Resenha do livro
Mulheres invisíveis: o viés dos dados em um mundo projetado para homens[i]
PEREZ, Caroline Criado. Mulheres invisíveis: o viés dos dados em um mundo projetado para homens. Tradução Renata Guerra. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.
Vanessa dos Santos Tavares
Instituto Federal do Paraná (IFPR)
Curitiba, PR – Brasil
lattes.cnpq.br/7853733935032398
O livro Mulheres invisíveis: o viés de um mundo projetado para homens (2022), traduzido em mais de 30 idiomas, foi escrito pela jornalista Caroline Criado Perez[1], que, apesar de ter nascido no Brasil (1984), é cidadã britânica e viveu a infância residindo em alguns países da Europa. Estudou inglês e literatura inglesa na Universidade de Oxford, na Inglaterra, e recebeu diversos prêmios, dentre eles, o prêmio de Defensora dos Direitos Humanos pelo grupo Liberty (2013), sendo reconhecida com o título de doutora honorária da Universidade de Lincoln (2021)[2].
O livro, redigido em uma linguagem fácil e fluida, chama-nos a atenção pela riqueza de detalhes e pela coleção de informações que muito o aproxima de quem lê. É possível dizer que as quase 400 páginas podem ser facilmente compreendidas mesmo por pessoas que não têm afinidade com o tema.
A autora descreve um déficit de informações que impacta significativamente diferentes setores da vida. Tratam-se de megadados que não levaram em consideração a opinião e vozes de mulheres ao longo da história e suas decisões políticas. É como um “megassilêncio”, que pode ter produzido “meias-verdades”, como pontua a britânica.
Tais informações, oriundas de pesquisas, mostram a ausência de dados em um contexto mundial. Podemos dizer que suas articulações dialogam em torno das questões elencadas pela resenhista: a) Se o mundo deve ser funcional, por que não temos mais mulheres inseridas nos debates, nas decisões e na criação de tecnologias? e b) Teria a história da evolução, da humanidade, das artes, da literatura e da música levado em conta metade da humanidade?
O livro apresenta 16 capítulos, divididos em seis partes, a saber: Parte I: Vida cotidiana; Parte II: O ambiente de trabalho; Parte III: O design; Parte IV: Consulta médica; Parte V: A vida pública; Parte VI: Quando as coisas vão mal.
Os capítulos abordam exemplos de como o padrão constituído socialmente se apresenta reforçado no modo masculino, partindo da linguagem verbal, em que se tem o sexo masculino como padrão, passando pela linguagem escrita, em que se utiliza o padrão neutro em termos como “corredor” ou “policial” atribuídos a qualquer pessoa. De um modo geral, ao ler as palavras exemplificadas, as pessoas estão suscetíveis a interpretar uma palavra neutra como masculina, assim como as palavras “pessoa” e “pesquisador”, são sinalizadas socialmente com o viés masculino. Essas situações são presenciadas de forma rotineira e persistente, sem que sejam percebidas ou questionadas, e podem influenciar decisões políticas e o desenvolvimento de tecnologias, como pontua a autora.
Na parte I, “Vida Cotidiana”, Caroline Perez (2022) exemplifica o caso dos ambientes climatizados em espaços corporativos, que foram planejados com base no padrão de temperatura do corpo de um homem, sendo mais comum que as mulheres precisem utilizar casacos nestes ambientes, enquanto há o conforto do corpo masculino. Isso acontece porque os testes para padronização de protótipos quase sempre utilizam como modelo corpos masculinos, que, em geral, possuem mais massa corporal e densidade.
Sobre os aspectos cotidianos, a autora destaca que não é recente a busca por visibilidade do trabalho não remunerado[3] desempenhado por mulheres em diversas partes do mundo. No ano de 1975, a Organização das Nações Unidas (ONU) declarou o Ano das Mulheres. Naquele mesmo ano, a Islândia reuniu 25 mil mulheres na Praça Central de Reykjavik para um ato que levantasse a visibilidade do trabalho doméstico realizado por elas, um dos responsáveis pela manutenção do funcionamento do país. Ao que parece, a manifestação alcançou o objetivo proposto, visto que, no ano seguinte, o país aprovou a Lei de Igualdade de Gênero, que proibia a discriminação por sexo em ambientes laborais e escolas.
A parte II do livro, “O ambiente de trabalho”, aborda que, no ano de 2017, pelo oitavo ano consecutivo, a Islândia ficou em primeiro lugar no Índice Global de Diferenças de Gênero do Fórum Econômico Mundial. Atualmente, o país possui o parlamento mais igualitário do mundo em relação a gênero, conforme relata a autora do livro (Perez, 2022, p. 83-84).
Por outro lado, a autora ressalta que, globalmente, 75% do trabalho não remunerado é desempenhado por mulheres, mesmo que, em alguns cenários, os homens estejam cada vez mais participativos. No Reino Unido, por exemplo, o Escritório de Estatísticas Nacionais concluiu que eles usufruem de cinco horas a mais de lazer semanal quando em comparação com o tempo de lazer das mulheres.
No mundo laboral, observa-se a predominância de mulheres em trabalhos precários e em trabalhos alternativos e temporários, como é mencionado nos dados do Sindicato das Universidades e Faculdades do Reino Unido (UCU). Na Austrália, 30% das mulheres estão inseridas em trabalhos informais, enquanto 22% dos homens encontram-se nessa situação, podendo levar à hipótese de aumento das diferenças de remuneração por gênero, favorecendo o público masculino (Perez, 2022, p. 146-149).
