Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246   Movimento e transformação: uma entrevista com o saxofonista Thiago França, por Sheyla Diniz[i]

 

 

 

 

         Entrevista concedida à:

 

Sheyla Castro Diniz

Universidade de São Paulo (USP)

plataforma-lattes-logo.jpgSão Paulo, SP - Brasil

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sheyladiniz@usp.br  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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Saxofonista, flautista, compositor, arranjador, Thiago França (Belo Horizonte/MG, 1980) é atualmente um dos músicos mais ativos e representativos da chamada “nova cena musical independente” que desponta na cidade de São Paulo em meados dos anos 2000, pós-advento da internet. Choro, samba, gafieira, carnaval, candomblé, jazz e improvisação livre são algumas das fontes que constituem sua assinatura sonora peculiar, registrada em álbuns emblemáticos do cancioneiro e música instrumental contemporâneos. Dentre as diversas parcerias, destaca-se o trabalho que ele vem consolidando ao lado de nomes de sua geração como Rômulo Fróes, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Kiko Dinucci e Juçara Marçal. Com esses dois últimos, integra desde 2008 o elogiado trio Metá Metá, cujo reconhecimento num circuito independente tem despertado interesses do público e da crítica no Brasil e no exterior. Versátil em sua já extensa discografia, Thiago França se notabiliza igualmente em álbuns solos, como no recente Canhoto de pé (2024), e em projetos musicais que idealizou visando experimentar diferentes linguagens no saxofone e extravasar seu ímpeto visceral de tocar o instrumento: Sambanzo, Marginals e, sobretudo, A Espetacular Charanga do França, hoje um dos blocos mais evidentes no carnaval de rua de São Paulo.

Formação e referências musicais, desafios para se estabelecer artisticamente numa cena paulistana em ascensão, a procura por uma identidade musical no saxofone a partir de fontes ecléticas, formas não tão convencionais de se conceber a canção, principalmente no que tange ao repertório do Metá Metá, além dos vários projetos e parcerias em constante movimento e transformação, são temas, dentre outros, abordados nesta entrevista realizada em São Paulo em 19 de maio de 2023. Pelas lentes do artista, também um intelectual que avalia criticamente o seu entorno e produções, podemos conhecer parte de sua trajetória, inevitavelmente tanto individual quanto coletiva, e parte das estratégias que têm orientado músicos independentes no atual contexto marcado pela era digital e pela descentralização da indústria fonográfica, incluindo as eventuais relações e tensões entre o independente e o mainstream.

Conduzida como um diálogo, esta entrevista com Thiago França foi motivada por projeto de pós-doutorado em desenvolvimento[1] e pelo presente dossiê organizado por Lucas Souza e por mim na Revista Percursos, “Canção popular, mercado musical e política no Brasil do século XXI”. Potencial fonte de pesquisa, a entrevista aqui disponibilizada espera atrair a atenção do público em geral e contribuir especialmente com estudiosas(os) da música e canção no Brasil contemporâneo.

 

Entrevista

 

Entrevistadora: Gostaria de iniciar recuperando alguns aspectos de sua formação musical. Você chegou a cursar música em universidades, porém sem concluir, certo? 

Thiago França: Eu tive duas passagens por faculdades de Música: Unicamp e UFMG, com saídas muito circunstanciais. Começou uma greve longa logo que eu entrei na Unicamp, em 2000. Então, fui para Belo Horizonte. Eu sou de BH, minha família toda é de lá. Quando voltaram as aulas, depois de quase três meses, eu já tinha criado uma rotina em BH. Aí fiquei, não voltei para a Unicamp. Aconteceu a mesma coisa na UFMG: entrei em 2002 e, logo em seguida, veio outra greve longa. Quando acabou, eu já estava trabalhando muito, tocando muito na noite. Não fazia mais sentido voltar para a faculdade.

 

Entrevistadora: Na UFMG, você foi aluno de Dilson Florêncio?

Thiago França: Sim. Dilson é um músico espetacular, a quem tenho muito a agradecer na vida; ele me estimulou muito. Ele é saxofonista erudito, mas soube entender que a minha onda não era essa e em nenhum momento fez objeção que eu continuasse a estudar repertório de música popular.

 

Entrevistadora: Já o curso da Unicamp era de música popular?

Thiago França: Sim. Mas eu peguei uma fase ruim. Achei americanizado demais, mesmo gostando muito de jazz. Eu nunca tive a ilusão ou pretensão de ser um jazzista que toca os standards, que improvisa daquela forma... Desde muito cedo eu botei na cabeça que, para ser músico profissional no Brasil, eu tinha que fazer música brasileira. E a primeira coisa que sempre me chamou a atenção em saxofonistas, mais do que fraseado, improviso ou arranjo, era a diferença do timbre de um para o outro. Eu ouvia Sonny Rollins, Dexter Gordon, Joe Henderson, Branford Marsalis, e eu sabia exatamente quem era quem. Então, mais do que pensar “eu quero ser o cara que improvisa”, eu pensava: “o lance é ser reconhecível”.

 

Entrevistadora: Ou seja, construir uma identidade musical. Você acha que, hoje, alcançou esse desejo? As pessoas ouvem seu saxofone e te reconhecem?

Thiago França: É a mensagem que eu mais recebo hoje em dia. É a minha maior alegria como músico: a pessoa escutar uma música sem ter a ficha técnica e identificar que sou eu ali tocando.

 

Entrevistadora: Como foi sua formação musical antes das duas breves experiências em universidades?

Thiago França: Tem a ver com minha família materna e paterna. Ambos os lados são muito musicais. Meu bisavô era maestro de banda de música em Itabirito/MG e tocava de tudo: trompete, clarinete, acordeom, violão. Meu avô ouvia choro e sertanejo raiz, além de Orlando Silva, Dalva de Oliveira... Ele achava João Gilberto muito moderno, num sentido pejorativo [risos]. Já minha avó materna chegou a cantar em programa de auditório; ela cantava muito bem. Gostava de samba: Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Betty Carvalho, Alcione, e também gostava de big bands. Desconfio que, por conta da minha avó, em algum momento eu entendi o que era um saxofone e quis tocar... Mas isso é meio enigmático. Meu pai perguntava: “Você já viu um saxofone? Por que quer tocar saxofone?”.

 

Entrevistadora: Você fez aulas de saxofone em Belo Horizonte quando era criança?

Thiago França: Não. Eu me mudei para São Paulo com meus pais em 1988, eu tinha 7 ou 8 anos. Aqui em São Paulo, de tanto eu insistir, meus pais me arrumaram um professor de saxofone e, depois, conseguiram comprar o instrumento. Daí em diante, eu nunca mais larguei o sax?

 

Entrevistadora: Você estava com quantos anos quando começou a estudar sax?

Thiago França: Uns 10 anos, década de 1990. Não tinha TV a cabo ainda, muito menos internet, então eu tocava sax o dia inteiro. Comecei a fazer aula com esse professor, que não era músico profissional. Depois de quase dois anos, ele disse para minha mãe: “Você tem que arrumar um cara profissional pra dar aula pro menino. Ele tá tocando bem”. Nessa época, eu era muito tímido, tinha dificuldade de me expressar, de me conectar com as pessoas. Daí eu parei de fazer aula com esse cara e fiquei anos sem professor, mas sem parar de tocar.

 

Entrevistadora: Então, você foi autodidata durante muito tempo, na sua adolescência.

Thiago França: Fiquei estudando por contra própria durante muito tempo. No colégio, eu tocava em tudo o que aparecia: banda punk, dupla sertaneja, missa... Quando eu estava no primeiro colegial, em 96, inventaram de ter aula de música na escola. O professor falou assim pra mim: “Você toca bem, você quer ser músico?” Eu falei: “Quero”. E ele: “Então tem que estudar!”. Eu respondi que não tinha professor de sax e ele me arrumou um. Esse cara foi meu professor por dois anos; ele me preparou para prestar o vestibular da Unicamp.

 

Entrevistadora: Depois do pouco tempo em que estudou na Unicamp, em Campinas/SP, você retorna para Belo Horizonte. Como foi esse retorno, musicalmente falando?

Thiago França: Retornei para BH em 2000 e acabei ficando até 2004, quando voltei definitivamente pra São Paulo. Eu me beneficiei muito em Belo Horizonte, por ser uma cidade menor, por ter menos gente tocando o instrumento que eu toco. Fiz muito esforço para estar sempre tocando. Eu ia nos lugares, conhecia os músicos, ficava amigo e sempre pedia para tocar, para dar uma canja. Eu vivia com o saxofone nas costas.

 

Entrevistadora: Em BH você formou algum grupo musical?

Thiago França: Eu conheci duas turmas que renderam bastante coisa. Primeiro, eu conheci o Eneias Xavier, baixista, e o Magno Alexandre, guitarrista. Na época, eles formavam o Nenê Trio – Nenê é baterista. Onde eles tocavam, eu ia: assistia o show, dava canja, participava. Daí eles próprios começaram a me chamar para tocar com eles. Paralelo a isso, eu conheci uma galera do samba, o grupo Copo Lagoinha. Então, ao mesmo tempo em que eu comecei a desenvolver uma música instrumental com os caras do Nenê Trio, eu comecei a tocar samba e choro no Copo Lagoinha. No Copa, eu toquei de 2000 até voltar para São Paulo. Era um momento que todo mundo estava voltando a ouvir samba, aquele boom... O Copo Lagoinha começou a fazer certo sucesso, os shows ficavam cheios. Uma vez chamaram a gente para abrir um show da Velha Guarda da Mangueira e começou um esquema de levar sambistas para Belo Horizonte para serem acompanhados pelo Copa Lagoinha: Nelson Sargento, Ney Lopes, Luiz Carlos da Vila, Jamelão; teve um pessoal do Salgueiro, a Yeda Maranhão. Tudo o que aparecia eu ia me envolvendo. Teve um projeto de gravar uns sambistas da antiga e eu me envolvi com esse pessoal também. Aliás, ontem eu estava me lembrando que, em 2002, o Márcio Montarroyos foi em BH pra dar um workshop no Museu da Pampulha e fazer um show em tributo ao Miles Davis, acompanhado pelo Nenê Trio. Eu fui fazer o workshop e o Márcio me chamou para tocar com eles no show. Aí eu fiz uma participação, eu tinha 21 anos. A TV Minas filmou, passou na TV, mas ninguém tem essas imagens nem fotos.

 

Entrevistadora: Pena não ter registros. Pelo visto, o tempo em BH lhe rendeu muitos contatos musicais. O que te levou a voltar para São Paulo, em 2004?

Thiago França: Quando eu decidi ficar em Belo Horizonte, eu sabia que seria por um tempo. O cenário musical lá, profissionalmente falando, não é tão rico quanto aqui em São Paulo. Eu sabia que, em algum momento, eu voltaria para São Paulo. Aí, quando eu conheci o Nei Lopes, depois de tocar com ele em Belo Horizonte, a gente pegou uma amizade; a gente se falava sempre, trocava e-mail. Um dia, ele me perguntou o que eu estava fazendo em BH. Eu respondi que tinha vontade de voltar para São Paulo e ele disse que, assim que eu voltasse, ele me apresentaria o pessoal.

 

 

 

Entrevistadora: Nei Lopes, então, fez a ponte[2]

Thiago França: Foi a credencial: ele, uma figura importante do samba... Avisei o Nei quando marquei minha volta para São Paulo. Ele falou assim: “Mês que vem, vou tocar no bar Traço de União, dia tal, hora tal, esteja lá!”. E eu fui; cheguei lá como convidado do Nei, que me apresentou para o pessoal do Quinteto em Branco e Preto. Rolou uma conexão porque é gente da minha idade, cheia de gás; e eu comecei a tocar com o Quinteto que, por sua vez, tinha conexão com a Beth Carvalho. O Dirceu Leite, que tocava com ela, me pediu para substituí-lo e eu fiz show com a Beth. Enfim, é uma lista gigantesca de gente do samba com quem eu toquei nessa época: Dona Ivone Lara, Fundo de Quintal, Almir Guineto... Toquei com um monte de gente que eu admiro, que eu sou fã. Paralelo a isso, comecei a tocar no [bar] Ó do Borogodó, em Pinheiros, onde fui desenvolvendo o lado instrumental mais próximo do choro, do samba-choro. Todos esses contatos abriram as portas para mim em São Paulo.

 

Entrevistadora: Mas você enfrentou alguma dificuldade para se inserir musicalmente aqui, em São Paulo?

Thiago França: Eu tive algumas dificuldades, sim. Eu ficava sempre num limbo quando o lance era música instrumental. Como te falei, eu nunca tive pretensão de ser um jazzista, propriamente dito. Mas a galera do choro se incomodava com meus improvisos. Diziam que eu saía da harmonia, que eu fazia coisas que não deveria fazer, que era jazzístico demais... Ao mesmo tempo, quando eu volto para São Paulo, eu reconecto com músicos que eu tinha conhecido na Unicamp. Mas o som que eu fazia não tinha muito sentido pra eles, porque não era aquele fraseado clássico, aquela linguagem de jazz...

 

Entrevistadora: Você citou anteriormente o bar Ó do Borogodó, considerado um reduto do samba e do choro em São Paulo. Foi lá onde você conheceu Kiko Dinucci, certo?

Thiago França: Sim. Eu cheguei no Ó em 2004 e fui me enturmando com o pessoal do choro. Mas depois de uns dois anos, eu virei meio o patinho feio, pois eu não era nem chorão, nem sambista, nem jazzista. Por outro lado, virei também um coringa, pois eu sabia tocar os temas, eu tinha essas linguagens todas, mas tinha outras ideias; eu queria encontrar um outro som, um outro caminho que não fosse padrão. O pessoal lá no Ó se incomodava comigo por causa disso. O Kiko [Dinucci] era outro “esquisito”, que não se encaixava muito nos padrões. Ele estava numa busca também, de fazer um samba mais autoral. Eu já tocava no Ó quando ele chegou – ele chega no final de 2005 ou 2006 e forma o Bando Afro-macarrônico, com Douglas Germano e uma galera. Então, de tanto o pessoal se incomodar com nós dois, dois pontos fora da curva, começaram a insistir que a gente devia se conhecer, porque até então a gente tocava lá em dias diferentes.

