e-ISSN 1984-7246
Jaimeson
Machado Garcia[ii]
Universidade de Santa
Cruz do Sul (UNISC)
Santa Cruz do Sul, RS – Brasil
lattes.cnpq.br/1548190278864809
jaimesonmachadogarcia@gmail.com
Ana
Luiza Martins
[iii]
Universidade de Santa
Cruz do Sul (UNISC)
Santa Cruz do Sul, RS –
Brasil
lattes.cnpq.br/1322282685882256
Cancelamento e resiliência através da canção: de Carmen Miranda a Karol
Conká
Resumo
Este estudo propõe analisar a utilização da música
como resposta ao "cancelamento" sofrido por Carmen Miranda e Karol
Conká. Apesar das diferenças temporais e de experiências, ambas enfrentaram
controvérsias em suas carreiras e recorreram à canção como meio de expressar
suas perspectivas. O estudo busca analisar o significado dessas canções,
contribuindo para o debate sobre o "cancelamento" na cultura
contemporânea. O trabalho se divide em três partes: introdução, apresentação do
contexto dos "cancelamentos" e análise das canções, visando
aprofundar nossa compreensão sobre o impacto do "cancelamento" na vida
de artistas e as alternativas para enfrentá-lo. Após análise de Disseram que voltei americanizada, foi
possível observar que Carmen Miranda reafirma sua identidade brasileira,
enquanto em Paredawn, Karol Conká
reflete sobre o seu cancelamento ao mesmo tempo em que critica o comportamento
da massa “canceladora”.
Palavras-chave: canção; Carmen
Miranda; Karol Conká; cultura do cancelamento; teoria das massas.
Cancellation and resilience
through song: from Carmen Miranda to Karol Conká
Abstract
This study aims to analyze the
use of music as a response to the "cancelation" experienced by Carmen
Miranda and Karol Conká. Despite the temporal and experiential differences,
both faced controversies in their careers and turned to song as a means to
express their perspectives. The study seeks to examine the meaning of these
songs, contributing to the debate on "cancelation" in contemporary
culture. The work is divided into three parts: introduction, presentation of
the context of "cancelations", and analysis of the songs, aiming to deepen
our understanding of the impact of "cancelation" on artists' lives
and alternatives to confront it. After analyzing the two songs, "Disseram
que voltei americanizada" revealed Carmen Miranda reaffirming her
Brazilian identity, while in "Paredawn," Karol Conká reflects on her
cancelation while simultaneously criticizing the behavior of the
"canceling" mass.
Keywords: song; Carmen Miranda; Karol Conká; cancel culture;
mass theory.
1 Introdução
De um lado, Carmen Miranda, filha de
imigrantes portugueses, nascida em Portugal e criada no Brasil, que na década
de 1940 se destacou como uma das principais representantes do país no cenário
musical e de entretenimento em Hollywood, incorporando elementos de uma
brasilidade em construção. Do outro, Karol Conká, uma cantora e compositora de
rap curitibana, que se destacou em um gênero predominantemente masculino na
primeira metade dos anos 2000, emergindo como uma voz proeminente do feminismo
negro e do movimento antirracista.
Embora separadas por
contextos históricos distintos e experiências únicas, Carmen Miranda e Karol
Conká compartilham um elemento comum em suas carreiras artísticas: a resposta
ao rechaço de uma massa, um fenômeno social atualmente conhecido de forma
genérica e problemática como "cancelamento", utilizando, para isso, a
canção como meio de expressão e reação dentro dos gêneros musicais em que se
destacaram. Com Disseram que voltei
americanizada e Paredawn, Carmen
Miranda e Karol Conká mostram como a canção pode servir como um meio de resistência
e autoafirmação, permitindo-lhes enfrentar e, em certa medida, superar e
neutralizar, as críticas direcionadas a elas.
Essa capacidade de usar a música como
ferramenta de resistência e expressão pessoal não é exclusiva das trajetórias
de Carmen Miranda e Karol Conká, mas reflete uma característica mais ampla da
canção brasileira. Isso porque, mais do que um meio estético-contemplativo, a
canção brasileira tem se consolidado ao longo das décadas como uma poderosa
forma de expressão de posicionamentos e visões de mundo. Como destacado por
Santuza Cambraia Naves (2010, p. 21), trata-se de um produto cultural capaz de
"[...] intervir, poética e musicalmente, nas discussões estéticas,
políticas e existenciais", tornando-se um registro das dinâmicas sociais e
culturais do país.
Essa mesma abordagem é compartilhada por José
Miguel Wisnik (2004), cancionista, professor e crítico de literatura e música,
que vê na canção, especialmente nas que foram produzidas por cancionistas
brasileiros que se firmaram como artistas intelectuais na década de 1970, um
objeto dotado de uma multiplicidade de usos e um poder que “[...] advém de sua
atuação sobre o corpo e se desdobra numa figuração do corpo social” (Wisnik,
2004, p. 183). Por isso, a canção é um "[...] modo de sinalizar a cultura
do país que, além de uma forma de expressão, torna-se também [...] um modo de
pensar, ou, se quisermos, uma das formas da riflessioni brasiliana"
(Wisnik, 2004, p. 215).
A produção de conhecimento sobre a canção
emerge, assim, como um elemento formador da identidade brasileira, abordando
diversas temáticas relacionadas à existência humana. Isso confere à canção uma
importância marcante no panorama musical brasileiro e a torna objeto de
análises profundas, visto que as letras são interpretadas porque os
compositores são compreendidos como sujeitos que incorporam e mimetizam suas
próprias experiências de mundo por meio de suas canções.
