e-ISSN 1984-7246  

 O miasma pelo cômodo: sampleagem e neoliberalismo em Makalister[i]

 

 

 

 

 

Vinícius de Oliveira Prusch

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre, RS – Brasil  

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O miasma pelo cômodo: sampleagem e neoliberalismo em Makalister

 

Resumo

Este trabalho retoma e expande algumas ideias apresentadas no Trabalho de Conclusão de Curso do autor. São analisados três raps de Makalister: Amores Perros, Quando Observo a Cruz de Folga (Na maratona de queijos e vinhos) e Cartas Que Deixo para o Vento. Observa-se, a partir dessas análises, uma relação entre a frequência de referências a outras formas e o avanço do neoliberalismo no Brasil. Nota-se, entretanto, que a referenciação parece sumir aos poucos, ou, melhor dizendo, vai se tornando cada vez mais sutil, o que também é relacionado, aqui, à transição de Lula para Dilma e, finalmente, para Bolsonaro. Existe uma tendência a formas “sem chão”, que se constituem como “apenas palavras”, mas que, no entanto, são palavras que desafiam o ouvinte, criando fricção, movimento que também se radicaliza aos poucos.

 

Palavras-chave: rap; sampleagem; neoliberalismo; Luiz Inácio Lula da Silva; Dilma Rousseff; Jair Messias Bolsonaro.

 

 

Miasma through the room: sampling and neoliberalism in Makalister

 

 

Abstract

The essay expands on some ideas presented in the author’s Undergraduate thesis. Three rap songs by Makalister are analysed: “Amores Perros”, “Quando Observo a Cruz de Folga (Na maratona de queijos e vinhos)” and “Cartas Que Deixo para o Vento”. The author points out, through these analyses, a relationship between the frequency of references and the advance of neoliberalism in Brazil. It can be noticed, however, that the referenciation seems to gradually fade out, or, put it better, to become ever more subtle, something which is also read, here, as related to the transition from Lula to Dilma and then Bolsonaro. There is a tendency toward forms “with no solid ground to stand on”, constituted by “merely words”, but they are words that challenge the listener, creating friction, a movement which too seems to be gradually radicalized.

 

 

Keywords: rap; sampling; neoliberalism; Luiz Inácio Lula da Silva; Dilma Rousseff; Jair Messias Bolsonaro.

 

 

 

 

 

Começo recuperando algumas noções a respeito da sampleagem no rap e de uma possível relação entre ela e o contexto histórico em que o rap está inserido. Faço isso em maior detalhe em um trabalho ainda em vias de publicação sobre o rap norte-americano, mas se faz necessário retomar esse debate para que faça sentido a leitura da dicção do rapper Makalister apresentada em seguida.

Para começar, Justin Williams (2013, p. 1, tradução própria) aponta para o quanto o “uso ostensivo de materiais pré-existentes para novos fins” estaria no centro da estética do hip-hop, tanto no rap quanto no breakdance e no grafite. De modo similar, Tricia Rose (2021, p. 8) comenta as “combinações dinâmicas de gíria urbana negra com referências musicais, da televisão, de filmes, de desenhos animados, de cultura de gangue, de caratê e de múltiplos gêneros musicais” que existiriam no rap. Em síntese, certa noção ampliada de sampleagem parece fazer sentido quando falamos no hip-hop em geral e no rap em específico. A colagem, a referenciação, o uso de elementos pré-existentes parecem estar no centro dessa tradição estética.

Observando o contexto de nascimento dessa tradição, temos a Nova York da década de 1970. Como recupera David Harvey (2008), trata-se de um contexto de teste de implementação do receituário neoliberal. A cidade estava em crise na década de 1960, e a resposta a essa crise foi justamente esse teste. Houve, assim, congelamento de salários e cortes no emprego público e nos serviços sociais, por exemplo.

Minha hipótese é que existe uma relação entre esse contexto e a centralidade da colagem para o rap. Trata-se do início do encerramento do período produtivo do sistema capitalista (Jameson, 2001, p. 150). Temos, assim, “espectros de valor [...] em uma fantasmagoria mundial desencarnada” (Jameson, 2001, p. 151). O capitalismo deixa, aos poucos, de ser produtivo, e se torna reprodutivo. Dinheiro que produz dinheiro, ao menos parcialmente apartado do trabalho real. E, para Jameson ainda, segue-se a isso uma lógica reprodutiva também na arte: tem-se o domínio da repetição de estilos do passado, do pastiche.