 

Entrevistadora: Você conheceu Juçara Marçal nessa mesma época?

Thiago França: Eu conheci o Kiko e logo depois a Juçara. Eu tocava no Ó do Borogodó às segundas-feiras e Juçara cantava lá toda última segunda-feira do mês. Rolou uma identificação porque ela chegava na roda e propunha, por exemplo: “Vamos tocar aquele outro samba do Paulinho da Viola que não seja “Coração leviano”? Quer dizer, tocar uma música menos conhecida. Eu dizia: “Vamos, eu gosto, eu sei!”. E os caras não queriam, erravam a harmonia... Mas eu acabava vendo pouco a Juçara. O Kiko, eu já tinha ouvido falar dele e vice-versa, mas a gente se conheceu de fato no estúdio. Eu estava indo marcar a gravação de um disco meu e ele estava finalizando a gravação do Bando Afro-macarrônico [Kiko Dinucci e Bando Afro-macarrônico. Álbum Pastiche nagô, 2008). Aí o técnico do estúdio apresentou a gente. A gente bateu um papo e o Kiko me chamou para tocar no Ó do Borogodó às quartas-feiras, que era o dia que ele tocava.

 

Entrevistadora: Em 2008, Kiko e Juçara te convidam para participar dos shows de divulgação do álbum Padê (2008)? Vocês já tinham criado um elo musical ou isso se deu a partir desses shows?

Thiago França: O grande lance dessa história foi a primeira vez que eu dei uma canja na quarta-feira lá no Ó do Borogodó, com o Bando Afro-macarrônico. O Kiko pensou a coisa mais básica do mundo: “Dentro do repertório que a gente toca, o que dá para fazer com sax? Ah... os carimbós!”. Eu não conhecia muita coisa, mas eu sabia o que fazer e deu certo. Daí depois a gente foi conversar e o Kiko perguntou o que eu estava ouvindo de música. Eu respondi: “Voltei a ouvir [John] Coltrane”. Ele arregalou o olho: “Mas você não é o cara que toca choro?”. Eu falei: “Sim, mas faço outras coisas também”. Eu já conhecia Sun Ra Arkestra, Ornette Coleman, e um repertório do Coltrane depois do Love Supreme [1965]. Enfim, ficou essa informação e a ideia de que, nalgum momento, a gente ia fazer algo juntos. Daí o Kiko passou a me chamar para tocar sempre lá no Ó: faltava uma cantora, “chama o Thiago”; faltava o Douglas [Germano], “chama o Thiago”; faltava um percussionista, “chama o Thiago”. A gente tocava juntos toda semana e foi surgindo uma liga nos momentos de improviso, muito por conta do jeito que eu ia me encaixando no som. Já havia uma coisa sendo gestada ali e acho que foi por isso que o Kiko teve a ideia de me chamar para participar dos shows do Padê (2008). Ele deve ter pensado assim: “Vamos chamar o Thiago porque ele sabe se enfiar no meio do som. Ele não faz só introdução, solo e acabou”.

 

Entrevistadora: De fato, seu sax não se limita a ser um instrumento solista na canção. Você dobra vozes, faz contracantos, ou então recorre a efeitos, ruídos...

Thiago França: Isso é uma busca que eu sempre tive. Sempre gostei de MPB, de música cantada. Desde adolescente, eu escutava discos do João Bosco, da Elis Regina, e ficava tocando junto, criando por cima como se aquilo fosse uma base. Mas, voltando a Padê, quando Kiko e Juçara me chamaram para os shows de divulgação, eu fui com o espírito de “vamos lá fazer um som”, só que, a princípio, não achei que fosse uma boa ideia.

 

Entrevistadora: Por que?

Thiago França: Por que era a divulgação de um disco deles, um disco de voz e violão. O mais lógico seria chamar um percussionista.

 

 

Entrevistadora: Vocês chegaram a ensaiar?

Thiago França: Fizemos um ensaio, sem pretensão de que aquilo tinha que continuar.

 

Entrevistadora: Foi a partir desses shows do Padê que surgiu a ideia do trio Metá Metá? Ou só depois da gravação do primeiro disco, Metá Metá (2011)?

Thiago França: A gente viu que deu certo e decidiu: “Vamos continuar para além do Padê, porque é outra coisa o que está surgindo aqui”. A gente passou a se apresentar, nos shows, como “Juçara, Kiko e Thiago”. Numa dessas, gravamos um CD demo, que era algo muito comum. Daí o Kiko propôs: “Vamos tirar uma foto”. E logo ele mandou um e-mail: “Esses shows nossos podem se chamar Metá Metá”, que significa três ao mesmo tempo, em ioruba.

 

Entrevistadora: Metá Metá era o nome dos shows de vocês, mas logo em seguida se transformou no nome do trio.

Thiago França: Sim. Veja: nessa época era uma confusão. Começou a rolar esses shows que se chamavam Metá Metá, com Juçara, Kiko e eu. Ao mesmo tempo, estavam rolando os shows do Padê, com Kiko e Juçara, e eu participava. Paralelo a isso, Kiko começou a fazer o show dele, com músicas dele, um repertório que estava entre o Padê e o Metá Metá. A banda desse show era Juçara e eu [risos]. Aí, quando fui gravar o meu segundo disco, Sambanzo – Etiópia, eu chamei o Kiko para participar da banda.

 

Entrevistadora: Sambanzo é de 2012?

Thiago França: Foi lançado em 2012, mas a gente fazia show com o repertório desse disco desde 2009. Juçara participava em alguns desses shows. “Man Feriman”, faixa do disco MetaL MetaL (2012), era originalmente uma música que a gente tocava nos shows do Sambanzo. Foi o primeiro Goma-Laca: a banda era o Sambanzo e tinha participações, uma delas era a Juçara e ela cantava “Man Feriman”.

 

Entrevistadora: É uma canção de domínio público, né?

Thiago França: Sim, uma cantiga de candomblé, para Oxum.

 

Entrevistadora: Em Meta Metá (2011), álbum de estreia do trio, a canção se evidencia de uma forma, digamos, mais plena e talvez mais convencional, porém com soluções muito interessantes em termos de construção harmônica. Ao invés de blocos de acordes, as canções são construídas sobre ostinatos e a harmonia vai se desenhando a partir do cruzamento de vozes. Já MetaL MetaL (2012), o segundo disco, traz uma linguagem bem mais agressiva: você usa pedais no sax, Kiko assume a guitarra elétrica e o trio tem formato expandido, com Sérgio Machado na bateria e Marcelo Cabral no baixo. Há uma diferença significativa de um disco para o outro em pouco tempo, 2011-2012. Como isso foi sendo gestado? O shows de divulgação do primeiro disco, de 2011, com a participação desses e outros músicos, como Rodrigo Campos, contribuíram para que se chegasse ao resultado de 2012?

Thiago França: Em MetaL MetaL (2012), o único que usa pedal sou eu. Kiko toca guitarra em algumas músicas, mas metade do disco ainda é violão.

 

Entrevistadora: Mesmo assim a linguagem é diferente em relação ao disco anterior. É muito mais agressiva, incluindo a performance vocal de Juçara. Mas já que você tocou no assunto, o que te levou a experimentar os pedais no sax?

Thiago França: O que me levou para os pedais foi que, nessa época, aliás, antes, a partir de 2009, eu comecei a romper com o pessoal do samba, do choro, com essa coisa mais tradicional, por uma série de divergências, não só estéticas, mas em relação a como as pessoas trabalhavam. Eu sempre tive na cabeça o lance da improvisação livre, embora eu tivesse praticado pouco. Ficava aquilo fervilhando e eu queria experimentar. Daí, em 2010, eu, Marcelo Cabral (baixo) e Tony Gordin (bateria) montamos o MarginalS, um trio de improvisação livre. A gente só tinha o tema para fazer os shows; uma ideia musical cíclica para desenvolver. A gente começava tocando e ia vendo pra onde fluía.

 

Entrevistadora: Essas ideias musicais cíclicas dão margem para ir muito longe, não é?

Thiago França: Sim. Nessa época, eu queria desconstruir tudo o que eu tinha aprendido com o saxofone. Pensava: “Já fiz, já improvisei, já toquei todos os choros, já toquei isso, toquei aquilo...”. Eu precisava de outra coisa e a improvisação livre me parecia bem propícia. Nessa época, 2010, eu conheci o [Guilherme] Guizado[3] , e ele tocava trompete com pedal. Aí me lembrei daqueles discos da fase elétrica do Miles Davis, ele tocando trompete com wawa, com delay. Lembrei também do Eddie Harris, um saxofonista que eu tinha ouvido pouco, mas que tinha me marcado. Ele usava pedais ainda bem básicos nos anos 1970, um oitavador, um reverb... Então eu fui na Theodoro Sampaio [rua com várias lojas de instrumentos musicais, em São Paulo] e comprei uns três pedais que eu achei que iam fazer sentido. Mas daí eu descobri que não era tão simples assim, que precisava de um preamp [pré-amplificador], um pequeno microfone com pedal... E a posição da caixa: “Nossa, não posso ficar aqui, tenho que ficar do lado de cá. O microfone tem que ficar virado pra cá...”.

 

Entrevistadora: Você teve que reaprender um monte de coisas.

Thiago França: Eu tive que aprender a lidar com aquilo. [Marcelo] Cabral e eu brincávamos que o MarginalS era o nosso workshop de pedais [risos]. A gente comprava pedais e ficava testando. Essas ideias e experimentos foram reverberando umas nas outras. Então, em 2009-2010 estava acontecendo tudo ao mesmo tempo: show do Kiko, show do Padê, do Metá Metá, o Sambanzo e o MarginalS. Eu estava começando a tocar com o Criolo e, além disso, começou a rolar os primeiros discos do Rodrigo Campos e do Rômulo Fróes. Eu lembro de o Rômulo me pedir para segurar uma nota grave no sax e eu responder: “Vai chocar com a harmonia!”. Mas ele sustentava: “Não importa, tá bonito!”. Sabe, essas ideias? Quem iria começar um arranjo com a nota “errada”? Então, o Rômulo vinha com uma cabeça muito imagética, no sentido de desrespeitar convenções técnicas, matemáticas da música, em função de uma ideia estética.

 

 

 

Entrevistadora: Você se lembra especificamente em que gravação isso ocorreu?

Thiago França: Foi na gravação do disco dele, Um labirinto em cada pé (2011). Há essa situação numa música: a nota grave e longa do sax choca com o baixo. Coisas como essa tinham a ver com a minha busca, com o que eu queria encontrar na improvisação livre, que é a exaustão da escala, do arpejo. Eu também estava pensando a música de uma forma mais estética, mais imagética, e a parceira com o Kiko é outra que veio muito a calhar. Por exemplo, se é música para orixá, se é para Xangô, eu posso pensar nessa figura, nas suas características, a explosão e o fogo, para construir os improvisos. Quer dizer, é outro pensamento, não é ficar pensando exatamente que escala, nota ou acorde seriam mais adequados aqui ou ali. Usar os pedais, para mim, foi uma fuga dessa “música certinha”. Foi um recurso que me valeu muito, até porque eu não sabia usar, eu não sabia nem regular os pedais direito; eu tinha que torcer o botão e ver o que ia acontecer.

 

Entrevistadora: Ou seja, experimentar literalmente.

Thiago França: Com o MarginalS era isso, cada dia acontecia uma coisa. Aí a “bagunça” se formou de vez quando a gente foi fazer um show no Festival Batuque [Santo André/SP], em 2010. Era um show do Kiko, com participação minha e da Juçara. E eu falei pro Kiko: “Olha, a gente nunca tocou num palco grande. Vamos chamar o Marcelo Cabral porque um baixo faz falta nesse caso. O baixo vai dar um chão e ocupar um espaço que a gente, sem ele, não ocupa”. E baixo é um instrumento meio fora do universo do samba, né? Eu e Cabral já estávamos fazendo uma gafieira lá no Ó do Borogodó. Então botei pilha, apresentei Cabral pra todo mundo... Todo mundo estava se conhecendo nessa fase. Era um período no qual a gente fazia shows com a mesma galera, com poucas diferenças. Quando coincidia músicas, a gente mudava uma coisa ou outra nos arranjos, dependendo de quem era o bandleader do momento. Então, eu acho que depois de 2011, depois do disco Metá Metá (2011) ser lançado e começar a fazer um certo barulho, tudo isso foi se condensando no trio, no Metá Metá.

 

 

Entrevistadora: Quer dizer, quando você relata sobre a improvisação livre, sobre o uso de pedais no sax e sobre as ideias, experiências compartilhadas e afinidades de músicos que se conhecem e se tornam parceiros, o que você está afirmando é que a mudança de linguagem sobre à qual te perguntei anteriormente, em relação ao primeiro e ao segundo disco do Metá Metá, não aconteceu de um ano para o outro (2011-12). Isso já vinha fervilhando e sendo experimentado em conjunto desde pelo menos 2009.

Thiago França: Às vezes eu acho que o primeiro disco, da capa verdinha – Metá Metá (2011) –, é meio que um parênteses dentro dessa história. Pois a gente já tocava músicas como “Oyá” [Douglas Germano/Kiko Dinucci] e “São Jorge” [Kiko Dinucci], que estão gravadas no segundo disco – MetaL MetaL (2012) –, e o show com baixo e bateria já estava rolando, até porque o formato de trio (Juçara, Kiko e eu) acabava ficando mais restrito à Casa de Francisca[4]  e ao SESC. Tinha ainda outra loucura nessa época: durante quase dois anos, uma sexta-feira por mês, eu, Marcelo Cabral, Rodrigo Campos e o Pimpa [Welington Moreira] na bateria, tocávamos no Ó do Borogodó. A gente fazia um esquema de cada um ir puxando uma música própria, e os outros acompanhando, criando ali em cima. Então, há ideias de arranjo que nasceram nessas circunstâncias. O Pimpa tocava bateria de um jeito; o Sérgio Machado ia gravar e tocava a música de outro jeito... Tinha uma efervescência de ideias e trocas muito grande nessa época.