No caso de Carmen Miranda e Karol Conká, essa
comparação ressalta como os artistas, independentemente da época, buscam
maneiras de navegar pelas complexas dinâmicas sociais que influenciam suas
carreiras e vidas pessoais. O uso da canção como um meio de resposta e
expressão revela uma continuidade na estratégia de resistência e resiliência
frente ao julgamento público. Compreender essas continuidades e mudanças,
portanto, não só ilumina as diferenças entre esses períodos históricos, mas
também destaca a persistência de padrões humanos de comportamento em relação às
figuras públicas.
O "cancelamento" pode ser visto,
nesse sentido, como a expressão moderna de um antigo fenômeno de controle e
resposta social, o que nos permite reconhecer que, apesar das mudanças na forma
como nos comunicamos, as reações humanas a figuras públicas que desafiam ou
desapontam expectativas sociais permanecem notavelmente consistentes. Diante
desse cenário e das discussões recentes que envolvem as motivações das massas e
os impactos do “cancelamento” na vida de anônimos e personalidades midiáticas,
este estudo tem por objetivo analisar como as referidas canções se constituem
como respostas artísticas e sociais às críticas recebidas em épocas distintas.
Dessa maneira, no presente estudo examinamos,
em um primeiro momento, o conceito de cancelamento através das lentes da teoria
das massas, destacando as dinâmicas de poder e comportamento coletivo. Já em um
segundo momento apresentamos os contextos históricos e culturais dos
cancelamentos de Carmen Miranda e Karol Conká. Após aprofundadas tais questões,
analisamos as canções Disseram que voltei
americanizada e Paredawn como
respostas artísticas ao cancelamento, destacando suas estruturas musicais e
mensagens de resistência. Por fim, na última seção, enfatizando como a canção
se constitui como uma forma de resistência e autoafirmação a partir das
experiências de ambas as artistas.
2 O “cancelamento” pela perspectiva da teoria das massas
O “cancelamento” é um fenômeno social que
pode ser definido, de maneira geral, como um jogo de linguagens dentro de uma
circunstância de interação “[...] cujos conteúdos reivindicam alguma pretensão
de correção” (Arantes; Urashima, 2020, p. 8). Ou, em outras palavras, como o
resultado da publicação em texto, imagem estática ou vídeo que contenha uma
opinião ou ato visto como ético ou moralmente controverso, “[...] geralmente
por meio de alguma rede social e, em seguida, a depender de uma reação negativa
das massas, o indivíduo [responsável pelo conteúdo passa a] ser rechaçado por
esse público” (Silva, 2021, p. 95).
Por envolver diferentes nuances, a
conceitualização, estruturação e efeitos do “cancelamento” são questões de
frequentes debates, uma vez que não há um consenso sobre suas fronteiras. Para
alguns pesquisadores, esse fenômeno, que foi ressignificado com a popularização
dos sites de redes sociais nas últimas décadas, se faz presente desde os tempos
mais remotos sob outros modelos e dinâmicas. Na Grécia Antiga, por exemplo, o
“cancelamento” pode ser comparado analogamente à lei do ostracismo, uma norma
criada para proteger Atenas de um novo regime tirano como o que havia sido
imposto por Pisístrato ao se autoproclamar soberano. Como o próprio nome
indica, a lei do ostracismo visava ostracizar e banir da cidade, durante um
determinado período, aqueles que, por razões da sua riqueza, número de amigos
ou qualquer outro tipo de influência política, prevalecessem demasiado, como
deixou registrado Aristóteles em seus escritos.
Para outros, o “cancelamento” é um fenômeno
novo, que emergiu como um resultado da visibilidade mediática. Ou seja, como
uma das consequências dentro do “[...] macrocorredor comunicacional para
(super)exposição, circularidade e reciclagem sígnicas em tempo real (de pessoas
e grupos, governos e empresas, marcas e mercadorias etc.), trifurcado em cena
pública massificada (jornais, revistas, cinema, rádio e televisão), cena
pública interativa (sites, chats, blogs, fotologs, e redes sociais como Orkut,
MySpace, Second Life, Twitter etc.) e cena pública híbrida (webradio, webTV,
YouTube etc.)” (Trivinho, 2011, p. 114).
Por conta de tais discordâncias conceituais,
o fenômeno do "cancelamento" está longe de ser compreendido de
maneira unívoca. Por um lado, ele pode representar uma ferramenta crucial na
luta por equidade e justiça, proporcionando uma ação de grupos historicamente
silenciados a expressarem suas preocupações e demandas ao desafiarem as
estruturas de poder arraigadas. Por outro, ele revela preocupações genuínas
sobre a liberdade de expressão, já que há uma visão de que o “cancelamento”
pode ser instrumentalizado como uma forma de censura, sufocando a diversidade
de opiniões e criando um ambiente no qual a conformidade se sobrepõe à
autenticidade, levantando, dessa maneira, sérios questionamentos sobre os
limites éticos e morais desse fenômeno.
Em razão desse cenário, há um amplo espectro
de perspectivas teóricas pelas quais podemos compreender o fenômeno do
“cancelamento”. Dentre elas, estão as dinâmicas de poder que moldam o
comportamento coletivo das massas, viés abordado por autores como Elias Canetti
(2019). Embora o teórico não fale especificamente sobre “cancelamento”, visto
que os sites de redes sociais ainda não existiam na época, sua classificação
sobre as propriedades e dinâmicas das massas é capaz de nos fornecer subsídios
necessários para aplicarmos tais conceitos à análise desse fenômeno
contemporâneo.
