Fenomenologia da imagem: a crítica sartreana à representação e suas possibilidades para uma geografia existencial[i]
Tiago Rodrigues Moreira[ii]
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Limeira, SP – Brasil
lattes.cnpq.br/7158819300033176
Eduardo Marandola Junior[iii]
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
Limeira, SP – Brasil
lattes.cnpq.br/3962303942126121
eduardo.marandola@fca.unicamp.br
Fenomenologia da imagem: a crítica sartreana à representação e suas possibilidades para uma geografia existencial
Resumo
Pensar em possibilidades para uma geografia existencial baseadas na critica sartreana à representação e os modos de imagem/imaginação como fundamentos de uma fenomenologia da imagem, é a questão central deste texto. Para isso, recorremos às obras “A imaginação” (1936) e “O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação” (1940) do filósofo Jean-Paul Sartre, que sinalizam o entendimento da imagem enquanto ato, ou seja, a imagem é sempre uma consciência de, retirando dela o aspecto coisificante de objeto. Tal empreendimento feito pelo filósofo em seus primeiros anos de incorporação da Fenomenologia em sua reflexão nos ajuda a tensionar a useabilidade da dimensão da imagem/imaginação nas pesquisas geográficas. O texto assume um caráter meditativo, considerando em sua parte final a base para uma geografia existencial, a ser pensada a partir da geosofia, do ato de imaginar como o modo de nomear, fenomenologicamente, as coisas e os lugares.
Palavras-chave: imaginação; imaginário; situacionalidade; corporeidade.
Phenomenology of the image: Sartre's critique of representation and its possibilities for an
existential geography
Abstract
Thinking about possibilities for an existential geography based on Sartre's critique of representation and the modes of image/imagination as the foundations of a phenomenology of the image is the central question of this text. To do this, we turn to the works “The Imagination” (1936) and “The Imaginary: Phenomenological Psychology of the Imagination” (1940) by the philosopher Jean-Paul Sartre, which indicates an understanding of the image as an act, in other words, the image is always a consciousness of somthing, removing from it the objectifying aspect. This undertaking by the philosopher in his early years of incorporating Phenomenology into his thinking helps us to stress the usability of the image/imagination dimension in geographical research. The text takes on a meditative character, considering in its final part the basis for an existential geography, to be thought of from the point of view of geosophy, the act of imagining as the way of phenomenologically naming things and places.
Keywords: imagination; imaginary; situationality; corporeality.
1 Introdução
O objetivo deste artigo é refletir os desafios e potencialidades de uma geografia existencial. A expressão não se refere a um subcampo ou a uma subdisciplina, mas a um entendimento do geográfico como dimensão da existência, sua constituinte.
Diferentes geógrafos e geógrafas têm buscado trilhar tal possibilidade, por distintos caminhos teórico-metodológicos. A questão da existência tem despertado renovado interesse nos movimentos atuais de pensar uma geografia situada, generificada, sexualizada e racializada, ou seja, uma geografia que tem na corporeidade e na diversidade sua força mobilizadora.
Esse movimento retorna a questões epistemológicas e ontológicas que atravessaram a história da disciplina, reavivando polêmicas e nos desafiando a tecer uma geografia implicada e engajada que não repita o gesto colonial de nomear e classificar o Outro a partir do Mesmo (Lima-Payayá, 2024).
Dentre tais debates, revisitaremos o problema da representação, por sua centralidade na questão da identidade-diferença e do reconhecimento, e pelo peso que têm na própria estrutura da Filosofia e da Ciência Moderna. A famosa obra foucaultiana, “As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas”, por exemplo, é toda dedicada a essa questão, mostrando o movimento de constituição das Ciências Humanas a partir de uma epistéme própria que instaurou outro regime de representação, empírico-transcendental, a partir da invenção discursiva de seu objeto: o homem (Foucault, 2000).
No entanto, é na Fenomenologia que o tema da representação nos conduz ao debate existencial, e por isso é nela que nos deteremos. O pensamento fenomenológico foi, no âmbito da Filosofia, um dos que precocemente se dedicou ao problema da representação, em um sentido crítico ao da Filosofia Moderna, abordando-o pelo prisma da imagem presente na Fenomenologia desde Husserl. Uma fenomenologia da imagem é especialmente relevante nas primeiras décadas do século XX, em torno do combate ao psicologismo e ao materialismo, apresentando o tema como maneira de superar as dicotomias do pensamento moderno.
Esse debate aparece de maneira exemplar em Jean-Paul Sartre (1905-1980), que se dedicou ao tema da imagem/imaginação/imaginário em seus primeiros trabalhos dos anos 1930, destacando a importância de ater-se ao combate representacional da imagem. Tal caminho foi propício a partir de uma apropriação da Fenomenologia, como um estágio de preparação para a consolidação de seu pensamento, notadamente na década seguinte. Para Sartre (2008, p. 09), existe uma “metafísica ingênua da imagem”, pois “somos vítimas da ilusão da imanência porque temos o hábito de pensar no espaço em termos de espaço físico, pensando sempre em algo como localizando-se com algum lugar” (Gontijo, 2005, p. 21).
Nos propomos, assim, a examinar o movimento do filósofo em duas obras da segunda metade da década de 1930: “A imaginação”, de 1936, e “O imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação”, de 1940. Esses textos antecederam sua obra ontológica “O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica”, publicada em 1945 (Sartre, 2005a), marcando um período chave de depuração e posicionamento do problema da imagem e da representação pelo chamado jovem Sartre, no movimento de aproximação da fenomenologia hussseliana.