 

Entrevistadora: Quer dizer, os arranjos elaborados de maneira coletiva e isso muito conectado com a prática de tocar junto nas apresentações/shows... Mudando um pouco o foco do assunto, mas nem tanto assim, gostaria de saber como se deu a sua aproximação do candomblé?

Thiago França: A primeira vez que eu pisei num terreiro de candomblé, em Belo Horizonte, eu fui de curioso, para ouvir música. Logo depois eu voltei pra São Paulo e não conhecia ninguém, aqui, que frequentava terreiro. Comentei sobre isso com o Maurílio [de Oliveira], do cavaco, um dos músicos do Quinteto em Branco e Preto. A gente estava lá no Samba da Vela[5] . Ele me disse: “Sabe aquele cara que vem sempre aqui, vem de branco, está sempre de boina, já cantou samba...”. Eu respondi: “Sei”. Daí ele me contou que o cara era pai de santo e a gente combinou de ir no terreiro dele. Fui lá e, desse dia em adiante, passei a frequentar assiduamente. Teve idas e vindas, teve épocas muitas intensas, eu tinha cargo para cumprir. Cheguei a visitar outros terreiros, mas eu estou nessa casa desde 2006. Eu sempre conversava muito com meu pai de santo sobre minha relação com a música. Eu sentia que, musicalmente e profissionalmente falando, eu não estava construindo muita coisa. Me sentia mais correndo atrás do próprio rabo do que construindo. E o candomblé, o terreiro, foi me parecendo uma fonte inesgotável de inspiração, no sentido de ter algum propósito e encontrar uma maneira de falar mais profundamente com as pessoas. Eu queria encontrar esse caminho através da música. O candomblé me apontou uma via, inclusive para refletir sobre o Brasil. Digo não só o Brasil de agora, mas o Brasil como um todo, sua história.

 

Entrevistadora: O Metá Metá surge ali no final da década de 2000 trazendo nas canções uma série de referências que remetem às culturas e religiões afro-diaspóricas, sobretudo ao candomblé: lendas e arquétipos iorubanos, ritmos, sonoridades... É um momento que, no Brasil, coincide com uma relativa ascensão social e simbólica das minorias, ainda sob os governos Lula/Dilma. Aos poucos, essa relativa ascensão vai se chocar com a emergência da extrema-direita, o bolsonarismo, o fortalecimento da bancada evangélica... Acho que um dos potenciais críticos e políticos da música do Metá Metá está justamente em trazer essas referências afro-diaspóricas. Porém, e o que torna essa música ainda mais interessante, vocês não assumem essa tarefa de uma maneira – digamos – panfletária.

Thiago França: Eu não diria panfletário, porque...

 

Entrevistadora: Não digo panfletário em sentido pejorativo, mas na tentativa de chamar a atenção para uma diferença que eu vejo no trabalho de vocês em relação a outros trabalhos politicamente mais escancarados quando se trata de reivindicações políticas para as minorias.

Thiago França: Sim, eu entendo. Mas acho que a palavra certa não é panfletário, porque, de certa forma, a gente preza e defende isso também. Só que, artisticamente, a gente não é tão literal. A gente não procura tanto o caminho da literalidade. Para contrastar, vou dar um exemplo meio estremo: Mano Brown; ele está ali contando uma história, óbvio que tem entrelinhas, mas ele é claro, é direto. Metá Metá, não... A gente tenta passar isso justamente pelo caminho estético que eu estava te falando, que eu procurei com a improvisação. Não tem nem como ser literal naquelas canções que possuem letras em ioruba, um idioma que as pessoas não falam, não conhecem.

 

Entrevistadora: Tem razão. Mas mesmo não conhecendo o idioma, ele é um símbolo que remete ao legado afro-diaspórico, ao candomblé... Li uma entrevista na qual você comentava sobre as canções do álbum MM3 (2016). Dizia, por exemplo, que se inspirou em Bonga Kuenda, cantor angolano, para compor o tema da canção “Angolana”[6] . Como você foi descobrindo esse e outros músicos africanos ou, enfim, músicos não brasileiros que te influenciam de alguma forma, alimentam suas ideias musicais? A internet, o YouTube, teve que papel nesse sentido?

Thiago França: Mudou minha vida! Eu lembro que, nessa época, CD importado era uma fortuna! Eu conheci muita coisa através da internet. Eu sempre fui muito ligado em computador. Meu pai também gostava: ele veio para São Paulo para trabalhar numa empresa de tecnologia. Eu lembro da empolgação dele, instalando a internet discada pela primeira vez, acho que em 96. A gente recebendo e-mail era coisa de outro mundo...  Eu, muito nerd, comprava programa pirata e desbloqueava... Eu ouvi falar do site do Instituto Moreira Salles (IMS), que lá tinha gravações em 78 rotações... Eu aprendi a fazer um esquema para piratear tudo. Ficava ouvindo e gravando as coisas [risos]. Usei todas aquelas primeiras plataformas de download e compartilhamento: Napster, eMule, Kazaa, Soulseek. Tudo o que era diferente eu baixava para ouvir. Comecei a ter acesso a um monte de músicas e parei de estudar.

 

 

Entrevistadora: O que? Sax?

Thiago França: É. Eu parei de estudar sax para ouvir música. Parei com a fissura que eu tinha de tocar dez horas por dia. Troquei o dia pela noite porque a internet era discada. Eu ficava baixando música de meia-noite às seis da manhã, para não pagar “impulso”. Daí eu acordava entre meio-dia e uma hora da tarde pra ouvir o que eu tinha baixado.

 

Entrevistadora: Ter acesso à internet logo no início, e direcionar esse acesso para a música, foi sem dúvida um diferencial na sua formação. Por falar nisso, em conhecer músicos, e eu havia te perguntado sobre músicos africanos, como foi que o Metá Metá conheceu o Tony Allen [7] e como se deu a parceria no EP Alakorô (2013)?

Thiago França: Eu não contava essa história pra ninguém. Mas agora estou autorizado pois o Tony deixou isso registrado numa entrevista para o SESC. Em 2012, eu estava fazendo uma turnê na Europa com o Criolo, e um dos nossos compromissos, em Paris, era participar de um programa de rádio. A curadora do programa convidou a gente e o Doctor L – músico, compositor e produtor envolvido com o pessoal de música africana. Íamos revezando no programa. Propuseram de todo mundo fazer um som juntos no final e beleza; fizemos, foi legal! Quando acabou, o produtor do Doctor L falou assim pra mim: “Muito legal o som de vocês! Eu quero ir no show. Reserva dois ingressos pra mim pois eu vou levar o Tony Allen”. Aí eu dei uma olhada meio incrédula pro [Marcelo] Cabral.

 

Entrevistadora: Você achou que era mentira?

Thiago França: Achei que era só papo... Esse cara produzia as coisas do Tony Allen; o nome dele é Eric Trosset; ele tem um selo chamado Comet Records. Eu até comentei com o Ganja [Daniel Ganjaman[8]], que falou assim: “O Eric da Comet? Ele vai trazer o Tony Allen pro show?”. A gente ficou naquela, desacreditando. Mas, para todos os efeitos, deixamos o nome do Eric com mais um ingresso lá na porta. Quando acabou o show, eu desci pro camarim que estava lotado de gente. Não tinha nem lugar pra sentar e eu voltei pro palco. Fui ajudar o Paul, que era o roadie, a enrolar cabo, a guardar as coisas.

 

Entrevistadora: Onde foi esse show exatamente?

Thiago França: Num bar em Paris chamado La Bellevilloise. Aí, deu uns cinco minutos, veio o Ganja correndo, esbaforido – pois o camarim era meio longe do palco. E falou assim: “Mano, o que você está fazendo aqui? Tony Allen está te procurando lá no camarim”. Eu fiquei surpreso: “Está me procurando pra quê?”. Aí eu voltei, entrei no camarim e dei de cara com o Criolo meio emburrado. É que o Tony Allen, sem saber quem era Criolo, sem saber o que significa, achou que era o nome da banda. E achou que o artista principal era eu! Ele tinha chegado no camarim e perguntado “Where’s Criolo?”. Aí apontaram para o Criolo e ele falou assim: “Mas Criolo não é o cara do sax?” [risos].

 

Entrevistadora: Criolo ficou enciumado?

Thiago França: Ficou. Na entrevista para o SESC, o Tony disse que ficou impressionado ao me ver tocar, com o vigor que eu tocava e tal. A gente conversou horas no camarim: Tony Allen fumando um e tal, e depois o Criolo relaxou, veio conversar, ficou um pouco com a gente. O Eric, o produtor, estava lá também. Eu falei pro Tony que conhecia os discos dele, que ouvia muito o Lagos no shaking (2006). E ele: “É mesmo? Conhece meus discos?”. E eu: “Pô, claro, você é uma referência, tem muito a ver com o som que a gente faz!”. Daí ele disse que a gente tinha que fazer algo juntos e eu topei na hora. Mas, assim, pensando: “Cara, é o Tony Allen. Eu tô aqui em Paris mas amanhã eu volto pra vida de músico de São Paulo...”. Enfim, não botei muita fé que rolaria algum projeto com ele. Dois meses depois, o Eric me escreveu: “Eu tenho um projeto que se chama Afrobeat Makers. Eu mando para vários produtores as tracks das baterias do Tony, os padrões que ele criou em estúdio. Vou te mandar três, você escolhe um, produz um som e me manda de volta pra gente colocar no disco”. Eu não conhecia esse projeto, não fui atrás para ouvir o que outros músicos/produtores já tinham criado. Aí ele me mandou as tracks e eu fiz uma música. Ele ouviu e disse: “Mano, você entendeu errado; isso é um projeto meio de remix pra pista. Geralmente os DJs mandam umas coisas mais quadradas. Você entendeu errado e ficou bom demais! A gente precisa fazer alguma coisa com isso porque o Tony também gostou!”. Daí eu propus de trabalhar com as três tracks e fazer um EP. Uma música entrou no Afrobeat Makers[9]. As outras duas estão no EP Alakorô (2013), que é uma parceria entre Metá Metá e Tony Allen. Eu estava vivendo intensamente o Metá Metá e nunca pensei em fazer um negócio só para mim. Eu quis incluir Kiko e Juçara.

 

Entrevistadora: Vocês também tocaram com Tony Allen em shows, não é? 

Thiago França: O Tony Allen veio para o Brasil no começo de 2013 para participar de um festival em Fortaleza. Daí o Eric, o produtor, me chamou para entrar na banda, para entrar no naipe. Eu fui, lógico! Quando rolou esse convite, eu logo tentei armar um show do Metá Metá com o Tony aqui em São Paulo, no SESC. Mas aí começou um imbróglio com a produtora de Fortaleza e no final das contas ficou resolvido assim: toquei com Tony no festival de Fortaleza e esse mesmo show, com a mesma banda, veio para São Paulo. Depois que a banda foi embora, a gente fez um show: Tony, Juçara, Kiko, eu, [Marcelo] Cabral no baixo e o Sérgio Machado na outra bateria. Foi um show com duas baterias. Esse show foi na Serralheria [Lapa, São Paulo], um bar que cabe só umas 120 pessoas. Foi o que deu pra fazer... Daí lançamos o EP Alakorô (2013) e ficamos nessa conexão. Uma vez eu participei de um show do Tony lá na França. E ele sempre ia ver a gente tocar lá, quando a gente ia e as agendas coincidiam. Em 2019, rolou de fazer um show, ele e eu, no Sesc Pompeia. Esse material está gravado mas ainda não foi lançado porque tem umas questões legais para resolver com o herdeiro dele.

 

Entrevistadora: Você também chegou a estabelecer alguma parceria com a Sun Ra Arkestra? Ouvi seu podcast no qual você entrevistava um dos integrantes, o percussionista brasileiro Elson Nascimento.

Thiago França: Não foi exatamente uma parceira minha com a Sun Ra. Foi um disco, Outros espaço, encabeçado pelo Rodrigo Brandão[10]. Ele convidou uma parte do naipe da Sun Ra e alguns músicos aqui do Brasil que já tinham tocado com ele. E daí juntou as duas turmas: Juçara Marçal, Tulipa Ruiz, eu, Thomas Rohrer, o Marco Gerez e o Guilherme Granado da [banda] Hurtmold. E o pessoal da Sun Ra, que eram o Elson Nascimento e os músicos mais velhos do naipe de metais: Marshall Allen, Denny Thompson (que logo depois faleceu) e o Norman Scott.

 

Entrevistadora: Sua relação com esse pessoal da Sun Ra se limitou às gravações ou vocês fizeram shows para divulgar o disco?

Thiago França: A gente fez uns oito shows. Mas é diferente da relação mais próxima que eu construí com o Tony Allen. Por isso eu digo que não foi exatamente uma parceria minha com a Sun Ra. Nossos encontros eram pontuais: para gravar o disco e fazer os shows. Aliás, as gravações do disco em estúdio foram registradas em vídeo; esse material está guardado, vai ser lançado.

 

Entrevistadora: Thiago, gostaria de conversar um pouco sobre A Espetacular Charanga do França. Quando surgiu o projeto e quantos discos já foram lançados?

Thiago França: Surgiu em 2013. Até hoje são oito discos lançados.

 

Entrevistadora: A Charanga é um bloco de carnaval, é uma banda e é também uma oficina de práticas musicais para instrumentos de sopro. Como funciona essa dinâmica?