Na parte III, “O design”, inicia-se destacando as diferenças biológicas entre os corpos femininos e masculinos e como isso fica, em alguns exemplos, ocultado nos dados de atletas, que não consideram que os homens possuem força concentrada na parte superior do corpo, enquanto as mulheres a possuem na parte inferior. Além disso, mostra-se que os produtos considerados neutros projetaram moldes com base no corpo masculino, como vestimentas, equipamentos e confecção de instrumentos musicais. Neste aspecto, a autora cita que estudos detectaram que as mãos femininas são, em média, menores que as mãos dos homens, mas que pianos são produzidos tendo por base as mãos masculinas, levando um número maior de mulheres pianistas a desenvolverem lesões por esforço repetitivo.
A parte IV, “A consulta médica”, expõe que, em 2016, em Malta, concluíram que: “[...] causa importante de diagnósticos errados em meninas era o viés geral masculino dos métodos de diagnósticos e nas expectativas. Os testes e diagnósticos foram realizados em homens e meninos, e isso reforça uma lacuna para um público biologicamente diferente, no caso de mulheres e meninas” (Perez, 2022, p. 233).
A autora destaca a ausência de pesquisas sobre tratamentos para tensão pré-menstrual (TPM). Tal questão atinge mais de 90% das mulheres; por outro lado, na saúde masculina, são observados números entre 5% e 15% de homens que sofrem de disfunção erétil. Ainda assim, um estudo revelou que há quatro vezes mais pesquisas para tratamento da disfunção erétil (Perez, 2022, p. 240). Em alguns casos, pesquisas são interrompidas por falta de recurso financeiro. A autora relata a ausência de pesquisas científicas que poderiam beneficiar a saúde de mulheres.
A autora também expõe detalhes sobre a saúde de gestantes no Reino Unido. O Centro de Partos Melhores do Hospital de Liverpool apresentou descobertas recentes que favorecem o parto natural; no entanto, o Conselho Britânico de Pesquisa Médica entendeu que a pesquisa não possuía teor de prioridade para que fosse levada adiante.
Na Parte V, “A vida pública”, é discutido sobre o crescimento quantitativo de mulheres que adentram no campo político. No entanto, uma pesquisa realizada nos Estados Unidos e na Nova Zelândia revelou que as agressões verbais em reuniões crescem à medida que aumenta o número de mulheres na legislatura (Perez, 2022, p. 288). Somado a isso, a ascensão de mulheres dentro dos próprios partidos não acontece, havendo uma estagnação. Segundo estudos, há uma grande quantidade de manobras que boicotam colegas mulheres em ambientes mistos (Perez, 2022, p. 286).
As evidências são óbvias: a política como se faz hoje não é um ambiente receptivo para mulheres. Isso quer dizer que, embora o campo de jogo seja tecnicamente equilibrado, na verdade as mulheres ficam em desvantagem em relação aos homens. Essa é a consequência da organização de sistemas sem levar em conta o gênero (Perez, 2022, p. 290).
Um exemplo disso é a lacuna no que diz respeito ao campo da Saúde, no qual, por muitos anos, foi entendido e propagado que o autismo era mais frequente em meninos. Isso pode ter ocorrido, em boa parte, porque os comportamentos relacionados à socialização podem ser mais recorrentes em meninas, gerando um mascaramento dos sintomas de pessoas autistas conhecidos até então.
Nesse sentido, Perez (2022) reforça a importância da presença feminina inserida em debates políticos para a projeção de um mundo mais funcional. A ausência de dados referentes a gênero possui um caráter detalhado, que pode ser consultado na íntegra no livro.
Na parte VI, “Quando as coisas vão mal”, é reforçada a importância de considerar, no âmbito do planejamento urbano e saúde pública, a população feminina em situações de catástrofes, pandemia, guerras e desastres naturais, já que as mulheres tendem a não ser incluídas em dados, os quais se direcionam apenas para as questões econômicas. A exemplo disso, a autora pontua que os Estados Unidos tendem a deixar as mulheres de lado quando há necessidade de iniciativas de recuperação após algum desastre.
A forma como a autora conseguiu unir toda essa diversidade de informações é o que enriquece a tese e ratifica que, nas questões de gênero, em diferentes continentes, têm prevalecido a masculinidade e a branquitude como padrão, as quais (ainda) se proliferam, dificultando políticas equânimes ao redor do mundo.
Referências
PEREZ, Caroline Criado. Mulheres invisíveis: o viés dos dados em um mundo projetado para homens. Tradução Renata Guerra. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022.
Agradecimento
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
[1] Alguns sites utilizam o nome da autora como Caroline Criado-Perez, mas optamos por usar a grafia sem hífen, como está na edição do livro utilizada como base para esta resenha.
[2] Conforme dados de https://carolinecriadoperez.com/ e https://pt.wikipedia.org/wiki/Caroline_Criado-Perez. Acesso em: 10 fev. 2024.
[3] O trabalho não remunerado refere-se a atividades domésticas de cuidados da casa, cozinha, preparo de alimentos, idas ao supermercado, que ainda são atividades exercidas majoritariamente por mulheres em um contexto mundial, segundo Perez (2022).