Caixa de Texto:  e-ISSN 1984-7246    Resenha do livro

O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional [i]

 

 

SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. 1. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2023.

 

O fascismo da cor: Uma radiografia do racismo nacional

 

 

 

Guilherme Vargas Pedroso

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre, RS – Brasil  plataforma-lattes-logo.jpg

lattes.cnpq.br/8044514367643027    

image orcid.org/0000-0001-6928-1363     

ícone doi, logo guilhermepedrosov@gmail.com     

 

 

Ainda que o racismo persista na sociedade brasileira, as últimas décadas testemunharam um aumento significativo da presença de pessoas negras em espaços onde anteriormente eram raras. Em resposta a essa mudança, certos indivíduos da sociedade, que antes mantinham suas opiniões racistas guardadas ou não as expressavam, passaram a fazê-lo abertamente. De fato, o racismo foi e continua sendo uma reação à crescente liberdade conquistada pela população negra. Simultaneamente a esse cenário, observa-se um aumento nas produções intelectuais, especialmente por parte de pessoas negras, que se dedicam a explorar questões raciais e a buscar, por meio da pesquisa científica, uma compreensão mais profunda do racismo no Brasil.

Nesse contexto, surge o livro O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional, do escritor, pesquisador e professor de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Muniz Sodré. Publicado pela Editora Vozes, o livro, com 275 páginas, é dividido em quatro capítulos, além do prólogo e posfácio. Desde o início da leitura, o que mais chama a atenção é o alto nível – embora não surpreendente, dada a extensa trajetória do autor – de erudição. Sodré realiza uma análise embasada na intersecção de autores de diferentes áreas do conhecimento, como literatura, sociologia, comunicação, antropologia, filosofia e história. Como o título da obra indica, o objetivo do pesquisador é contextualizar de forma pormenorizada o racismo ao longo da história do Brasil, investigando questões sociais desde o período em que a instituição escravista funcionava, até os dias atuais. 

No prólogo, o livro inicia com uma análise sobre a construção do racismo na América, com foco no caso dos Estados Unidos. O autor destaca a notoriedade do racismo e da segregação na história norte-americana, fundamentada em pressupostos religiosos europeus que consolidaram a ideia da inferioridade da população negra e, de certa forma, justificaram a escravização dos corpos negros neste lado do Atlântico (Sodré, 2023). Nos Estados Unidos, o racismo e a segregação emergiram como uma ideologia do pós-Guerra Civil, não apenas como uma simples herança do período escravista. A “leucracia” – o poder proveniente do privilégio branco – de acordo com o autor, foi respaldada pelas leis e pela sociedade, tratando os sujeitos negros como “outros”, ou seja, excluídos da cidadania americana, como estrangeiros. Dessa forma, o racismo americano foi moldado por vertentes místicas e ideológicas, primeiro, através de fundamentos religiosos, a partir da interpretação da maldição de Noé, e segundo, como parte das estruturas de dominação de classe.

 

No primeiro capítulo, o olhar se volta para o caso brasileiro. Alicerçado na ideia de que o Brasil possui uma baixa cultura republicana, o racismo por aqui acontece de formas diferentes do ocorrido nos Estados Unidos. De acordo com Sodré (2023), a república brasileira já “nasceu velha”, com forte legado da desigualdade racial produzida ao longo dos quase quatrocentos anos de escravização da população africana e de seus descendentes. Em 1888, a escravidão foi abolida no âmbito jurídico e político. No entanto, no imaginário das elites dirigentes, a mentalidade senhorial persistiu, resultando em exclusão e hierarquização social, impedindo a abertura republicana para a população negra e seus descendentes experienciarem de forma plena a liberdade e a cidadania.

É ainda no primeiro capítulo que Sodré (2023) introduz um dos debates mais destacados pela crítica e pela imprensa após o lançamento do livro: para o autor, o termo “racismo estrutural” não é suficiente para explicar o complexo racismo brasileiro. Em vez disso, Sodré propõe o conceito de “forma social escravista” enquanto um modelo social de racismo derivado da estrutura escravista. Através dessa abordagem, o autor investiga as mudanças e permanências da questão racial no Brasil, desde o período da escravidão até o pós-abolição. Sodré argumenta que, se o racismo no Brasil fosse estrutural, seria impulsionado por alguma estrutura política, jurídica ou estatal, como aconteceu com as leis de Jim Crow nos Estados Unidos e o regime do Apartheid na África do Sul, o que não é o caso. Ele também destaca a conexão temporal e conceitual entre o contexto pós-abolição brasileiro e o surgimento das ideias fascistas na Europa no início do século XX, ambos baseados em elitismo, hierarquização e eugenia. A “forma social escravista”, portanto, representa a expressão da sociedade, moldada e sustentada pelas relações interpessoais, que, ao agregar elementos discriminatórios, contribui para a lógica da inferioridade dos africanos e seus descendentes na história do país.