Thiago França: Sim, o bloco, a banda e a oficina. E tudo isso gerou ainda um outro projeto, a Xepa Sounds: eu e dois percussionistas [Pimpa e Samba Sam]. Aí já não há nada de improviso, são melodias conhecidas. A gente tem tocado toda sexta-feira na Funilaria [bar situada no bairro Bixiga/Bela Vista, São Paulo]. Eu gravei o show da última sexta-feira. Tocamos três horas e meia sem pausa. Foram noventa e oito músicas! E tem de tudo, sem limite: Djavan, George Michael, Exalta Samba, Ivete Sangalo, funk carioca. Isso é uma característica que surgiu da Charanga: tocar músicas de grande alcance popular. O que não cabia na Charanga, no carnaval, eu ia levando para tocar nesse projeto da Xepa, que começou de brincadeira e foi ficando sério: vi que dava para continuar e tirar alguma grana.

Entrevistadora: E como começou a Charanga do França? Por que montar um bloco de carnaval?

Thiago França: Eu sempre gostei muito de carnaval, tenho uma ligação forte. Há dois fatos muito curiosos. O primeiro, eu era criança, ainda morando em Belo Horizonte. Meu pai tinha um irmão portador de deficiência intelectual. E, por algum motivo, esse meu tio só se acalmava ouvindo marchinha de carnaval. Então, todo sábado que eu chegava na casa do meu avô estava tocando marchinha de carnaval. É um repertório que fez parte da minha infância. Meu avô gostava muito. O pai dele tinha sido maestro de banda no interior. Inclusive, no segundo EP da Charanga, Chão molhado da roça (2017), tem a foto de uma banda de música num barranco, uns caras vestidos de fraque com os instrumentos. O sujeito do meio com a mão no bolso é meu bisavô, que era o maestro. O outro fato tem a ver com um amigo meu quando eu já tinha vindo para São Paulo a primeira vez. A família dele era do sul de Minas; eles tinham um hotel fazenda e resolveram fazer um carnaval lá. Me chamaram pra tocar; eu devia ter uns 14 ou 15 anos e sabia todas as músicas, conhecia o repertório. Mas o primeiro carnaval que eu fiz, profissionalmente falando, foi em 2001, em Belo Horizonte. De lá pra cá eu nunca mais parei. O único ano que eu não fiz foi 2021, na pandemia; a gente fez uma live.

 

Entrevistadora: Mas o que te moveu a criar a Charanga do França aqui em São Paulo? Foram essas memórias afetivas ou um projeto mais estratégico, no sentido de ter avaliado o carnaval da época e percebido a necessidade de propor algo diferente?

Thiago França: Assim como outras coisas que eu fiz na vida, eu fiz meio por despeito. Depois de tanto tocar, de tanto fazer baile, eu comecei a criar meus projetos movido pela raiva.

 

Entrevistadora: Como assim?

Thiago França: Eu comecei a fazer a minha gafieira lá no Ó do Borogodó meio impulsionado pela raiva. Eu tinha tocado em muita gafieira ruim, uns arranjos ruins, mal escritos... De tanto eu apontar essas coisas quando tocava em baile, em carnaval de salão, eu comecei a ouvir assim: “Por que você não para de reclamar e faz o seu? Faz então a sua gafieira, faz o seu próprio bloco de carnaval!”. Daí pensei: “Beleza, vou fazer o meu!”.

 

Entrevistadora: E fez!

Thiago França: Fiz! [risos]. Teve ainda outro fato que me motivou a criar a Charanga: meu primeiro sax foi um sax alto e depois eu troquei por um tenor. Fiquei muitos anos só com esse tenor. Aí, em 2012, eu estava na oficina de um luthier e ele me pediu para ajudar um menino que estava lá experimentando um sax: provar o som, o timbre, essas coisas... Estavam o menino e a mãe dele querendo comprar um sax alto. Mas quando eu peguei nesse sax, eu apaixonei! Não foi de sacanagem, falei a verdade pro menino: “Esse instrumento é muito pesado, tem muito volume, o som é muito redondo, muito bonito, mas você vai precisar de muitos anos de prática para poder conseguir tirar esse som...”. E daí aconselhei a comprar outro que tinha lá: mais moderno, com afinação melhor, mais leve e com mecânica mais macia. No fim das contas, a mãe dele não comprou nem um nem outro.

 

Entrevistadora: Você comprou então esse sax alto?

Thiago França: Sim, ele tem o som de sax alto que eu gosto. Esse instrumento tem, hoje, quase 110 anos; é com ele que eu toco na Charanga todo ano. Ele tem o som do Abel Ferreira, do Luiz Americano, dos caras que tocavam choro no início do século passado. É um sax que não tem aquela sonoridade jazzística. A partir desse dia eu botei na cabeça que eu tinha que inventar uma banda para tocar esse sax alto, uma banda que tivesse a ver com a sonoridade desse instrumento. Pois o som dele não caberia no Metá Metá, não caberia no Sambanzo e nem nas coisas de gafieira. Na improvisação livre vale tudo, mas mesmo assim eu queria montar uma banda específica pra esse instrumento. E foi aí que eu inventei a Espetacular Charanga do França, que a princípio seria um projeto de pré-carnaval. Porque no carnaval a gente trabalhava, todo mundo tocada em baile. Então, a gente ia fazer um “esquenta” de carnaval. Aí fizemos o primeiro em 2013 e todo mundo falou: “Mano, isso é muito bom, vocês têm que ir pra rua! O prefeito[11]  está falando sobre carnaval de rua, vocês têm que aproveitar, têm que fazer isso aí!”. Eu relutei um pouco porque passava o seguinte pela minha cabeça: “Pra quê que eu vou pra rua tocar de graça se eu ganharia cachê tocando em lugar fechado?”. Mas não demorou muito pra eu entender. Em São Paulo, dessa época em diante, a rua veio e pulverizou todas as atividades indoors do carnaval. Quase tudo o que tinha de carnaval em lugar fechado, acabou.

 

Entrevistadora: E, particularmente, esse ano [2023] a Charanga estava lotada. Estaria virando um bloco mainstream?

Thiago França: Só um parêntese: Entende que, no fim das contas, as coisas estão interligadas pela vontade de fazer? Na Charanga eu me associei a um bando de músicos amadores porque era mais importante a disposição de fazer o carnaval do que tocar um negócio megacomplexo em baile, em lugar fechado. Na Charanga, eu vejo a galera tocando com a mesma vontade que eu via o pessoal tocar no terreiro de candomblé. Agora, em relação ao carnaval desse ano, saiu uma matéria na Folha de S. Paulo: “Charanga vira megabloco e desagrada os foliões habitués”. Olha só: a prefeitura fez uma estimativa de 40 mil pessoas na Charanga. Dentro dessa métrica da prefeitura, a Charanga ainda não é nem um bloco grande. Bloco grande começa com 50 mil pessoas. Megabloco, com 150 mil. A gente pode até ter virado mainstream, mas o mainstream do indie [independente]. Porque a gente é o maior bloco pequeno da cidade.

 

Entrevistadora: Para participar da oficina da Charanga é preciso contribuir com algum valor ou o projeto é gratuito?

Thiago França: A gente já teve várias fases. E, verdade seja dita, eu estou aprendendo a fazer isso pois é um desafio muito grande. A realidade do carnaval de rua aqui em São Paulo muda a todo minuto desde que deixou de ser proibido. A princípio, eu tinha uma ideia muito romântica, de que seria algo pequeno e mais restrito. A gente achou que iam aparecer umas 200 ou 300 pessoas no bloco, no primeiro ano; e apareceram duas mil. E aí começou a vir uma demanda de uma galera amadora querendo tocar. Quanto à oficina, a primeira que a gente fez, foi na “raça”. No segundo ano, a gente conseguiu incentivo via PROAC – conseguimos patrocínio de uma empresa e a oficina foi gratuita. Então, a gente foi ficando meio híbrido. De 2020 pra cá, eu montei o seguinte sistema: eu cobro uma taxa de inscrição dos estreantes; quem já fez a oficina, já participou do bloco, não paga. Isso também porque eu entendi que a oficina é rotativa. Eu tenho um roteiro e todo ano eu começo do zero pois sempre tem gente nova. Depois de um tempo as pessoas já não vêm fazer aula, elas vêm pro ensaio aberto, pra tocar. Então, o sistema agora é esse: eu entendi que a única forma de furar a “bolha” seria tornar a oficina gratuita. Inclusive, se a pessoa vier para a oficina sem tocar nada, isso não é um impedimento; ela pode aprender. Tiveram algumas fases até chegar nesse critério. No primeiro ano que conseguimos subsídio, tinha uma produtora me acompanhando. A gente estabeleceu um número de vagas para a oficina pois isso estava previsto no projeto. Eu não queria mandar ninguém embora, mas aconteceu uma coisa que me doeu profundamente. Uma menina preta foi fazer o teste; pegou o trompete dela e não tocou uma nota. Então, pela lógica do projeto, ela estava eliminada. Hoje, eu sei que isso foi um grande erro. Porque de 300 pessoas que já passaram pela oficina, duas eram mulheres pretas, e eu, estupidamente, abri mão da terceira. Devia ter acolhido a moça. Só que foi estabelecido um critério e tudo era muito novo, eu nunca tinha feito isso, nunca tinha sido júri.

 

Entrevistadora: E o critério, hoje, qual é?

Thiago França: Ter um instrumento e ponto.

 

Entrevistadora: Thiago, desde 2000 fala-se em Nova MPB para caracterizar o trabalho de vários músicos que despontam em São Paulo e no Rio de Janeiro. O termo, em grande medida criado pela imprensa, é geralmente justificado pelas relações que essa Nova MPB teria com o samba, com a bossa nova, com tradições da música brasileira, com a própria MPB dos anos 1960 e 70, com o tropicalismo, e também por certo resgate de nomes que ficaram obscurecidos pela indústria fonográfica.

Thiago França: Tudo que a gente fez.

 

Entrevistadora: Pois bem: é recorrente o Metá Metá ser associado à Nova MPB, um termo guarda-chuva que acaba abarcando muita gente. Qual sua visão sobre esse termo?

Thiago França: Eu não tenho opinião sobre isso. Minha função é tocar, não é ficar pensando sobre o que eu faço.

 

Entrevistadora: Você não se incomoda com matérias de jornais se referindo ao Metá Metá como Nova MPB?

Thiago França: Não. Os jornalistas estão aí também batalhando na profissão deles.

 

Entrevistadora: Eu fiz essa pergunta porque já ouvi parceiros seus refutando o termo Nova MPB.

Thiago França: Eu não sou exatamente um compositor de canção, eu não sou letrista. Algo que me incomoda e que eu faço questão de corrigir é toda vez que me chamam de jazzista. Porque, no meu entendimento do que é ser um jazzista, eu não sou. Eu acho muita falta de atenção, muita preguiça, achar que o que eu faço é jazz só porque o meu instrumento é o saxofone. Ou seja, o saxofone é vinculado automaticamente ao jazz e isso é limitante. Minha música, o que eu toco e o meu jeito de tocar têm embasamento em outras coisas também. Óbvio que eu me nutri do jazz; óbvio que a obra de músicos como Coltrane, Sun Ra, Ornette Coleman, Archie Shepp e Pharaoh Sanders foram e são extremamente importantes pra mim. Óbvio que tudo isso é influência, é inspiração. Só que a forma com que esses caras tocam, a forma como as estruturas são organizadas é diferente do que a gente faz aqui. Os propósitos são outros. Óbvio que tem semelhança, mas acho que, em questões muito cruciais, a gente diverge. Por exemplo, tem uma galera da Europa que faz improvisação livre e que tem fobia de ritmo. Eu já tive esse papo com alguns músicos de lá. Para eles, o ritmo é o que molda, o dá uma cara de composição para as coisas; por isso, eles querem destruir o ritmo. Para mim, essa é a ideia mais colonizadora desde que a Europa resolveu colonizar o mundo inteiro: destruir aquilo que os outros povos têm de melhor.

 

Entrevistadora: É uma crítica pertinente. Mas ao mesmo tempo eles estão rompendo com formas de estruturação musical estabelecidas própria tradição europeia.

Thiago França: Pode ser. Mas a improvisação livre que eu faço é toda baseada em padrões rítmicos, em melodias primordiais; pedra fundamental de tudo o que a gente conhece de música brasileira. Isso é o que me interessa preservar.

 

Entrevistadora: Quando o primeiro disco do Metá Metá foi lançado, em 2011, houve vários elogios da imprensa e da crítica. Muitos identificaram ali o germe de algo novo em desenvolvimento. Também chegaram a comparar com Os afro-sambas (1965), do Baden Powell e Vinicius de Moraes, que, na minha leitura, não é o caso.

Thiago França: Por isso que eu raramente leio matérias jornalísticas... Há uma peculiaridade nesse disco – Metá Metá (2011) – que eu acho muito chocante, no sentido de ele ser um contraponto extremo em relação à muita coisa que estava rolando naquele momento. Pensando no nicho em que a gente estava, havia muita sonoridade eletrônica: uma certa moda que veio meio no embalo da [cantora] Céu.

 

Entrevistadora: O que você está me dizendo leva àquela pergunta anterior que eu te fiz, sobre a Nova MPB.

Thiago França: Mas é que você perguntou de outro jeito. Eu não me importo com rotulação. Mas, de fato, o disco Metá Metá, de 2011, destoava e acho que isso somou para ele ganhar um certo destaque. Talvez eu esteja forçando um pouco a barra ao dizer que todo mundo estava tentando imitar a Céu... Mas tem uma coisa ali, a partir de 2005, que juntou a Céu, o Beto Villares, o Antônio Pinto... O Antônio tinha feito a trilha sonora do filme Cidade de Deus (2002), era o produtor do momento.

 

Entrevistadora: Beto Villares foi produtor do Rodrigo Campos.

Thiago França: Foi, ele produziu o primeiro disco do Rodrigo, São Mateus não é um lugar assim tão longe (2011). O Rodrigo também destoava musicalmente, mas era próximo dessa galera que ditou, por um tempo, a linguagem. Muita gente estava buscando soar brasileiro e moderno ao mesmo tempo, tentando resgatar uma sonoridade dos anos 60 e 70, usar instrumentos antigos e arranjos elaborados, densos. Porém, muita coisa morna, sempre soando muito comportado e, ao mesmo tempo, cheio de informação: teclado, guitarra, sample, beat, percussão, isso e aquilo... Daí, no meio disso, aparece a gente, Metá Metá: três pessoas tocando, só nós três.

