 1-4. Disponível online em 24 de janeiro de 2024: https://doi.org/10.1093/omo/9781561592630.013.90000381979. Acesso em 20 nov. 2024.
[9] Ver, também, CAMARGOS, Roberto. O rap no Brasil: a periferia com o poder da palavra (1988-2015). Teresina: Cancioneiro, 2024.