Nas duas obras em tela, Sartre caminha por um projeto de desconstrução da ideia de um associacionismo entre imagem e coisa, rumo a uma elaboração de uma leitura da consciência sob a ótica da fenomenologia existencial. O filósofo demonstra a dimensão ontológica, na qual, inspirada por Edmund Husserl, a consciência é sempre consciência de alguma coisa (conceito de intencionalidade), que implica a descoberta da consciência enquanto espontaneidade.
É sabido que, depois de encontrar-se com a intencionalidade husseliana, Sartre percebeu o quão era esvaziada a questão da imaginação pela Psicologia. Para isso, o filósofo justificava a importância de uma base fenomenológica para a análise da consciência, estando a própria intencionalidade destinada a renovar o sentido de imagem, como salienta Fujiwara (2018, p. 344, destaques no original): “os mecanismos dessa nova psicologia pela pedra de toque da consciência, a saber: a intencianalidade (toda consciência é consciência de algo)”.
Em “A imaginação”, Sartre (2008) constrói uma crítica à noção de imaginação e promove um embate com a representação. O autor elabora uma descrição de que a imaginação não seja um mero ato cognitivo e sim algo em comum acordo com a intencionalidade ou com o conteúdo da própria consciência. “O imaginário” abre portas para pensar que a compreensão de imagem é oposta à de um objeto para a consciência intencional, mas sim uma forma da consciência visar os próprios objetos (Sartre, 1996).
Há, portanto, nessas formulações, uma fenomenologia da imagem, que serve de passagem para o existencialismo sartreano, o que implica dizer que a concepção de existência, elaborada posteriormente pelo autor, deve diretamente à crítica à representação elaborada nessa época.
Buscamos compreender como a crítica à representação colocou, para Sartre, a necessidade de voltar-se para sujeitos concretos em sua relação criadora entre imagem e imaginação. Superar a representação metafísica (dominante na Filosofia Moderna do Sujeito) foi fundamental para o movimento existencial sartreano. Comprendê-lo abre possibilidades para discutir as implicações de uma geografia existencial.
Para isso, inicialmente tratamos do problema da imagem e da representação pontuados pelo jovem Sartre, em torno da questão da consciência e da intencionalidade. Em seguida, buscamos identicar como essa perspectiva é importante na constituição do existencialismo e sua mundanidade concreta. Por fim, delineamos as possibilidades e os desafios da fenomenologia da imagem para uma geografia existencial a partir do existencialismo sartreano.
2 O problema da imagem no jovem Sartre e a crítica à representação
Os anos 1930 foram de descoberta e de depuração para o jovem Sartre. Sob o efeito efervescente do pensamento fenomenológico de Husserl, o filósofo escreve os textos “Uma ideia fundamental da fenomenologia de Husserl: a intencionalidade” (1939) e “A transcendência do ego: esboço para uma descrição fenomenológica” (1936) (Sartre, 2005b; 2014). As duas obras retratam o mal-estar de Sartre com a filosofia digestiva, aquela que continha na sua interioridade uma sede de alimentação da consciência por meio da representação dos conteúdos da consciência. No manuscrito “Uma ideia fundamental” Sartre tece sua crítica a possíveis “conteúdos da consciência” que alimentavam a ideia de uma filosofia digestiva:
“Ele comia com os olhos”. Esta frase e muitos outros signos marcam suficientemente a ilusão comum ao realismo e ao idealismo, segundo a qual conhecer comer. A filosofia francesa, após cem anos de academicismo, ainda permanece nisto. [...] todos acreditamos que o Espírito-Aranha atraia as coisas para sua teia, cobria as com uma baba branca e lentamente as deglutia, reduzindo as à sua própria substância. O que é uma mesa, um rochedo, uma casa? Um certo composto de “conteúdos de consciência”, uma ordem desses conteúdos (Sartre, 2005b, p. 87).
O trajeto filosófico de Sartre é marcado por sua preocupação com a realidade humana: o pensamento não poderia ficar no âmbito da abstração, necessitando mostrar-se sem se esconder dos fatos, o que reverbera fundo em seu encontro com a fenomenologia husseliana. Por isso, nas obras literárias e teatrais, o autor mostrava o homem em situação, ou seja, um ser cuja liberdade o permitia angustiar-se diante das contingências do mundo (Oliveira, 2008).
O problema da imagem foi um impulso recorrente e seminal na obra do jovem Sartre (Cohen-Solal, 2005). Sua sede e desejo para com tal tema o fez um anunciador do problema da imagem e crítico ferrenho dos seus antecessores – clássicos metafísicos e psicólogos associacionistas. Essa trajetória culminará na obra “O ser e o nada”, na qual o autor desenvolve sua ontologia fenomenológica nos conceitos fundamentais da existência humana (Sartre, 2005a).
Sartre foi anunciador do existencialismo ateu, logo, suas primeiras argumentações voltavam-se para a questão da consciência e a forma que seus antecessores a viam. Nesse momento, o filósofo dedica-se à questão da imagem como crítica à concepção metafísica de representação, lançando bases importantes para seus temas centrais, como situação, liberdade e a própria concepção de sujeito.
2.1 A imaginação e o embate com a representação
Após o contato com a filosofia de Husserl, Sartre percebeu que, a partir da Fenomenologia, era possível questionar a concepção clássica de consciência, a qual tratava a consciência como uma espécie de caixa, um lugar, um simulacro de representações no qual as imagens se agrupariam (Moutinho, 1995).
