e-ISSN 1984-7246
Vinícius
de Oliveira Prusch
Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS)
Porto Alegre, RS – Brasil
lattes.cnpq.br/3886874930300140
O miasma pelo cômodo: sampleagem e neoliberalismo em Makalister
Resumo
Este trabalho retoma e expande algumas ideias
apresentadas no Trabalho de Conclusão de Curso do autor. São analisados três
raps de Makalister: Amores Perros, Quando Observo a Cruz de Folga (Na maratona
de queijos e vinhos) e Cartas Que
Deixo para o Vento. Observa-se, a partir dessas análises, uma relação entre
a frequência de referências a outras formas e o avanço do neoliberalismo no
Brasil. Nota-se, entretanto, que a referenciação parece sumir aos poucos, ou,
melhor dizendo, vai se tornando cada vez mais sutil, o que também é
relacionado, aqui, à transição de Lula para Dilma e, finalmente, para
Bolsonaro. Existe uma tendência a formas “sem chão”, que se constituem como
“apenas palavras”, mas que, no entanto, são palavras que desafiam o ouvinte,
criando fricção, movimento que também se radicaliza aos poucos.
Palavras-chave: rap; sampleagem;
neoliberalismo; Luiz Inácio Lula da Silva; Dilma Rousseff; Jair Messias
Bolsonaro.
Miasma through the room:
sampling and neoliberalism in Makalister
Abstract
The essay expands on some
ideas presented in the author’s Undergraduate thesis. Three rap songs by
Makalister are analysed: “Amores Perros”, “Quando Observo a Cruz de Folga (Na
maratona de queijos e vinhos)” and “Cartas Que Deixo para o Vento”. The author
points out, through these analyses, a relationship between the frequency of
references and the advance of neoliberalism in Brazil. It can be noticed,
however, that the referenciation seems to gradually fade out, or, put it
better, to become ever more subtle, something which is also read, here, as
related to the transition from Lula to Dilma and then Bolsonaro. There is a
tendency toward forms “with no solid ground to stand on”, constituted by
“merely words”, but they are words that challenge the listener, creating
friction, a movement which too seems to be gradually radicalized.
Keywords: rap; sampling; neoliberalism; Luiz Inácio Lula da
Silva; Dilma Rousseff; Jair Messias Bolsonaro.
Começo recuperando algumas noções a respeito da sampleagem no rap e de
uma possível relação entre ela e o contexto histórico em que o rap está
inserido. Faço isso em maior detalhe em um trabalho ainda em vias de publicação
sobre o rap norte-americano, mas se faz necessário retomar esse debate para que
faça sentido a leitura da dicção do rapper
Makalister apresentada em seguida.
Para começar, Justin Williams (2013, p. 1, tradução própria) aponta
para o quanto o “uso ostensivo de materiais pré-existentes para novos fins”
estaria no centro da estética do hip-hop, tanto no rap quanto no breakdance e
no grafite. De modo similar, Tricia Rose (2021, p. 8) comenta as “combinações
dinâmicas de gíria urbana negra com referências musicais, da televisão, de
filmes, de desenhos animados, de cultura de gangue, de caratê e de múltiplos
gêneros musicais” que existiriam no rap. Em síntese, certa noção ampliada de
sampleagem parece fazer sentido quando falamos no hip-hop em geral e no rap em
específico. A colagem, a referenciação, o uso de elementos pré-existentes
parecem estar no centro dessa tradição estética.
Observando o contexto de nascimento dessa tradição, temos a Nova York
da década de 1970. Como recupera David Harvey (2008), trata-se de um contexto
de teste de implementação do receituário neoliberal. A cidade estava em crise
na década de 1960, e a resposta a essa crise foi justamente esse teste. Houve,
assim, congelamento de salários e cortes no emprego público e nos serviços
sociais, por exemplo.
Minha hipótese é que existe uma relação entre esse contexto e a
centralidade da colagem para o rap. Trata-se do início do encerramento do
período produtivo do sistema capitalista (Jameson, 2001, p. 150). Temos, assim,
“espectros de valor [...] em uma fantasmagoria mundial desencarnada” (Jameson,
2001, p. 151). O capitalismo deixa, aos poucos, de ser produtivo, e se torna
reprodutivo. Dinheiro que produz dinheiro, ao menos parcialmente apartado do
trabalho real. E, para Jameson ainda, segue-se a isso uma lógica reprodutiva também na arte: tem-se o domínio da
repetição de estilos do passado, do pastiche.
Algo similar parece ocorrer com o rap: o predomínio de uma lógica
reprodutiva. A colagem de referências. Com a diferença de que o rap ainda é uma
arte fundamentalmente política, crítica. Lógica reprodutiva e, simultaneamente,
crítica radical aos efeitos do neoliberalismo. Uma arte que é, assim, ao mesmo
tempo resultado e negação da lógica neoliberal.
A análise que proporei de Makalister dá seguimento a essa leitura.
Observarei o avanço do neoliberalismo no Brasil e, simultaneamente, o avanço da
lógica da sampleagem, da referenciação a outras formas. Uma coisa relacionada à
outra.
A carreira de Makalister, conhecido também como Jovem Maka ou apenas
Maka, tem início em 2014 com uma série de cinco singles lançados com o produtor Efiswami, conhecido posteriormente
como Efieli. Ele passou a ganhar maior notoriedade na cena nacional após sua
participação no cypher[1] “Poetas no Topo 1”, de 2016 (que também
contou com a participação de Djonga, BK, Menestrel, Sant e Jxnvs), e, entre
EPs, mixtapes e álbuns, já conta com dez trabalhos, tendo sua última produção
solo sido Barka (2020) e sua última
produção colaborativa sido Ondas 2
(2021), com Beli Remour. Maka é de São José, Santa Catarina, e costuma produzir
suas próprias batidas ou trabalhar com amigos da cena local.
Importante comentar que já publiquei anteriormente um trabalho sobre
Makalister, no qual analisei dois raps. Lá, o centro da discussão estava em uma
relação entre a presença da temática do sono e da insônia na obra do rapper e a leitura de Jonathan Crary
(2016) do capitalismo contemporâneo. Também escrevi, depois disso, dois
trabalhos a respeito da sampleagem no rap, um sobre o contexto norte-americano,
já mencionado, e outro enfocando Racionais MC’s.
