e-ISSN 1984-7246  

 “Os heróis nunca morrem”: a constituição da posição social do rapper no início do século XXI[i]

 

 

 

 

 

Vanessa Vilas Bôas Gatti

Universidade de São Paulo (USP)

São Paulo, SP – Brasil 

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orcid.org/0000-0002-3457-3793

vanessagatti@gmail.com  

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Os heróis nunca morrem”: a constituição da posição social do rapper no início do século XXI

 

Resumo

Este artigo visa refletir sobre a constituição da posição simbólica do rapper brasileiro a partir do início do século XXI, analisando duas músicas de grupos deste período: “Us herois não morrem”, de Alvos da Lei; e “Programado pra morre”, de Trilha Sonora do Gueto. Trata-se de refletir sobre a força simbólica dessa produção artística, que traz revelações sobre a sociedade, acomoda personagens em condutas éticas específicas, atribui e oferece significados, categorias e sentidos que ganham vida para além do gênero musical e que, nesse sentido, caracterizam o carisma do rapper.

 

Palavras-chave: música popular; rap; cultura popular brasileira; rapper brasileiro; produção simbólica.

 

 

 

 

 

 

"Heroes never die": the constitution of the rapper's social position at the beginning of the 21st century  

 

 

Abstract

The article aims to reflect on the constitution of the symbolic position of the Brazilian rapper from the beginning of the 21st century, analyzing two songs by groups from this period: "Us heróis não morrem", by Alvos da Lei; and "Programado pra morre", by Trilha Sonora do Gueto. The aim is to reflect on the symbolic force of this artistic production, which brings revelations about society, accommodates characters in specific ethical conducts, attributes and offers meanings, categories and senses that come to life beyond the musical genre and which, in this sense, characterize the rapper's charisma.

 

 

Keywords: popular music; rap; brazilian popular culture; brazilian rapper; symbolic production.

 

 

 

 

 

 

1 Introdução

“O rap salvou minha vida!”. Tal frase tornou-se uma constante entre rappers, ouvintes e fãs e nos faz questionar a respeito da força simbólica dessa experiência social sedimentada na produção do rap nacional ao longo de quase quatro décadas de existência. O caráter de salvação, ou seja, a função de conferir algum significado à existência daquele depoente, a ponto de uma guinada no curso de sua trajetória por uma mudança de conduta, colocada em operação por um gênero musical, embaralha momentaneamente a compreensão das cartas do jogo. No entanto, tanto a centralidade da música popular brasileira na arena cultural durante o século XX, quanto a “missão” do rap enquanto uma forma expressiva que, de certa maneira, organizou a experiência do jovem negro periférico ao longo da década de 1990, vêm à mente como justificativas para tal função, desvendando o significado da frase constantemente proferida.

O processo de constituição do lugar simbólico da música popular a partir de seu relacionamento com a construção de identidades sociais, por meio de arranjos de força que colocam significados em tensão ou em associação, faz questionar sobre a produção de significados e sentidos num determinado arranjo social. E, se a música popular brasileira, ao longo do século XX, foi forjada a partir de um esforço coletivo em elaborar uma certa identidade brasileira, despontando como uma produção artística com centralidade na arena simbólica de construção da nação, ao final do século XX, a produção artística do rap gradativamente ganha força, atentando contra esse processo de significação em curso[1]. A partir de meados dos anos 1990, as composições de rap passam a pôr em pauta um “Brasil em decomposição” (Um lugar [...], 1998) numa elaboração poética e musical que afronta as bases composicionais da música popular feita até então e que propõe a perspectiva do sujeito periférico[2] como privilegiado para cantar essa “desnação”. De acordo com Acauam Oliveira (2015), a conciliação racial e de classe estruturava a ideia de identidade nacional, colocada em operação, em grande medida, pela canção. O gênero rap se torna paradigmático ao romper com tal processo.

 

Podemos dizer que o rap desloca a canção brasileira de um de seus pilares de organização de sentido até então: a identidade nacional pensada em termos de conciliação racial, via mestiçagem, e de classe via nacional-desenvolvimentismo. É como se o gênero tomasse forma a partir dos destroços desse projeto de formação do país, comprometendo-se de forma radical com aqueles que ficaram relegados às margens de um projeto de integração que nunca chegou a se completar (Oliveira, 2015, p. 5).

 

Um Brasil cindido e em guerra é o palco de personagens em conflito, colocados em cena com um olhar cinematográfico, que usa da estratégia de choque para interpretar um país que “só me respeita com um revólver” (Isso aqui [...], 1999) ou seja, trata-se de colocar em primeira pessoa personagens que encarnam posições sociais estigmatizadas e apontadas pelo Estado como suspeitos previamente. Um reverso da sociedade brasileira foi gradativamente elaborado pelos rappers ao longo da década de 1990, que coletivamente promoviam uma inflexão no significado de “cultura brasileira”, enfocando os conflitos sociais e raciais, fontes de miséria e humilhação, como estruturantes da sociedade brasileira.

Conforme a produção artística do rap se desenvolve, ao longo da década de 1990, cria-se uma posição do rapper nacional como uma figura que desafia os significados correntes, promovendo um olhar renovado à cultura brasileira, ressignificando lugares simbólicos sedimentados, e colocando como alvo os muros invisíveis que segregam e impedem o acesso a plenos direitos do sujeito periférico. E, ainda que o rap enquanto produção artística carregue alguns aspectos presentes na constituição simbólica da música popular brasileira, como seu potencial revolucionário por carregar uma suposta “autenticidade” que se origina no “povo brasileiro”, figurando como um resíduo de notações e convenções socialmente herdadas[3], o rap apresenta novos significados, valores e formas, munido de uma chave de leitura renovada, tendo como eixo estruturador a desmitificação da democracia racial, o que faz frente a uma ideia tácita de miscigenação harmoniosa da “cultura brasileira”. Em outras palavras, se, por um lado, o rap promoveu uma revolução formal tanto na forma canção quanto na linguagem poética, por outro lado, a centralidade da música popular como um desaguadouro de sentimentos e reflexões soa como um resíduo desse lugar simbólico constituído ao longo do século XX.

Tal como observou Paul Gilroy (2001), a música se torna também um meio comunicativo entre os povos da diáspora africana, já que é a partir do seu trânsito que vai se constituindo um fluxo de identidades, que promove ressonâncias em múltiplas formações históricas, cujo resultado são novas chaves de leitura para a questão racial informada pela música, nas suas múltiplas formas. O gênero rap se constitui, no Brasil, a partir desse trânsito de saberes, referências e pautas, que direciona seus compositores, ouvintes, produtores e seus múltiplos agentes para a elaboração da “periferia” como um lugar simbólico de defesa e de solidariedade, já que o país trata de relegá-los à posição de “suspeitos”, destituindo-os de sua condição de cidadãos por meio da atuação violenta da polícia, o que leva à suspensão da credibilidade do Estado.