Em “A imaginação”, Sartre investiga o que são as imagens e quais são suas relações com o sistema metafísico, bem como a forma como os psicólogos da época encaravam a noção de imagem. Sartre (2008) argumenta que os cientistas estavam habituados com a representação, por isso o modo de apreensão da imagem era confuso e difícil, assim, se desvencilhar dos velhos costumes representativos era um problema fundamental.
Diante desse problema basilar, Sartre elege três filósofos da metafísica, – Hume, Leibniz e Descartes – com o intuito de deslindar a noção da teoria da imagem pura. Em sua perspectiva, esses clássicos estariam caindo em uma “ontologia ingênua da imagem” que implicaria “fazer da imagem uma cópia da coisa, existindo ela própria como uma coisa” (Sartre, 2008, p. 9). A imagem, afirma Sartre (2008), não é uma coisa em miniatura, ela não está alojada na consciência, mesmo porque, a consciência é compreendida pelo autor como um movimento e não um receptáculo de reproduções sistemáticas e funcionais: é sempre consciência de algo.
“Para Hume [...] ter ideia de uma cadeira é ter uma cadeira na consciência” (Sartre, 1996, p. 17). No entendimento de Sartre, a imagem não pode estar alojada na consciência, uma vez que, como já dito, ele não parte do pressuposto que a consciência seja uma caixa fechada.
Absorvidos pelas teorias da imagem (imagem como coisa na consciência) dos clássicos metafísicos, psicólogos atrelados a esse movimento fizeram todo esforço de reordenamento do pensamento. Sartre afirma que havia uma diversidade teórica de concepções clássicas dos grandes metafísicos, mas elas resultavam em uma única teoria: “Descartes, Leibniz, Hume, têm uma mesma concepção de imagem. Somente cessam de estar de acordo quando é preciso determinar as relações da imagem com o pensamento. A psicologia positiva conservou a noção de imagem tal como herdara desses filósofos” (Sartre, 2008, p. 11).
A construção do problema de Sartre é vista como ponta de lança. Ele se debruçou num ajustamento da noção de imagem-coisa herdada dos metafísicos e psicólogos positivos associacionistas. A imagem era então compreendida como uma associação entre imagem e coisa na consciência.
A crítica de Sartre (2008) aponta que essa visão ingênua da imagem como uma coisa está intimamente ligada ao objeto – materialismo – e à razão – racionalismo. Nesse sentido, a noção de imagem estaria intrínseca tanto à imagem (da coisa física em si) quanto ao pensamento (uso da racionalidade), resultando em uma representação da coisa projetada na mente. A associação entre mente e coisa estava restrita ao objeto material e visível ao ser. Essa era uma das teorias leibnizianas do pensar a imagem associativamente com a coisa.
Já a teoria humeniana propunha um associacionismo empirista, no qual tudo acontece por uma causa, e essa causa projeta impressões e cópias, que são semelhanças entre as experiências e coisas. Há um profundo distanciamento entre consciência e imagem na filosofia de Hume e é esse distanciamento que Sartre (2008) aponta como um possível problema que justifica sua censura a essa teoria.
Os psicólogos positivos – Taíne, Ferri, Ribot, Spaier, Binet – tentaram recusar o associacionismo, mesmo apontando causas empiristas. Atribuindo valores de um pensamento sem imagens, como uma atividade real, mas inconsciente, a proeza positivista estava instaurada nesse pensamento.
As teorias herdadas dos clássicos metafísicos, de imagem-coisa, e dos psicólogos, em um esforço de encontrar um método positivo para a imagem, apresentaram falhas para Sartre, pois não demonstravam o caráter de envolvimento que o debate carecia. Percebendo que as teorias ainda conservavam na imagem resquícios associacionistas dos metafísicos, a imagem continuava sendo uma revivência das coisas, pois “em vez de ir direto a coisa e formar o método, a partir do objeto, defini-se primeiro o método” (Sartre, 2008, p. 73). Deste modo, o associacionismo mantinha a imagem no campo material, a essência da imagem continuava sendo passividade. Nas palavras de Sartre, “nem o método experimental de Würzburg, nem a pura simples introspecção poderiam nos satisfazer: vimos que eles não podem afastar os preconceitos metafísicos” (Sartre, 2008, p. 118).
Mas a crítica do autor foi provisoriamente sanada ao se deparar com “um tipo de experiência privilegiada que nos ponha imediatamente em contato com a lei” (Sartre, 2008, p. 118). O encontro com a Fenomenologia de Husserl teria apontado o caminho para guiar Sartre nas próximas interpretações pois, “a fenomenologia é uma descrição das estruturas da consciência transcendental fundada na intuição das essências dessas estruturas” (Sartre, 2008, p. 120).
Sartre compartilhava com Husserl que “toda consciência é consciência de alguma coisa” (Sartre, 2008, p. 123). Partindo da premissa que a intencionalidade é a estrutura essencial da consciência, toda experiência está a ela relacionada, no entanto, sempre jogando o objeto da consciência para fora, sendo transcendente, ou seja, o objeto sempre será correlato à consciência, mas não é da consciência (Sartre, 2008, p. 123). As coisas e os objetos estão fora da consciência, estão transcendentes a ela, onde se relacionam intencionalmente, uma vez que a imagem é também uma imagem de alguma coisa. A consciência se dobra pela consciência, pois a entendemos não como uma caixa fechada que só acessamos quando temos necessidade, e sim como transcendente, para fora. Para Sartre (2008, p. 128), “Husserl suprimiu os problemas clássicos referentes à relação da imagem com o pensamento, ao lançar o objeto da percepção para fora da consciência”.