Para ele, as massas podem ser abertas ou fechadas. A primeira diz respeito à massa natural, por ser aquela
que não impõe limites ao seu crescimento e “sua desintegração principia assim
que ela para de crescer” (Canetti, 2019). Já a segunda tem funcionamento
oposto, pois sua limitação “[...] impede um crescimento desordenado, mas também
dificulta e adia a desintegração” (Canetti, 2019). Apesar dessa separação, é
possível que uma massa fechada se
torne aberta no momento em que há a
“erupção”. Isto é, quando há o seu transbordamento para além das linhas que
busca demarcar — circunstância essa que tem
sido vista de maneira mais frequente desde a Revolução Francesa em razão da
necessidade da sociedade de experienciar a força e a paixão em meio a
oportunidades e demandas sociais que se apresentam.
Com base nessas
características, Canetti (2019) identifica diferentes formações das massas. Uma
das formas é a que surge do pânico diante de um perigo comum e claro,
alimentado pelo medo compartilhado por todos. Um exemplo dado pelo teórico é o
caso hipotético de um incêndio em um teatro, em que, ao buscar sair do local,
"por um breve período, o público constitui uma verdadeira massa" (Canetti,
2019) na busca pela sua sobrevivência. Outro tipo
de formação é a massa como anel, como acontece nos estádios, em que o número
limitado de assentos é disposto em círculo, resultando em indivíduos sentados
diante de si mesmos. Nesse momento, “[...] todos se tornam muito
parecidos e comportam-se de modo semelhante. Nos outros, cada um percebe apenas
aquilo que ele próprio está sentindo. A excitação visível dos demais
intensifica a sua própria” (Canetti, 2019).
Mas, de todas as classificações, a que mais
se aproxima da práxis do “cancelamento” é a chamada massa de acossamento,
descrita como aquela que se forma a partir de uma meta que se pode atingir
rapidamente. Para Canetti (2019), o objetivo da
massa de acossamento é matar a partir da definição de uma vítima, que passa a
ser não somente a “[...] meta, mas é também o ponto de máxima densidade:
ela reúne em si as ações de todos. Meta e densidade coincidem” (Canetti, 2019).
Ela divide-se em duas formas: a primeira é a
da expulsão, em que o indivíduo é
abandonado pela massa sem nenhum artifício de defesa ou recursos para a sua
sobrevivência; já a segunda é a do matar
coletivamente, em que “[...] o condenado é conduzido a um campo aberto e
apedrejado. Todos participam do ato de matar; atingido pelas pedras de todos
eles, o culpado sucumbe. A ninguém delegou-se a tarefa de executor; a
comunidade inteira mata. As pedras a representam: elas são a marca de sua
decisão e de seu ato” (Canetti, 2019).
Neste último caso, o ato de conduzir o
condenado a um campo aberto e apedrejá-lo pode simbolizar a natureza
participativa do “cancelamento”. Primeiro, porque há uma “vítima” em específico
como meta: uma empresa, uma figura pública ou mesmo uma pessoa anônima. Em meio
a essa massa “canceladora” não há um executor designado, já que é a comunidade
como um todo que participa ativamente, isto é, os usuários de um site de rede
social ou plataforma virtual.
As pedras lançadas nesse contexto podem ser
entendidas como tudo aquilo que, de alguma forma, vá atingir diretamente o
indivíduo “cancelado”: comentários, boicotes, protestos, entre outras formas de
rechaços virtuais, como ameaças de morte. Já o número de curtidas e
compartilhamentos de postagens com vídeos, textos e imagens contendo tais ações
pode servir como uma espécie de medida pública da
intensidade do “cancelamento”. Esse fenômeno ressalta a importância das
métricas sociais na validação e amplificação do rechaço público, contribuindo
para a construção da marca coletiva da decisão de “cancelar” alguém.
À medida que a massa de
acossamento atinge sua vítima, inevitavelmente, o ímpeto que a coesiona começa
a dissipar-se. Contudo, para impedir sua desintegração, surge a necessidade de
buscar uma nova vítima. Esse aspecto sutilmente se assemelha ao ciclo do
"cancelamento", em que, após a consumação de um episódio, a
intensidade inicial tende a diminuir. Nesse cenário, a comunidade virtual pode
se dispersar – à medida que membros se
afastam do tópico exaurido –, ou migrar
para novos horizontes de discussão em busca de circunstâncias mais recentes e
instigantes.
Esse movimento cíclico, marcado por fases de
acalmia e reativação, destaca a natureza dinâmica e efêmera do fenômeno do
"cancelamento" na paisagem digital contemporânea. O incessante ciclo
de busca por novas vítimas revela não apenas a volatilidade da intensidade
inicial, mas também a constante necessidade da massa de acossamento de
direcionar seu foco para manter sua coesão e relevância no universo virtual.
Embora seja viável destacar essas características comuns, cada episódio de
"cancelamento" surgirá de um contexto distinto.
3 Os contextos dos “cancelamentos” de Carmen Miranda e Karol
Conká
Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo
estadunidense, sob o comando do presidente Roosevelt, adotou uma estratégia
política não intervencionista que visava criar uma unidade com os países
sul-americanos a fim de fazer frente às forças do Eixo e moldar a opinião
pública a favor de seus interesses e objetivos, a chamada política de “boa
vizinhança” (Freire-Medeiros, 2004). Embora buscasse a troca de informações
sobre os conflitos bélicos e os acordos econômicos que tinham por objetivo
reduzir as barreiras comerciais entre as nações latinas do continente
americano, a política de “boa vizinhança” era uma forma de neocolonialismo
cultural dos Estados Unidos frente a esses países.