Dessa maneira, a partir do diálogo entre os grupos de rap que surgiram neste período, houve uma construção simbólica da “periferia”, ou seja, a cada composição e também por meio de certa concorrência entre os grupos em melhor representar a “periferia” e seu ethos, a produção artística do rap nacional vai gradativamente forjando seu sentido, que é manejado coletivamente entre os compositores e que ganha sentido a cada atualização, em novas músicas e legitimado pela adesão de seu público, organizando uma caracterização de certa experiência social que independe do espaço geográfico, já que transita entre as periferias dos grandes centros urbanos, inicialmente em São Paulo, Brasília e cidades do interior de São Paulo. Esse processo de constituição do significado de “periferia”, como um catalisador de forças dos compositores, em uma disputa interna pela melhor e mais “verdadeira” definição, deixa entrever o processo ativo de constituição da linguagem, como parte fundamental de um processo de produção material social, um processo ativo e dinâmico.

Segundo Raymond Williams (1979), o significado é uma ação social, sendo o signo “produto dessa continuada atividade de fala entre indivíduos reais que estão numa relação social continuada”, ou seja, os signos são “evidências vivas de um processo social continuado, no qual as pessoas nascem e dentro do qual são formadas, mas para o qual também contribuem de forma ativa no processo permanente”, influindo na “socialização e individuação: aspectos relacionados de um único processo” (Williams, 1979, p. 43). Dessa maneira, se de um lado os rappers contribuem ativamente com a construção simbólica da “periferia”, eles também são formados por ela, influindo em sua interpretação a respeito de sua origem relacionada ao equacionamento sobre os conflitos da sociedade brasileira.

Os sentidos de coletividade, solidariedade e uma criatividade espontânea vão sendo tecidos ao significado de periferia, relacionando-os aos agentes supostamente responsáveis pela miséria dos seus, a partir da nomeação dos “playboys”. O antagonismo entre “manos” e “playboys” foi constantemente colocado em cena pelas composições de diversos grupos de rap, cuja contundência da encenação da violência figurava como uma consolação lírica, um recurso estético utilizado pelos compositores. A leitura das relações sociais e da cultura brasileira a partir do conflito e da desigualdade, é somada à suspensão na crença do Estado brasileiro que, apesar de democrático, não cria meios de acesso a melhores condições de vida e ainda auxilia na estigmatização dos moradores da periferia, na visão dos rappers.

Gradativamente, e a partir de um trânsito de cenas, ideias e posições entre os grupos, um idioma expressivo próprio vai sendo elaborado, com gírias, expressões, palavrões, personagens, numa cifra própria que vai dando materialidade ao lugar simbólico “periferia”, afirmando, assim, uma identidade periférica por meio da linguagem. A assunção de uma linguagem, antes estigmatizada e localizada como inferior num processo ativo hegemônico, faz parte da construção da solidariedade que vai sendo constituída em torno da “periferia” (Gatti, 2024). A revolução formal produzida pelo rap, portanto, se dá numa incorporação da militância na própria forma, fazendo das palavras seu instrumento de transformação e, por isso, de salvação.

O desenvolvimento do gênero rap ao longo da década de 1990, portanto, deixa entrever o processo de constituição da figura do rapper como alguém que, por meio das posturas, rimas, poesias e tendo como matéria-prima a língua falada cotidiana, elabora argumentos para adesão à defesa da periferia, e que nomeia personagens com caracterizações a respeito da conduta do sujeito periférico. Dessa maneira, ao fim do século XX, ocupar a posição de rapper no Brasil necessariamente conduzia músicos e compositores a um posicionamento político de nomeação e interpretação dos conflitos sociais dos quais a periferia era resultado prático. A elaboração poética e intelectual das músicas, portanto, conferia um lugar simbólico ao rapper como uma espécie de conselheiro de condutas ou como um orientador dos caminhos menos danosos, de alguém que possuía uma visão panorâmica das tensões presentes tanto na periferia como fora dela e que, de certa forma, informava sobre as nuances dos significados de ações em meio ao conflito, desafiando interpretações oficiosas.

Nesse sentido, o rap se configura como um instrumento de educação sentimental, moral e política, tanto no sentido de legitimar o sentimento de revolta e convergir para a elaboração intelectual, quanto no sentido de elaborar uma posição social de reconhecimento e orgulho em pertencer à periferia. O rap nacional adentra o século XXI com tal “missão” implícita e a posição social do rapper requisitava dos seus pretendentes tal postura. Ou seja, o vínculo estabelecido entre rappers e seus ouvintes transpunha a pretensão de uma canção, soando como adesão a um projeto transformador. A prática artística da produção do rap, ao final da década de 1990 com certa estabilização, meios de produção e divulgação, oferece um caminho profissional aos jovens pretendentes a rappers.

A objetivação daquela realidade por meio dos versos, formalizando o ódio e a revolta, serve como desaguadouro desses sentimentos, impedindo ou bloqueando os caminhos violentos e sem futuro da criminalidade, o que promoveu uma interpretação do rap como um instrumento de salvação. Por isso, a frase que dá início ao artigo é uma constante tanto entre rappers como entre ouvintes. Ao serem questionados sobre sua sensação ao confirmar o sucesso de alguma música, os rappers apontam os relatos de fãs sobre a “visão” passada nos versos como a legitimidade que almejam[4].  As músicas soam como norteadoras de uma certa mudança de postura que, de alguma maneira, foi determinante na vida daquele ouvinte, soando como um compromisso firmado entre os rappers e o seu público.

Dessa maneira, após essa breve introdução, gostaria de refletir sobre a constituição dessa posição simbólica do rapper brasileiro dotada de legitimidade em elaborar categorias de nomeação que organizam e dão sentido renovado às condutas. São categorias criadoras como “vida loka”, “vermes”, “guerreiros”, “zé povinho”, elaboradas a partir de gírias e denominações cotidianas, mas que têm efeitos de classificação e organização da vida, ou seja, funcionam como norteadoras de uma ética interna em que vale o bom agir, o compromisso com a periferia e com o entendimento do conflito e dos papéis sociais. O fato de o manejo das palavras figurar como uma prática transformadora, tal como em doutrinas religiosas, conduz a uma aproximação do universo religioso enquanto prática social. Ou seja, trata-se de questionar a constituição do papel social do rapper brasileiro dotado de um carisma particular[5], aproximando-o dos aspectos sociais do profeta[6] enquanto uma figura que oferece uma visão renovada de mundo e um modo de salvação diante da suspensão ou descrédito das posições sociais anteriormente acomodadas, como efeito de uma situação extraordinária.

As situações teatralizadas nas composições dos raps têm como matéria-prima um contexto extraordinário que se tornou rotina, contudo não se trata apenas de expor uma paisagem, mas de conferir significados àquela realidade e aos seus viventes. Por esse motivo, um tom épico e messiânico satura as composições e a própria posição do rapper, que faz da palavra seu arsenal e de seu lugar um potencial transformador. Tal como o profeta, o rapper se sente tomado por sua “missão”, e o dom da “palavra” é interpretado como tal[7]. Ao elaborarem uma visão renovada de posições sociais a partir das contingências sociais e históricas que resultam na periferia, os rappers acabam por elaborar um sentido àquelas posições, conferindo significados e imprimindo matizes heroicos ao sujeito periférico enquanto desprivilegiado sócio e economicamente, mas que se orgulha em não fazer parte do lado abastado da cidade, cujos privilégios são interpretados como resultado da expropriação, heranças, facilitações e conchavos, vistos como desonrosos.