Sartre então afirma que o método fenomenológico proposto por Husserl, deve ser utilizado pelos psicólogos, com o objetivo de descrever as estruturas da consciência, buscando apreender as essências. Mas com toda essa radicalidade e rigor no pensamento, Sartre percebeu que Husserl ainda era prisioneiro da antiga concepção, no que se refere à hylé (matéria) da imagem, que para ele continua sendo a impressão sensível renascente (Sartre, 2008).
2.2 O imaginário e a situacionalidade não imanente da imagem
Depois das fissuras instaladas por Husserl na trajetória da noção de imagem levantada pelos clássicos metafísicos e pelos psicólogos, como uma possível chamada para uma saída da tradição associacionista, Sartre trilha seu próprio caminho, escrevendo “O Imaginário: psicologia fenomenológica da imaginação”, no qual destaca que para “determinar os traços próprios da imagem enquanto imagem, é necessário recorrer a um novo ato da consciência: é preciso refletir” (Sartre, 1996, p. 15).
Prado Junior (1996), na apresentaçãodo livro em questão”, afirma que o livro é um escrito contra Husserl, mas apenas na medida em que um discípulo pode escrever contra o seu mestre, ou seja, no aprofundamento pela senda aberta de questões não resolvidas pelo antecessessor.
Sartre retoma os equívocos da interpretação metafísica e psicológica, como por exemplo o hábito de “ter uma ideia de uma cadeira, é ter uma cadeira na consciência” (Sartre, 1996, p. 17) como ponto de partida do livro. Sartre nomeou de “ilusão da imanência” a concepção da imagem como um produto para a consciência, vinculado à teoria de Hume, afirmando que a saída é a reflexão.
A consciência, para Sartre, sempre está em movimento, sempre voltada para fora de si mesma, isto é, para o fenômeno, uma vez que o fenômeno percebido está além de mim, já que a consciência não possui materialidade. A consciência é vazia, translúcida, está sempre voltada para o mundo de forma espontânea e imediata e é, sobretudo sempre significante (Boëchat, 2015).
Sartre (1996) propõe uma descrição “irrealizante” da consciência ou imaginação e seu correlativo noemático, o imaginário. O autor lança bases para uma fenomenologia da imagem tendo por princípio produzir em nós imagens, para refletir sobre elas e descrevê-las. A imagem é uma consciência da imagem, a imagem não está na consciência, muito menos o objeto da imagem está na imagem: “a imagem parte da relação da consciência com o objeto, tendo a consciência que se dar ao objeto” (Sartre, 1996, p. 19).
Para a construção de uma fenomenologia da imagem, temos que erradicar esse pensamento digestivo e conteudista, expulsando esses conteúdos prévios da consciência. Esse movimento requer uma pausa à situacionalidade não imanente da imagem. A imagem é uma relação, que se dá através de um modo particular de consciência, a qual Sartre chamou de “consciência imaginante”. “A imagem não ensina nada, não dá jamais a impressão do novo, não revela a face do objeto” (Sartre, 1996, p. 23-24).
Tendo em mente que a imagem é relacional, situacional e que se dá através da consciência imaginante, Sartre (1996, p. 20) reforça: “seria um erro grave confundir essa vida da consciência imaginante, que dura, se organiza, se desagrega, com o objeto dessa consciência, que durante esse tempo pode muito bem ficar imutável”. O filósofo atenta para uma possível confusão entre a consciência imaginativa e a consciência perceptiva.
A consciência perceptiva, segundo o autor, ocorre em uma apreensão do objeto por seus perfis, o objeto é percebido de um lado a cada vez. Sartre (1996, p. 20) usa o cubo para exemplificar a distinção: para que eu possa saber em qual dos lados estou apreendendo do objeto, devo “dar a volta”, mesmo assim a existência do cubo corre risco, pois há sempre a possibilidade de os lados anteriores se anulem durante minha trajetória de dar a volta.
Já pela consciência imaginativa, quando imagino um cubo, não há necessidade de dar a volta, pois, o cubo, como imagem, se dá exatamente como é (Sartre, 1996, p. 21). A consciência imaginante carrega em si a qualidade de ser “espontânea e criadora; sustenta, mantém através de uma criação contínua as qualidades sensíveis de objeto” (Sartre, 1996, p. 30).
Sartre (1996) afirma que não devemos confundir a imagem com o objeto a qual está relacionado: logo, a imagem será sempre uma consciência da imagem. O filósofo assegura que o que define o mundo imaginário tanto quanto o universo real é uma atitude da consciência: ambos os mundos são constituídos pelos mesmos objetos, só variam os agrupamentos e a interpretação desses objetos. “A imagem é tão real quanto qualquer outra. O principal problema que se coloca é o da sua relação com as outras existentes, mas qualquer que seja essa relação a própria existência da imagem permanece intacta” (Sartre, 1996, p. 234).
Todo processo de imagem se dá por meio da categoria da negação. Para Sartre (1996, p. 238), colocar uma imagem é “constituir um objeto a margem da totalidade do real, é manter o real a distância, libertar-se dele” logo, é preciso negar o objeto. Nesse processo de redução fenomenológica proposta pelo autor, para que uma consciência possa imaginar, é necessário, por sua própria natureza, escapar do mundo: é preciso que possa extrair de si mesma uma posição de recuo em relação ao mundo. Em uma palavra, ela precisa ser livre (Sartre, 1996, p. 240).