Apesar de haver uma aparente troca cultural
durante esse período, essa estratégia também intencionava a promoção e
exportação do american way of life: a
idealização de um modo de vida permeado pelo consumismo, pela uniformização
social e pela adesão aos princípios democráticos liberais. Mauad (2005) explica
que foi em meio a esse contexto, por exemplo, que os brasileiros passaram a
consumir Coca-Cola no lugar dos sucos de frutas tropicais, aprenderam a mascar
uma goma elástica chamada Chiclets, começaram a ouvir jazz, fox-trot,
boogie-woogie e a voar nas asas da PanAmerican. Já nos Estados Unidos, Tota
(2000, p. 129) pondera que havia um “[...] esforço despendido pelo governo
americano para transformar a imagem da América Latina em algo mais palatável à
opinião pública americana [...]”.
Dentre os principais meios para isso estava o
cinema, que veio a tornar-se “[...] um dos mais eficazes mecanismos de
construção da ideologia do ‘que é bom para os EUA é bom para o Brasil’” (Mauad,
2002, p. 3). Dos personagens emblemáticos que se popularizaram por esse meio
estava Zé Carioca, o papagaio da Disney criado sob o estereótipo do malandro
carioca, e Carmen Miranda, uma cantora que, após despontar no rádio e,
posteriormente, no cinema e na Broadway, passou a ser considerada a embaixatriz
da política da “boa vizinhança” ao ser imbuída de solidificar as relações entre
a América do Norte e a América do Sul.
No entanto, como explica Mauad (2002, p. 28),
[...] a caricatura de
Carmem/Brasil/América Latina, elaborada pelas demandas da boa vizinhança,
compôs um quebra-cabeça continental com peças que não se encaixavam, sendo, por
conta disso, rejeitada por uma parte do público. Afinal o Brasil não nunca
(sic) foi Cuba e a Bahia não é o Brasil, tampouco, Carmem é baiana.
Tota (2000) rememora que foi em 15 de julho
de 1940, durante um show no Cassino da Urca, a circunstância em que Carmen
Miranda percebeu a sua desaprovação pública por parte de uma massa de
acossamento elitizada. Em sua primeira vinda ao país após a mudança para os
EUA, ainda que tenha sido recebida por uma multidão no porto, os espectadores
desse primeiro show, um evento beneficente no Cassino da Urca, evidenciaram a
contraditória relação entre a artista e o público brasileiro. Conforme narra o
autor, Carmen saudou a plateia com um sonoro “Good night, people”. A plateia, por sua vez, “[...] nem sequer
reagiu ao inglês incorreto de Carmen. Nem mesmo a faceta gozadora da
americanização da Pequena Notável foi aceita pelo público” (Tota, 2000, p. 17).
Segundo ainda Tota (2000, p. 17), o mal-estar se intensificou quando a artista
cantou “The South American way”,
ocasionando um silêncio sepulcral como “[...] resposta do público que tinha ido
ao Cassino ver a Pequena Notável”.
Mônica Schpun (2008) enfoca as diversas
facetas do “cancelamento” vivenciado por Carmen na ocasião, o que levou,
inclusive, ao cancelamento, de fato, dos shows que faria nos próximos dias. O
ufanismo em voga talvez tenha gerado a rejeição de parte dos brasileiros ao
estereótipo de brasilidade difundido por Carmen, assim como também à suposta
americanização a que se submetia. A resposta viria dois meses depois, quando ao
regressar ao Brasil, o show da pequena notável contou com um repertório
especialmente selecionado para a ocasião, em que o samba Disseram que voltei americanizada, composto por Vicente Paiva e
Luís Peixoto, foi cantado pela primeira vez na mesma casa de shows.
Para Mauad (2002, p. 5), o problema não
consistia na “americanização” de Carmen Miranda, mas no esvaziamento de sua
identidade enquanto uma representante da brasilidade. Conforme argumenta a
autora, “[...] as roupas e adereços da artista – com seu indefectível turbante
– que tinham o objetivo de condensar referências culturais brasileiras, ao
passarem pelo processo de homogeneização holiudiana, perderam completamente o
seu referente real, produzindo uma imagem exagerada com efeitos caricatos”.
Convém destacar que Carmen Miranda não foi
submetida a um "cancelamento" da maneira como entendemos esse termo
nos debates contemporâneos das redes sociais, em razão do contexto midiático da
época, bem como das dinâmicas sociais e culturais distintas, ainda que tenha
enfrentado uma massa de acossamento (Canetti, 2019). No entanto, sua
experiência de rechaço público pode ser vista à luz da análise de Antoine Lilti
(2018) sobre a ideia de celebridade, na qual a mídia desempenha um papel
central em elevar e depois questionar a autenticidade e identidade das figuras
públicas, um precursor do que hoje chamamos de cultura do “cancelamento”.
Ao se constituir numa figura central na
política de “boa vizinhança” dos Estados Unidos, Carmen Miranda tornou-se um
exemplo precoce de como a mídia pode construir e, ao mesmo tempo, desafiar a
imagem pública de uma figura. A caricatura de Carmen/Brasil/América Latina,
elaborada pelas demandas da “boa vizinhança”, gerou uma rejeição por parte do
público brasileiro, que não se via representado na imagem estereotipada
projetada por ela. Essa dinâmica é semelhante ao que Lilti (2018) descreve como
a relação entre as celebridades e a mídia: a mesma imprensa que eleva uma
pessoa ao status de ícone pode também ser a responsável por sua queda ao
questionar sua autenticidade ou fidelidade a suas raízes culturais. No caso de
Carmen Miranda, a "americanização" de sua imagem levou a um rechaço
por parte de uma elite brasileira que a via como um símbolo vazio de sua
verdadeira cultura nacional.