Em termos de seleção do que é sampleado nos raps de Maka, aparecem
músicas de origens bastante diversas, indo de artistas do soul e do funk
norte-americano que se aproximavam do jazz, como Caesar Frazier e Catalyst, a
uma faixa da trilha sonora de uma série policial japonesa dos anos 1980 (a faixa
é “Short Stories", criada por Yasushige Utsunomiya e sampleada em “Amores
Perros”, de 2016, e a série é Seibu
Keisatsu, algo como “Faroeste Policial”, em uma tradução improvisada com
auxílio do Google). Já citados nas letras dos raps aparecem artistas como
Björk, Norah Jones, Thievery Corporation, Nujabes e Black Alien & Speed. As
referências mais frequentes, como veremos posteriormente, estão no cinema, mas
as seleções musicais já nos dão algumas pistas do que está sendo buscado por
Makalister.
Focalizarei, a seguir, três raps que colocam em jogo, em níveis
diferentes e de formas diversas, a própria posição do rapper. O faço porque, em certa medida, é disso que estou tratando:
da posição daquele que nos fala na forma estética, do modo como ele opera com e
se coloca em relação ao real e à própria arte. Em Makalister, a hipertrofia da
lógica da sampleagem em si mesma como que torna nublada a voz que nos fala,
levando-nos a um questionamento de suas próprias condições de possibilidade.
Mas também é relevante, antes de iniciar de fato, localizar Makalister
no contexto do rap nacional. Nota-se, através de “Poetas no Topo 1” por
exemplo, uma diferença bastante grande entre seu modo de rimar e aquele dos
seus pares. Suas inúmeras referências intrincadas se sobressaem. Isso não quer
dizer, contudo, que Maka esteja sozinho. Em primeiro lugar, seus contemporâneos
sampleam tipos de música mais amplos que seus antecessores. Criolo samplea
Clara Nunes e Joe Dassin, Djonga samplea Los Angeles Negros, Rincon Sapiência
samplea Tom Zé, Emicida samplea Marina Lima. Sua maior referência, contudo,
provavelmente está nos já citados Black Alien & Speed, bem como no trabalho
solo de Black Alien. Eles sampleam Led
Zeppelin, Eliane Elias, Johann Sebastian Bach, Lata Mangeshkar e Kishore Kumar.
Do rock à música
indiana, passando pela clássica.
Em segundo lugar, os temas dos seus contemporâneos também são mais
amplos que os temas de seus antecessores. A questão racial e de classe
permanece, e faz completo sentido que seja assim, mas outros assuntos também
surgem. A vida, a morte e o dinheiro em “Morra Bem, Viva Rápido”, de Don L, por
exemplo. O vício em drogas e a recuperação em “Aniversário de Sobriedade”, de
Black Alien. O trânsito da cidade grande em “Profissão Perigo”, de Rodrigo Ogi.
Em terceiro lugar, Makalister está inserido em um grupo de artistas
que produz rap à margem da indústria cultural, grupo com quem trabalha com
frequência. Dentre eles, estão Beli Remour, Lessa Gustavo, Matéria Prima, Jovem
Esco. Aquele cuja forma de rimar mais se aproxima à de nosso rapper parece ser Lessa Gustavo, também
interessado em uma linguagem mais rebuscada (o que não quer dizer que seja
melhor nem pior que a linguagem mais cotidiana, mas diferente) e em jogos
intrincados de linguagem que simulam e, simultaneamente, criticam o mundo do
consumo.
Também importante para ouvir Makalister é a internet. É ela,
certamente, que possibilita o acesso a um grupo tão amplo e diverso de artistas
para a sampleagem. É ela também que torna possível assistir tantos filmes
diferentes e cults. Poucos rappers na cena nacional contemporânea
estão conectados tão de perto com a internet, ainda que todos se relacionem de
uma forma ou de outra com ela.
Em resumo, Maka tira proveito tanto das transformações da forma do rap
de seu tempo quanto de sua posição marginal na indústria e de sua relação
íntima com a internet para criar a sua arte. Sobre a internet, ainda tenho
coisas a dizer, mas isso ficará para um momento posterior deste trabalho.
“Amores
Perros”
Começo a análise pela já citada “Amores Perros”, uma das faixas mais
apreciadas pelo público do artista e uma das mais reproduzidas no Spotify. A
batida da faixa foi criada pelo próprio Maka e sua base é a introdução da
música de Yasushige Utsunomiya (0:00-0:25). Ela entra no terceiro segundo e é
precedida e acompanhada pelo som da crepitação do vinil na vitrola, elemento
bastante presente em gêneros como o lo-fi hip-hop. O sample é levemente acelerado e seus últimos segundos são
transformados a partir da repetição de notas anteriores, eliminando-se o fade-out e facilitando a criação do loop. Acrescentou-se, ainda, uma linha
de violino gravada para a faixa por Renan Cabral e que acompanha a base de
Utsunomiya desde o seu início. Já no que diz respeito à linha de bateria, começamos
apenas com um bumbo sincopado na introdução, que posteriormente é acompanhado
por uma caixa nos tempos 2 e 4 e por uma linha de chimbal com um volume
bastante baixo, quase confundindo-se com as crepitações do vinil.
Apesar de sua origem um pouco curiosa, não é inédita a sampleagem da
faixa instrumental “Short Stories", ainda que o próprio histórico de seu
uso seja diverso em termos da nacionalidade dos artistas. A faixa mais antiga
desse grupo catalogada no site WhoSampled
é “Piccole Cose”, lançada pelo rapper italiano
Ghemon em 2007. Em 2012, foi a vez do francês Vargas Au Mic utilizá-la em seu
rap intitulado “Mondes Parallèles”. Já em 2015, ela aparece em “I know”, dos
estadunidenses Kirk Knight e Mick Jenkins, e, em 2016, em “Hypnosis”, do também
estadunidense Jay Squared. Assim como Maka, todos utilizam a introdução do
instrumental, mas o padrão parece ser combiná-la a outros instrumentos ou
trechos da canção menos etéreos, utilizando a atmosfera melancólica que ela
carrega, mas transformando-a em somente uma camada da música. Ele, por outro
lado, vale-se do caráter melancólico e onírico da introdução como elemento
sonoro central no decorrer de toda a faixa.
Como já mencionado, contudo, o mais interessante no caso de Makalister
parece ser o modo como referências aparecem em suas letras, movimento que se
assemelha a uma colagem de samples no
interior das próprias rimas. Nesse caso, temos já no título a apropriação do
nome de um filme: Amores Perros,
dirigido por Alejandro González Iñárritu e lançado no ano 2000. Sua narrativa
acompanha a história de personagens cujas vidas, a princípio, estão conectadas
apenas por um acidente de carro, mas que compartilham experiências de perda e
de solidão, sendo frequentemente citada como exemplo de cinema de hiperlink[2]. Vejamos
como começa a letra do rap:
São apenas palavras
São palavras, palavras
Joga na pia a cocaína do prato
Coloca a ilha no mapa e as nossas rimas na Vice
Como os escritos líricos, vícios de Agatha
Christie
Molham-se as páginas tristes
O tempo cobra como Petkovic
Aos 43 quem que compete por ti?