Dessa maneira, principalmente a partir do início do século XXI, a produção artística do gênero rap direciona as composições numa caracterização coletiva que mira a periferia como um lugar simbólico de construção de uma certa solidariedade e, portanto, como uma congregação a ser defendida. A caracterização de personagens que compõem as visadas das músicas também é relacionada a personagens bíblicos, ressignificando as condutas e posicionamentos (Takahashi, 2014). Além disso, a formação de muitos compositores de rap se deu em meio a um trânsito entre as religiões neopentecostais e de matrizes africanas, o que os aproxima da figura do pastor, mencionada constantemente em músicas. A eloquência como uma exploração da habilidade com as palavras aproxima essas duas práticas sociais.

A elaboração intelectual e artística desenvolvida pelos rappers para racionalizar os conflitos sociais equacionados na sociedade brasileira, faz a sua posição se aproximar de um intelectual orgânico, como apontou Rogério Silva (2012); contudo, acredito que, a partir do início do século XXI, a força simbólica do rapper se vincula a um domínio amplo do sagrado por meio das nomeações e caracterizações das músicas, que soam como revelações ou anunciações de uma verdade religiosa de salvação. Contudo, vale ressaltar que não se trata aqui de afirmar que os rappers são, de fato, profetas, em posse de uma doutrina religiosa, mas sim de utilizar dessa aproximação epistemológica para refletir sobre a força simbólica da posição do rapper nacional. Tal aproximação se dá no sentido de buscar compreender a constituição da legitimidade do rapper, já que a analogia do rap como instrumento de salvação é operada tanto por eles como por ouvintes e fãs.

Em outras palavras, trata-se de refletir sobre a força simbólica dessa produção artística, que traz revelações sobre a sociedade, acomoda personagens em condutas éticas específicas, atribui e oferece significados, categorias e sentidos que ganham vida para além do gênero musical e que, nesse sentido, caracterizam o carisma do rapper. Para tanto, analisarei duas músicas emblemáticas para a definição de tais aspectos apontados acima. São elas: “Us heróis não morrem” (Seja como Deus quiser, 2002), do grupo Alvos da Lei; e “Programados pra morrer” (Us fracu num tem veiz, 2004), do grupo Trilha Sonora do Gueto[8].

 

2 “No final, os humilhados subirão ao pódio”

Se, ao longo dos anos 1990, o rap se desenvolve no Brasil tendo como seu eixo constitutivo o caráter denunciativo e conscientizador a respeito das desigualdades raciais e sociais, ao final da década, os rappers passam a refletir sobre uma ética própria, pautando personagens e condutas que levam em conta o “proceder”[9] como modo de ação, uma chave de leitura que funciona tanto para os próprios rappers em suas relações, quanto para o sujeito periférico em geral, e que funciona como um marcador expressivo e identitário, ou seja, como um código de legitimidade em pertencer à periferia. Acauam Oliveira (2018) sugere que houve uma mudança de postura do grupo Racionais MC´s ao longo de sua trajetória, passando de uma linguagem do “professor autoritário” para a postura do “pastor-marginal”, propriamente no disco Sobrevivendo no Inferno (Cosa Nostra, 1997), em que os versos figuram como um caminho de salvação frente às contingências enfrentadas na periferia.

 

A mudança de linguagem do professor autoritário para a do pastor-marginal transforma também a função dessa palavra, portadora de uma verdadeira teologia da sobrevivência. É uma palavra que não mais se dirige ao Estado ou a qualquer outra instância externa à própria comunidade. Ela é o caminho de salvação, desde que aquele que a escute compreenda e aceite os caminhos do proceder periférico. Seu objetivo maior é formar os sujeitos para a construção de uma ética comunitária que os permita viver a “vida loka” – o estado geral de precarização das condições de existência marcadas pelo risco iminente e pela contingência – sem desandar, ou seja, permanecendo vivos. Em termos gerais, isso significa que as canções de Sobrevivendo no Inferno não pretendem ser interpretadas como mera narrativa (mais ou menos como não faz sentido ler um manual de guerrilha como mero entretenimento durante uma guerra, ou imaginar um evangélico fazendo uma leitura puramente ficcional da Bíblia). O texto almeja partilhar uma sabedoria construída coletivamente pela periferia, integrando-a à vivência dos sujeitos (Oliveira, 2018, p. 32).[10]

 

Dessa maneira, tal como aponta o autor, o caráter messiânico e heroico das composições já estava presente em composições de Racionais ao final da década de 1990, inaugurando uma tendência que se alastraria entre os compositores no início do século XXI. A centralidade de Racionais MC´s no cenário da produção artística do rap é incontestável, figurando como um cânone do rap nacional. São constantes as declarações sobre a influência do grupo tanto no despertar para uma consciência coletiva da periferia, como também definindo a modelagem das composições musicalmente e poeticamente.

A atuação do grupo Racionais como um impulsionador do movimento de forma deliberada, financiando gravações de outros grupos e rappers, promovendo eventos e incentivando o desenvolvimento de carreiras de novatos, faz da sua devoção ao rap uma prática a ser admirada como exemplar. Não são raras as histórias e anedotas dos rappers sobre a atuação exemplar de Mano Brown, principalmente, permitindo a aproximação epistemológica ao profeta exemplar, tal como caracterizado por Weber (1999). Sua atuação extrapola a prática poética e intelectual. Dois relatos de rappers enfocados neste artigo sobre a atuação de Mano Brown em trajetórias de rappers dão a ver tais aspectos de sua prática.

O rapper Grand (posteriormente Mr. GrandeE) iniciou sua trajetória no rap no início da década de 1990 no grupo U Negro, o qual fazia parte da posse DRR (Defensores do Ritmo Rua) da Zona Leste. Após a morte de Pancho, um dos integrantes do U Negro, Grand passou a compor o grupo Alvos da Lei, junto a Dimenó, fundador do grupo. Em um evento de rap na Baixada Santista, Grand foi preso injustamente. Depois de alguns meses detido, Grand recebeu um advogado enviado por Mano Brown, que se encarregou de sua defesa, mesmo sem conhecer o rapper pessoalmente (Gringos Podcast, 2021). Kaskão, fundador do grupo Trilha Sonora do Gueto também teve sua entrada no rap facilitada por Mano Brown. Em entrevistas, Kaskão relata que se encontrava privado de liberdade, no sistema carcerário, quando arriscou escrever um rap sobre uma situação vivida naquele local. Ao notar que a letra tinha algum valor, Kaskão escreveu uma carta para Mano Brown pedindo ajuda para inseri-lo no cenário do rap. Mano Brown, em resposta, pede compromisso e dedicação ao rap, ao que Kaskão responde que daria “a vida pelo bagulho”.

 

O Kaskão, que é o líder do grupo, tenho contato faz mais ou menos uns 10 anos. Ele tava preso e tal, ele já tinha o sonho de gravar. Ele já me conhecia da rua antes de ser preso. Não sei de que forma ele conseguiu o contato meu. Começamos a se comunicar por carta. Eu falei: ‘mano, quando você vir pra rua, se você der a vida pelo barato que nem eu dou, demorou! Mas se tiver de oba oba, longe de mim.’ Ele falou: ‘Eu dou a minha vida, a vida do meu filho, do meu pai, da minha mãe, de quem mais você quiser. Tô dentro.’ Eu falei ‘Então firmeza. É nois.’ Tá com nóis (Racionais […], 2017).