Algo similar parece ocorrer com o rap: o predomínio de uma lógica reprodutiva. A colagem de referências. Com a diferença de que o rap ainda é uma arte fundamentalmente política, crítica. Lógica reprodutiva e, simultaneamente, crítica radical aos efeitos do neoliberalismo. Uma arte que é, assim, ao mesmo tempo resultado e negação da lógica neoliberal.

A análise que proporei de Makalister dá seguimento a essa leitura. Observarei o avanço do neoliberalismo no Brasil e, simultaneamente, o avanço da lógica da sampleagem, da referenciação a outras formas. Uma coisa relacionada à outra.

A carreira de Makalister, conhecido também como Jovem Maka ou apenas Maka, tem início em 2014 com uma série de cinco singles lançados com o produtor Efiswami, conhecido posteriormente como Efieli. Ele passou a ganhar maior notoriedade na cena nacional após sua participação no cypher[1] “Poetas no Topo 1”, de 2016 (que também contou com a participação de Djonga, BK, Menestrel, Sant e Jxnvs), e, entre EPs, mixtapes e álbuns, já conta com dez trabalhos, tendo sua última produção solo sido Barka (2020) e sua última produção colaborativa sido Ondas 2 (2021), com Beli Remour. Maka é de São José, Santa Catarina, e costuma produzir suas próprias batidas ou trabalhar com amigos da cena local.

Importante comentar que já publiquei anteriormente um trabalho sobre Makalister, no qual analisei dois raps. Lá, o centro da discussão estava em uma relação entre a presença da temática do sono e da insônia na obra do rapper e a leitura de Jonathan Crary (2016) do capitalismo contemporâneo. Também escrevi, depois disso, dois trabalhos a respeito da sampleagem no rap, um sobre o contexto norte-americano, já mencionado, e outro enfocando Racionais MC’s.

Em termos de seleção do que é sampleado nos raps de Maka, aparecem músicas de origens bastante diversas, indo de artistas do soul e do funk norte-americano que se aproximavam do jazz, como Caesar Frazier e Catalyst, a uma faixa da trilha sonora de uma série policial japonesa dos anos 1980 (a faixa é “Short Stories", criada por Yasushige Utsunomiya e sampleada em “Amores Perros”, de 2016, e a série é Seibu Keisatsu, algo como “Faroeste Policial”, em uma tradução improvisada com auxílio do Google). Já citados nas letras dos raps aparecem artistas como Björk, Norah Jones, Thievery Corporation, Nujabes e Black Alien & Speed. As referências mais frequentes, como veremos posteriormente, estão no cinema, mas as seleções musicais já nos dão algumas pistas do que está sendo buscado por Makalister.

Focalizarei, a seguir, três raps que colocam em jogo, em níveis diferentes e de formas diversas, a própria posição do rapper. O faço porque, em certa medida, é disso que estou tratando: da posição daquele que nos fala na forma estética, do modo como ele opera com e se coloca em relação ao real e à própria arte. Em Makalister, a hipertrofia da lógica da sampleagem em si mesma como que torna nublada a voz que nos fala, levando-nos a um questionamento de suas próprias condições de possibilidade.

Mas também é relevante, antes de iniciar de fato, localizar Makalister no contexto do rap nacional. Nota-se, através de “Poetas no Topo 1” por exemplo, uma diferença bastante grande entre seu modo de rimar e aquele dos seus pares. Suas inúmeras referências intrincadas se sobressaem. Isso não quer dizer, contudo, que Maka esteja sozinho. Em primeiro lugar, seus contemporâneos sampleam tipos de música mais amplos que seus antecessores. Criolo samplea Clara Nunes e Joe Dassin, Djonga samplea Los Angeles Negros, Rincon Sapiência samplea Tom Zé, Emicida samplea Marina Lima. Sua maior referência, contudo, provavelmente está nos já citados Black Alien & Speed, bem como no trabalho solo de Black Alien. Eles sampleam Led Zeppelin, Eliane Elias, Johann Sebastian Bach, Lata Mangeshkar e Kishore Kumar. Do rock à música indiana, passando pela clássica.