Sartre (1996) afirma que na descrição da fenomenologia da imagem ocorre o desmoronamento do mundo pré-dado, o processo de negação. Para ele, é preciso negar a imaginação para imaginar o mundo, assim como uma imagem da consciência da imagem, pois, é preciso estar-no-mundo para constituir a condição necessária da imaginação, tendo uma consciência livre das amarras postuladas pelos metafísicos (Sartre, 1996, p. 243).
O objeto de negação – neste caso o mundo – deve estar atrelado ao imaginário. O imaginário como um fundo do mundo e vice-versa. A negação deve ser encarada como um princípio incondicionado de toda imaginação, por isso, ela só pode realizar-se sempre em e por um ato de imaginação, é preciso que imaginemos o que negamos (Sartre, 1996, p. 244).
3 Da crítica à representação ao movimento existencialista
A tônica do pensamento do jovem Sartre se arrima na posição de situar a inércia do objeto (coisa) pressupondo uma existência em si que independe da consciência. Como no clássico exemplo contido na abertura de “A imaginação”, a folha branca que aparece em minha frente, tal coisa, no caso a folha, aparece em profunda espontaneidade, enquanto um modo de consciência de si. Isso porque, a consciência não tem como preposição ser uma coisa pois “seu modo de ser em si é precisamente um ser para si. Ela aparece como uma pura espontaneidade diante do mundo das coisas que é oura inércia” (Sartre, 2008, p. 07).
Fugindo das mazelas representacionais, o movimento de Sartre ao propor um existencialismo se apresenta enquanto reconhecimento da incompletude humana, manifesta em seu conceito de projeto. Intenção de agir frente a um futuro inesperado, pois, “a consciência satriana, em vez de ‘ser’, já que ela não tem essência, deve ‘fazer-se’, ‘criar-se’, uma vez que ele é espontaneidade pura” (Gois, 2007, p. 16).
O que irradiou o movimento existencialista sartreano em derivação da consciência, foi deslindar o engajamento para com a liberdade, rompendo, assim, com as possíveis prévias representações de modelos de existência. A liberdade é vista, pelas lentes sartreanas, como um projeto de engajamento no mundo, ou seja, uma condição inescapável do humano, fazendo com que tal existência seja sempre um projetar-se para fora.
Por isso, o que marcou a trajetória de Sartre foi a preocupação pela realidade humana, pela inserção do homem no mundo, para além daquela prisão associativista da imagem: o mundo é concreto, e por isso não se poderia ficar no âmbito da representação abstrata, sendo necessário reconhecer a irredutibilidade da consciência, pela reflexão, pelo elo da intencionalidade. Na cotidianidade mundana de cada existente, Sartre via a potência de sentido e significado para entender o humanismo como manifestação diária do ser humano. Para isso, Sartre (2010, p. 25) defende que o existencialismo é um humanismo:
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente. Declara ele que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem[1] ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significará aqui o dizer-se que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiro existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeira não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é mais que o que ele faz (Sartre, 2010, p. 25).
Para o autor não há outro universo senão o universo humano. Para ele, o destino do homem está nele próprio, que o homem só pode confiar na sua ação e só pode viver dela: “ao homem [...] não há outro legislador senão ele mesmo, e [...] é no desamparo que ele decidirá por si” (Sartre, 2010, p. 61). O sentido de humanismo concretiza-se, assim, na exteriorização do ser humano: projetando-se e perdendo-se fora de si é que a existência se realiza. O ser humano está a todo o momento por fazer-se (Sartre, 2010).
O existencialismo sartreano concebe que há pelo menos um ser que existe para si, uma vez que não foi criado a partir de uma essência preexistente: o ser humano. No ser humano a existência vem antes da essência (Abrão, 2004). Como afirma na sua célebre sentença: “a existência precede a essência”. De certo que, para Sartre, não pode existir uma essência humana, pois o ser humano é um ser livre, sendo a liberdade que determina sua existência. Quando escolhe, ele faz a si mesmo, projetando-se para fora. Segundo Sartre, isso
[...] significa que o homem existe primeiro, se encontra, surge no mundo, e se define em seguida. Se o homem, na concepção do existencialismo, não é definível, é porque ele não é, inicialmente, nada. Ele apenas será alguma coisa posteriormente, e será aquilo que ele se tornar. Assim, não há natureza humana, pois não há hum deus para concebê-la. O homem é, não apenas como é concebido, mas como ele se quer, e como se concebe a partir da existência, como se quer a partir desse elã de existir, o homem nada é alem do que ele se faz (Sartre, 2010, p. 25).
Para Sartre, o homem é um ser complexo e ambíguo, pois está mergulhado no mundo e condenado à sua liberdade. Ele pode escolher não escolher, mas jamais poderá escolher a opção de não escolher. Para isso, Oliveira (2008, p. 17) afirma que “o homem não tem essência, pois se faz a todo instante devido a essa liberdade. Não há nada que o obrigue a agir de uma determinada maneira, e com isso ele carrega o fardo de ser responsável pelas suas ações”. Na perspectiva de Sartre:
O homem primeiro existe, ou seja, que o homem, antes de mais anda, é o que se lança para um futuro, e o que é consciente de se projetar no futuro. O homem é, antes de mais nada, um projeto que se vive subjetivamente, em vez de ser um creme, qualquer coisa podre ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a este projeto; nada há no céu inteligível, o homem será antes mais o que tiver projetado ser. Não o que ele quiser. Porque o que entendemos vulgarmente por querer é uma decisão consciente, e que, para a maior parte de nós, é posterior á aquilo que ele próprio se fez. Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, casar-me; tudo isso não é mais do que a manifestação duma escolha mais original, mais espontânea do que o que se chama vontade. Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência (Sartre, 2010, p. 37).