 

Contudo, apesar da centralidade da produção artística de Racionais no cenário cultural brasileiro, restringir a constituição do lugar simbólico do rapper  somente à atuação do grupo, seria perder de vista que tal operação se dá coletivamente, a partir de uma trama de relações, referências, aproximações e mesmo tensões que compõem tal constituição. Ou seja, restringir-se à trajetória de Racionais seria perder de vista o caráter formativo das relações sociais, cujos significados são tecidos a partir da interlocução entre os grupos e compositores. Por outro lado, a atuação do Racionais é formatada a partir de respostas e posicionamentos dos outros grupos, ao colocá-los como cânone, permitindo a construção de um lugar simbólico autorizado e legitimado pelo grupo a tomar a palavra como um arsenal de transformação. A cada resposta recebida sobre sua atuação e sua produção, gradativamente o grupo se sente mandatário em falar em nome da periferia, uma legitimação que faz crescer um carisma próprio do lugar do rapper nacional. Dessa maneira, faz-se necessário refletir sobre as composições de rap em geral no sentido de compreender a constituição desse lugar simbólico como uma construção coletiva.

O grupo Alvos da Lei, criado em 1993 por Dimenó[11], Cicatriz, Gilmar, DJ K e posteriormente Grand, despontou no cenário do rap em 2002, com o disco Seja como Deus quiser (Sky Blue, 2002), alcançando grande repercussão na época com a música “Us heróis não morrem”, com produção de Edi Rock, do Racionais MC´s. O disco se inicia com uma gravação de Gilmar, componente do grupo que foi assassinado alguns meses antes do lançamento do disco, na primeira faixa intitulada “Dois dias antes”. Explicando o nome do grupo, a voz de Gilmar numa gravação simples é acompanhada por um piano, com declarações que cravam o objetivo do grupo e o viés das composições que seguem a faixa.

 

“Alvos da lei” [...] quer dizer o seguinte: a gente, desde que nascemos, neste país, somo alvos da lei. Cristo foi um alvo da lei também. A lei que a gente fala é a lei que rege o mundo, que rege o país, que impõe a lei pra gente, às vezes de forma injusta, às vezes não também. [...] todo pobre periférico que vive na sociedade que a gente vive é um alvo da lei, sempre, desde que nasce. [...] a gente não tem o recurso correto, as coisas não são divididas da forma certa, então muitos manos aí procuram o seu meio de sobreviver. De forma errada ou não, aí é Deus quem vai julgar, entendeu. Nós não somos ninguém pra tá julgando ninguém. A gente se envolvemos, durante uma época, os problema que o sistema nos põe aí, como o álcool na família. [...] o rap surgiu pra denunciar, pra tá denunciando as coisas. Porque a gente quer mudança. Eu trabalho numa rádio comunitária, de tempos em tempos faço trabalho comunitário, social, porque a dificuldade é tremenda pro povo pobre. Existem várias classes, mesmo dentro da pobreza, existe aquele que é pobre e o outro que é mais miserável. A gente tenta conscientizar o nosso povo que você tendo um pouquinho a mais você tem que ajudar aquele que não tem. O Racionais serviu como exército dos excluídos pro povo da periferia. Mano Brown veio com “Pânico na Zona Sul” foi como se ele tivesse mandado uma carta aqui na minha casa, como o exército faz, e me convocado pra guerra. (Dois [...], 2002).

 

A descrença no Estado já está impressa no nome do grupo, já que, como expõe o rapper, o “pobre periférico” já nasce destinado a ser julgado culpado, mesmo, por vezes, sendo inocente. Tal como um porta-voz que compartilha da posição descrita, já que a nomeação do grupo caracteriza seus componentes, Gilmar aproxima tal população da experiência bíblica de Jesus Cristo, traçando uma relação que confere um significado ao sofrimento narrado. Tal operação de suspensão do Estado leva, necessariamente, ao questionamento sobre os termos do justo, a conduta certa e as contingências que levam às más condutas, como a vida criminosa. A dúvida quanto às questões levantadas conduz à uma saída supramundana: se a justiça dos homens é falha, seu julgamento também pode ser, o que leva a uma conclusão constantemente repetida em raps desse período – “só Deus pode julgar”.

Se as contingências impostas pelo “sistema” à periferia são extremamente desfavoráveis, a justiça dos homens se torna duvidosa aos olhos dos rappers, o que os direciona para a crença na justiça divina como uma resposta que leve em conta todas as variáveis. Contudo, o objetivo de transformação daquela realidade os direciona para a ação e adesão ao “exército dos excluídos”, cujo principal meio de atuação é o rap, como um instrumento de denúncia e conscientização. Assim como pretendem os rappers com suas composições no disco que se inicia, a música “Pânico na Zona Sul”, promove uma arregimentação de forças do povo da periferia, tal como um exército de um país, expondo o sentimento de heroísmo que o motivou a aderir ao rap.

Mano Brown figura como uma liderança que convoca seus iguais a lutarem pela periferia, na interpretação de Gilmar, assim como muitos outros relatos de rappers que iniciaram suas carreiras motivados pelo Racionais MC´s. Em outras palavras, estão presentes neste relato alguns fios condutores implícitos nas composições de rap desse período que, de certa forma, conferem à posição do rapper matizes específicos, como sugeri acima. E o fato de Gilmar ter falecido tragicamente dois dias após a gravação soma sentido à constituição de tal posição, pois, tal como um soldado em defesa do povo excluído, o rapper faz das suas palavras um arsenal eternizado pelo grupo na gravação.

A segunda faixa do disco (Us heróis […], 2002) se inicia logo após a declaração de adesão à guerra, quando, numa fração de segundos, o sample de “(If Loving You is Wrong) I don´t want to be right”, de Millie Jackson, soa metais e o início dos fraseados de baixo e violinos, conferindo uma dramaticidade imediata, numa intenção de manter a tensão do impacto da frase, com uma visão iluminada do sentimento de heroísmo lançado. O fraseado em descendente do baixo é tecido ao fraseado em ascendente de violinos, que floreiam uma bateria linear em andamento lento, e uma voz murmurando a melodia, soa como um lamento. A voz de Dimenó rapidamente adentra a paisagem sonora com o anúncio: “Aí irmão, a diferença entre o guerreiro e o covarde, é que o guerreiro encara as dificuldades da vida como um desafio, enquanto o covarde encara tudo como um castigo”; ao que é completado por Grand: “Aí truta, essa é pra todos os guerreiro vítima da violência do gueto”. Um eco da palavra gueto perdura enquanto Dimenó inicia a canção.

 

Os guerreiro aqui é forte, fiel até a morte.

“Alvos da Lei” agoniza, mas não morre.

Meu truta não caiu, ao contrário, subiu

Espírito imortal. Foi homem até o final.

Defensor da verdade, guerreiro de coragem.

Levante a cabeça, siga em frente malandragem.

Chorar não é vergonha, muito menos fraqueza.