Velho com pedra no rim
Se desfazendo como as pedras no gim
Tônicas perdem o gás
Tua aula acaba se tu perdes o giz
E nem se lembra quem foi Black & Speed
E aquela época do punk existe nas cartas de
Dostoiévski
Pra que a vida não visite as formaturas e as
festas de 15 anos
Da era em que eras "under" e tinhas uns
15 manos (Amores [...], 2016)
Abrem a faixa, após a fala da introdução (que aparece também em “A
vida e suas voltas redondas”, do mesmo EP), os versos “Joga na pia a cocaína do
prato / Coloca a ilha no mapa e as nossas rimas na Vice” (Amores [...], 2016).
Ao que parece, será um rap refletindo a respeito da posição do rapper de fora do eixo Rio-São Paulo,
estando aí incluso certo sentimento de pressão por fazer sucesso, sublinhado,
inclusive, por uma fala que se dirige a um “tu” que parece ser o próprio rapper em tom imperativo. Trata-se,
porém, de uma letra que se constrói a partir de conexões pouco usuais e de
imagens que, tão logo se estabelecem, são substituídas por outras. De Agatha
Christie a Black Alien e Speed, passando pelo futebol (o gol de Dejan Petkovic,
43 anos em 2016, aos 43 do segundo tempo em 2001), o próprio personagem em
questão vai sendo construído e reconstruído de modo fragmentado. Após os versos
que o introduzem, ele é identificado com um jogador que já não joga mais, com
um velho doente, com alguém que já não conhece figuras importantes do rap. De
uma reflexão sobre o futuro, o rap se converte em uma rememoração nostálgica e
melancólica. E em dado momento, ainda, aproximadamente na metade da faixa, a
perspectiva se transforma e o “tu” vira outro:
Nós éramos a carne e a faca
Usando a desculpa: a carne é fraca
Sussurrando: vem cá e me acalma
Eu sei que tens o teu futuro nos ombros
Mas vem cá e aproveita um descanso que te conto
meus sonhos
E te toco com medo em nossos Amores Perros
Duro e frio como mármore e gelo
Uma latina com as veias abertas, aqui selando
esse pacto
Longe do ócio e dos pecados do hábito
Deitados na grama, bem longe do árbitro (Amores
[...], 2016)
Se se podia dizer que o que estava em jogo era um fluxo de consciência
no qual o sujeito questionava a si mesmo e ao seu passado — de uma perspectiva
futura imaginada, sendo esse passado, assim, um presente, seja ele real ou
imaginado —, agora a voz do rap como que se transporta à memória e se dirige a
uma mulher com quem teria tido uma história. E ficamos por aí, sem volta ao
futuro imaginado:
Frio como as águas do ártico
Alinhando OVNIS e astros
Posso ouvir os pássaros trazendo nossa última
vida
Com carros, quadros, vinhos e quartos
Com uma vista linda pra Cidade Luz
Decoro teu corpo sem precisar de luz
Devoro teu corpo sem precisar de mais nada
(Amores [...], 2016)
Entre OVNIS, vinhos e a Cidade Luz, o que está em jogo aqui parece ser
da ordem do delírio ou, no mínimo, do desejo. Mas, se desejo, um desejo em si
mesmo já desatinado e impossível, uma vez que está direcionado ao passado. Em
última instância, assim, o rap vai do presente a um futuro repulsivo e,
finalmente, a outro presente, este irreal e imerso em delírios.
Voltando um pouco até a fala que abre o rap (“São apenas palavras /
São palavras, palavras” (Amores [...], 2016)), vemos que esse movimento já
estava, em algum nível, indicado desde o início. São apenas palavras, não há
realidade aqui. O contexto dessa fala acessamos através de outro rap, “O tempo
nos parece mais pesado que o físico, pt. 2” (O Tempo [...], 2016), presente em Laura Muller Mixtape, também de 2016.
Nela, é sampleado um áudio de WhatsApp no qual alguém comenta a respeito de um
filme que havia assistido, Waking Life (2001),
focando em uma discussão a respeito das impossibilidades da comunicação: uma
das personagens do filme teria dito que, ainda que possamos conversar, ninguém
realmente se entende, já que cada pessoa tem vivências diferentes. Estamos,
desse modo, diante de uma forma que coloca a si mesma como transitória e
fundamentalmente imaterial, brincando com diversos níveis de referências, cuja
origem pode, inclusive, por vezes ser acessada somente por vias exteriores a
ela, ou, talvez, em alguns casos nem possa ser acessada.
Além disso, assim como Amores
Perros, Waking Life, filme de
Richard Linklater, trabalha com uma narrativa em fragmentos. Nesse caso,
contudo, esses fragmentos são apresentados na forma de diversos diálogos
(frequentemente filosóficos ou pseudo-filosóficos) que ocorrem no interior de
um interminável sonho lúcido. Em dado momento, vemos um casal heteroafetivo
conversando na cama a respeito da impressão que a mulher às vezes teria de
estar observando sua vida pela perspectiva de uma mulher idosa em seu leito de
morte. Em outro, mais próximo do fim do filme, uma pessoa fala, em um programa
de TV, sobre sua teoria de que a mente humana poderia sobreviver após a morte
do corpo, passando a habitar um mundo de sonhos. A partir de então, essa ideia
passa a dominar a narrativa, e a impressão que temos ao fim do filme é de que o
protagonista está realmente morto e preso naquele universo. Trata-se de um tipo
de narrativa bastante similar àquela do rap: são apenas palavras, porém, porque
a possibilidade de se experienciar o real já não existe mais.
Outra referência importante de ser retomada está no EP no qual se
encontra “Amores Perros”. Intitulado A
terça parte da noite, ele retoma, como já foi recuperado por mim no artigo
já citado neste trabalho, o nome e também elementos narrativos do filme de
mesmo nome dirigido pelo ucraniano Andrzej Żuławski e lançado na Polônia em
1972. O filme narra o dia a dia de Michael, personagem que presencia a ocupação
nazista na Polônia e que, após assistir ao assassinato de sua família, passa a
ter alucinações envolvendo um duplo seu e outro de sua esposa. Parte da posição
do personagem de “Amores Perros”, assim, bem como aquela da mulher de quem
gosta, possivelmente estejam também relacionados a Michael.