 

Entrevistadora: Num modelo bem mais conciso, arranjos econômicos.

Thiago França: Exatamente como a gente fazia no palco. Porque é isso: a gente é músico que faz show, que vai para o estúdio para fazer o que a gente sabe: tocar. Sem juízo de valor, é diferente de um músico de estúdio. Hoje, dá pra dizer que o Kiko, por exemplo, produz coisas de estúdio, mas no início não era assim. Então, a pegada mais enxuta, sem aqueles sons eletrônicos, sem aqueles arranjos densos, destoou do que estava em voga no momento.

 

Entrevistadora: Nessa época, especialmente a partir de 2010, é também o momento que a gente começa a ouvir a falar em “nova cena musical paulistana independente”. Dentre outros aspectos, essa cena seria caracterizada por trabalhos em conjunto, por colaborações entre os músicos e produtores envolvidos e por parcerias com casas de show, bares, gravadoras, distribuidoras e instituições na cidade de São Paulo. Metá Metá, seus parceiros mais próximos e uma porção de outros músicos, muito diversos entre si esteticamente falando, fariam parte dessa cena ou circuito musical. Minha pergunta é: na sua percepção, o que, nessa cena, teria mudado de lá para cá, nesses últimos 15 ou 20 anos?

Thiago França: Falar de geração é um negócio complexo. Eu saio 20 anos mais velho em relação a algumas pessoas dessa cena, e outras são mais velhas do que eu. Acho que a gente não é da mesma geração, mas somos da mesma galera. A galera que ficou no limbo.

 

 

Entrevistadora: No limbo em que sentido?

Thiago França: O limbo do mercado. A gente se juntou, antes de tudo, por necessidade. Essa prática desmonetizada, comunitária, é antes de tudo por sobrevivência. Porque se o Kiko [Dinucci] cobrasse para gravar no meu disco e eu cobrasse para gravar no disco dele, nós dois íamos ficar no cheque especial e nenhum dos dois discos iria sair. Então, quando a gente começou a aparecer como artista, ali em 2006/2007, as gravadoras já estavam batendo o último prego do caixão.

 

Entrevistadora: Mas elas foram ágeis: fizeram parcerias com empresas de tecnologia e telecomunicações.

Thiago França: Sim. Mas estou querendo dizer que, hoje, as gravadoras não existem mais nos moldes em que a gente foi criado e treinado a entender e procurar. Por exemplo: procurar um produtor que vai te levar para a gravadora e fazer tudo por você. Enquanto estava acontecendo a transição para esse modelo atual, a gente já sabia que estava de fora. E ainda tinha gente naquela: gravar CD, chamar não sei quem para produzir, ir na TV, no rádio... A gente já sabia que estava de fora desse game. Então, uma forma mais sustentável, colaborativa, foi o jeito que a gente encontrou de existir como músico.

 

Entrevistadora: Graças, em grande medida, à internet.

Thiago França: Quando estava todo mundo – músicos, gravadoras, distribuidoras – querendo saber como proibia download, como bloqueava isso e aquilo, a gente estava compartilhando de graça os nossos discos, as nossas músicas. Era o jeito que a gente tinha de existir. Eu acho que, a partir de 2015, quando começa a imperar um novo modelo dentro da lógica das redes sociais... acho que a gente já fica velho pra isso.

 

Entrevistadora: Como assim? Vocês continuam muito ativos nas redes sociais. Estão sempre divulgando discos, shows, agenda de shows...

Thiago França: Esse lance de lançar single, aí um mês depois o cara já tem 100 mil seguidores no Instagram, e faz dancinha do TikTok, daí vêm as marcas patrocinadoras... Entendeu? Esse modelo substituiu o que as gravadoras faziam e a gente ficou velho pra isso. Desse game a gente também ficou de fora e não estou me colocando como vítima da situação.

 

Entrevistadora: Mas vocês usam de outras estratégias na internet para divulgar trabalhos. E, salvo engano, o seu público, o público do Metá Metá, é mais maduro do que o público engajado nas dancinhas do TikTok.

Thiago França: Eu já perdi esse bonde e não é porque eu sou sério. Sexta-feira passada eu estava lá no [bar] Funilaria tocando axé e a galera dançando. Mas fazer dancinha em rede social é diferente: constrangimento, exposição da minha vida... O tanto que eu sou famoso hoje, que é nada, já me incomoda.

 

Entrevistadora: Pois bem, mas essa internet que é dinâmica, fluída e que dita tendências foi crucial para a formação de uma cena musical independente em São Paulo. Se por um lado vocês perderam o “bonde” do sistema que regia a indústria fonográfica até então, por outro lado vocês pegaram o “bonde” da internet quando ela estava se consolidando. Quer dizer, não dá para dizer que vocês ficaram marginalizados pelo sistema justamente porque o sistema mudou: a ascensão da internet e a colaboração mútua entre músicos e produtores na cena paulistana possibilitou a criação de outras formas de produção, circulação e distribuição.

Thiago França: Sim, exato. Como eu te disse, a gente se juntou, antes de tudo, por uma questão de sobrevivência, para fazer as coisas acontecerem.

 

Entrevistadora: Seja galera ou geração, essa cena musical paulistana que desponta em meados dos anos 2000 é bem distinta da geração do Itamar Assumpção, do Arrigo Barnabé, da chamada Vanguarda Paulista. O músico independente de hoje seria, em muitos casos, um “empreendedor”, um agente de inovação musical que eventualmente estabelece parcerias com grandes gravadoras. Você concorda com essa análise? Vocês, do Metá Metá, já fizeram algum tipo de parceria com gravadoras maiores, com multinacionais?

Thiago França: Parceria com multinacional? Não. Só indiretamente.

Entrevistadora: Como?

Thiago França: O selo com o qual a gente trabalha na Europa, Mais Um Discos, é um selo independente. Mas em algumas instâncias há parcerias com multinacional. Por exemplo, a Universal Music é quem toma conta de uma parte do catálogo do Mais Um Discos. Então, indiretamente, a gente acaba resvalando nas multinacionais.

 

Entrevistadora: Mais Um Discos é um selo inglês, certo?

Thiago França: Sim, foi fundado por um cara chamado Lewis Robinson e é um selo independente especializado em música brasileira para o mercado europeu; mas lança outros tipos de música também. Mais Um Discos prensa e comercializa discos físicos, vinil, LP.

 

Entrevistadora: Assim como a Goma-Gringa, aqui no Brasil?

Thiago França: A Goma-Gringa é mais específica, voltada para um nicho de mercado no Brasil. É um selo brasileiro criado por um francês, Fred [Frédéric Thiphagne], que mora há anos aqui em São Paulo. A Goma-Gringa faz discos de vinil e normalmente são discos que já foram lançados no digital. Então, o Fred tem feito relançamentos em vinil. A Goma-Gringa relançou, por exemplo, o primeiro disco da Charanga da França, em formato de compacto; e, em formato de LP, relançou o meu disco Malagueta, Perus e Bacanaço (2013)[12]

 

Entrevistadora: Com que outros selos/gravadoras e/ou distribuidoras vocês trabalham aqui no Brasil?

Thiago França: Para fazer a distribuição digital, a gente já estabeleceu parceria com o Laboratório Fantasma, do Emicida e do Fióti, e hoje a gente está trabalhando com a YB Music. Nosso catálogo foi para a YB Music agora em março [2023]. São selos/distribuidoras independentes, mas, como te falei, em alguma instância a gente acaba resvalando nas multinacionais até porque a ONErpm é quem controla os uploads para os streamings. A ONErpm é uma megaempresa, é uma Ambev dos streamings. Então, no fim das contas, sempre há um bilionário ganhando ainda mais dinheiro. O dinheiro está todo interligado. Hoje só dá para dizer que um músico é absolutamente independente se ele estiver gravando CD em casa e vendendo, sei lá, na Praça da Sé. Se não for assim, ele inevitavelmente vai se conectar com essas instâncias maiores. Elas estão aí atuando, continuam dominando o mercado. Talvez a questão que defina o que é ser músico independente, hoje, seja: a quantos graus de distância você está do topo?

 

Entrevistadora: De fato: a lógica posta hoje não dá margem para fugir dessa relação, ainda que indireta, com empresas que dominam o mercado da música gravada. Para além dos streaming, tenho visto discos seus, do Kiko Dinucci, da Juçara Marçal e do Metá Metá disponíveis para venda no Bandcamp. No que consiste exatamente essa plataforma?

Thiago França: É uma plataforma internacional de comércio de discos.

 

Entrevistadora: Você mesmo disponibiliza seus discos lá? É preciso pagar alguma taxa por isso?

Thiago França: Eu mesmo subo o disco e não pago nada por isso. Só pago porcentagem para a plataforma quando a faixa ou o disco é vendido, pois é possível comprar apenas uma faixa, em formato wave, ou o disco inteiro, digital ou físico (CD, LP), depende da disponibilidade. Inclusive, alguns artistas usam o Bandcamp como uma plataforma de e-commerce para vender camiseta e outros produtos.

 

Entrevistadora: Thiago, em 2018 eu fiz uma entrevista com Kiko Dinucci[13]  e, entre outros assuntos, nós conversamos sobre as dinâmicas e estratégias de produção dos álbuns do Metá Metá. Bancar o próprio disco, investir cachês de shows para gravar o próximo, fabricar outros produtos como camisetas... Essa lógica que se retroalimenta, ou essa microeconomia, ainda existe no Metá Metá? Pergunto porque já tem um tempo, desde 2016, que o trio não lança um disco novo, embora, é claro, a banda continue fazendo shows e vocês sigam envolvidos com inúmeros outros projetos.

Thiago França: Essa é uma prática que eu tenho desde sempre. Em 2002, em Belo Horizonte, eu falava para os caras do Copo Lagoinha que a gente precisava gravar um disco. A gente já tinha público e o público cobrava. Mas os caras botavam dificuldade em tudo: “Dinheiro, liberar música, pagar direito autoral ou ter que compor...”. Um dia, a gente foi num estúdio e eu propus de fazer um disco “pirata”. Os caras foram desacreditados, mas gravamos uma meia dúzia de músicas. O rapaz do estúdio mixou e masterizou – ele nem sabia o que era masterização [risos]. Ele fez qualquer coisa lá e beleza. Aí, eu ia num lugar perto da rodoviária de Belo Horizonte – era tipo uma Santa Efigênia lá – para comprar CDs virgens e capinhas de acrílico. Eu copiava os CDs na minha casa, um por um, no CDR do computador. Botava na capinha com um papel couché, que eu achei numa gráfica, e vendia na mão das pessoas depois do show. Então, aqui em São Paulo, quando a gente gravou o primeiro disco do Metá Metá, esse esquema de “faça você mesmo” não era estranho pra mim. Arrumamos uma copiadora e uma gráfica e ficávamos os três montando os CDs no camarim, um por um. Depois eu fui correr atrás de fazer camiseta, de fazer ecobag... As pessoas compravam o CD e ganhavam uma sacolinha escrito Metá Metá. Hoje o Metá Metá deu uma dispersada, né?

 

Entrevistadora: O Metá Metá deu uma dispersada?

Thiago França: São várias fases e não é a primeira vez que isso acontece. Por exemplo, quando saiu o disco da Juçara, Encarnado (2014), a coisa focou um pouco mais no tronco dela. Depois a gente se juntou e fez o MM3 (2016). E é assim que funciona: são fases e a gente está sempre tocando nos projetos uns dos outros, a gente está sempre em conexão, mas o Metá Metá não tem, agora, o mesmo volume de shows que teve em outras épocas. Eu quis fazer um disco solo [Canhoto de pé, 2024] e a Charanga do França toma tempo também. Hoje, eu corro atrás de fabricar produtos da Charanga: camiseta, boné, viseira, ecobag, ímã de geladeira... E nem é pela grana, porque não dá tanto dinheiro.

 

Entrevistadora: O que te motiva a fabricar esses produtos então?

Thiago França: Por exemplo: se alguém sai na rua com a camiseta do Metá Metá, outras pessoas vão ver; podem identificar, comentar... Direto eu vejo gente na rua com boné da Charanga; dá para medir um pouco o alcance da coisa. Entende?

 

Entrevistadora: Claro: tem a ver com circulação, identificação, divulgação.

Thiago França: Tem a ver com continuar existindo também. Esses produtos são como se fossem a extensão do disco. Mesmo se a banda acabar, ela continua existindo.

 

Entrevistadora: Voltando à questão de bancar o próprio disco, fiquei pensando o seguinte: 2011, quando é lançado o primeiro álbum do Metá Metá, é um contexto marcado por abundância de políticas públicas voltadas para a cultura, no Brasil. Por que bancar o próprio disco? Recorrer a editais, a programas de incentivos fiscais, não era uma opção?

Thiago França: Eu acho que o lance de não depender de edital, no caso do Metá Metá, tem a ver com a ideia de o disco ser como um retrato, que faz sentido naquele momento. Esperar o tempo de um edital é correr o risco de a ideia, a concepção do disco, deixar de fazer sentido.

 

Entrevistadora: Teria alguma relação, para você, o fato de o Metá Metá preferir não enviar projeto, preferir bancar os próprios discos, e o cenário político que se desenhava no Brasil a partir, sobretudo, de 2013? Ou seja, cenário marcado por polarização política, golpe, ascensão da extrema-direita, aversão à diversidade cultural, desmonte institucional do Ministério da Cultura... Essa questão remete a uma conversa que a gente teve, certa vez, antes de um show do Metá Metá no Mundo Pensante [casa de show situada no Bixiga (Bela Vista), São Paulo]. Era 2018, estávamos sob o governo Temer. A conversa foi breve, mas me lembro de você dizer, em tom de crítica, que “ainda tem gente que fica correndo atrás de editais”. 