Jesus também chorou, mas não se rendeu a besta.

Só quero uma resposta: Sabe o por quê?

Que os guerreiro vira herói só depois de morrer?

A guerra não acabou. Me entregar eu num vou.

O que faço é por amor. Escuta aí, faz favor!

Tá na mão do Senhor, Só Deus pode julgar.

Minha missão não é a de matar.

Peço a Cristo que ilumine o meu e seu caminho

Proteja os seus filhos da maldade e do perigo

Não, não sei o que se passa na sua cabeça

O grau da sua maldade. Não sei o que você pensa

Só acho que nós contra nós não faz sentido.

Povo contra o povo satisfaz o inimigo.

Um filme triste gravado no cérebro,

Um caixão naufraga sob lágrimas no cemitério.

Será que aguento o baque do desespero?

Sentimento de revolta esmaga o meu peito

Superar sei que é preciso

Bola pra frente, vamo que vamo, amigo

Quem pode me dizer? Só quero entender

Por que os guerreiro vira herói só depois de morrer?

 

Só quero saber o porquê

E poder entender (e poder entende):

Por que os guerreiro vira herói

Só depois de morrer (só depois de morrer)?

 

Será que a vingança é o melhor caminho?

O que você escolhe, a rosa ou o espinho?

Eh, você não sabe, então deixa no gelo

Deixa rolar a resposta vem com o tempo.

“Trutão siga em frente

Os guerreiros não se rende, vai na fé”

Palavra do parceiro da baixada, o André.

Infelizmente a paz não se encontra no mundão feroz

Ela é carregada dentro de alguns de nós

Qual o sentido dessa vida me diga?

Esperança agoniza, justiça se distancia

Deus, por favor, vem me confortar

Diz pra mim que o Senhor, foi quem mandou chamar.

“A perda é irreparável”

É quente, aliado!

Mas é assim que morre os revolucionário

Vivo cê num tem o valor merecido

Se pá não é lembrado e nem reconhecido

Mas a voz é imortal, a palavra é eterna

Atitude é pra homem em defesa da favela

Sei que é inevitável, é eu tô ligado

Um dia nóis se vê, se encontra do outro lado

Não vou deixar morrer o que você plantou

Onde estiver você vai ver vai se orgulhar, moro?

Questão de honra continuar e vencer

Ai irmão, eu continuo por você

É difícil prosseguir, quase desistir

Mas se é pra ser assim, sofrendo. Vamos aí

Eu só queria apertar a sua mão

Mais uma vez te ver no palco em ação.

[...]

Quantos sonhos são destruídos todos os dias

Quantas vidas são marcadas pela covardia

Quantos casamentos são interrompidos?

Quantos filhos nascidos não, não foram vistos?

Momentos felizes que não se concretizaram?

Primeiros passos, não acompanhados?

Primeiras palavras, mamãe sem papai?

Em quantos corações já faleceu a paz?

 

Eu acredito que o amor vence o ódio

E que no final os humilhados subirão ao pódio

Acredito na recuperação do ser humano

E que a esperança só morre, quando morrem os nossos sonhos.

A sede por justiça perturba o coração

Transforma em homicida um pacato cidadão

Favela, redoma, foco da revolta

Meus versos mudarão quando mudar a minha volta.

Não escolhi o tema já nasci dentro dele

E a dor que eu carrego só sabe é quem sente.

Palavras de amargura reflete o sofrimento

As lágrimas que caem, transborda o sentimento

Todos conhecem o assunto mas fingem não conhecer

Cada um defende aquilo que acha certo defender

Tô cansado de ver covardia, traição

Favela versus favela, irmão matando irmão

Inveja, ganância em alta dosagem

A melhora do semelhante aqui poucos aplaudem

Mas vou correr, lutar pra vencer

Pelo menos pro meu filho um herói eu quero ser (Us heróis […], 2002)

 

Em entrevistas, Dimenó afirma que a música “Us Heróis não morrem” é uma homenagem a Gilmar. A música confere à trajetória do rapper um sentido épico, cuja fidelidade à periferia, como a postura de soldado dos excluídos anunciada anteriormente, dá contornos à honra exaltada na letra. Ao dedicar a música a todos os “guerreiros” que foram “vítimas da violência do gueto”, os rappers tecem um significado corrente nas composições dos raps: o “guerreiro”.  Assim como Gilmar, os “guerreiros” são pessoas comuns da periferia, mas que se caracterizam pela coragem e dignidade em se posicionar “pelo certo” (mesmo “no errado”), ou seja, por possuírem uma conduta que leva em conta a lealdade com a periferia e encara o outro como igual e que, na batalha diária pela sobrevivência, não leva vantagens em detrimento de outras pessoas. Um sentido de honra masculina é acionado para compor o significado de “guerreiro”[12]. Nota-se que, assim como o finado parceiro, o eu-lírico assume a “missão” de permanecer em batalha em “defesa da favela”, com o intuito de manter vivo seu objetivo e, dessa maneira, honrar a morte do amigo. O tom épico dos versos confere significado à posição do rapper que, mesmo diante da tristeza e da revolta, o impulsionam a continuar em sua trajetória, colocando a prática de elaboração poética e musical do rap como um instrumento de transfiguração daquele cenário trágico.

É possível notar, contudo, que os versos oscilam entre a exaltação dessa postura, já que “é assim que morre o revolucionário” e uma certa hesitação do eu-lírico, consumido pela tristeza e pela busca por um sentido, num clamor por compreender o sentido da vida e das mortes ao seu redor, recorrendo a Deus para o conforto e respostas. Em contraste com a acusação das forças policiais recorrente nos raps, a composição vai revelando que o lamento também se dá pelas motivações do assassinato de Gilmar, pois ao se referir à segunda pessoa do singular, Dimenó questiona seu autor e conclui: “só acho que nós contra nós não faz sentido, povo contra o povo satisfaz o inimigo”.

O refrão é cantado por diversas vozes, como um coro, que legitima a reflexão sobre o significado da vida pedregosa, cujos versos são repetidos melodiosamente, se assemelhando aos louvores religiosos, contrastando com a voz de Dimenó no restante da música, mais declamado do que cantado, explorando o ritmo dos fonemas. Um clamor religioso pelo significado da vida diante da hesitação provocada pela violência interna à periferia, em que a suspensão da crença na justiça é acompanhada pela frustração da infidelidade de alguns , invade a música. Numa elaboração intelectual das melhores condutas, apontando a atuação do “guerreiro” como ideal para a periferia, a música revela que a força simbólica do rap está enraizada num domínio amplo do sagrado. Ou seja, existe uma oscilação entre a elaboração de uma sociodiceia, com uma explicação do mundo social tal como uma atividade intelectual, e uma teodiceia, em que apresenta tonalidades de uma profecia religiosa para conferir significado àquela existência, em que os “humilhados subirão ao pódio”, ou seja, operando uma transmutação simbólica em converter estigmas em sinais de uma eleição supramundana.