Diferentemente do trabalho dos membros de um grupo como o Racionais
MC’s, desse modo, vemos que os raps de Makalister estão menos interessados na
politização direta e mais na construção de quadros intrincados de narrativas
“de segunda mão”. A única referência mais diretamente política de “Amores
Perros” está no verso “Uma latina com as veias abertas, aqui selando esse
pacto”, que alude a As veias abertas da
América Latina, livro de Eduardo Galeano lançado em 1971 e que trata da
dominação e exploração de nosso continente através da história. Mesmo assim,
contudo, ela é velada e está sendo usada para falar de um interesse amoroso.
É bastante diverso o conjunto de formas que, de um modo ou de outro,
figuram na obra de Makalister. Abundam referências ao cinema, com diversos raps
recebendo, inclusive, títulos de filmes, mas também aparecem livros, artistas
do hip-hop e da música de modo mais geral e até mesmo uma novela. No caso de Mal dos Trópikos, disco de 2018, formas
são “sampleadas” até mesmo visualmente em um projeto pensado para além das
capas — que já são duas, uma delas fazendo referência ao filme que nomeia o
álbum —, marcando com ainda mais força a aproximação da imagem e do cinema que
já está presente nos raps.
Algumas das formas estéticas aparecem diretamente, citadas pelo seu
título original (Amores Perros, Trois Couleurs: Bleu) ou traduzido (A Terça Parte da Noite, Dias e Noites de Amor e Guerra), outras
têm seus títulos sugeridos (Cisne Negro
como “um cisne de luto”, As Veias Abertas
da América Latina como “uma latina com as veias abertas”) ou modificados (A Pele que Habito virando “Pele que
Abandono”, 2001: uma odisseia no
espaço virando “2001: uma odisséia ao acesso”, ou, ainda, Memórias de um Sargento de Milícias virando somente “Milícias”) e
outras, ainda, vêm em “citações sem aspas” (“Uma mulher atravessada em minhas
pálpebras / Eu quero gritar, peço que vá / Mas tem uma mulher atravessada em
minhas cordas vocais” (Exercício [...], 2016) retomando “Não consigo dormir.
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela
que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta”, do Livro
dos abraços (Galeano, 2002, p. 52); “De amor não morro / Pele que abandono” retomando
"Hey, hey, neném, de amor eu não morro / Vocês consagraram o estilo
cachorro”, de “Estilo Cachorro”, do Racionais (Estilo [...], 2002). Tem-se,
ainda, sampleagens de coisas que não formas estéticas, como, por exemplo, a
fala robótica de um antivírus. A sampleagem está encrustada de tal forma na
dicção de Maka que o próprio movimento de retomada de referências que venho
fazendo se torna difícil e talvez até mesmo impossível de se dar de modo
completo.
Apesar disso, seu movimento de
sampleagem ainda nos deixa pistas de leitura, tanto nos seus momentos de maior
transparência quanto nos de maior opacidade. A frequência de personagens
solitários, perdidos e instáveis envoltos em narrativas próximas do delírio,
por exemplo, seguem para além de “Amores Perros”. A Pele que Habito, por exemplo, lida com uma personagem que se vê
em uma pele que literalmente não é a sua, que é mantida em confinamento e
vigiada por câmeras. Synecdoche, New York,
por sua vez, tem como protagonista um diretor de teatro doente que passa a
trabalhar sem parar em uma peça sobre sua vida, passando os personagens da peça
a confundirem-se com os da vida real em uma espécie de pesadelo sem fim. Já Mal dos Trópicos, filme tailandês de
2004, é um filme dividido em dois: na primeira metade, acompanhamos um casal
homoerótico em seu cotidiano; na segunda, um jogo de caça entre homem e animal
mítico na qual sabemos que a identidade do primeiro poderá ser perdida. São
filmes que lidam com relações interpessoais, mais ou menos amorosas, mais ou menos
tensivas e, por vezes, violentas, dependendo do caso. Relações que dão, então,
vazão a narrativas que desconstroem a si mesmas no mesmo movimento de sua
construção. São histórias impossíveis, pesadelos, repetições intermináveis de
imagens conhecidas e, ao mesmo tempo, fundamentalmente estranhas.
No que tange às referências musicais, por sua vez, parece haver uma
busca por sonoridades oníricas e melancólicas e, por vezes, inusitadas, mas
também por sons conhecidos da Tropicália e do Clube da Esquina, por exemplo.
São citados, também, artistas como Björk, Nujabes e Thievery Corporation, que,
apesar da aparente distância, são todos marcados pelo trabalho com o sample e com a mistura de ritmos. Até
mesmo aparição de Black Alien e Speed está em sintonia com essa tendência,
sendo eles artistas do rap nacional com batidas inventivas e samples inusitados, além de terem uma
obra (ao menos juntos, já que Black Alien voltou recentemente ao radar com seu
álbum Abaixo de Zero: Hello Hell
(2019)) esquecida por muitos e ausente em plataformas como o Spotify.
Parece-me algo bastante claro, também, ao observar o conjunto de
recortes selecionado, que, apesar da ausência de uma politização direta do tipo
presente nos raps do Racionais, parece existir um movimento que busca pensar o
Brasil em Makalister; movimento esse que é crescente e que se torna estrutural
em Mal dos Trópikos. As referências a
Eduardo Galeano, a sampleagem de Glauber Rocha, a tomada do título de Mal dos Trópicos (Apichatpong
Weerasethakul, 2004) grafado com “k” — talvez com inspiração na "Eztetyka
da Fome” —, a página de um dicionário inglês-português com a palavra “tropical”
circulada, a milícia, tudo aponta para uma tentativa de observar os problemas
da periferia do sistema capitalista, de modo geral, e o Brasil, mais
especificamente.
“Quando
Observo a Cruz de Folga (Na maratona de queijos e vinhos)”
Retornarei ao ponto recém mencionado, mas, antes, parto para a análise
do segundo rap, “Quando Observo a Cruz de Folga (Na maratona de queijos e
vinhos)” (Quando [...], 2018), faixa que abre Mal dos Trópikos. Sampleando “Eye Pattern Blindness”, do álbum de
2012 da banda de rock psicodélico Pond, intitulado Beard, Wives, Denim, temos, mais uma vez, uma sonoridade
atmosférica e onírica na música-fonte. Makalister focaliza, porém, a levada de
bateria pouco usual que abre a faixa e sublinha sua inventividade ao recortá-la
para criar um ritmo ainda mais “quebrado”, com diversos toques de caixa no
lugar de toques consistentes nos tempos 2 e 4, e que seguirá por todo o rap.