No segundo capítulo, Sodré (2023) aprofunda a explicação da "forma social escravista", argumentando que essa forma não representa a sociedade em si, mas sim a projeção do que ela aspira ser. Em outras palavras, a forma reflete a imagem que as pessoas desejam projetar, e no contexto brasileiro, as elites dirigentes historicamente promoveram e propagaram a ideia de uma sociedade essencialmente branca. São essas imagens idealizadas que podem se tornar estruturantes e alimentar o racismo. Ao explorar a história de figuras como Nilo Peçanha, o autor utiliza exemplos para ilustrar a forma e oferecer uma compreensão mais profunda do racismo à brasileira.

No terceiro capítulo, Sodré (2023) continua sua análise sobre a prática da forma na sociedade. Ao explorar o fenômeno do silenciamento, ele demonstra que após a abolição da escravatura, o racismo que antes se baseava na origem e cor passou a se manifestar através da exclusão e do silenciamento. Esse silenciamento, por um lado, buscava apagar a presença dos negros e negras na sociedade, e por outro lado, mantinha intacta a hegemonia da elite dirigente branca sem grandes questionamentos.

No último capítulo do livro, o autor aborda a passagem ao ato racista, ou seja, quando a discriminação se concretiza em violências verbais ou físicas. Nesse sentido, a forma social escravista enquanto um tentáculo do fascismo subverte até mesmo os avanços das legislações de combate ao racismo, pois ela age a partir da mentalidade, da ação cotidiana, do entendimento de existência do “outro”, que no caso brasileiro é a população negra.

Além disso, neste capítulo, o autor direciona algumas críticas à esquerda brasileira, apontando que, ao cercar-se da intelectualidade, deixou de incorporar as questões raciais em suas demandas prioritárias. Essas questões raciais foram colocadas em segundo plano, atrás das questões de classe. Por fim, Sodré destaca que o racismo brasileiro é um sentimento de existência, caracterizado pelo silenciamento e pela manutenção dos privilégios de um determinado grupo – branco.

No posfácio do livro, Sodré contextualiza a produção da obra, ressaltando que seu objetivo não é defender uma tese específica, mas sim apresentar seus embasamentos teóricos e delimitar o conceito de "forma social escravista", abordado ao longo da obra. Ele destaca novamente as diferenças entre o racismo brasileiro, que se manifesta atualmente através dessa forma social baseada em elementos da sociedade escravista, e o racismo estrutural nos Estados Unidos. Desse modo, o posfácio funciona como uma introdução às questões discutidas ao longo do livro.

O Fascismo da cor é um livro que aborda uma história profunda, de longa duração, alternando exemplos – desde os tempos coloniais até os dias de hoje – e um extenso referencial bibliográfico, de diferentes áreas do conhecimento, embora sem muitas citações diretas. Além disso, é um livro que demanda uma leitura atenta, pois utiliza uma variedade de conceitos e categorias que são essenciais para compreender o fenômeno analisado. No entanto, ao adotar uma abordagem bastante intelectualizada, pode dificultar a compreensão para aqueles que não possuem um conhecimento aprofundado e buscam uma introdução ao tema dessa mazela nacional que é o racismo. Em suas páginas, ao prezar pelo interacionismo, o autor deixou de lado uma análise mais profunda das resistências cotidianas da população negra antes e depois da abolição da escravidão. Além disso, o uso do termo “fascismo” no título sugere uma conexão mais profunda entre as ideias fascistas das primeiras décadas do século XX e a reprodução do racismo no Brasil após a escravidão; no entanto, a obra não explora essa relação de forma abrangente, apresentando poucos exemplos gerais e uma base empírica quase inexistente. Apesar disso, Muniz Sodré, um dos principais intelectuais de sua área no país, oferece uma análise profunda e perspicaz do racismo no Brasil. Em resumo, o livro não apenas representa uma fonte excelente e complexa de conhecimento, mas também se torna uma ferramenta poderosa para embasar a luta contra a discriminação racial.

 

Referências

 

SODRÉ, Muniz. O fascismo da cor: uma radiografia do racismo nacional. 1. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2023.

 



[i] Resenha recebida em 28/08/2024

  Resenha aprovada em 21/10/2024