Em segundo lugar, os temas dos seus contemporâneos também são mais amplos que os temas de seus antecessores. A questão racial e de classe permanece, e faz completo sentido que seja assim, mas outros assuntos também surgem. A vida, a morte e o dinheiro em “Morra Bem, Viva Rápido”, de Don L, por exemplo. O vício em drogas e a recuperação em “Aniversário de Sobriedade”, de Black Alien. O trânsito da cidade grande em “Profissão Perigo”, de Rodrigo Ogi.

Em terceiro lugar, Makalister está inserido em um grupo de artistas que produz rap à margem da indústria cultural, grupo com quem trabalha com frequência. Dentre eles, estão Beli Remour, Lessa Gustavo, Matéria Prima, Jovem Esco. Aquele cuja forma de rimar mais se aproxima à de nosso rapper parece ser Lessa Gustavo, também interessado em uma linguagem mais rebuscada (o que não quer dizer que seja melhor nem pior que a linguagem mais cotidiana, mas diferente) e em jogos intrincados de linguagem que simulam e, simultaneamente, criticam o mundo do consumo.

Também importante para ouvir Makalister é a internet. É ela, certamente, que possibilita o acesso a um grupo tão amplo e diverso de artistas para a sampleagem. É ela também que torna possível assistir tantos filmes diferentes e cults. Poucos rappers na cena nacional contemporânea estão conectados tão de perto com a internet, ainda que todos se relacionem de uma forma ou de outra com ela.

Em resumo, Maka tira proveito tanto das transformações da forma do rap de seu tempo quanto de sua posição marginal na indústria e de sua relação íntima com a internet para criar a sua arte. Sobre a internet, ainda tenho coisas a dizer, mas isso ficará para um momento posterior deste trabalho.

 

“Amores Perros”

Começo a análise pela já citada “Amores Perros”, uma das faixas mais apreciadas pelo público do artista e uma das mais reproduzidas no Spotify. A batida da faixa foi criada pelo próprio Maka e sua base é a introdução da música de Yasushige Utsunomiya (0:00-0:25). Ela entra no terceiro segundo e é precedida e acompanhada pelo som da crepitação do vinil na vitrola, elemento bastante presente em gêneros como o lo-fi hip-hop. O sample é levemente acelerado e seus últimos segundos são transformados a partir da repetição de notas anteriores, eliminando-se o fade-out e facilitando a criação do loop. Acrescentou-se, ainda, uma linha de violino gravada para a faixa por Renan Cabral e que acompanha a base de Utsunomiya desde o seu início. Já no que diz respeito à linha de bateria, começamos apenas com um bumbo sincopado na introdução, que posteriormente é acompanhado por uma caixa nos tempos 2 e 4 e por uma linha de chimbal com um volume bastante baixo, quase confundindo-se com as crepitações do vinil.

Apesar de sua origem um pouco curiosa, não é inédita a sampleagem da faixa instrumental “Short Stories", ainda que o próprio histórico de seu uso seja diverso em termos da nacionalidade dos artistas. A faixa mais antiga desse grupo catalogada no site WhoSampled é “Piccole Cose”, lançada pelo rapper italiano Ghemon em 2007. Em 2012, foi a vez do francês Vargas Au Mic utilizá-la em seu rap intitulado “Mondes Parallèles”. Já em 2015, ela aparece em “I know”, dos estadunidenses Kirk Knight e Mick Jenkins, e, em 2016, em “Hypnosis”, do também estadunidense Jay Squared. Assim como Maka, todos utilizam a introdução do instrumental, mas o padrão parece ser combiná-la a outros instrumentos ou trechos da canção menos etéreos, utilizando a atmosfera melancólica que ela carrega, mas transformando-a em somente uma camada da música. Ele, por outro lado, vale-se do caráter melancólico e onírico da introdução como elemento sonoro central no decorrer de toda a faixa.

Como já mencionado, contudo, o mais interessante no caso de Makalister parece ser o modo como referências aparecem em suas letras, movimento que se assemelha a uma colagem de samples no interior das próprias rimas. Nesse caso, temos já no título a apropriação do nome de um filme: Amores Perros, dirigido por Alejandro González Iñárritu e lançado no ano 2000. Sua narrativa acompanha a história de personagens cujas vidas, a princípio, estão conectadas apenas por um acidente de carro, mas que compartilham experiências de perda e de solidão, sendo frequentemente citada como exemplo de cinema de hiperlink[2]. Vejamos como começa a letra do rap:

 

São apenas palavras

São palavras, palavras

Joga na pia a cocaína do prato

Coloca a ilha no mapa e as nossas rimas na Vice

Como os escritos líricos, vícios de Agatha Christie

Molham-se as páginas tristes

O tempo cobra como Petkovic

Aos 43 quem que compete por ti?