Thiago França: Eu me lembro da conversa, mas não exatamente do contexto do dia; podia ter acontecido algo específico naquele dia para eu dizer isso. Eu mandei projeto pra todos os meus discos, nunca ganhei. Deixaria de ser músico se dependesse disso. Eu peguei dinheiro emprestado no banco para gravar o meu primeiro disco. Fiquei quase dois anos gravando: fazia, refazia... Num dado momento, eu me convenci do seguinte: se eu subo no palco e faço um show de mais ou menos uma hora e meia, então eu sou capaz de gravar um disco em uma hora e meia. Se o que eu faço em uma hora e meia de estúdio não está bom, então o que eu estou fazendo no palco também não está.

 

Entrevistadora: Isso tem muito a ver com a prática do Metá Metá: gravar quase que de uma vez só, sem ficar repetindo, sem ficar consertando “errinhos”. Uma banda já entrosada que vai para o estúdio e grava como se estivesse no palco.

Thiago França: Sim. Todos os três discos do Metá Metá foram gravados num curto período de tempo.

 

Entrevistadora: Uma lógica diversa do que geralmente os músicos fazem em estúdio.

Thiago França: Ou era isso ou era desistir. Não tinha recurso para alugar horas e horas de estúdio.

 

Entrevistadora: Ainda sobre os editais de incentivo à cultura, você continua enviando projetos para seus discos e para Charanga do França? 

Thiago França: Ano passado [2022], mandei projeto da Charanga para a Natura Musical e, esse ano [2023], mandei para a Virada Cultural de São Paulo. Nenhum dos dois ganhou. Recentemente mandei para o edital da Caixa Econômica Federal. Mando todo ano: edital do Banco do Brasil, ProAC. Como eu comentei antes, a Oficina da Charanga ganhou uma única vez, mas, na verdade, foi a produtora quem ganhou. Ela já tinha um investidor e me procurou. Era um edital ProAC ICMS. Exceto isso, nunca ganhei nada, mas continuo mandando; acho que é uma obrigação mandar. Hoje eu sou um pouco menos contrariado porque eu sei para que direção os editais estão olhando. Pessoas às vezes são contempladas porque o lance é saber fazer edital, não precisa saber fazer música. Eu sei que sou o último da fila por conta dessa preocupação social paliativa que existe hoje em dia.

 

Entrevistadora: “Preocupação social paliativa”?

Thiago França: Sim, por que, estruturalmente, a gente sabe que vai demorar mil anos para mudar alguma coisa.

 

Entrevistadora: Gostaria de conversar sobre as turnês na Europa: Metá Metá já fez vários shows por lá e chegou a tocar em dois grandes eventos de world music, em 2017: Womad (Inglaterra) e Womex (Polônia). Nesse último, vocês participaram da programação de showcases e tiveram apoio da Brasil Music Exchange (BME), agência de exportação de música brasileira. Como se deu essa articulação? Foi um apoio integral ou só ajuda de custo?

Thiago França: A BME articulou a nossa entrada no evento. A gente tinha um esquema de consórcio com eles. Não me lembro dos valores, mas a gente pagava uma anuidade e eles nos ajudaram com uma parte das passagens.

 

Entrevistadora: Como é o público desses festivais e de outros shows na Europa?

Thiago França: Tenho certa dificuldade de ler e entender os lugares onde a gente toca na Europa. O público é diferente, geralmente é um público mais velho. No último festival que a gente tocou na Alemanha, em Moers, o público tinha a cabeça branca. Quanto aos bares, casas de shows, teve lugares onde a gente tocou que, se fosse em São Paulo, eu não pisaria. Mas outras vezes os lugares são legais, abertos para novos artistas e dá para notar que ali acontece uma efervescência cultural local. Só que aí, óbvio, a entrada é barata, a cerveja é barata e no fim das contas o cachê é ruim.

 

 

Entrevistadora: Que categoria é colada sobre a música de vocês na ocasião dos shows na Europa? Música brasileira, rock, jazz, world music?

Thiago França: Fica no campo do exótico: uma música brasileira que é não padrão [...]. Eu tenho tido cada vez mais impressões ruins das nossas idas para a Europa. Em alguma instância paira um certo colonialismo. Porque, no final das contas, depois de um mês tocando lá, a gente percebe que movimentou uns 120 mil euros e estamos voltando pra casa, cada um, com três. Quer dizer, 90% do nosso trabalho fica lá. Que lugar do Brasil eu iria topar receber só 10% de bilheteria? Nenhum.

 

Entrevistadora: Mas, ao mesmo tempo, tocar na Europa possibilita contatos e confere visibilidade para vocês em alguns circuitos de lá. Não vale a pena, apesar dos efeitos colaterais? Acredito que vocês já tenham criado – digamos – uma rede por lá.

Thiago França: Não é tão concreto assim. A gente tem contato com o nosso produtor; nosso produtor tem contato com os produtores locais; os produtores locais vendem o show; daí a gente vai lá e faz o show. Mas a gente mesmo não tem tempo de se conectar com outros artistas; a gente acaba não conhecendo as cenas locais. Porque, no geral, é assim: a gente chega, toca, dorme, pega avião, pega vã, pega trem, toca em outro lugar, vai pra cá, vai pra lá... Chega, bate cartão e vai pra próxima. Entendeu?

 

Entrevistadora: Você disse “produtor da gente”: quem é esse produtor?

Thiago França: O Eric [Trosset], que era o produtor do Tony Allen, foi a nossa primeira conexão na Europa; foi através dele que eu consegui a primeira ida do Metá Metá para lá.

 

Entrevistadora: Vocês já tocaram nos Estados Unidos?

Thiago França: Eu, sim; Metá Metá, não. Eu toquei com Criolo nos Estados Unidos após aquela turnê europeia que fiz com ele, quando, na França, conheci o Tony Allen. Tocamos em Los Angeles e Nova Iorque. Depois eu voltei aos Estados Unidos não exatamente para tocar, mas acabei tocando em bares com alguns conhecidos. Avisava que estava na área e rolava um som.

Entrevistadora: Nunca houve possibilidade de o Metá Metá tocar nos Estados Unidos?

Thiago França: A sensação que eu tenho, vendo de fora e conversando com pessoas, é de que o circuito americano é muito fechado. É difícil furar esse bloqueio. No geral, os Estados Unidos consome música brasileira para exportação e o som que a gente faz não bate tanto lá. A Europa é mais aberta para a arte. Além disso, ninguém nunca demonstrou interesse, nunca houve um convite para o Metá Metá tocar nos Estados Unidos. A gente não fica sabendo de coisas que acontecem lá, se o nosso som já tocou em algum lugar lá... Quanto à Europa, por conta dos nossos contatos, a gente sempre tem um feedback do que rola por lá: quem ouviu nossos discos e gostou, quem comentou, se tocou na rádio, se alguém falou da gente na BBC [British Broadcasting Corporation]. Não sei se é o caso de entrar no mérito do porquê desse interesse. Acho que, no fundo, é quase uma expiação de culpa.

 

Entrevistadora: Da Europa? Em que sentido?

Thiago França: Tipo assim: “Nós colonizamos o mundo inteiro e agora vamos abrir espaço para esse pessoal tocar”. Posso estar sendo um pouco neurótico; eu sou mineiro, desconfiado... Mas sinto que tem algo assim no ar.

 

Entrevistadora: De toda forma, o circuito para a música brasileira na Europa, ainda mais uma música – digamos – experimental que vocês fazem, acaba sendo um circuito restrito, de nicho.

Thiago França: A gente acaba indo para o palco de world music, para o palco Terceiro Mundo.

 

Entrevistadora: Exato, sobretudo no contexto dos festivais... Mudando o rumo do assunto, de onde surgiu a ideia de nomear os shows do Metá Metá mais Rômulo Fróes, Marcelo Cabral e Rodrigo Campos de Clube da Encruza? Inclusive achei interessante você dizer, numa entrevista, que chamar esses shows e essa turma de Clube da Encruza seria uma alusão jocosa ao Clube da Esquina. Eu pesquisei o Clube da Esquina[14]  e, para mim, isso fez sentido na medida em que, em ambos os casos, há parcerias mútuas, um contribui com o trabalho do outro, arranjos e discos são criados de maneira coletiva e há ampla abertura para outras parcerias desde que, naturalmente, haja afinidades. “Clube”, numa acepção mais restrita da palavra – algo reservado, fechado em si mesmo – só existiria no nome. Enfim, por que nomear esses encontros e shows? Foi uma estratégia de marketing?

Thiago França: Ninguém consome nada se não estiver formatado. Por exemplo, eu não consigo marcar um show com o Rubens [Amatto], da Casa de Francisca, e ele é nosso amigo, se não tiver um release, um nome e uma foto. Não basta “Thiago, Fulano e Beltrano”. Se a banda não tem nome, vão querer saber o nome do show. Se não tem nem uma coisa nem outra, não marcam. As pessoas entram em choque se não tiver um nome.

 

Entrevistadora: Foi essa demanda que motivou o nome “Clube da Encruza”?  

Thiago França: Sim. Óbvio que a gente se entende como um grupo de amigos, que não é fechado. Pelo contrário, é um grupo bem “promíscuo”. Mas, em algum momento, fez sentido nomear. Acho que isso veio mais do Rômulo [Froés], que tem uma ânsia maior por enunciados. Tem um pouco do dedo dele naquele papo de Nova MPB, certa autoproclamação de que somos um movimento. Eu não diria isso, com esse intuito. Foi o Rômulo quem sugeriu juntar todo mundo para fazer um disco. Mas esse disco nunca saiu do papel, nem chegou a ir pro papel. O mais próximo dessa ideia foi o meu disco Malagueta, Perus e Bacanaço (2013), que, sem explicitar, sem dizer com todas as letras, envolveu todo mundo no processo. Enfim, o disco do “Clube da Encruza” não saiu, mas alguém teve a ideia de “vamos fazer um show!”.

 

Entrevistadora: E vocês fizeram vários shows na Casa de Francisca e noutros lugares.

Thiago França: O primeiro de todos foi no Auditório Ibirapuera [São Paulo]. Foi ótimo! Daí, depois de um tempo, o Kiko [Dinucci] cismou com o negócio do “clube”. Um dia ele enviou uma mensagem justificando porque não poderia ser mais “clube”, que isso remeteria a um negócio fechado, panelinha... Tanto que os últimos shows em conjunto têm se chamado só “Encruza”.

 

Entrevistadora: De fato. Particularmente eu acho mais interessante: Encruza é mais contingente, mais aberto, abarca os encontros, as parcerias, as encruzilhadas, o léxico do candomblé... Thiago, gostaria que você comentasse sua perspectiva sobre a canção do Metá Metá, principalmente em relação aos álbuns MetaL MetaL (2012) e MM3 (2016). Na minha leitura há um procedimento que a gente poderia chamar, em alguns casos, de desconstruir uma forma hegemônica de canção. Isso envolveria tensionar o enlace letra-melodia e apostar numa harmonia que não é meramente background para a voz cantada, mas uma harmonia concebida horizontalmente, a partir de contracantos, de ostinatos...

Thiago França: Isso acontece, mas não acho que isso interfira na estrutura da canção. A canção não está tão desconstruída assim, não, nem no MetaL MetaL (2012) nem no MM3 (2016). Mesmo numa música como “Oba Koso” (domínio público), do MM3... Se a gente isolar o fato de que essa música tem uns nove minutos, pois tem improvisos, solos longos, e o fato de que ela tem coloridos que não se vê em canções mais tradicionais, em canções mais formatadas pela indústria, pela rádio... Se a gente colocar esses elementos de lado, a estrutura continua sendo: introdução, melodia cantada, solo, melodia cantada e acabou.

 

Entrevistadora: Sim, essa estrutura continua regendo. Contudo, são justamente esses elementos que você sugeriu isolar que desestabilizam uma forma mais convencional de se conceber a canção.

Thiago França: Eu concordo que há elementos não muito convencionais nas canções desses dois discos. Mas não acho que a estrutura da canção esteja desconstruída. A canção continua apresentadíssima! Até mesmo quando se fala em arranjo horizontal: essa roda existe desde que o mundo é mundo. Ou seja, nós não estamos inventando nada. Agora, eu acho que o inusitado, nesses discos, é a concepção estética dos timbres, dos coloridos. São coloridos que fogem do universo mais convencional da canção. Por exemplo, quando o saxofone acompanha a voz cantada, dobrando a melodia: isso cria um colorido diferente.

 

Entrevistadora: Esse é o ponto. Pensando mais especificamente no MM3 (2016), há ali uma concepção estética que não está necessariamente à serviço da melodia cantada, no sentido de que as sonoridades, os timbres e até o ruídos de gravação têm a mesma importância, incluindo a voz de Juçara Marçal como um instrumento que não se limita a cantar a letra. Tudo isso cria contrastes tímbricos, imagens, coloridos que fogem de um formato mais convencional de canção. Ou seja, harmonia e arranjo não estão necessariamente a serviço da melodia cantada. São tão importantes quanto, assim como outros aspectos da sonoridade.

Thiago França: Isso está também na própria mixagem do disco. A voz do cantor em qualquer disco padrão de MPB tende a estar descolada do instrumental da música. Dá para perceber muito mais o todo quando a voz está no plano dos instrumentos, como a gente faz. As informações são mais concomitantes. Parece que é um monte de coisa acontecendo ao mesmo tempo, mas às vezes nem é. É só uma relação de planos. Claro que a gente quer valorizar nosso trabalho, no sentido de afirmar que há ali alguma novidade, mas exceto a estética do som, o timbre, a mixagem, essas coisas, os elementos em si não são novos. Um solo muito louco? John Coltrane já fez. Um pedal no sax ou na voz da Juçara? Isso já foi feito. Até isso é engraçado, porque às vezes um roadie vem trabalhar com a gente em festival e fala assim: “Tem um negócio errado no rider de vocês, um pedal no lugar errado”. Aí eu tenho que explicar, subir no palco e montar. Tem coisas que ninguém nunca viu porque ninguém usou no passado próximo, mas nos anos 60, 70 e 80 se usava muito. Então, os elementos em si não são novos, mas talvez a combinação dos elementos e com certeza o som, o resultado final, sejam específicos, sejam o diferencial. Outro exemplo: “Exu”, música que abre o disco MetaL MetaL (2012): o que o Kiko faz na guitarra e o que eu faço no saxofone não são coisas novas; mas juntar isso com alguém cantando uma canção... Isso é novo. Então, eu concordo com você de que o arranjo não serve de cama para a melodia. Só se for a cama do faquir [risos]. Às vezes Juçara está cantando num tom e eu, no sax, estou tocando em outro. Às vezes é difícil identificar as notas do violão do Kiko, porque é muito percussivo.