Ou seja, embora tenha vivido em uma era em
que a disseminação da informação era mais restrita e controlada por meios
tradicionais de comunicação — rádio, jornal e televisão —, Carmen Miranda pôde
sentir os efeitos de uma massa de acossamento em razão de sua visibilidade em
meio a esses veículos. Mas, apesar de tais problemáticas em torno da maneira
como representava o Brasil, Carmen Miranda hoje é lembrada como um símbolo da
cultura brasileira e um importante figura na história da música e do
entretenimento: além de promover a divulgação da música e cultura brasileiras
nos Estados Unidos e em outros países, em que pesem as manifestações
estereotipadas que não adentram essa discussão, sua popularidade ajudou a abrir
portas para outros cantores brasileiros no cenário internacional.
Karol Conká, cujo nome de nascimento é
Karoline dos Santos Oliveira, por seu turno, demonstrou um profundo interesse
pela música desde a infância, sendo influenciada por uma variedade de gêneros e
estilos. Sua trajetória musical teve início na adolescência, quando começou a
se envolver com o cenário underground do
rap curitibano. Karol Conká realmente ganhou força com o lançamento do single Tombei, em 2014. A música, que mistura
rap com elementos de funk e pop, ajudou a projetar a artista
nacionalmente. A presença midiática da rapper
não se limita apenas à música, já que ela também se relaciona com o campo
da moda e da televisão, sendo frequentemente convidada para falar sobre
questões sociais e culturais. Embora carregue consigo essa notoriedade, sua
participação no Big Brother Brasil 21, no ano de 2021, marcou um ponto
crítico em sua carreira.
Seu “cancelamento” se deu no contexto desse reality show de convivência da rede
Globo, que vem se firmando como o maior do gênero em números de audiência e
investimentos quando comparado a concorrentes de outras emissoras. Na busca por
projeção nacional, dinheiro e oportunidades no meio artístico, anônimos e
famosos vêm se submetendo desde 2002 aos olhares dos espectadores que
determinam, a cada semana, quem deve ou não continuar na disputa até que restem
apenas três finalistas, sendo que um deles se tornará o mais novo milionário do
país.
Mas, ao mesmo tempo que a exposição
exacerbada proporcionada pelo programa pode ser uma mudança de vida para
alguns, para outros pode ser a destruição da imagem pessoal e pública. Desde
sua estreia, várias foram as polêmicas envolvendo falas e atitudes por parte
dos participantes, fazendo com que os limites do entretenimento televisivo
acabassem sendo extrapolados. É possível afirmarmos, no entanto, que nenhum
desses casos teve tamanha repercussão quanto a meteórica participação de Karol
Conká.
Rufino e Segurado (2022, p. 631) explicam
que,
dentre as principais razões que
motivaram seu cancelamento nas redes estão: ter impedido Lucas Penteado de
sentar-se à mesa durante a sua presença no almoço; ter mentido sobre o
participante Arcrebiano estar interessado no dinheiro dela; ter acordado Carla
Diaz com gritos e apontando o dedo no seu rosto e ter feito graça com o sotaque
da paraibana Juliette, vencedora da edição Vale ressaltar que essas foram as
situações provocadas por Conká que mais geraram indignação nas redes sociais,
mas não foram somente essas que foram questionadas pelo telespectador.
Conforme Lilti (2018) destaca, a cultura da
celebridade envolve uma constante negociação entre visibilidade pública e
identidade pessoal. Karol Conká, ao participar do Big Brother Brasil, expôs-se a um nível de visibilidade sem
precedentes, no qual suas ações e comportamentos foram escrutinados em tempo
real por milhões de espectadores. Essa exposição exacerbada, amplificada pelas
redes sociais, resultou em um cancelamento que ilustra perfeitamente como a
mesma visibilidade que constrói uma celebridade pode também ser sua ruína, como
foi o seu caso. Após quase um mês confinada na casa do Big Brother Brasil 21,
sendo vigiada 24 horas por dia, a rapper curitibana
começou a ver os reflexos negativos de sua participação quando Tiago Leifert,
na época apresentador do programa, anunciou a sua eliminação: 99,17% dos votos
do público no “paredão” triplo em que disputava a permanência com outros dois
participantes: o personal trainer Arthur Picoli e o economista Gilberto
Nogueira.
Com essa porcentagem, Karol tornou-se a
recordista mundial de rejeição entre todos os ex-participantes dos países onde
o formato também é produzido — um número bastante significativo considerando
que sua edição “[...] teve alcance médio diário de 39,8 milhões de pessoas”
(Rufino; Segurado, 2022, p. 629). Enquanto Miss
Miranda foi vista como uma figura vazia de significados culturais e sociais
nacionais, Mamacita — uma das
alcunhas que Karol assumiu durante o programa — passou a ser interpretada por
meio do estereótipo da “[...] mulher negra raivosa” (Mesquita, 2022, p. 5), um
senso comum machista e racista em que se considera a mulher, ao se impor e a
falar de maneira mais dura, como histérica — uma característica que, em um
homem, principalmente branco, não apresenta essa carga negativa.
Em consequência do “cancelamento” por parte
dessa massa de acossamento, Karol perdeu contratos publicitários com grandes
marcas, teve de adiar o lançamento de novas músicas e videoclipes, além de ter
tido shows cancelados e recebido ameaças de morte contra ela e também contra
seu filho. Tamanhos impactos negativos em sua vida pública e privada fizeram
com que a rapper chegasse a pensar em
suicídio, como relatou em entrevista para o videocast Desculpa qualquer coisa, de Tati Bernardi (Konká, 2023).