Velho com pedra no rim

Se desfazendo como as pedras no gim

Tônicas perdem o gás

Tua aula acaba se tu perdes o giz

E nem se lembra quem foi Black & Speed

E aquela época do punk existe nas cartas de Dostoiévski

Pra que a vida não visite as formaturas e as festas de 15 anos

Da era em que eras "under" e tinhas uns 15 manos (Amores [...], 2016)

 

Abrem a faixa, após a fala da introdução (que aparece também em “A vida e suas voltas redondas”, do mesmo EP), os versos “Joga na pia a cocaína do prato / Coloca a ilha no mapa e as nossas rimas na Vice” (Amores [...], 2016). Ao que parece, será um rap refletindo a respeito da posição do rapper de fora do eixo Rio-São Paulo, estando aí incluso certo sentimento de pressão por fazer sucesso, sublinhado, inclusive, por uma fala que se dirige a um “tu” que parece ser o próprio rapper em tom imperativo. Trata-se, porém, de uma letra que se constrói a partir de conexões pouco usuais e de imagens que, tão logo se estabelecem, são substituídas por outras. De Agatha Christie a Black Alien e Speed, passando pelo futebol (o gol de Dejan Petkovic, 43 anos em 2016, aos 43 do segundo tempo em 2001), o próprio personagem em questão vai sendo construído e reconstruído de modo fragmentado. Após os versos que o introduzem, ele é identificado com um jogador que já não joga mais, com um velho doente, com alguém que já não conhece figuras importantes do rap. De uma reflexão sobre o futuro, o rap se converte em uma rememoração nostálgica e melancólica. E em dado momento, ainda, aproximadamente na metade da faixa, a perspectiva se transforma e o “tu” vira outro:

 

Nós éramos a carne e a faca

Usando a desculpa: a carne é fraca

Sussurrando: vem cá e me acalma

Eu sei que tens o teu futuro nos ombros

Mas vem cá e aproveita um descanso que te conto meus sonhos

E te toco com medo em nossos Amores Perros

Duro e frio como mármore e gelo

Uma latina com as veias abertas, aqui selando esse pacto

Longe do ócio e dos pecados do hábito

Deitados na grama, bem longe do árbitro (Amores [...], 2016)

 

Se se podia dizer que o que estava em jogo era um fluxo de consciência no qual o sujeito questionava a si mesmo e ao seu passado — de uma perspectiva futura imaginada, sendo esse passado, assim, um presente, seja ele real ou imaginado —, agora a voz do rap como que se transporta à memória e se dirige a uma mulher com quem teria tido uma história. E ficamos por aí, sem volta ao futuro imaginado:

 

Frio como as águas do ártico

Alinhando OVNIS e astros

Posso ouvir os pássaros trazendo nossa última vida

Com carros, quadros, vinhos e quartos

Com uma vista linda pra Cidade Luz

Decoro teu corpo sem precisar de luz

Devoro teu corpo sem precisar de mais nada (Amores [...], 2016)

 

Entre OVNIS, vinhos e a Cidade Luz, o que está em jogo aqui parece ser da ordem do delírio ou, no mínimo, do desejo. Mas, se desejo, um desejo em si mesmo já desatinado e impossível, uma vez que está direcionado ao passado. Em última instância, assim, o rap vai do presente a um futuro repulsivo e, finalmente, a outro presente, este irreal e imerso em delírios.

Voltando um pouco até a fala que abre o rap (“São apenas palavras / São palavras, palavras” (Amores [...], 2016)), vemos que esse movimento já estava, em algum nível, indicado desde o início. São apenas palavras, não há realidade aqui. O contexto dessa fala acessamos através de outro rap, “O tempo nos parece mais pesado que o físico, pt. 2” (O Tempo [...], 2016), presente em Laura Muller Mixtape, também de 2016. Nela, é sampleado um áudio de WhatsApp no qual alguém comenta a respeito de um filme que havia assistido, Waking Life (2001), focando em uma discussão a respeito das impossibilidades da comunicação: uma das personagens do filme teria dito que, ainda que possamos conversar, ninguém realmente se entende, já que cada pessoa tem vivências diferentes. Estamos, desse modo, diante de uma forma que coloca a si mesma como transitória e fundamentalmente imaterial, brincando com diversos níveis de referências, cuja origem pode, inclusive, por vezes ser acessada somente por vias exteriores a ela, ou, talvez, em alguns casos nem possa ser acessada.