 

Entrevistadora: Minha análise vai na mesma direção: vocês se valem de procedimentos e técnicas que já foram testados, mas a combinação resulta em algo diferente no panorama atual da canção brasileira. Eu estudei a chamada “canção pós-tropicalista” dos anos 1970  e acho que, se for possível situar o Metá Metá em alguma linhagem, seria a de músicos como Jards Macalé, Walter Franco, Tom Zé, Itamar Assumpção... Músicos que não seguiram caminhos tão óbvios no contexto em que atuaram, que embaralharam um pouco as regras do jogo, que não apresentaram uma canção “certinha”, “bonitinha”, formatada conforme os padrões da época.

Thiago França: É o som que te traz essa sensação. Porque eu sempre vejo vídeos no YouTube de gente tocando música do Metá Metá e aí vira uma cançãozinha redonda, bonitinha.

 

Entrevistadora: Tem razão: vídeos amadores de internet obviamente não reproduzem timbres, sonoridades, arranjos, planos de mixagem... Isto é, eliminam o que não está à serviço da canção em si. Muito do repertório do Metá Metá dá mesmo margem para isso. “Mano Légua”, por exemplo, faixa de MM3 (2016), remete a uma cantiga antiga e singela: são apenas duas estrofes e uma melodia em escala dórica que não chega a uma oitava. Mas vocês trabalham com esse material de tal modo que o núcleo de identidade da canção, isto é, o enlace letra-melodia, fica um tanto descentrado. E até mesmo esse procedimento – criar arranjos e explorar sonoridades a partir de melodias simples – não é novo; basta lembrar do próprio pessoal do Clube da Esquina nos anos de 1970[15]. Mas – claro –, estamos no século XXI: o procedimento pode ser parecido, mas os recursos e os resultados são diferentes. De todo modo, a ideia de “desconstruir a canção”, ou uma forma-canção que ainda hoje é hegemônica, tem a ver com desestabilizar a centralidade do enlace letra-melodia, e não com “destruir” a forma-canção nem a canção como forma.

Thiago França: Então, porque se você for analisar, parar para escrever o repertório do Metá Metá, ninguém está fazendo nada tão assimétrico. Não é uma canção que você demora a entender a estrutura. Geralmente é: introdução, canta a melodia, solo, canta de novo a melodia, solo e acabou.

 

Entrevistadora: Nos dois primeiros discos do Metá Metá não há nenhuma composição sua. Já no MM3 (2016) há quatro, escritas em parcerias: “Três Amigos”, “Angoulême”, “Angolana” e “Corpo vão”[16]. Por que só nesse terceiro disco você aparece como compositor?

Thiago França: Vou recapitular algumas informações para te responder. A gente já fazia shows com o repertório que entraria no MetaL MetaL (2012) antes mesmo de lançar o Metá Metá (2011). Eram shows com baixo e bateria. Tanto que esse formato expandido aparece em canções como “Oranian” (Douglas Germano/Kiko Dinucci) e “Oba Iná” (Douglas Germano), gravadas no Metá Metá (2011). Então, os shows desse primeiro disco, só com o trio, acabaram ficando como um projeto paralelo que a gente fazia em lugar menor, como na Casa de Francisca.

 

Entrevistadora: Ou seja, os dois primeiros discos do Metá Metá estavam praticamente prontos na mesma época.

Thiago França: Praticamente. O primeiro disco – Metá Metá (2011) – é mais minimalista no quesito dos arranjos; a parte instrumental é mais espaçada, aerada. Ao mesmo tempo é um disco tenso, intenso, denso: há canções longas e a voz da Juçara Marçal está sempre presente, conduzindo tudo. Então, fazia muito sentido que ela escolhesse mais o repertório. Nesse disco há vários compositores: Siba Veloso, Lincoln Antônio, Jonathan Silva, Maurício Pereira, Rodrigo Campos, Douglas Germano e Kiko Dinucci. Já as canções do MetaL MetaL (2012) são quase todas do Kiko [Dinucci], algumas em parceria com Douglas Germano. Eram canções que a gente já tocava nos shows em formato expandido, com baixo e bateria. Então, voltando à pergunta de por que não há canções minhas nos dois primeiros discos do Metá Metá... Nessa época, eu estava focado em consolidar meu lugar de instrumentista e de instrumentista acompanhador de canção, que “se enfia” no meio da canção, do que em compor canção. Até hoje, a canção me interessa mais como instrumentista e arranjador do que como compositor. Compor canção não é algo recorrente para mim; diferente de compor música instrumental: aí eu já tenho um “songbook”.

 

Entrevistadora: Como foi, então, o processo de compor canções do disco MM3 (2016)?

Thiago França: A gente tinha lançado Metá Metá (2011) e MetaL MetaL (2012) e fazia nossos shows; ao mesmo tempo eu tocava com um monte de gente: Criolo, Rodrigo Campos; a Charanga do França estava começando e o MarginalS também. Daí Juçara lançou Encarnado (2014) e o Metá Metá teve um respiro. Quando a gente começou a pensar em fazer um disco novo, não tinha repertório. Então, Kiko teve a ideia de a gente compor juntos – ele, Juçara e eu. Funcionou até certo ponto. A gente compôs três das nove canções do MM3 (2016): “Angoulême”, “Angolana” e “Corpo vão”. Kiko compôs “Mano Légua” com Juçara, “Imagem do amor” com Rodrigo Campos e “Toque certeiro” com Siba Veloso. “Ossanin” é só do Kiko e “Oba Koso” é domínio público. Já a faixa que abre o disco, “Três amigos”, é uma parceria minha com Sérgio Machado e Rodrigo Campos. Eu tinha um duo com o Sérgio e mandei uma música nossa para o Rodrigo fazer a letra. Ele não só fez a letra como mudou a métrica, reorganizou a métrica da melodia. Eu tive que reaprender a tocar a música.

 

Entrevistadora: Particularmente, acho que vocês acertaram ao escolher “Três amigos” para abrir o disco. É uma canção emblemática de algum cenário limítrofe, um cenário de destruição dos afetos e do sagrado, em meio àquele clima politicamente conturbado de 2016. Quanto à “Corpo vão”, a melodia é sua?

Thiago França: Não exatamente a melodia; eu fiz o riff na guitarra e passei pro Kiko. “Corpo vão” é a canção nossa – Kiko, Juçara e eu – criada de modo mais coletivo. Fiz o riff, mostrei pro Kiko e a gente ficou tocando juntos, eu no sax e ele na guitarra. Enquanto a gente fazia esse riff dobrado, Juçara foi construindo a melodia, cantarolando. Depois que o arranjo ficou pronto, Kiko colocou letra e Juçara complementou. “Angolana” é outra que foi criada de modo bem coletivo: eu fiz a música inteira e mandei pro Kiko.

Entrevistadora: Você compôs Angolana no sax ou noutro instrumento?

Thiago França: Compus no violão. No ensaio, fiquei tocando a melodia no sax para a Juçara aprender. De tanto fazer isso, a gente se acostuma e grava assim mesmo: o sax tocando junto com a voz. Já “Angoulême”, Kiko e eu criamos a música a partir da letra de Juçara. A primeira parte da música é minha e a outra é do Kiko, quando entra uma sequência de acordes diminutos.

 

Entrevistadora: Ou seja, dos três discos lançados pelo Metá Metá, MM3 (2016) é o mais coletivo em termos de composições.

Thiago França: Sim, porque as canções dos dois primeiros discos já estavam praticamente todas prontas.

 

Entrevistadora: E como foi o processo de composição de Gira (2017), a trilha sonora do balé do Grupo Corpo? 

Thiago França: Foi muito diferente e muito mais longo. Claro que nos convidaram esperando uma música que tivesse a ver com temáticas afro-brasileiras, mas isso não foi dito explicitamente. Propusemos a trilha sobre Exu pois, pra gente, era óbvio: orixá do corpo, da dança, do movimento. A gente foi para Belo Horizonte para fazer uma primeira reunião com o grupo e quando eu cheguei em casa à noite – a gente voltou para São Paulo no mesmo dia –, eu já tinha duas músicas na minha cabeça: “Pé”[17]  e “Sete”. Criei as ideias no avião e, no mesmo dia, mandei pro Kiko e pra Juçara. Eles falaram assim: “Calma, relaxa!” [risos]. Para mim estava claro que “Pé” seria uma canção e “Sete” seria uma música instrumental. Dois, três dias depois, Kiko e Juçara não falaram mais nada. Daí, pensando do nosso “menu” de amigos, resolvi enviar a melodia da canção para o Nuno Ramos pois eu tinha certeza que ele retornaria rápido com a letra e daí a gente já teria um pontapé inicial para o trabalho. Deu certo; Juçara e Kiko se animaram... Sei que é difícil acompanhar o meu timing..., eu funciono assim desde sempre.

 

Entrevistadora: E a que você atribui?

Thiago França: Acho que tem a ver com o frescor do momento. Eu me identifico muito com a prática do improviso, pois, o que constrói o improviso é uma dose grande de adrenalina, que só vem quando eu ouço as coisas pela primeira vez. Por exemplo, quando o Rômulo Fróes me chamou para fazer a produção e escrever os arranjos d’O disco das horas (2018)[18], eu resolvi metade dos arranjos no mesmo dia em que ele me mandou as músicas. Com o computador e o gravador abertos, eu ia ouvindo, cantarolando e gravando, criando melodias por cima. Muito do que eu criei nesse disco foi resolvido dessa maneira. Eu costumo criar arranjos assim, em meia ou uma hora, aproveitando a adrenalina do momento. Já colocar na partitura, distribuir vozes, isso aí é depois: trabalho braçal, demorado.

 

Entrevistadora: Ainda sobre a trilha sonora do balé Gira, há músicas com métricas inusuais e uma sonoridade muito ruidosa. Como foi a construção dessa estética no estúdio?  Thiago França: Inicialmente, gravamos as músicas assim como a gente grava os discos: três dias de estúdio e pronto. Óbvio que o resultado foi um disco; teria sido o quarto disco do Metá Metá. Quer dizer, o resultado não foi uma trilha. O Paulo Pederneiras [um dos fundadores do Grupo Corpo] ouviu e falou: “Ficou muito bom, mas isso é um disco do Metá Metá, agora a gente precisa de uma trilha para o balé”. Daí tivemos que fazer um trabalho muito grande de desconstrução do que já tinha sido gravado; foram muitas idas e vindas para ajustar as demandas específicas do pessoal. Por exemplo: alongar umas partes, encurtar outras, trocar ordem de músicas, fazer outros arranjos e negociar também: explicar que algumas ideias não funcionavam. Na primeira versão da trilha, não tinha aquele solo de saxofone[19]. Eu fiz o solo para suprir a necessidade de um contraponto de clima, no contexto da dança. Fiz aquele solo pensando numa harmonia; mas é um improviso, não é uma composição; nunca toquei de novo. Então, muita coisa a gente acrescentou ou tirou de acordo com a coreografia que o grupo ia criando.

 

Entrevistadora: Tenho a impressão de que a montagem dessa trilha, isto é, intervir no que vocês já tinham gravado, pode ter inspirado de algum modo a montagem do último disco da Juçara Marçal, Delta Estácio Blues (2021), produzido por Kiko Dinucci. Muitos fonogramas desse disco de canções são construídos a partir de colagens de fragmentos sonoros, uso de samples e sintetizadores. Ou seja, um processo criativo diferente em relação à maneira como vocês, no Metá Metá, gravaram e conceberam as canções dos três discos, isto é, partindo da canção – do seu núcleo – para remodelá-la através de arranjos e sonoridades ou até mesmo para desestabilizar uma forma-canção mais convencional. Estou tecendo essa comparação, grosso modo, para perguntar se o Metá Metá está pensando em gravar um novo disco e, se sim, quais seriam os procedimentos de criação?

Thiago França: A gente tem cogitado um disco só com o trio. Com a banda, as coisas precisam estar mais organizadas, formatadas, formalizadas. Em trio há uma elasticidade maior. De alguma forma, a banda baixo-bateria perdeu o frescor.

 

Entrevistadora: Um quarto disco com banda soaria repetitivo? Ou, Metá Metá já teria encontrado uma fórmula, uma linguagem estética identificável que desafiaria vocês a pensar o que desenvolver a partir de então?

Thiago França: Tanto que a gente foi fazer a trilha do espetáculo do Grupo Corpo e acabamos fazendo um disco nosso. O Paulo Pederneiras, que não é músico, identificou essa linguagem logo que ouviu a primeira versão da trilha. Ele disse: “Isso é um disco de vocês, um disco de canção, esse som tem a cara do Metá Metá”. E, cá entre nós, seria um disco muito bom!

 

Entrevistadora: Mas Gira (2017), trilha sonora de um balé contemporâneo, não deixa de ser um disco do Metá Metá. Contudo, deixe-me reformular a pergunta: Desde então, você, Kiko e Juçara lançaram discos solos, têm diversos outros projetos e sempre colaboram nos trabalhos uns dos outros. Exceto Gira (2017), não produzir um novo disco do Metá Metá desde MM3 (2016) têm a ver com certa crise de criação, no sentido de que “já desenvolvemos uma linguagem estética e agora o que fazer que não soe um tanto quanto repetitivo?”. Ou, então: por que o Metá Metá não grava um disco novo desde 2016? Por que esse “hiato”? – embora a palavra “hiato” não seja muito adequada...