Vejamos o início da letra que acompanha a batida:
Do meio da culminação de tudo que é comum, me
exijo fora
Camuflo auroras, anulo a culpa, garimpo as horas
Meus exercícios líricos são como hortas
Maculo a auto-arrogância, maturo emoções
orgânicas
Sou como a paz utópica nos poros do Planeta Face
Não autorizo o mapa
Não me localizo ao passo que me encontro no
versículo escondido no papiro antigo
No qual embrulho o meu presente
Já que tudo é físico e comprável
Choro plasmático escorre pelo rosto pálido
Quando observo a cruz de folga
Longe do ofício das costas
Agulhas estudam o Mal dos Trópikos (Quando [...],
2018)
Parece bastante claro que o rap não abre o álbum por acaso. Trata-se
quase de um manifesto pessoal. O rapper diz
a que veio. A sonoridade é exigente, provocadora, e a linguagem é ao mesmo
tempo críptica e incisiva. As referências parecem menos presentes, mas nem por
isso o rap soa mais direto. O que é Planeta Face? Por que está grafado com
maiúsculas[3],
como se fosse o título de algo, se o Google não nos direcionada a nada
significativo quando recebe esses termos? O que é um “choro plasmático” (Quando
[...], 2018)? Que cruz é essa que está de folga ou que está sendo observada por
alguém que está de folga? A “maratona de queijos e vinhos” (Quando [...], 2018)
do título — que, mais à frente, o eu do rap dirá que nela desistiu no meio do
caminho —, ao menos, descobrimos facilmente o que é com a ajuda da internet: a
Marathon du Médoc, na França, na qual os corredores bebem vinho e degustam
queijos durante a prova. Mas isso no contexto do rap, o que quer dizer?
Makalister parece ter interiorizado a lógica do sample de tal modo que, mesmo quando não samplea, parece samplear.
“Não me localizo ao passo que me encontro no versículo escondido no papiro antigo
/ No qual embrulho o meu presente / Já que tudo é físico e comprável” (Quando
[...], 2018), diz o rap, marcando a posição de uma forma que sabe que é
mercadoria, mas que se propõe uma mercadoria difícil, desafiadora, que exige
decodificação. A própria frase “não me localizo ao passo que me encontro no
versículo escondido no papiro antigo” já coloca em jogo a infinitude de níveis
de referências buscadas por esse projeto estético, e a extensão do verso, que
não cabe no compasso e o excede, marca essa dificuldade de apreensão. E, com
isso, “agulhas estudam o Mal dos Trópikos” (Quando [...], 2018): o próprio
álbum é apresentado como uma espécie de vírus que deve ser estudado. São apenas
palavras, mas essas palavras impõem-se como um obstáculo.
Temos, assim, uma espécie de movimento duplo operando aqui. De um
lado, a materialidade que o gesto de um Racionais assume está ausente. Não há
clareza de referências e de vozes. Temos, pelo contrário, a flutuação das
formas. Como as falas filosóficas e pseudo-filosóficas de Waking Life, aqui as vozes falam em um universo sem chão, como que
em um sonho ou pesadelo. O corpo morreu e a mente segue em um interminável
sonho lúcido. De outro lado, todavia, o próprio jogo de significantes é
apresentado como um desafio, como se sua lógica fosse outra que não a da
mercadoria, ou, ao menos, uma lógica que tensionaria a mercadoria por dentro.
Trata-se, certamente, da ruptura na cadeia dos significantes que
Jameson (2000) relaciona à pós-modernidade. O eu dos raps apresenta-se esquizofrenicamente,
sem fixidez e como alguém atravessado por milhares de imagens não simplesmente
por uma escolha de Makalister, mas porque a lógica mesma de funcionamento
social de seu tempo é essa. Lógica cultural, expropriação do inconsciente,
capitalização da vida individual: todas essas noções parecem cair como uma luva
no contexto dos raps de Maka. É um momento de esgotamento das possibilidades de
ação política antes conhecidas e de esfacelamento do horizonte de transformação
social. Sobra, assim, à arte, o pastiche, a repetição do existente na forma de
um eterno retorno a um passado transformado ele mesmo em imagens. Mas parece,
ainda assim, existir um potencial crítico em Makalister.
É claro que o simples uso de referências em abundância não é algo exatamente
contrário à lógica geral das coisas no contexto do capitalismo tardio. Qualquer
pessoa minimamente familiarizada com a recepção artística na internet saberá o
quanto a busca por easter eggs —
“ovos de páscoa”, pequenos segredos escondidos em um filme, série, jogo etc. —
não só é abundante e estrutura inúmeras “produções de conteúdo” on line como, com muita frequência, toma
o lugar de análises das formas em seu todo, dando-se como uma postura
essencialmente reificante. De modo similar, temos as tier lists, listas nas quais se ranqueiam não só, mas também formas
estéticas em um movimento que não posso deixar de perceber como uma expressão
da inocuidade que a estética tem apresentado no contemporâneo e, de certo modo,
uma reação enviesada a isso, na medida em que dá algum sentido a formas de modo
conjunto em um tempo no qual a produção estética parece caótica e heterogênea
(Jameson, 2000, p. 27).
Parecem de um tipo diferente, porém, as referências de Makalister. Por
um lado, se se quer compreendê-las por inteiro, não basta saber que se trata de
filmes ou de livros, por exemplo. Há que se assistir aos filmes, ler os livros,
pensar com Maka em como se relacionam. Por outro lado, como vimos, por vezes
sequer conseguimos dizer ao certo se se trata de uma referência ou simplesmente
de algo que se assemelha a uma referência. A busca instigada pela forma é, já
por ela mesma, limitada. Ela se nega a se entregar de todo ao olhar cirúrgico,
apresenta ao ouvinte uma impossibilidade.
De modo similar, o loop está
lá, mas os samples são longos, vozes
familiares se desfamiliarizam, o filme tranca, a fala do personagem o trai. E
tampouco o flow e as rimas respeitam
a circularidade. "Agatha Christie" rima com "páginas
tristes", que rima com "Petkovic", que, por sua vez, rima com
"(com)pete por ti". “Não me localizo ao passo que me encontro no
versículo escondido no papiro antigo”: se há um corpo triste aqui, um “sujeito
operando um vazio” (Ab’Saber, 2012, p. 24), ele opera esse vazio com destreza,
como quem confronta sujeitos vazios com significantes vazios, na esperança de
que ainda se possa produzir um choque. A repetição está tensionada.