As tramas da existência revelam-nos que somos seres em construção, como aponta Sartre (2010, p. 38): “o homem é, inicialmente um projeto que se vive enquanto sujeito” primeiro o homem é jogado a situação, depois ele se projeta, e sempre em função do nada, esse projetar-se é o que faz percorrer caminhos, sem ter a noção do que lhe espera.
O homem, para o existencialismo, deve ser encarado como expoente, uma vez que ele é o ator principal do teatro existencial, ele que se joga, lança-se. Logo, ele deve encarar as responsabilidades pelo que é. Ou seja, toda responsabilidade de sua existência recai sobre si. Por isso homem é, de acordo com Sartre, um ser que não tem justificativa para nada, não tem nada nem ninguém que possa dar-lhe as regras de como viver, o homem é o para-si, é o nada, é a resposta da consciência para o seu existir (Oliveira, 2008).
Segundo Sartre (2010, p. 33), o “homem é o futuro do homem”, sabendo que sua projeção se encontra nele mesmo, é dele e para ele. Essa afirmação soa com ar de desespero e desamparo, uma vez que todos devemos saber que somos seres abandonados, nada mais é relevante que a própria luta por si mesmo. Esse desamparo leva o homem a se apegar ao que o autor engendra como má-fé, que é a negação da verdade, é pela má-fé que o homem vive anestesiado em um mundo ilusório. Esse desamparo é acompanhado pela angústia, e é ela que movimenta o humano, pois ele se projeta num futuro responsável de si.
Cada ato que o ser humano toma, deve ser responsável por ele. Pois, “você é livre, escolha, ou seja, invente” (Sartre, 2010, p. 38). O homem é que deve escolher sua trajetória, porque ele é um ser-em-situação livre, conscientemente livre. Ele é esse projetar sartreano para o futuro de si.
Quais as aberturas que tal trajeto, da fenomenologia da imagem ao existencialismo sartreano, oferecem para pensarmos uma geografia existencial?
4 Da fenomenologia da imagem à geografia existencial
A Geografia guarda uma relação muito estreita com a imagem. Cosgrove (2008) mostra essa relação entre paisagem, mapa e visão, apontando como a construção de mapas e de imagens caminham articulados por um imaginário e por uma imaginação. De certa forma, a iconografia seria uma maneira de organizar a imaginação geográfica a partir de um conjunto de imagens, produzidas culturalmente por diferentes dispositivos e processos sociais.
Em outros momentos da Geografia Moderna esta relação também pode ser verificada, como quando se evoca, por meio de mapas, o sentido de graficacia (Oliveira, 2006) ou, mais recentemente, referente à potencialidade dos mapas, de obras de literatura ou de filmes em produzirem imagens de lugares (Oliveira, Jr., 2021; Seemann, 2012; 2020). Mas como na Filosofia, essa discussão está fundada na problemática da representação.
Na Geografia Moderna, com o peso da perspectiva kantiana em sua constituição (Berdoulay, 2017; Vitte, 2014), a questão da representação esteve atrelada à centralidade da relação do sujeito do conhecimento que inquiri o mundo, buscando a constituição do quadro geográfico. Nessa trajetória, diferentes bases epistemológicas produziram interdições para a compreensão do geográfico a partir, nas e pelas imagens: seria a imagem, em si, geográfica, ou ela não passa de representação do geográfico? Dito de outra forma: qual a dimensão da useabilidade da imagem/imaginação na pesquisa geográfica?
No entanto, ainda na primeira metade do século XX, questionamentos a esse regime objetivista de representação se levantaram, como o do famoso discurso presidencial da American Geographical Society, em 1946, do geógrafo John K. Wright, no qual discute o atrativo que o “desconhecido exerce nas faculdades imaginativas dos geógrafos e outros, e o lugar da imaginação nos estudos geográficos” (Wright, 2014, p. 6). Trata-se da busca por uma geosofia (geografia do conhecimento), projetada pelo geógrafo estadunidense:
Ele não apenas defendeu que os geógrafos precisam se abrir para o conhecimento produzido fora da ciência formal, como também insistiu que há geografia para além da academia. Para ele, o conhecimento geográfico possui uma natureza que não é de propriedade exclusiva de geógrafos profissionais. Ele aponta seriamente para a importância de olharmos para “além das fronteiras”, onde outros também produzem conhecimento geográfico de relevância (Marandola Jr., 2010, p. 8).
Esse olhar para outras fronteiras seria um movimento da geografia com “g” minúsculo, uma geografia visceral e orgânica (Dardel, 2015) em uma tentativa de escapar da disciplinarização da Geografia científica (“G” maiúsculo). Esse movimento parece ainda ser necessário quando percebemos o peso e resiliência da tradição da extensividade oriunda da Metafísica, que persiste em limitar, de certa forma, o alcance do pensamento geográfico (Marandola Jr., 2020). Buscar um caminho fenomenológico para pensar imagem/imaginação e imaginário parece promissor, trazendo dois modos de manifestação do fenômeno da imagem: forma e experiência. Isso permite conceber a imagem como um fenômeno, incorporado ao “conhecimento geográfico, sem dissociá-la de sua espacialidade e geograficidade inerente” (Marandola Jr., 2012, p. 52).