Propondo a esperança num mundo em que “o amor vence o ódio”, o “sonho” faz superar as amarguras e revoltas perturbadoras, que muitas vezes podem fazer desviar do caminho do heroísmo, tal como o exemplo do guerreiro que tem reconhecimento e é eternizado somente depois de sua morte. Contudo, o lamento em não ter um reconhecimento em vida é estancado pela certeza em eternizar suas palavras por meio do rap e, dessa maneira, a atividade de composição e elaboração poética figura tanto como uma sublimação do sentimento de revolta como se assemelha às palavras de um profeta, que auxilia e aconselha a conduta dos ouvintes: “Mas a voz é imortal, a palavra é eterna/ atitude é pra homem em defesa da favela”. Se de um lado o verso soa como uma ode à prática transformadora do rap, por outro, ele remete aos escritos sagrados que norteiam as condutas. A exploração dessa ambiguidade caracteriza fortemente as composições.

O grupo Trilha Sonora do Gueto também apresenta composições que tratam de refletir sobre as condutas na periferia, constituindo parte importante no cenário do rap em meados dos anos 2000. Criado por Kaskão (Djalma Oliveira Rios), o Trilha Sonora do Gueto estreou com o disco “Us Fracu num tem veiz” em 2004 (Sky Blue). As músicas apresentam uma série de caracterizações da categoria de “vida loka”, também definida por Racionais no disco Nada como um dia após o outro dia (Cosa Nostra, 2002), que teve participação fundamental de Kaskão nas composições. A música “Programado pra morre” (Programado […], 2004) apresenta uma citação da fala de Gilmar que antecede a música “Us Heróis não morrem” (2002), em que o rapper declara que a música “Pânico da Zona Sul” foi como uma carta de convocação de Mano Brown para a guerra.

A morte de Gilmar também será pautada pela música do Trilha Sonora do Gueto, com composições dos quatro rappers – Kaskão, Karate, X Bacon e Bocão –, em que as considerações a respeito do significado de “guerreiro” se somam. A música se inicia com os quatro rappers e Mano Brown cantando à capela e ao som de pés marchando no ritmo dos fonemas do refrão: “Programado pra morre nóis é! Certo é, certo é, der no que der!” (Programado […], 2004). Tal como anunciado por Gilmar na gravação citada, os rappers se juntam a ele ao “exército dos excluídos”, afirmando a fragilidade da vida na periferia e refletindo sobre uma ética possível num ambiente de privações e precarização das condições de vida[13].  A marcha cantada do refrão perdura e se transforma em base rítmica para os primeiros versos de Karate, que trata de distinguir o “guerreiro” que está sempre ligado nas dinâmicas da vida loka e pronto para a “missão” de dar a vida pela favela e, do outro lado, o “covarde” que opta pela ambição, o levando a alguma traição. A marcha cantada dá lugar ao sample ritmado e acelerado da música “Madhouse” (Madhouse, 1976), do Silver Convention, perdurando uma sonoridade cadenciada e repetitiva, se assemelhando a instrumentações que levam ao transe.

 

(Karate) Cochilou, mano, quando acordar é tarde

Aqui cabelo voa no mundo covarde

O ser humano que respeita e morre por ela

Quem eh, é, conhece o pique de favela

 guerreiro de fé que não se entrega assim

No mundão a vida é loka, são vários contra mim

É certo, da antiga poucos são de confiança

Traição consigo mesmo mata qualquer esperança

Jogo do submundo tá contando com a sua sorte

Aqui a aposta é alta, jão, é vida ou morte

A iniqüidade se afundou junto na arca de Noé

Um exemplo... Mas é.. é vários que se ilude que quer ser o que não é

Duas na mente ele já é um canalha

O sangue-bom de dois minuto enche o peito e dá falha

Com sorriso na cara, pagou de malandrão

Com ar ambicioso, hã, vai vendo jão

Quis zuar minha família, jurou minha coroa

Botou fogo na casa a situação não é boa

A vida é loka nego, tô de passagem

A missão é pros guerreiro e a cabreiragem é pros covarde

Desculpe Deus, mas não tô julgando

A verdade é dita pra quem é ser humano

 

Programado pra morre nóis é

Certo é, certo é, dê no que der

 

(Bocão) Acordo na madruga e escuto uma pá de tiro

Pilantra tem de monte só que aí não cochilo

Pego a Jericho[14], pronto pra missão

Submundo obscuro não existe sangue-bom

No crime cê só vale, nego, o que cê tem

Depois que tá em cana, não tem nada não é ninguém

Mulher te abandona, amigo te esquece

E se não for pedreira vai pro 5 e não pro 7

Me lembro na antiga eu não era assim

No mundão a vida é loka são vários contra mim

Anjo do bem me proteja do mal

Revolucionário, bandido e tal

Filho de Deus, um vida loka da história

Programado pra morre, ave Maria e glória

Guerreiro é assim, não treme e não gela

Pode vim, pode rir, que cê quer, Zé guela?

Comigo é sem problema, só disposição

O sistema não abala e num desacredita não

Então, Deus que me ilumina e eu divido com você

Bocão, rapper nato, nóis na fita até morrer

 

Programado pra morre nóis é

Certo é, certo é, Dê no que der

 

(X Bacon) Deus seja louvado aqui na Terra

O barato é loco, tá tipo guerra

E só quem é, sabe qual que é

A psicologia permanece de pé

Olhar cavernoso, maldade ou fome?

Na lei do gueto, atitude é pra home

Antes de falar tente olha seu nariz

Se Põe no pente fino cai pioi que deu no x

Não sou mais que ninguém, não vim pra julga

Que a psicologia permaneça no lugar

Se der falha a navalha estraçalha

Do lado de cá, de lá, o sangue espalha

Arma, dinheiro, seus truta , ...

Se estiver errado, aqui está só

Não passa batido nem despercebido

Dê no que der, certo é corrigido

Aê choque, vários barato cabuloso

Se não analisa fica desastroso

O mundo é um espelho, corra pelo certo

Zé povinho morre feio e no inferno

Irreconhecível, tá ligado, jão

X-Bacon lado leste envolvido na fusão

 

Programado pra morre nóis é

Certo é, certo é, Dê no que der

 

(Kaskão) Firmeza, a questão é essa, nego, o proceder

É o passaporte pra você sobreviver

No beco, em cana, made in favela

Um dos vida loka não cochila, nunca gela

Morre na batalha, sangra na navalha

Fez o mal, criador da traição, canalha

Quem com ferro fere, jão, vai ser ferido

Ditado é da antiga e se cê fez cê tá fodido

Me lembro, dá saudade, oh, da minha infância

Nada de maldade, tudo era esperança

Eu cresci, lutei, pela inveja perseguido

Se eu não fosse zica, jão, tinha subido

A rua ensina e é pesada a lição

Guerreiro de fé, nada de contradição

Programado pra morre nóis é

Certo é, certo é, dê no que der (Programado […], 2004)

 

A figura bíblica de Dimas é relacionada aos “guerreiros” que sobrevivem no meio fio das circunstâncias na música “Vida Loka Part. 2”, de Racionais (Vida […], 2002), cuja introdução é feita por Kaskão brindando a vida dos “guerreiros” no presente momento, já que o “amanhã só pertence a Deus”. A música “Programado pra morre” traz a referência direta, ao discorrer, cada qual a sua maneira, acerca de como sobreviver em meio a desavenças, traições, privações e provações, optando pelo “proceder”, já que “se der falha, a navalha estraçalha”. Assim os delineamentos do “guerreiro”, cantados em primeira pessoa pelos quatro rappers, tomam forma a partir do seu contrário: os “canalhas”, “sangue bom de dois minutos”, “covardes”, “zé guela”, “zé povinho” etc., que não possuem um comprometimento com a periferia e, por isso, não agem de acordo com o “proceder”.