E temos, ainda, uma questão em suspenso: o quanto parece haver um
movimento de reflexão a respeito dos “trópikos”, da América Latina e, mais
especificamente, do Brasil nos raps de Maka. “Aos domingos nos almoços de
família / Misoginia, truco, três de paus nessas vadias / Toda a desgraça joga a
culpa na Dilma”, diz “Doce Bárbaros, Country Wine” (Doces [...], 2016). “Jovens
perdidos vivendo a política e forçando a barra... Não, não! / Fascistas sem
fardas falando alto e jorrando baba”, diz “Synedoche Linhas Pífias” (Synedoche
[...], 2018). “Eles falaram mesmo que queriam me mudar... O rosto…” (O Rosto,
2019), diz Maria Auxiliadora, vítima de tortura durante a ditadura
civil-militar brasileira, no sample de
“O Rosto”, da Extravagância e Perfume
Mixtape (2019), retirado do documentário Retratos (Anita Leandro, 2014). Em meio a um mar de significantes
descolados, em meio às palavras que se sublimaram e perderam o chão, ao
simulacro, parece haver uma tentativa de mapeamento. Uma tentativa de ligar os
pontos do trauma no sistema-mundo globalizado. E se “essa realidade pós-moderna
que nos cerca é de algum modo mais espacial
do que qualquer outra”, como afirma Jameson (2000, p. 364, grifo do autor),
talvez esteja realmente aí a possibilidade de ação que ainda resta e que está
sendo posta em prática. As ruínas “não autorizam o mapa”, mas se buscará
mapeá-las assim mesmo.
O
contexto social
Lecio Morais e Alfredo Saad-Filho (2018), a respeito dos primeiros
anos de existência do Partido dos Trabalhadores, destacam seu caráter de
partido independente “controlado e constituído por trabalhadores e intelectuais
fortemente alinhados com eles” (Morais & Saad-Filho, 2018, p. 48, tradução
minha), sua capacidade de acomodar diferentes tendências, grupos e organizações
dentro de si, diferentemente dos antigos partidos comunistas, e, por fim, seu
lugar enquanto centro de uma constelação de movimentos sociais, incluindo a
Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST).
Os autores sustentam que o crescimento do partido teria se dado por
conta da existência da demanda política por uma democracia radical que ele
viria a incorporar e do seu lugar como defensor dos interesses corporativos dos
trabalhadores. Com a transição democrática e a chegada do neoliberalismo no
Brasil, porém, esse lugar teria se esfacelado, fazendo com que o partido
precisasse se submeter ao jogo eleitoreiro, com seus financiamentos privados de
campanha e suas coalizões com grupos conflitantes, que, por fim, teriam
afastado o partido de posições mais radicais (Morais; Saad-Filho, 2018, p.
50-53).
Morais e Saad-Filho (2018, p. 84) também apontam para o papel da
grande mídia nas transformações do partido. Feliz com os caminhos tomados por
FHC, ela pedia pela garantia da continuidade de suas políticas econômicas, o
que teria aberto espaço para que tanto o ministro da Economia quanto o
presidente do Banco Central fizessem o mesmo. O resultado, amplamente
conhecido, foi a “Carta ao Povo Brasileiro”, que se tratava, na verdade, de uma
carta ao mercado, garantindo a continuidade das políticas neoliberais.
Percebe-se, assim, também uma transição do foco na desigualdade para o
foco na pobreza, elemento central daquilo que Dardot e Laval (2016, p. 233)
caracterizam como uma “mudança de significado da política social”, que seria,
por seu turno, característica central dos efeitos do neoliberalismo em governos
de esquerda. Acerca disso, Paulo Arantes (2019), em sua fala na mesa de
encerramento da Semana de Economia 2019[4],
organizada pelo Instituto de Economia da Unicamp, apresenta uma espécie de
genealogia das Transferências Monetárias Condicionadas. Esse tipo de programa,
no qual se encaixa o Bolsa Família, não só teria se originado no norte global,
mas também sido desenvolvido por meio de estudos que tinham, de início,
objetivos de estratégia militar.
A partir de uma encomenda do secretário de defesa norte-americano
Robert McNamara para a RAND Corporation (think
tank fundado em 1948) por volta de 1966, teria se originado a teoria do “free rider”: alguns países teriam pego
carona no orçamento militar americano, e eles deveriam ser enquadrados e
levados a serem “menos preguiçosos”. Dois anos depois, agora como presidente do
Banco Mundial, McNamara teria desenvolvido um novo sistema de targeting — como aponta Arantes (2019),
o termo já é significativo, podendo ser traduzido por “alvejamento” —, agora a
fim de fazer com que os pobres deixem de ser “free riders” a partir de estímulos positivos e negativos, além da
incitação ao “investimento em si mesmo”. McNamara, já tendo trabalhado com a
análise econômica dos bombardeamentos estratégicos dos EUA na aeronáutica,
agora estaria no centro da criação de uma nova forma de política de alvos
focalizados — que virariam sucesso internacional entendidas como ideia original
de um governo de esquerda no sul global: o Governo Lula.
Com Makalister, temos não uma dicção que nasce antes do período lulista,
como a do Racionais, que analiso em outro trabalho, mas depois. Ela já se
desenvolve no interior de um momento de maior abstração histórica. E suas
formas estéticas parecem responder a esse contexto. Levando o princípio da
sampleagem para dentro das letras e radicalizando-o, ele expressa um mundo do
eterno retorno do mesmo, da repetição eterna de formas do passado. Mas ele
utiliza essa referenciação exagerada, como vimos, de forma crítica. Constrói
imagens negativas, sem saída, mas imagens desafiadoras, que pedem de quem ouve
uma postura ativa, capaz de unir as peças para formar novamente o quadro que se
estilhaçou em pedaços.
A relação da forma dos raps de Makalister com o contexto lulista se
dá, portanto, justamente por meio do fortalecimento daquela lógica neoliberal
que comento no início deste trabalho. Ao avançar a implementação do
neoliberalismo no Brasil, o lulismo aprofunda a lógica reprodutiva que Jameson
encontrou na arte pós-moderna e que eu encontro no rap de maneira um tanto
diversa.
Poderia-se argumentar que Maka está simplesmente reproduzindo a lógica
da internet, aquela dos diversos hiperlinks que remetem a outro lugar. É
provável que ele esteja de fato fazendo isso, mas as coisas não são
excludentes. Como aponta Jonathan Crary em livro recente (2023), existe uma
relação íntima entre a era digital e o capitalismo tardio. A lógica da internet
é também uma lógica da colonização do olhar, da solidão e do desmanche de
forças comunitárias antes existentes.