Essa mesma tonalidade se observa no existencialismo sartreano, a partir de sua fenomenologia da imagem, na força que direciona para o ato experiencial dos sujeitos, que estariam ligados à imagem e à imaginação, mas não na perspectiva associativista, mas como ato criativo, de elaboração como projeto. Essa centralidade na experiência, no vivido que a perspectiva existencial sartreana nos lega, provoca uma ciência engajada na indissociabilidade da imagem com a ação. Esse caminho, como vimos, se direciona para a superação da representação metafísica, o que implica conceber a imagem como situada, sempre relacional.
Tal perspectiva é especialmente significativa na construção de trabalhos voltados para grupos sociais marginalizados, excluídos e subalternizados, que são destituídos de sua liberdade e direitos, como os povos da América Latina. Uma perspectiva existencial permite compreendê-los como sujeitos situados, emergindo de sua própria práxis a força política de sua situacionalidade histórica (Costa, 2017).
Essa ênfase na práxis, no entanto, não elimina a imaginação, mas lhe dá força, superando também a perspectiva dualista entre idealismo-empirismo, tão presente na história do pensamento geográfico. Uma geografia existencial não é empírica, pois, como mostra Sartre, a existência não está presa à materialidade, mas a supera, justamente pela imaginação (como transcendência). Para a Geografia, com sua tradição materialista, não raro recorremos à Hylé da imagem material para fortificar nossa inteligibilidade nos agarrando a uma materialidade superficial que força a supressão da imagem enquanto uma consciência. Os lugares e paisagens são reduzidos às suas imagens “ingênuas”, o que remete à repetição e aos regimos de produção massificada de imagens contemporâneas (Queiroz Filho, 2013; 2019).
Assim, o jogo imagem-consciência da imagem não se reduz à apreensão, mas, fundado nas existências situadas, permite projetar para fora o geográfico. Esse é o movimento de escapar do mundo – o movimento de negação – que supera o empirismo a partir da transcendência. No jogo de aparência, forma e projeto, a dialética ausência-presença complexificam o processo de construção de imagens, constituindo uma geografia existencial para além da materialidade, como no trabalho de Bernardes (2012) a respeito das relações sociais virtuais.
A força dessa geografia existencial, portanto, está na situacionalidade, o que se articula diretamente com os movimentos contemporâneos de busca de enfrentamento da colonialidade, como um descolonizar, que implica alterar o ponto de partida do conhecimento: da representação para a corporeidade situada (Marandola Jr., 2023).
Neste sentido, propomos pensar a imagem/imaginação como conhecimento, e não meramente uma coisa a ser representada, fracassada em si mesma, possuída de um invólucro que não reflete nada mais que um fundo coisificante no interior de uma consciência ingênua. Esse modo de pensar a imagem como abertura e fuga das representações, compõe uma ontologia, pois há modos diversos de pensar a imagem enquanto ato.
Em vista disso, vislumbrar uma imagem e decidir que a imagem é dotada de percepção, é um convite para não cairmos na ontologia ingênua da imagem. Como pode a Geografia, pensada do ponto de vista existencial, evitar tal armadilha metafísica?
Galvão Filho (2019) embebido pelos caminhos abismáticos da geografia, nos apresenta um ensaio de geosofia fenomenológica, em que testemunha que a “realidade geográfica é vivida e pulsante, feita a cada nova experiência, a cada nova relação que o homem estabelece nas paisagens, lugares e território que compõem o mundo que é” (Galvão Filho, 2019, p. 24).
Embora não tenha inspiração sartreana, a perspectiva geosófica de Galvão Filho (2019) exemplifica possibilidades da perspectiva existencial na qual a experiência é de uma certa forma negada, permitindo que a imaginação radicalize o engajamento corpóreo. O autor faz isso em diferentes momentos, mobilizando experiências abismáticas, transcendendo-as em um processo imaginativo que desvela a cumplicidade corpo-terra da geograficidade. As situações vividas são projetadas para além de um associativismo simples das imagens, produzindo, pela descrição, uma geografia situada existencial.
Pensar imagem/imaginação no campo da geografia existencial é, de certo modo, se desorientar dos caminhos galvanizados da Ciência Moderna, para que ocorra a possibilidade de se embrenhar na emergência do grito da situacionalidade hodierna, propor um pensar desde a relação originária corpo-terra que emana do ser político que somos, um descortinar do pensamento hermenêutico do conhecimento.
Se ater à dimensão da imagem/imaginação é, portanto, nomear, fenomenologicamente, as coisas, os lugares, as paisagens, os territórios, os modos de vida, de maneira engajada. Pensar e escrever geografias imaginadas, é reificá-las desde um solo existencial. Por isso, podemos considerar que, ao imaginar, estamos constituindo um elo intransponível entre o engajar-se e o deixar-se perder pelo conhecimento geográfico – a geosofia, que está lá fora, em todo lugar, não restrita aos regimes de representação.
A trama romanesca e teatral de Jean-Paul Sartre, também, nos convida a meditar sobre as existências geográficas e suas projeções no mundo vivido. Em “A naúsea”, por exemplo, Sartre (2019), escreve a famosa trama de deslindes do tédio humano, salientando a totalidade da realidade humana por um projeto de ser que carrega em si o horror da existência: o drama do existir em comprometimento com Outro, mesmo na ausência da querência. Isso, para nós, reforça o sentido de uma responsabilidade e de uma ética pautadas e mediadas pela situação.
