Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246    Resenha do livro

Criar um mundo do nada: a invenção de uma historiografia da música popular no Brasil[i]

 

MORAES, José Geraldo Vinci de. Criar um mundo do nada: a invenção de uma historiografia da música popular no Brasil. São Paulo, Editora Intermeios. 2019.

 

 

Lucas Marcelo Tomaz de Souza

Universidade da Integração Internacional da Lusofonia

Afro-  Brasileira (Unilab)

Redenção, CE – Brasil  plataforma-lattes-logo.jpg

lattes.cnpq.br/6161759843282082      

image orcid.org/0000-0002-8806-2286      

ícone doi, logolucassouza@unilab.edu.br        

Em 1974, o cantor e compositor Raul Seixas incluiu em seu LP Gita (Philips, 1974) a canção “As Aventuras de Raul Seixas na cidade de Thor”, música em que faz um balanço crítico do cenário musical naquela metade da década de 1970, através dos versos “Acredite que eu não tenho nada a ver/ Com a linha evolutiva da Música Popular Brasileira/A única linha que eu conheço/ É a linha de empinar uma bandeira”. O roqueiro baiano retoma o termo “Linha Evolutiva”, escopo fundamental das discussões estabelecidas na Revista Civilização Brasileira, em 1967, e que opôs o artista Caetano Veloso ao crítico musical José Ramos Tinhorão. Esses debates tinham em vista os rumos da música popular brasileira frente ao impasse de tentar se manter “incólume” e “tradicional”, expressão de “brasilidade”, ou incorporar gêneros e estilos musicais estrangeiros, e refletir também as marcas de nossa “modernidade”.    

Com sua canção, Raul Seixas gostaria de firmar oposição a um conjunto de cobranças que recaia sobre uma série de músicos estreantes naquela década de 1970, impelidos a retomarem essa “linha evolutiva” e seguirem os avanços em termos do que se compreendia ser o sentido de nossa música popular.

Mas o que seria essa “linha evolutiva”, que saltava das páginas de uma revista, com tamanha força a constranger toda uma geração de músicos e compositores?  O termo representa um momento sintético de uma série de debates sobre a história da música popular, que se arrastava ao longo de décadas. Neste contexto, parece evidente como esta historiografia já se mostrava consolidada à ponto de extrapolar os meios intelectuais e tornar-se expediente na composição de nossos artistas.

O trabalho de José Geraldo Vince de Moraes, “Criar um Mundo do Nada: a invenção de uma historiografia da música popular no Brasil”, analisa como se construiu essa historiografia e como o edifício da história da música popular foi erguido, antes de alcançar as proporções do grande e influente complexo cultural que hoje molda nossa percepção sobre a música popular brasileira.

Nesse sentido, o livro de José Geraldo Vince de Moraes é instigante e revelador de um conjunto de fenômenos sociais e culturais que marcaram o início do século XX no Brasil, e o seu percurso de investigação acaba por se tornar também um notável exemplar metodológico no que tange ao uso de fontes escritas e orais, atenção à micro história e às complexas relações que se estabelecem entre memória e história.

Ao deslocar o olhar da música para aqueles que, pioneiramente, pensaram sobre ela, José Geraldo Vince de Moraes desnaturaliza nossos “clássicos”, nossas referências obrigatórias, e questiona o status que muitos autores ostentam de “fontes primárias” sobre os estudos de música popular no Brasil. Vagalume, Alexandre Gonçalves Pinto, Orestes Barbosa, Mariza Lira, Edigar de Alencar, Jota Efegê, Almirante e Lúcio Rangel fazem parte de uma primeira geração de historiadores, responsáveis por “criar um mundo do nada”, dar vida ao gigante da nossa historiografia da música popular, que sobre seus ombros assentam uma enormidade de pesquisadores e estudiosos.

Nas mais de 200 páginas que compõem a obra, o leitor se vê penetrado em um emaranhado biográfico que o autor desvenda com perspicácia, e revela uma paradoxal relação de fenômenos sociais e culturais que essa geração precisou, minimamente, equacionar.

A primeira tarefa que se impunha era dar legitimidade ao fenômeno da música popular urbana, um objeto tremendamente novo, que despontava no cenário das cidades sob a lógica de uma incipiente indústria fonográfica. Evidentemente, os efeitos e consequências dos aparelhos de gravação e reprodução sobre o material sonoro ainda estavam por ser dimensionados, mas o arco de influência de Mário de Andrade sobre o meio intelectual já construiria uma baliza de avaliação importante. Para o modernista, o valor cultural da música nacional se encontraria nas tradições rurais, verdadeiros erários de nossa “alma brasileira”. As produções musicais de cultura citadina poderiam guardar importância relativa, a depender da forma com que se relacionavam com as tradições folclóricas.

Sem grande rigor teórico – característica dos escritos desses historiadores – é possível dizer que esses primeiros intérpretes da música popular urbana entraram e saíram dessa tradição folclorista de orientação andradiana. Mariza Lira, por exemplo, parece tentar captar o espírito do pensamento social brasileiro na metade do século XX ao relacionar a música produzida em certos cantos do Rio de Janeiro como algo expressivo de nossa cultura brejeira, tremendamente identificável com a paisagem geográfica do país. Sua ideia de “música das três raças” estende a explicação mesológica de definição racial à herança musical vinda dos indígenas, dos negros e portugueses na formação de nossa música popular. Seus companheiros de geração se prestaram também a outras formas de definição e diferenciação da música popular, também com intuito de demarcar legitimidade para esse novo bem cultural que vinha surgindo. Assim eles buscaram encontrar, no emaranhado das canções que apareciam, aquelas verdadeiramente “nacionais”, “boas”, “brasileiras”, “tradicionais” etc.