Após participar de diversos programas de
entrevistas para comentar sobre suas falas e atitudes no programa, estrear o
documentário A vida depois do tombo[1],
que aborda seus primeiros dias fora da casa, e se afastado durante um curto
período dos holofotes da mídia, Karol voltou ao cenário musical com Urucum (2022), um álbum musical em que
buscou materializar em força de música tudo aquilo que viveu durante esse
período conturbado. Das 11 canções que integram o álbum musical, Paredawn é a que fala diretamente sobre
seu “cancelamento”.
4 Disseram que voltei
americanizada e Paredawn: a
canção como resposta ao “cancelamento”
Seguindo uma estrutura tradicional de samba
dos anos de 1940, característica da época em que foi composta, Disseram que voltei americanizada
apresenta arranjos e instrumentos musicais que incorporam elementos típicos
desse gênero, como o pandeiro e a cuíca, inserindo um toque autêntico da
brasilidade à canção. Valendo-se de um ritmo animado e envolvente, a
instrumentalização auxilia a criar uma atmosfera de descontração à música,
contribuindo para a sensação de leveza que a permeia.
A composição de Disseram que voltei americanizada é um exemplo clássico de
samba-exaltação, um subgênero do samba que enfatiza o orgulho e a celebração
das tradições brasileiras. Os arranjos musicais, cuidadosamente elaborados,
destacam a utilização de instrumentos tradicionais do samba, como o pandeiro,
que adiciona um ritmo sincopado e característico ao fundo musical, e a cuíca,
cuja sonoridade peculiar proporciona um toque percussivo vibrante e autêntico.
O pandeiro, fundamental no samba, oferece uma
base rítmica que é tanto complexa quanto essencial para o groove do gênero. No caso de Disseram
que voltei americanizada, o pandeiro mantém um ritmo constante que ajuda a
fundamentar a melodia e sustentar a estrutura da canção. A cuíca, conhecida por
seu som agudo e quase vocal, é usada para adicionar textura e profundidade
rítmica. Sua inclusão na canção reforça a ligação de Carmen Miranda com suas
raízes culturais brasileiras, desafiando a ideia de que ela havia se
"americanizado" ao ponto de perder sua identidade musical.
A melodia de Disseram que voltei americanizada é cativante e acessível,
característica que a tornou popular entre o público. A harmonia, embora
simples, é enriquecida por progressões de acordes típicas do samba, que incluem
dissonâncias leves e resoluções agradáveis ao ouvido. O uso de uma estrutura de
samba autêntica e os elementos culturais presentes na música funcionam como uma
reafirmação de sua identidade. Carmen, com sua performance enérgica e
carismática, consegue transmitir uma mensagem clara: apesar de seu sucesso
internacional, ela ainda se considera uma representante genuína da cultura
brasileira.
Na primeira estrofe, Carmen Miranda canta:
E disseram que eu voltei americanizada
Com o burro do dinheiro
Que estou muito rica
Que não suporto mais o breque do pandeiro
E fico arrepiada ouvindo uma cuíca
(Disseram [...], 1940)
Esse primeiro verso já apresenta a ideia de
"americanização" da cancionista, que, como se comprova ao longo da
canção, não era apenas observada em sua expressão estético-musical, mas também
em suas mudanças de comportamento e estilo de vida. A expressão “burro do
dinheiro” (Disseram [...], 1940), seguida da hipótese de ter enriquecido no
meio hollywoodiano, indica que a cantora foi associada a uma situação
financeira próspera e, por isso, não toleraria mais elementos tradicionais da
música brasileira, simbolizados pelo "breque
do pandeiro" e “[arrepiada
ouvindo uma] cuíca” (Disseram [...], 1940), já que sua produção musical
passou a ser voltada para o mercado norte-americano. Ou seja, a canção
contextualiza a percepção sobre a imagem de que Carmen Miranda estaria
rejeitando suas raízes brasileiras musicais.
E, então, continua cantando:
Disseram que com as mãos
Estou preocupada
E corre por aí
Que eu sei certo zum-zum
Que já não tenho molho, ritmo, nem nada
E dos balangandans já nem existe mais nenhum (Disseram [...], 1940)
Além das roupas vistas como “exóticas” ou
“extravagantes”, uma das marcas de Carmen Miranda era a sua expressão corporal
utilizando as mãos e braços. Tanto que a ela é atribuída a frase: “Dizem que minhas mãos "falam". Não
sei. Mas procuro transmitir o máximo através delas, nos movimentos e expressões
rítmicas” (Disseram [...], 1940). Assim, os dois primeiros versos podem
indicar que a cantora, após a “americanização”, perdeu a sua espontaneidade e
autenticidade, o que é reafirmado nos versos, quando o sujeito cancional afirma
terem dito que "já não tenho molho, ritmo, nem nada", indicando uma
percepção de perda de características distintivas, como estilo, ritmo ou
vitalidade.
Isso pode ser entendido como uma expressão de
preocupação com a perda de identidade ou com a capacidade de se destacar. Além
de questões de personalidade, há também a referência a símbolos de vestimenta
ao referenciar os "balangandans" (adornos, amuletos ou objetos
decorativos) que, no caso, pode simbolizar a perda de elementos ornamentais ou
distintivos que antes eram associados à pessoa, reforçando a ideia de uma
transformação ou perda de características marcantes.
Nos versos seguintes, Carmen Miranda passa a
dar a sua resposta a essa massa de acossamento que vinha afirmando sua perda
identitária brasileira:
Mas pra cima de mim, pra
que tanto veneno?
Eu posso lá ficar americanizada?