Sobrevivendo em meio aos escombros da guerra, os “guerreiros” se valem de um heroísmo de permanecer vivo levando em conta a fidelidade à periferia. São vários os momentos em que os rappers recorrem a Deus para sua proteção, convictos de que estão “do lado certo” da história, tal como a figura bíblica de Dimas que, mesmo cometendo crimes em vida, defendeu Jesus e foi redimido por ele. Dimas é descrito como “primeiro vida loka da história”, papel mantido pelos rappers em suas descrições. Dessa forma, “vida loka” não se trata somente de um estado de precarização das condições de vida, mas também é uma categoria elaborada pelos rappers, coletivamente, para acomodar, organizar e dar significado às existências.

Portanto, diante de situações extraordinárias rotinizadas, os rappers tomam os microfones para definir categorias criadoras que fornecem parâmetros de conduta: estar do “lado certo da história” valida a legitimidade almejada, cuja convicção da postura vem a cada citação ou adesão do público. No entanto, a conclusão final de uma ética desenhada pelas circunstâncias é a de que “só Deus pode julgar”, colocando-se como mensageiros passageiros e suscetíveis a erros.

 

Considerações finais

Tanto a inflexão da identidade nacional, por meio do ataque ao mito da democracia racial, quanto a suspensão da legalidade do Estado brasileiro, por conta do descrédito produzido pelas abordagens policiais e pela democratização não efetivada para a população das periferias, são elementos que direcionam os rappers a tomarem frente da nomeação da periferia como grupo social, se empoderando em cantar sua fundação, e encarando a sociedade brasileira a partir de uma guerra de posições e informações, e o rapper como um elaborador de um discurso público desse grupo social, muitas vezes como um moralizador de condutas, já que as leis do Estado brasileiro estão em xeque devido ao encarceramento dessa população.

Ao duvidar da justiça dos homens, os rappers gradativamente elaboram um lugar simbólico de autoridade em definir o agir “pelo certo”, prática que lhes confere um carisma próprio, oferecendo uma visão de mundo e maneiras de salvação, tal como a atividade do profeta. O rap é, muitas vezes, apontado como um instrumento de salvação, que, de fato, faz desviar de caminhos incertos e vulneráveis oferecendo uma atividade profissional de lapidação da palavra, mas também carrega mensagens de solidariedade, identidade e, portanto, tem a função de reconhecimento tanto das trajetórias dos rappers como de seus ouvintes. A existência dos sujeitos passa a ganhar sentidos para além da vida cotidiana.

Dessa maneira, os rappers acreditam que estão incumbidos de falar em nome de uma instância maior, que inventaram. São mandatários ou são porta-vozes de uma realidade que fazem existir ao nomeá-la. A cifragem dos versos a partir do manejo da forma da língua falada, é intencional e estratégica, pois elaboram narrativas que são públicas, mas que só são compreendidas pelos seus, uma comunicação e identificação entre os “escolhidos”, ou seja, entre aqueles que compreendem as circunstâncias da “vida loka” e aderem à batalha diária pela sobrevivência.

 

Referências

 

D’ANDREA, Tiarajú.  A formação de sujeitos periféricos: cultura e política na periferia de São Paulo. 2013. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

 

DOIS dias antes. Intérprete e compositor: Gilmar. In: SEJA como Deus quiser. Intérprete e compositor: Dimenó, Grand. São Paulo: Sky Blue, 2002. 1 CD, faixa 1.

 

GATTI, Vanessa. Mente engatilhada: a formação do rap nacional gangsta. 2023. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2023.

 

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e a dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.

 

GRINGOS PODCAST: MR Grande-E (DRR Posse) Gringos Podcast #14. [Locução de]: Gringo e Erik Jay. [S.l.]: Gringos Podcast, 2021. 1 vídeo (87 min). Publicado pelo canal Gringos Podcast. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VBKfX9FknvQ&t=8135s. Acesso em: 13 fev. 2024.

 

ISSO AQUI é uma guerra. Intérprete e compositor: Facção Central. In: VERSOS sangrentos. Intérprete e composição: Facção Central. São Paulo: Five Special, 1999. 1 CD, faixa 4.

 

MACEDO, Márcio. Hip-Hop SP: the creation of peripheral culture in Brazil (1984-2003). 2024. Tese (Doutorado em sociologia) – The New School for Social Research, New York City, 2024.

 

MACEDO, Márcio. Hip-Hop SP: transformações entre uma cultura de rua, negra e periférica. In: Kowarick, Lúcio (org.). Pluralidade urbana em São Paulo: vulnerabilidade, marginalidade, ativismos sociais. São Paulo: Editora 34, 2016. p. 23-54.

 

MANDRAKE. “Peguei ódio pelo rap, mas certo dia Deus me tocou…” Dimenó- Alvos da Lei. Rap Nacional, [S. l.], 2012. Disponível em: https://www.rapnacional.com.br/peguei-odio-pelo-rap-mas-certo-dia-deus-me-tocou-dimeno-alvos-da-lei. Acesso em: 10 fev. 2024.

 

OLIVEIRA, Acauam. Prefácio. In: RACIONAIS MC´S: sobrevivendo no inferno. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 19-37.

 

OLIVEIRA, Acauam. O Fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. 2015. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2015.

 

PROGRAMADO pra morre. Intérprete e compositor: Kaskão, Karate, Bocão e X-Bacon. In: US fraco num tem veiz. Intérprete e compositor: Trilha Sonora do Gueto. São Paulo: SkyBlue, 2004.

 

RACIONAIS Mc’s - Entrevista completa ao Yo! MTV Rap (Vídeo Oficial) [HD], [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (44 min). Publicado pelo canal Gringos Podcast. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VBKfX9FknvQ&t=8135s. Acesso em:  13 fev. 2024.

SOBREVIVENDO no Inferno. Intérprete e compositor: Racionais MC´s. São Paulo: Cosa Nostra, 1997.

 

TAKAHASHI, Henrique. Evangelho segundo Racionais: ressignificações religiosas, políticas e estético-musicais nas narrativas do rap.  2014. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.

 

US HERÓIS não morrem. Intérprete: Dimenó, Grand e Cicatriz. Compositor: Dimenó. In: SEJA como Deus quiser. Intérprete e compositor: Alvos da Lei. São Paulo: Sky Blue, 2002, 1 CD, faixa 2.

 

UM LUGAR em decomposição. Intérprete e compositor: Facção Central.  In: ESTAMOS de luto.  Intérprete e composição: Facção Central. São Paulo: Five Special, 1998. 1 CD, faixa 3.

 

VIDA Loka part. 2. Intérprete e compositor: Racionais MC´s. In: NADA como um dia depois de outro dia. Intérprete e compositor: Racionais MC´s. São Paulo: Cosa Nostra, 2002

 

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia. Brasília: Editora da Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.