O local onde esses precursores dos estudos da música popular urbana fizeram a defesa do seu objetivo analítico chama atenção. Longe da academia ou dos meios mais intelectualizados – embora influenciados por eles –, foi nas páginas de jornais e no rádio que essa historiografia se materializa. Não era apenas a canção popular que nascia como objeto de consumo e entretenimento, sua crítica e, consequentemente, sua história, apareciam na mesma condição. Essa inusitada conjuntura fez com que Vagalume, Alexandre Gonçalves Pinto, Orestes Barbosa, Mariza Lira, Edigar de Alencar, Jota Efegê, Almirante e Lúcio Rangel buscassem com afinco alterar a própria condição do jornalismo musical brasileiro, que apareceu no fim do século XIX como instrumento de leitura e recreação frívola, e chegasse à década de 1970 com autoridade para condicionar até mesmos o sentido de nossa “linha evolutiva”.

O ponto auge do livro fica por conta da interessante análise feita por José Geraldo Vince de Moraes da “operação historiográfica” realizada por esses primeiros analistas, ao tentarem “construir” uma história “verdadeira” da música popular urbana. O manejo e equilíbrio de ferramentas historiográficas diferentes tornou-se uma marca decisiva desses pensadores. A primeira tática utilizada foi a incorporação, mesmo sem um rigoroso compromisso metodológico, de teorias de interpretação cultural, como já mencionado anteriormente, na análise das canções. Isso possibilitou uma certa “intelectualização” dos discursos, que reveste de cientificidade as crônicas jornalísticas. A segunda estratégica fica por conta da tentativa de revestir todo esse discurso com um sentido de verossimilhança. Neste ponto, eles não encontraram fonte melhor para certificar suas crônicas do que suas próprias memórias. A veracidade dos fatos fica por conta da própria vida desses pensadores, que serve como testemunha dos acontecimentos. Seus discursos seriam legítimos porque eles teriam presenciado, vivido, conhecido de perto, sambado junto, convivido com os artistas. A vida boêmia deixa de ser apenas um lazer despretensioso e passa ser uma forma de outorga de veracidade dos fatos narrados por aqueles pensadores que estiveram juntos dos artistas nesse inspirador momento de celebração, e por isso poderiam contar a “verdade”.

Uma “operação historiográfica” desse porte, que pretende “criar um mundo do nada”, não pode ser feita sem “heróis”, e a busca por esses notáveis marca o procedimento desses primeiros pensadores. A seleção e recuperação biográfica dos “arautos” da música popular urbana foi uma tarefa que eles se colocaram. Era preciso recontar a vida dos artistas, de modo a complementar o estudo de suas “grandes obras”. Assim, esses historiadores acabaram por sedimentar uma tendência importante para os estudos de música popular, ao criar um modelo de análise biográfica a partir de ideia de “vida e obra”, em que os detalhes biográficos são escolhidos em função da compreensão da obra.     

As tensões entre memória e história revestem as narrativas desses primeiros historiadores. Ao rememorarem os fatos e as vidas que deveriam compor a história da música popular urbana, esses primeiros pensadores estariam também realizando toda uma evocação autobiográfica. Não eram apenas certos artistas que deveriam ser lembrados, eles próprios estavam procurando seu lugar ao sol. Mas para se construir uma história “verdadeira” era preciso que eles superassem a memória como única fonte de legitimidade histórica. Surge então um tremendo esforço documental dessa geração. A prática colecionista e catalográfica fez com que esses historiadores criassem enormes acervos sobre a música popular, capturando documentos dos mais diferentes tipos, capazes de complementar suas memórias. Os acervos pessoais de Almirante e Lúcio Rangel seriam incorporados ao Museu da Imagem e do Som, e à Biblioteca Lúcio Rangel, e se tornariam grandes patrimônios culturais de nossa história e fonte de pesquisa para uma enormidade de estudiosos.

O arremate final da operação historiográfica, que culminou na construção da história da música popular brasileira, ocorreu quando esses pensadores da crítica jornalística passaram a publicar livros. Entre as décadas de 1950 e 1960, esse conjunto de publicações marcou uma mudança significativa: enquanto os jornais ofereciam um entretenimento mais disperso, o livro consolidava uma legitimidade intelectual e científica, dando às ideias desses pensadores um peso de veracidade científica há muito desejado. Dentro dessas obras, José Geraldo Vince de Moraes revela uma rede complexa de referências mútuas, citações e homenagens recíprocas entre os autores, o que reforça a ideia de que, antes desse corpus de textos, parecia não existir nada. O coroamento da trajetória desses autores veio na década de 1970, quando receberam reconhecimento “oficial” ao ocuparem cargos de destaque em conselhos de cultura nos âmbitos federal e estadual, no Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro e na Fundação Nacional da Arte (Funarte).

O trabalho de José Geraldo Vince de Moraes torna-se assim uma referência obrigatória nos estudos de música popular e um instrumental de pesquisa, não apenas para investigações históricas, mas também para aquelas que pretendem compreender as dinâmicas sociais e culturais que dão forma à nossa musica popular atualmente.

 

Referências

MORAES, José Geraldo Vinci de. Criar um mundo do nada: a invenção de uma historiografia da música popular no Brasil. São Paulo, Editora Intermeios. 2019.



[i] Resenha recebida em 13/11/2024

  Resenha aprovada em 03/12/2024