Eu que nasci com o samba e vivo no sereno
Topando a noite inteira a velha batucada
Nas rodas de malandro
minhas preferidas
Eu digo mesmo eu te amo, e nunca I love you
Enquanto houver Brasil
Na hora da comidas
Eu sou do camarão ensopadinho com chuchu! (Disseram [...], 1940).
Primeiro, há um questionamento sobre as
necessidades das críticas dirigidas a ela, o que é reforçado por uma ironia ou por
um certo desdém ao questionar: “eu posso
lá ficar americanizada?" (Disseram [...], 1940). No caso, a expressão
"viver no sereno" e “rodas de malandro” sugerem a sua conexão com a
vida noturna carioca, berço do samba. Em seguida, a sambista vai afirmando a
sua identidade cultural brasileira frente à cultura norte-americana de maneira
crítica: entre “eu te amo” e “i love you”,
ela prefere o “eu te amo”, reforçando a sua preferência pela língua e pela
cultura nativa; enquanto “eu sou do
camarão ensopadinho com chuchu!" (Disseram [...], 1940) destaca a
relação do sujeito cancional não apenas com a música, mas também com a
culinária brasileira, enfatizando as tradições gastronômicas como parte
integrante da identidade cultural.
Já Paredawn, de Karol Conká, é uma composição que
utiliza uma variedade de elementos musicais para refletir a complexidade
emocional e a turbulência associada ao cancelamento. A melodia, a harmonia e os
arranjos são projetados para criar uma atmosfera que transmite a melancolia e a
intensidade emocional vividas pela artista. Sua melodia é predominantemente
introspectiva e melancólica por linhas vocais que oscilam entre tons suaves e
intensos, criando um contraste que destaca a carga emocional da canção. A
escolha de uma melodia em tons menores contribui para a sensação de tristeza e
reflexão. Os tons menores são frequentemente associados a sentimentos de
melancolia e introspecção, e a utilização desses tons em Paredawn reforça a narrativa emocional da música. Ou seja, Karol
Conká emprega variações melódicas que permitem a expressão de diferentes
estados emocionais, desde a vulnerabilidade até a força, capturando sentimentos
contraditórios como arrependimento e resiliência.
A harmonia de Paredawn é construída em torno de progressões de acordes menores, o
que intensifica o sentimento de melancolia e introspecção. Essas progressões
harmônicas são fundamentais para estabelecer o tom emocional da canção. Além
disso, a utilização de acordes dissonantes em determinados pontos da música adiciona
uma camada de tensão. Essa dissonância harmônica pode simbolizar a turbulência
emocional interna de Karol Conká, refletindo a incerteza e a agitação
associadas ao cancelamento. Embora as progressões harmônicas sejam
relativamente simples, elas são eficazes em proporcionar uma base sólida para a
melodia e em destacar a voz da artista, permitindo que as emoções transmitidas
pela letra sejam plenamente sentidas pelo ouvinte.
Os arranjos são marcados por uma combinação
de elementos eletrônicos e acústicos. À medida que a canção avança, surgem
explosões sonoras que rompem a melancolia predominante. Essas explosões são
caracterizadas por batidas pesadas e sintetizadores. As batidas pesadas
introduzem uma sensação de impacto e urgência, enquanto os sintetizadores
intensos adicionam uma dimensão eletrônica moderna à música. Tais explosões
sonoras podem simbolizar a turbulência emocional associada ao cancelamento
vivido por Karol Conká, representando as ondas de críticas e ataques que a
artista enfrentou, bem como suas próprias reações emocionais a esses eventos.
A alternância entre as seções mais calmas e
as explosões sonoras cria um dinamismo na música, refletindo as oscilações
emocionais que caracterizam a experiência de ser cancelado. A combinação desses
elementos resulta em uma canção que não apenas conta uma história de
cancelamento, mas também permite que o ouvinte sinta a profundidade das emoções
envolvidas, as quais são ressaltadas pela letra.
Assim como ocorre em Disseram que voltei americanizada, em Paredawn, Karol Conká (2022) também começa a canção
contextualizando o motivo das críticas pela massa de acossamento:
Tirei férias por um mês
Entrei no BBB, causei, pirei
Mas não era a intenção
Queimar meu filme na televisão
(Paredawn, 2022).
Os versos acima parecem indicar que a rapper
imaginava que sua participação durante o Big
Brother Brasil 21 seria o equivalente a um recesso. No entanto, apesar das
intenções iniciais, sua experiência teve repercussões inesperadas e negativas
para a imagem da cantora em razão da exposição exacerbada durante vinte e
quatro horas, sete dias por semana, e dos próprios conflitos exigidos pela
dinâmica do programa com outros participantes.
Karol continua falando que:
Até fiquei na pior
Depois de refletir fiquei melhor
Entendi minha lição
Já tô bem melhor (Paredawn,
2022).
Esses versos transmitem uma narrativa de
superação e crescimento pessoal da cancionista em meio a essa turbulência em
sua carreira: um período de desafios ou adversidades; a reflexão pode ter sido
um elemento crucial para lidar com as dificuldades; abordagem positiva em
relação aos desafios, vendo-os como oportunidades de aprendizado e crescimento;
e o fechamento otimista, sugerindo que superou as dificuldades e está
experimentando uma melhoria significativa.
Em seguida, Karol canta:
Vota
pra tirar a Karol (3x)
Qualquer coisa me bota no paredawn
Eu
vou superar, pode ficar de boa (x3)
Eu
vou superar
Fiquei
voltada na soberba, bam-bam
Passei por cima de mim mesma, bam-bam
Toda cagada na casa e me achando
No lado de fora, o povo cancelando (Paredawn,
2022).