Ao transformar a internet em forma, assim, Makalister formaliza, de
certa forma, a própria lógica do capitalismo tardio. O sujeito se perde em um
conjunto aparentemente interminável de links,
distanciado de uma referência fixa, do mundo material - o que é similar ao que
ocorre em nossa época histórica: o dinheiro se autonomiza, torna-se ainda mais
abstrato, e a materialidade do trabalho vai sumindo.
“Cartas
Que Deixo para o Vento”
Se as leituras feitas até aqui se sustentam, uma consequência a ser
tirada seria que alguma mudança deveria ocorrer na dicção de Makalister com as
transformações sociais posteriores ao golpe que tira Dilma do poder e que resultam
em Bolsonaro. O neoliberalismo social (Davidson, 2016), assim, perde lugar para
o populismo de direita, que tem agenda “politicamente autoritária, socialmente
conservadora e economicamente neoliberal” (Rodrigues; Silva, 2021, p. 87).
Ainda seguindo Rodrigues e Silva (2021), o discurso de Bolsonaro envolveu
contraposição à esquerda, identificada como corrupta e imoral, punitivismo,
hostilidade a minorias, neoliberalismo, meritocracia e aproximação do setor
evangélico, que lhe rendeu apoio nos setores sociais com menor renda. No poder,
o presidente deu vazão ao desmonte de políticas sociais e às privatizações,
além de se desfazer do aumento real do salário-mínimo, excluir aproximadamente
um milhão de famílias do Bolsa Família e flexibilizar os direitos trabalhistas.
É claro que algumas coisas devem seguir no gesto estético de
Makalister, já que ele se formou no período anterior, mas presume-se que uma
forma inerentemente (ainda que indiretamente) política como a de Maka não
passaria intacta por um acontecimento tão radical. Para checar se isso
acontece, analisarei, como última parte deste trabalho, o rap “Cartas Que Deixo
para o Vento”, que abre Barka, de
2020.
A batida é de autoria de Makalister. Nota-se que existe ao menos um sample, um vocal que não pôde ser
identificado, mas que soa bastante etéreo e parece ter sido manipulado, com
alto reverb. O reverb, enquanto efeito, adiciona uma sensação de profundidade a um
instrumento, dando a impressão de que se está tocando em um espaço real. Ao
mesmo tempo, existe a possibilidade de um efeito inverso, em que fica claro que
se aplicou um o reverb artificialmente
e percebe-se que não se trata de um som acústico não manipulado, que é o que
ocorre aqui. A linha de bateria, por sua vez, parece ser tocada em um
instrumento real, então provavelmente também seja um sample. Há, ainda, uma participação do trompetista Bruno da Silva.
Existe uma mistura, assim, de sons “orgânicos” originais e sampleados e de sons
claramente artificiais. Quanto aos sons “orgânicos”, ainda, a bateria é um
instrumento comum a diversos gêneros musicais, mas nesse caso ela soa mais como
soaria uma linha do boom bap do que as tendências contemporâneas em geral,
influenciadas pelo trap. Já o trompete nos remete a gêneros como o jazz e a
música clássica, ainda que eles não se limitem a estes.
Quanto à letra, reproduzo-a integralmente:
Desmato o centeio
O caminho se clareia e se mostra sob as luzes da
centelha
O rosto na ribalta com resíduos de épocas
passadas
Teias de aranhas, poeiras, estandartes jogados às
traças
Memórias
Lugares que passei sem querer visitar
Por onde meus instintos decidiram guiar
Gosto quando desapego como cartas que deixo para
o vento
Garrafas, quadros, retratos no meu quarto
Meus textos se personificam e bailam
Me chamam pra levantar e sair
Mas estou a dormir
Cansado de ver, ouvir, resistir ao tempo
Emergente como o susto no pássaro no beiral da
janela
Exausto
Sem saber como fugir
Confesso que às vezes me sinto
Como um peixe que habita a mais profunda fenda no
oceano
Crepúsculo que é plano pra naufrágios
Voluptuoso e solitário
Derrubo coisas quando acordo procurando meus
calçados
Encharcado de suor de sonho louco
Acho que vejo o miasma pelo cômodo
Estão podres as daninhas e o mofo
Pútrido
Se faz adubo pra que nasça novos rumos
Pisei descalço e vi que o chão estava úmido
As vezes sinto que é meu último dia nessa
guerrilha
E acendo um cigarro de camomila
Vou pra orla na debria só pra ver minha subida
refletida no espelho d'água (Cartas [...], 2020)
Certamente algo mudou, mas o quê? Em primeiro lugar, existe uma
transformação forte em termos de referenciação. Não temos mais a colagem de
referências que tínhamos antes. Ao mesmo tempo, existe certa continuidade com
relação a “Quando Observo a Cruz de Folga” (Quando [...], 2018) no sentido de
que a linguagem parece vaga, críptica, obscura. Ao que parece, observamos a
transformação de uma tendência à colagem complexa de objetos pré-existentes a
uma tendência à construção de imagens originais, mas elas mesmas complexas e
intrincadas.
Vejamos o que está de fato acontecendo na narrativa do rap. O eu da
forma nos diz que desmata o centeio e seu caminho se clareia, mas logo fala em um
rosto que surge na ribalta, ou seja, na parte do palco em que ficam os
refletores. Temos, assim, um salto no tempo e no espaço. A ligação entre as
duas cenas parece ser a luz da centelha, em primeiro lugar, e a dos refletores,
em segundo, mas os refletores não são citados diretamente. O rosto, por sua
vez, remete a lembranças desse eu. Daí passamos para o seu quarto, onde ele
dorme enquanto seus textos “se personificam e bailam”. Está exausto, quer fugir
e não consegue. Tem um “sonho louco” e acorda suado. No quarto, um miasma, ou
seja, uma podridão de matéria em decomposição. Por fim, ele sente que vai
morrer e vai até a orla, onde sobe aos céus.
Trata-se, em síntese, de outro tipo de colagem. Um fluxo de
pensamento. A letra aproxima-se de elementos simbolistas e, talvez, mesmo
surrealistas. Existe uma tendência à noite, ao escuro, ao sonho/pesadelo, ao
delírio e à morte. A coisa é de difícil entendimento, mas fica claro o
sentimento de falta de saídas e a negatividade geral da situação. Ao mesmo
tempo, novamente temos um elemento ao menos parcialmente biográfico ou
auto-referente: o eu do rap é um artista, provavelmente um músico.
O esquema de rimas, por sua vez, é bastante sutil, sendo poucas as
rimas soantes. “Centeio” rima com “centelha”, “passadas” com “traças”,
“pássaro” com “exausto”, “naufrágios” com “solitário”, “louco” com “cômodo” e
“mofo”, “pútrido” com “úmido” e “guerrilha” com “camomila”. Os versos também
não têm uma constância, sendo alguns muito curtos, e outros, muito longos.