 

WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

 



[1] Márcio Macedo (2016) analisa o desenvolvimento do gênero rap ao longo das décadas de 1980 e 1990, percorrendo as mudanças de direção das temáticas que arregimentavam as composições. Segundo o autor, se no início da produção artística do rap (do hip hop como um todo) o lema da “cultura de rua” desponta como catalizador das temáticas, ao final da década de 1980 e início dos 1990, com a aproximação dos rappers do movimento negro, com uma profícua produção intelectual e de militância neste período, promove uma mudança de direcionamento a “cultura negra”. A partir de meados da década de 1990, a “cultura periférica” ganha proeminência entre os compositores, que se voltam para tematizar as precárias condições de vida nas periferias.

[2] Tiajaru D´Andrea (2013) apresenta um panorama histórico sobre a construção do significado do “ser periférico”, apontando a obra do Racionais como paradigmática nessa definição. O autor afirma que, para além do pertencimento a bairros onde imperavam violência e pobreza, o entendimento sobre essa experiência passa pela transmutação de estigmas em orgulho, elaborando a conceituação de sujeito periférico da seguinte maneira: “[a] conceituação se dá basicamente pela posse de três elementos: o reconhecer-se como periférico; o orgulho dessa condição e; a ação política a partir dessa condição” (2013, p. 177).

[3] Penso aqui no conceito de formação emergente e opositor, como melhor definidor da experiência social da produção simbólica do rap nacional, de acordo com Raymond Williams (1979). Segundo o autor, o conceito de formação consiste em “movimentos e tendências efetivos, na vida intelectual e artística, que tem influência significativa e por vezes decisiva no desenvolvimento ativo de uma cultura, e que tem uma relação variável, e com frequência oblíqua, com as instituições formais” (1979, p. 120).  Uma formação emergente carrega novos significados, valores e práticas, atribuindo um processo de ressignificação e se relacionando com uma cultura dominante. Por opositora, Williams ressalta as formações que se opõe aos valores e princípios dominantes, colocando-se em tensão nesse arranjo de forças na produção simbólica. Williams (1979) categoriza também as formações residuais, ou seja, elementos culturais formados no passado mas que estão ativos no processo ativo cultural.  Dessa forma, ainda que a produção cultural do rap apresente novos significados e valores, alguns elementos residuais da música popular ainda ressoam como norteadores da posição dos rappers e regem as composições.

[4] Em entrevista, WGI ressalta que o “resultado concreto, não abstrato” de seu trabalho está nesse tipo de devolutiva do público, ao apontarem suas músicas como estopins para uma mudança de conduta. [...] porque hoje eu recebo mensagem assim: ‘a sua música foi um pai que eu não tive’; ‘a sua música me tirou do crime’; ‘eu deixei de ser ladrão porque a sua música me deu a visão’; ‘hoje eu sou um pai de família porque sua música me incentivou’; ‘hoje eu sou um advogado, sou um juiz, sou um doutor, eu sou formado porque eu segui o que sua música falou, o que o rap falou’. Cê entendeu? Então, eu tive resultado concreto, não abstrato. E creio que tipo assim, não é igual antes, mas creio que de mil a gente consegue resgatar cem. E pra nóis é a mesma coisa porque a gente sabe que o nosso pensamento virou matéria mesmo. Influenciou e influencia na vida das pessoas (WGI, apud: Gatti, 2023, p. 174).

[5] Dominação carismática é definida por Weber da seguinte forma: “de caráter carismático: baseada na veneração extracotidiana da santidade, do poder heroico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta reveladas ou criadas (dominação carismática)” (Weber, 2004, p. 141).

[6] Weber define profeta da seguinte forma: “Por “profeta” queremos entender aqui o portador de um carisma puramente pessoal, o qual, em virtude de sua missão, anuncia uma doutrina religiosa ou um mandado divino. [...] O decisivo para nós é a vocação “pessoal” [...] o profeta atua somente em virtude de seu dom pessoal. Este se distingue do mago pelo fato de que anuncia revelações substanciais e que a substância de sua missão não consiste em magia mas em doutrina ou mandamento” (Weber, 2004, p. 303).

[7] Não são raras as vezes que, em entrevistas, os rappers atribuem sua vocação de poetas como atributos de Deus. Doctor X, compositor do grupo Sistema Negro: “Eu sempre cresci ouvindo muita música, mas na minha família não tinha músicos, tinha meu avô que tocava um violão e tal, mas a música apareceu na minha vida assim... eu entendo que realmente Deus me escolheu, falou ‘Vai lá e faz a parada acontecer’”. Entrevista de pesquisa concedida em 15 de março de 2022, na cidade de Campinas.

[8] Opto, neste artigo, por manter a grafia das palavras tal como elas são pronunciadas, inclusive com discordâncias verbais e nominais, que são marcadores expressivos importantes na construção da indumentária opositora do rap. Para uma reflexão a respeito da linguagem socialmente constituída como elemento fundamental da estética do gênero rap, consultar o trabalho: GATTI, Vanessa. Mente engatilhada: a formação do rap nacional gangsta. Tese (Doutorado em Sociologia) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2023.

[9] Para uma discussão sobre o “proceder”, consultar os trabalhos: FELTRAN, Gabriel. Irmãos: uma história do PCC. São Paulo: Cia das Letras, 2018; MARQUES, Adalton. Crime, proceder, convívio-seguro: um experimento antropológico a partir da relação entre ladrões. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, São Paulo, 2010 e; HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: mercados e formas de vida. São Carlos: Edufscar, 2018.

[10] A aproximação do gênero rap a um universo religioso é caracterizada por Acauam Oliveria (2018) na posição de “pastor-marginal” dos rappers. Contudo, acredito que fazer uma aproximação epistemológica do “profeta” seja mais profícuo, já que a postura do “pastor” sugere a função de sacerdote, uma figura portadora de uma doutrina e que, a partir de um discurso sistemático, oferece uma visão de mundo e meios de salvação, mas que ocupa uma posição de mandatário de uma burocracia. 

[11] Dimenó é o principal compositor do grupo Alvos da Lei. Em entrevista, o rapper relata que seu sonho de criança era ser profeta, quando frequentava a Igreja Batista. Em 2011, se converteu à Igreja Pentecostal Pão em Abundância e, como consequência, se afastou do universo do rap por muitos anos, dizendo ter “pegado ódio do rap”. Depois de ter passado a compor músicas gospel, Dimenó retomou a carreira com o Alvos da Lei por volta de 2020 (Mandrake, 2012).

[12] Márcio Macedo (2024) reflete sobre a construção de categorias que operacionalizam tipos ideais de masculinidades, como por exemplo o “preto tipo A”, presente na música “Capítulo 4, versículo 3”, de Racionais MC´s.

[13] O verso do refrão também compõe um trecho da música “Vida Loka parte 2”, de Racionais (Nada como um dia depois do outro dia, Cosa Nostra, 2002), que se inicia com Kaskão fazendo um brinde aos “guerreiros”.

[14] Refere-se à Jericho 941, uma pistola semiautomática.



[i] Artigo recebido em 05/03/2024

  Artigo aprovado em 22/07/2024