Já nesses trechos da canção, a cancionista
remete ao seu desdém durante o jogo. Durante sua estadia na casa mais vigiada
do Brasil, todas as vezes em que era confrontada pelas suas atitudes, Karol
respondia: “Qualquer coisa me bota no
paredawn” (Paredawn, 2022). Por isso, a própria afirma que esteve imersa em
sua própria soberba. O verso "passei
por cima de mim mesma, bam-bam" (Paredawn, 2022) parece aprofundar
essa reflexão ao indicar que a cantora reconhece ter ignorado sua própria
integridade ou valores em favor de uma postura mais dominante ou imponente em
razão de sua fama. A expressão "bam-bam" pode aqui também indicar uma
consciência de ter se destacado de maneira negativa, indo além dos limites
aceitáveis.
Em outro trecho da canção, Karol Conká canta:
Efeito manada, toma
Sádicos tiram onda
Onde o coletivo é moda, o hype do momento, o novo movimento
Atire a primeira pedra aquele que nunca toma, toma, toma, toma, toma (Paredawn, 2022).
Essa parte da canção parece criticar a massa
de acossamento que se forma perante o “cancelamento”. A menção aos
"sádicos tirando onda" sugere uma dimensão de crueldade ou
aproveitamento por parte dos indivíduos que formam essa massa. O convite para
"atirar a primeira pedra" pode ser uma provocação, desafiando a
honestidade de quem a rechaça, pois todos podem, em algum momento, ceder à
pressão social ou seguir tendências. A repetição da palavra "toma"
pode enfatizar a ideia de que todos, em algum momento, sucumbem a influências
externas. Em resumo, a letra parece oferecer uma reflexão sobre a dinâmica
social, a influência do coletivo e a natureza humana em seguir tendências.
Paredawn
mergulha profundamente na experiência do cancelamento, explorando as
complexidades emocionais e os efeitos colaterais que surgem quando alguém se
torna alvo dessa prática. A faixa revela as camadas da narrativa pessoal do
artista, enquanto compartilha reflexões intensas sobre a exposição pública,
julgamento pela massa de acossamento e as consequências psicológicas do
cancelamento. Dessa forma, a letra de Paredawn
destaca a vulnerabilidade do artista diante da pressão social e do rechaço
sofrido.
5 Carmen Miranda e Karol Conká: resistência e resiliência por
meio da canção frente ao “cancelamento”
O “cancelamento” como intersecção nas
jornadas de Carmen Miranda e Karol Conká nos revela a capacidade singular da
canção como um meio de expressão e resiliência. Ao enfrentarem uma massa de
acossamento por meio da música, essas artistas foram capazes de transformar
suas experiências em uma manifestação artística carregada de uma variedade de
significados. Nesse sentido, ambas oferecem uma inspiradora lição sobre a
capacidade transformadora da música. Elas demonstram que, mesmo nas situações
mais desafiadoras, a expressão artística pode servir como uma ferramenta de
empoderamento, possibilitando que os artistas recontem suas narrativas e
encontrem força face à adversidade. Essas histórias musicais ecoam não apenas
como reflexos de suas experiências individuais, mas como testemunhos duradouros
da resiliência inerente à alma criativa.
Nesse processo, transcendem não apenas os
estigmas culturais e temporais, mas também contribuem para a evolução do
próprio fenômeno do "cancelamento", evidenciando a resiliência e o
impacto transformador da arte em meio a adversidades. No caso da canção Disseram que voltei americanizada,
interpretada por Carmen Miranda, é interessante explorar como a artista foi
impactada pelo estereótipo que ela representava, uma imagem construída em parte
por sua adesão à cultura dos Estados Unidos. Por outro lado, a canção Paredawn de Karol Conká pode ser
analisada à luz das polêmicas que cercaram sua participação no Big Brother Brasil 21. Pode-se
investigar como a música e as atitudes da artista no programa refletem sua
persona pública, suas escolhas de carreira e a reação do público. Além disso, é
possível abordar como a cultura do "cancelamento" influencia a
carreira e a vida pessoal de artistas contemporâneos, como Karol Conká.
Nessa análise comparativa, podemos
identificar semelhanças e diferenças nas experiências de Carmen Miranda e Karol
Conká em relação ao "cancelamento" e à pressão para se conformar a
determinados estereótipos culturais. Nesse contexto, Paredawn parece confrontar diretamente os críticos e os juízes
virtuais, questionando as motivações por trás do “cancelamento” e desafiando a
narrativa preconcebida. Paredawn se
torna, assim, um manifesto, uma declaração corajosa que busca não apenas expor
as feridas do “cancelamento”, mas também catalisar uma conversa mais profunda
sobre empatia, compreensão e a necessidade de repensar as dinâmicas de
julgamento nas redes sociais.
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Agradecimentos
À
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), cujo
fomento por meio do Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições
Comunitárias de Educação Superior viabilizou esta pesquisa sob a forma de
bolsas de estudo para os autores.
[1] A VIDA depois do
tombo. Direção: Patricia Cupello, Patrícia Carvalho. [Rio de Janeiro]:
Globoplay, 2021. 1 vídeo. (35 min.). Disponível em: https://globoplay.globo.com/.
Acesso em: 25 de out. de 2023.
[i]
Artigo recebido em 03/03/2024
Artigo aprovado
em 23/09/2024
Fonte de fomento: Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
[ii] Contribuições do autor: conceituação;
curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; administração do
projeto; recursos; visualização e escrita - rascunho original
[iii] Contribuições da autora: conceituação;
curadoria de dados; análise formal; investigação; metodologia; supervisão;
validação e escrita - análise e edição.