A respeito da referenciação em Maka, ainda, é como se a prática fosse
adentrando cada vez mais no íntimo dos versos. De início, ela precisa ser
literal, produzindo-se uma colagem de menções a outras obras. Mais tarde, ela
ainda se constitui enquanto colagem de menções, mas agora o próprio referente
pode não existir, pois o que importa é referenciar algo, o que quer que seja.
Por fim, mesmo as menções a coisas vagas somem, e o que sobra é a construção de
cenas nebulosas e enigmáticas. O procedimento da colagem vai ficando cada vez
mais sutil, até quase sumir em si mesmo, uma vez que se tornou de fato a regra
de funcionamento última da linguagem do rapper.
Trata-se de um processo bastante sofisticado.
É curioso, pois o resultado acaba sendo, ao menos em certo sentido,
uma obra que parece mais tradicional. Fica mais clara a inovação de uma forma
que se constitui a partir de uma colagem literal de referências, assim como
fica também mais claro que se está sendo inventivo com rimas como Agatha
Christie/páginas tristes/Petkovic/compete por ti. Simultaneamente, porém, com
uma audição suficientemente cuidadosa, nota-se a continuidade entre uma coisa e
outra, bem como o aprofundamento e a sofisticação de uma lógica.
Mas não é curioso que a estética de Makalister se torne mais rebuscada
justamente no momento em que o neoliberalismo brasileiro se torna mais brutal?
Em uma primeira leitura, é claro, uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Mas, como vimos, existe certa continuidade entre o contexto lulista e essa
estética. A relação não é direta, mas ela existe. O que explicaria, então, esse
rebuscamento?
Por um lado, deve ter simplesmente a ver com a acumulação de um bom
artista. Com o avanço da indústria cultural, fica cada vez mais comum que
artistas iniciem seu percurso estético razoavelmente sofisticados e terminem
simplesmente ruins, mas a progressão, digamos, natural das coisas, é justamente
essa do paulatino refinamento, ainda que com possíveis desvios de rota,
mudanças radicais de um momento a outro etc. Talvez, Makalister possa seguir
essa rota justamente por estar à margem da indústria cultural, produzindo arte
independentemente, de modo alternativo.
Por outro lado, talvez a coisa também possa ser parcialmente explicada
justamente pelo aprofundamento do neoliberalismo. Enquanto ainda existem
elementos que não fecham, alguma resistência, alguma novidade, é comum que a
tendência seja uma estridência maior. Conforme as coisas se tornam o padrão, o
contexto já assentado, com poucas saídas possíveis, é de se esperar que as
formas tratem essa realidade como algo dado.
Ainda há outra leitura possível, contudo. A leitura que dirá que o que
está ocorrendo é a radicalização de um padrão por parte de um artista que gesta
sua dicção em um contexto e é obrigado a enfrentar outro. Nesse sentido,
teríamos justamente uma resposta ao bolsonarismo, resposta que se dá pela
complexificação do jogo, pela criação de uma obra que pede uma audição ainda
mais detida, e uma resposta ainda mais ativa por parte do público.
Claro que essa resposta é pouco direta. Não é, para citar um exemplo,
como a forte politização de um artista como Roger Waters diante do
neoliberalismo trumpista. Até existem versos mais diretamente políticos,
especialmente em “Na Prensa Francesa”, do mesmo disco (“Charlatanismo / Religiões
aos montes por aí / Figuras santas, bichos em extinção no carimbo / Sequestram
economias / Desserviço pela vida / Governantes, protetores e mídias malignas”),
mas isso não constitui a regra e também se fala em termos bastante gerais: quem
sequestra economias? De que governantes e de que mídia se trata? Depende-se da
interpretação do ouvinte, não há clareza. A resposta de Makalister ao
bolsonarismo, assim, se dá menos pela crítica direta e mais pela radicalização
da dicção que ele gestou no interior do lulismo.
É possível mapear, assim, as transformações do Brasil neoliberal de
Lula a Bolsonaro no interior dos raps de Makalister. A relação é intrincada,
cheia de voltas, mas pode ser apontada. E ela está intimamente relacionada à
forma como Makalister se apropria da tradição da sampleagem no rap e também ao
modo como ele utiliza suas referências fílmicas.
Observando as coisas mais de longe, podemos dizer que Maka reproduz,
em certo sentido, a lógica pós-moderna. Esvaziamento do sujeito e esvaziamento
das possibilidades de luta política. Em outros sentidos, contudo, ele ainda é
bastante político. Sua dicção faz a crítica dessa lógica pós-moderna,
poderia-se dizer.
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EXERCÍCIO de elogios a mulheres que amei.
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Mixtape. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Makalister, 2016. 1 CD, faixa 13.
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WILLIAMS, Justin. Rhymin' and
stealin': musical borrowing in hip-hop. Michigan: University of Michigan Press, 2013.
[1] Colaboração entre vários
artistas (geralmente, um DJ e alguns MCs) na criação de uma faixa coletiva. A
prática se popularizou no Brasil justamente com “Poetas no Topo”, que já teve
diversas edições e inspirou projetos como o “Poetisas no Topo” e o “Favela
Vive”.
[2] O termo “hyperlink cinema” é geralmente atribuído
a Alissa Quart, que o utilizou para descrever o filme Happy Endings (2005), de Don Roos, na revista Film Comment (hoje, o texto encontra-se disponível no site The Internet Archive). Desde então, tem
se popularizado seu uso para descrever filmes com narrativas diversas que se
entrecruzam, como, por exemplo, Short
Cuts (1993), Magnolia (1999), Code Unknown (2000) e até mesmo Cidade de Deus (2002).
[3] Tomo como referência a
transcrição presente na descrição do vídeo da faixa no canal do músico no
YouTube, sendo o mesmo feito com relação aos outros dois raps analisados.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GsyXWx41a5g. Acesso em: 11 dez.
2023.
[4] Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=QDOXNylO0BU. Acesso em: 13 dez. 2023.
[i]
Artigo recebido em 07/02/2024
Artigo aprovado em 01/10/2024
O presente artigo foi
escrito a partir do Trabalho de Conclusão de Curso “Mundo-sample: a transição
neoliberal do Brasil na forma do rap nacional”, de autoria do autor do presente
artigo, Sr. Vinícius de Oliveira Prusch, apresentado em 2021 na Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para obtençaõ de título de graduado em
Letras 0 Português e inglês.