Thiago França: Nós nunca tivemos uma ideia formatada de banda. A ideia era outra: “Vamos fazer um show, tocar juntos... Se der certo, deu; se não der, tudo bem”. A longevidade da parceria tem a ver com o fato de que deu certo. Se não tivesse dado, e se não tivesse tido um acolhimento legal de público, a gente tinha parado no primeiro disco. Eu tive a oportunidade de estabelecer essa parceria longeva com Kiko e Juçara, mas nunca foi algo definitivo no sentido de que “agora somos o Metá Metá!”. Metá Metá sempre foi um projeto dentre outros. E a gente aproveitou um momento no qual havia uma demanda muito grande. A gente, como trio, fez muita coisa e eu acho natural e saudável que outros projetos tenham se desenvolvido a ponto de a gente não gravar outro disco até agora. Então, hiato não é mesmo uma boa palavra. Pois seria entender que a única possibilidade seria a gente já ter feito um novo disco quando, na verdade, o certo é ir seguindo onde flui mais.

 

Entrevistadora: Essa maneira como vocês se relacionam, como se dão as parcerias, tem inclusive tudo a ver com a ideia de Encruza: itinerários que se cruzam, mas não são fixos.

Thiago França: Que se cruzam, mas cada caminho está apontando para uma direção diferente.

 

Entrevistadora: E também tem tudo a ver com o arquétipo de Exu: o constante movimento e a transformação.

Thiago França: Muito! A gente tem inquietudes. Eu, por exemplo, estou fazendo agora a trilha sonora do longa-metragem Os enforcados, com direção e roteiro de Fernando Coimbra. No elenco principal estão Leandra Leal e Irandhir Santos. O filme vai lançado em 2024. Eu já participei de muitas trilhas sonoras, já gravei para cinema e para séries, mas essa é a primeira trilha que eu vou assinar sozinho; e é um filme com uma grande estrutura, feito pela Globo Filmes. Então, sempre estamos fazendo um monte de coisas e é justamente essa pluralidade de atuações que traz um frescor quando a gente (Metá Metá) se reencontra. O trio absorve o que a gente desenvolve em outros projetos e parcerias. Por exemplo, o MarginalS sem dúvida impactou o Metá Metá: improvisação livre, pedais no sax, daí o Kiko passou a usar pedais na guitarra... Enfim, tudo, nessa época, inclusive a cidade de São Paulo, contribuiu para a proposta mais ruidosa, mais explosiva, do disco MetaL MetaL (2012) e dali por diante.

 

Entrevistadora: Acho que, nessa época, levando também em conta a ebulição das ruas e o contexto político conturbado que aos poucos se desenhava, o Metá Metá e a turma da Encruza como um todo despontam nalguma medida como uma espécie de contraponto em relação a uma leva de canções – digamos – poética e musicalmente “inofensivas”.

Thiago França: Sim: eu ouvia parte do que era feito aqui em São Paulo e pensava: “Onde essas pessoas moram? Não é possível viver nessa cidade e tirar essas conclusões!”. Então, não é à toa que a gente se associa ao pessoal do rap: eu já gravei com Sombra, com Ogí; o Kiko recentemente produziu um disco do Ogí; eu já gravei com Síntese, com Elo da Corrente, com Rodrigo Brandão, com Criolo, Emicida...  São músicos que têm uma visão mais crua de mundo. 

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Entrevistadora: Para concluir, gostaria de rememorar um fato curioso e hilário. Em 2016, você fez um post no Facebook sobre o Prêmio Multishow de 2013, quando o disco MetaL MetaL (2012) venceu na categoria “música compartilhada”. Pelo que consta, aliás, tal categoria foi criada naquele ano para suprir a demanda de compartilhamento de música na internet. Pois bem... No post, você dizia mais ou menos assim: “O mainstream não serve pra gente, não serve pra mim e a recíproca é verdadeira”. Você também comentava que o Metá Metá, no contexto da premiação, era absolutamente desconhecido, senão vaiado, e que a plateia, ao contrário, delirava com Ivete Sangalo e Anita. Eu encontrei um vídeo dessa premiação, do momento exato em que você sobe ao palco para receber o prêmio. Você não faz nenhum pronunciamento, não diz sequer “obrigada”; você simplesmente pega o prêmio e desce do palco. O falecido Paulo Gustavo, apresentador na ocasião, faz inclusive uma piada quando te vê descendo do palco. Minha pergunta é: o seu silêncio foi premeditado? Foi uma espécie de protesto? Tinha a ver com a postura de distanciamento que, no post, você reivindicava em relação mainstream? Embora – é claro –, o Prêmio Multishow, vinculado à Rede Globo, seja evidentemente mainstream.

Thiago França: Foi muito bagunçada a produção desse Prêmio Multishow de 2013. Para você ter uma ideia, a Ivete Sangalo anunciou o prêmio de melhor cantora para ela mesma! Quanto a mim, ninguém fazia ideia de quem eu era, de por que eu estava ali e que eu poderia ganhar alguma coisa. Inclusive, o pessoal da produção veio até mim, duas vezes, e falou: “Você não pode ficar aqui. Aqui é só pra quem está concorrendo”. Eu tive que explicar quem eu era, que eu estava concorrendo; duas vezes!

 

Entrevistadora: E olha que, além de “música compartilhada”, vocês estavam concorrendo em mais duas categorias: “versão do ano” por “Let’s play that” (Jards Macalé e Torquato Neto) e “disco do ano” por MetaL MetaL (2012). Nessa última, os indicados eram Metá Metá, Caetano Veloso e Guilherme Arantes, que foi quem venceu.

Thiago França: Sim! Aliás, Caetano e Paula [Lavigne] estavam sentados atrás de mim. Eu já os conhecia por causa do Crioulo; a gente tinha se hospedado na casa deles em Nova York, na época da turnê nos Estados Unidos. O Caetano me cutucou e falou: “Estou torcendo para vocês!” [risos]. Mas, voltando, ninguém da produção me explicou nada. Seria de praxe que viessem me explicar o que eu tinha que fazer se ganhasse alguma coisa. Aquele era um ano de Olimpíadas e o prêmio era uma medalha. Quando Paulo Gustavo anunciou “Metá Metá, melhor música compartilhada”, eu subi no palco; ele me entregou a medalha mas não me passou o microfone. Virou as costas para mim para buscar a caixinha de guardar a medalha, só que eu não sabia disso; não entendi nada.

 

Entrevistadora: Foi então que você também virou as costas e desceu do palco.

Thiago França: Imagina a situação em que eu fiquei: dez segundos em cima do palco sem saber o que fazer, sem saber para onde ir. Foi o suficiente para eu raciocinar: “Vou sair daqui. A gente [Metá Metá] é tão insignificante, tão desconhecido, que ninguém quer que eu fale”. Foi o que passou pela minha cabeça. Quando o Paulo Gustavo voltou com a caixinha, eu já tinha descido do palco. Foi aí que ele perguntou no microfone onde eu estava e se eu não ia dizer nada, daquele jeito cômico. Eu fiz um gesto de “não entendi” e não voltei lá.

 

Entrevistadora: Ficou parecendo, sobretudo depois daquele post no Facebook, um ato de protesto, do tipo: “Estou recebendo esse prêmio na Globo, mas não vou falar nada, vou descer do palco”.

Thiago França: Kiko e Juçara não queriam ir e não foram. Eu também não queria, mas um amigo meu me convenceu. O argumento dele foi o seguinte: “Você precisa ir ao menos uma vez para conferir se é mesmo ruim”. Apesar de tudo, eu dei muita risada, foi um experimento antropológico perceber como uma parte das pessoas deseja aquilo ali loucamente. Eu ficava olhando as dançarinas do Faustão, o Zezé de Camargo sem voz com a calça de couro apertada... Era um show de horrores [risos]. O teleprompter não funcionava, os caras ficavam improvisando o que falar, Paulo Gustavo xingando todo mundo... No meio disso tudo, anunciaram que o Metá Metá tinha ganhado, eu subi no palco e aconteceu esse mal entendido. Não foi premeditado, foi resultado daquela confusão toda. Depois, nos bastidores, na hora da entrevista com o Beto Lee, aí sim eu fiz um negócio deliberado.

 

Entrevistadora: Beto, filho da Rita Lee?

Thiago França: Sim. Ele estava fazendo entrevistas no backstage para transmitir na internet. Ele não sabia quem eu era, tiveram que explicar. Aí ele me disse assim: “A gente vai fazer uma entrevista rápida. Vou te apresentar, dizer que você é o Thiago França, do Metá Metá, e que acabou de ganhar o prêmio ‘melhor música compartilhada’. Você tem que estar com a medalha no pescoço; assim que eu te apresentar, você pega a medalha e morde nela”. Minha medalha estava no bolso da calça e eu menti com a maior cara de pau: “Era para ter trazido a medalha? Poxa... ninguém me avisou”. Não mordi a medalha; esse papel eu não fiz.

 

 

Entrevistadora: Muito clichê para você?

Thiago França: Eu tenho um constrangimento muito grande com essas coisas padronizadas. Lembrei agora de uma entrevista minha, para um canal de YouTube, que virou até meme. Perguntaram qual era o meu problema em participar de programas como o Encontro com Fátima Bernardes. Eu disse que não tiraria dinheiro do bolso para ir até os estúdios Globo, o Projac, em Jacarepaguá. Que eu não pagaria para ser idiotizado, para falar dois clichês e fingir que eu estou dançando enquanto a outra banda toca. Como eu não faço essa parte, eu também não posso fazer a outra, que é tocar. Então, o mainstream é esse pacote, essa linguagem, um idioma que eu não sei falar. E eu estou em paz com o fato de que eu não quero e não vou fazer certas coisas para chegar “lá”.

 

Entrevistadora: Em algum momento isso te angustiou?

Thiago França: Muito: quando eu era só um estudante de música e não conhecia todos os caminhos, não entendia as possibilidades. Daí a tia perguntava: “Que dia você vai no Faustão?”. E eu pensava: “Como eu vou fazer para tocar no Faustão”?

 

Entrevistadora: Aos poucos você descobriu que poderia abrir mão do Faustão e continuar fazendo sua música.

Thiago França: Exato. Muita gente faz qualquer papel ridículo para aparecer na televisão. Eu estou fugindo dela e vivo em paz com o caminho que eu escolhi.

 

Entrevistadora: Obrigada, Thiago, por essa conversa tão generosa e agradável! Um abração!

Thiago França: Eu que agradeço. Abraços!



[1] DINIZ, Sheyla. Metá Metá: o conhecimento sociocultural através da canção brasileira contemporânea. Projeto de pós-doutorado financiado pela Fapesp, processo: 2023/09815-9.

[2] Thiago França participa como instrumentista e assina e produção musical do mais recente disco de Nei Lopes: EP Nei Lopes 80 anos (2023). O trabalho traz cinco canções inéditas e faz parte das comemorações do octogésimo aniversário de Lopes: sambista, compositor, escritor e estudioso das culturas africanas e afro-diaspóricas.

[3] Trompetista conhecido na cena musical independente paulistana.

[4] Bar-teatro-restaurante situado num palacete de 1910, na Sé, centro de São Paulo. Comportando 150 lugares, é um dos espaços paulistanos que dá visibilidade para artistas da “cena independente”. 

[5] Famosa roda de samba fundada no ano 2000 em Santo Amaro, São Paulo.

[6] “Angolana” (Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal), Metá Metá, álbum MM3 (2016).

[7] Tony Allen (1940-2020), baterista e compositor nigeriano, ícone do afro-beat. Entre 1968 e 1979, foi diretor musical da Africa ’70, banda de Fela Kuti. Viveu e trabalhou como músico em Paris durante boa parte da vida.

[8] Músico, produtor e engenheiro de áudio; sócio do estúdio El Rocha (São Paulo), onde Metá Metá e parceiros já gravaram vários discos. Ganjaman produziu o disco de Criolo Nó na orelha (2011), do qual Thiago França participou.

[9] Afrobeat Makers, vol. 2 (Tony Allen Rhythms Revisited), 2014. Thiago França produziu a faixa “Bahia Beatz”.

[10] Rodrigo Brandão e The Sun Ra Arkestra. LP Outros espaço (Comets Coming, 2021). Brandão é rapper, poeta, video jockey e produtor brasileiro.

[11] Em 2013, o prefeito de São Paulo era Fernando Haddad.

[12] Disco inspirado pelo livro homônimo do escritor paulistano João Antônio.

[13] DINIZ, Sheyla; ÁVILA, Danilo. “A canção pode morrer, mas eu não vou morrer, não...”: uma entrevista com Kiko Dinucci. Música Popular em Revista, Campinas, ano 5, v. 2, p. 176-199, jan.-jul. 2018.

[14] DINIZ, Sheyla. “... De tudo que a gente sonhou”: amigos e canções do Clube da Esquina. São Paulo: Intermeios/Fapesp, 2017.

[15] DINIZ, Sheyla. “Desbundados e marginais: MPB e contracultura nos ‘anos de chumbo’ (1969-1974)”. Tese de doutorado em Sociologia. Campinas, IFCH/Unicamp, 2017. 

[16] “Três Amigos”, (Thiago França, Sérgio Machado, Rodrigo Campos); “Angoulême” (Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal); “Angolana” (Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal); “Corpo vão” (Thiago França, Kiko Dinucci, Juçara Marçal). Metá Metá. Álbum MM3, 2016.

[17] Em Gira (2017), a gravação da faixa “Pé” contou com participação de Elza Soares.

[18] As canções d’O disco das horas (2018), de Rômulo Fróes, contam com letras de Nuno Ramos.

[19] “Okuta Yangi n.º 1”, décima faixa do disco Gira (2017), trilha sonora no Metá Metá para o balé homônimo do Grupo Corpo.



[i] Entrevista recebida em: 22/10/24

  Entrevista aprovada em: 07/11/24