A situação para Sartre é a dimensão da totalidade humana, é o onde o homem se joga e se faz presença. Podemos dizer que a realidade geográfica se ergue a partir de uma situação dada por meio do ato ou do acontecimento. Nesse sentido, que um caminho para uma geografia existencial é o situar-se engajado no ato de imaginar. Esse ato de imaginar se manifesta no vivido por meio da imagem situada, fazendo com que erradiquemos os pensamentos digestivos e conteudistas de nossas geografias.
Nesse empreendimento, tomamos como potência o ato de criar que emerge do imaginário, isso pois, “o deslizamento da consciência na direção de um objeto, através do modo da imagem, é uma vivência intencional” (Maciel, 1975, p. 47). Esse modo de imagem é pura abertura e convite à superação do empirismo científico, tão necessário para o gesto político de uma geografia existencial corporificada e situada.
5 Imaginação e existências geográficas
A imagem/imaginação em seu uso categórico na Geografia nos leva a acreditar que a representação, articulada por meio de associativismos, está fundada em uma ontologia ingênua da geografia, pela exclusão de experiências cotidianas. O antídoto para a representação metafísica e para a imaginação como repetição é o mergulho na cotidianeidade mundana das existências. Pensamos em possibilidades e aberturas que sejam condicionadas à proposição de cada pesquisador. Sendo assim, o modo como nos relacionamos com a pesquisa deve ser colocado em suspensão e refletido como um projeto de escolhas.
Para tanto, ao buscarmos tensionar o campo da imagem na Geografia, façamos o exercício de fraturá-la enquanto ato e que seja dada a liberdade de linguagem à sua expressão, sem recairmos na representação da coisa associativamente. Sartre mostra que existem dois modos distintos de visar um objeto, imagem e percepção, ambos são pontos centrais em discussões geográficas. Uma vez que a imagem de nada nos ensina, ela é o que tem que ser. Já o modo percebido sempre haverá um aprendizado, uma observação, sempre haverá algo novo, pois, o objeto se dá em perfis, pela imaginação e pelo imaginário
A partir do desmoronamento do mundo pré-dado apontado por Sartre (1996), queremos não desmoronar a Geografia, mas deslocá-la da condição de representação metafísica para dar força a uma geografia existencial, possibilitando a ênfase da imagem e da imaginação como ontologia existencial. Negar a imagem nela mesma é o primeiro passo para a construção de uma fenomenologia da imagem, e abalando a Geografia existente é o que permite uma refundação ontológica geográfica. Ou seja, negar como forma de repensar intencionalmente a geografia de maneira situada.
Essa geografia não se refere a um movimento representativo das coisas do mundo, remetendo-se a uma imagem em espontaneidade e criação. Para contornar os vícios da metafísica da imagem e da ilusão da imanência, essa geografia existencial deve estar arraigada na situacionalidade, no engajamento da liberdade e sobretudo na busca de uma fenomenologia da imagem como expressão do fora de si do geográfico. Esta perspectiva possibilita uma atitude poética caracterizada por um afastamento da linguagem-instrumento (Oliveira, 2018), para assim se constituir a geografia existencial como caminho desmoronante da compreensão da experiência do ser-no-mundo.
O jovem Sartre, em seus trabalhos dos anos 1930, nos ajuda a compreender a fenomenologia como uma situação investigativa via engajamento, uma vez que, esse engajamento proposto pelo filósofo rompe com as barreiras disciplinares, o engajamento não é útil apenas em um momento, ele é revivido a cada instante vivenciado pelo ser humano. Pensar em noções que são de grande apreço à geografia – imagem, imaginação e imaginário – é o que movimentou esse debate fenomenológico da imagem aqui descrito. Como uma possibilidade de construção de uma geografia existencial percolada nas grafias sartreanas, descontruindo a noção representativa do que se tem no senso comum sobre a imagem.
Nesse sentido, parece promissor a promoção de geografias existenciais com base no entendimento circunstancial das imagens e no engajamento mundano de corporeidades situadas. Que as imagens possam nos movimentar na posição de avesso do conhecimento digestivo e conteudista. Que a imaginação no campo da Geografia possa ser percebida desde um sentido projetivo da existência do lançar-se no mundo enquanto um projeto incompleto.
Referências
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[1] Respeitando a grafia sartreana, optamos por deixar o termo “homem”, mas o entendendo como um projeto que é lançado ao mundo. Desse modo, ao usar homem, estamos pensando no ser humano, ou seja, uma noção de humanidade situada.
[i] Artigo recebido em 19/05/2024
Artigo aprovado em 09/10/2024
Uma versão preliminar do argumento deste artigo foi apresentada no XIII Encontro Nacional de Pós-Graduação em Geografia (ENANPEGE), realizado em São Paulo, de 2 a 6 de setembro de 2019, no Grupo de Trabalho Fenomenologias da Experiência Geográfica (https://www.fflch.usp.br/1552). O presente artigo expressa desdobramentos e amadurecimento da discussão nos últimos anos, sendo uma versão substancialmente ampliada e revisada do trabalho apresentado e discutido em 2019.
[ii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do projeto; visualização; escrita - rascunho original; escrita – análise e edição.
[iii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do projeto; visualização; escrita - rascunho original e escrita – análise e edição.