Além disso, assim como Amores Perros, Waking Life, filme de Richard Linklater, trabalha com uma narrativa em fragmentos. Nesse caso, contudo, esses fragmentos são apresentados na forma de diversos diálogos (frequentemente filosóficos ou pseudo-filosóficos) que ocorrem no interior de um interminável sonho lúcido. Em dado momento, vemos um casal heteroafetivo conversando na cama a respeito da impressão que a mulher às vezes teria de estar observando sua vida pela perspectiva de uma mulher idosa em seu leito de morte. Em outro, mais próximo do fim do filme, uma pessoa fala, em um programa de TV, sobre sua teoria de que a mente humana poderia sobreviver após a morte do corpo, passando a habitar um mundo de sonhos. A partir de então, essa ideia passa a dominar a narrativa, e a impressão que temos ao fim do filme é de que o protagonista está realmente morto e preso naquele universo. Trata-se de um tipo de narrativa bastante similar àquela do rap: são apenas palavras, porém, porque a possibilidade de se experienciar o real já não existe mais.

Outra referência importante de ser retomada está no EP no qual se encontra “Amores Perros”. Intitulado A terça parte da noite, ele retoma, como já foi recuperado por mim no artigo já citado neste trabalho, o nome e também elementos narrativos do filme de mesmo nome dirigido pelo ucraniano Andrzej Żuławski e lançado na Polônia em 1972. O filme narra o dia a dia de Michael, personagem que presencia a ocupação nazista na Polônia e que, após assistir ao assassinato de sua família, passa a ter alucinações envolvendo um duplo seu e outro de sua esposa. Parte da posição do personagem de “Amores Perros”, assim, bem como aquela da mulher de quem gosta, possivelmente estejam também relacionados a Michael.

Diferentemente do trabalho dos membros de um grupo como o Racionais MC’s, desse modo, vemos que os raps de Makalister estão menos interessados na politização direta e mais na construção de quadros intrincados de narrativas “de segunda mão”. A única referência mais diretamente política de “Amores Perros” está no verso “Uma latina com as veias abertas, aqui selando esse pacto”, que alude a As veias abertas da América Latina, livro de Eduardo Galeano lançado em 1971 e que trata da dominação e exploração de nosso continente através da história. Mesmo assim, contudo, ela é velada e está sendo usada para falar de um interesse amoroso.

É bastante diverso o conjunto de formas que, de um modo ou de outro, figuram na obra de Makalister. Abundam referências ao cinema, com diversos raps recebendo, inclusive, títulos de filmes, mas também aparecem livros, artistas do hip-hop e da música de modo mais geral e até mesmo uma novela. No caso de Mal dos Trópikos, disco de 2018, formas são “sampleadas” até mesmo visualmente em um projeto pensado para além das capas — que já são duas, uma delas fazendo referência ao filme que nomeia o álbum —, marcando com ainda mais força a aproximação da imagem e do cinema que já está presente nos raps.

Algumas das formas estéticas aparecem diretamente, citadas pelo seu título original (Amores Perros, Trois Couleurs: Bleu) ou traduzido (A Terça Parte da Noite, Dias e Noites de Amor e Guerra), outras têm seus títulos sugeridos (Cisne Negro como “um cisne de luto”, As Veias Abertas da América Latina como “uma latina com as veias abertas”) ou modificados (A Pele que Habito virando “Pele que Abandono”, 2001: uma odisseia no espaço virando “2001: uma odisséia ao acesso”, ou, ainda, Memórias de um Sargento de Milícias virando somente “Milícias”) e outras, ainda, vêm em “citações sem aspas” (“Uma mulher atravessada em minhas pálpebras / Eu quero gritar, peço que vá / Mas tem uma mulher atravessada em minhas cordas vocais” (Exercício [...], 2016) retomando “Não consigo dormir. Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras. Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta”, do Livro dos abraços (Galeano, 2002, p. 52); “De amor não morro / Pele que abandono” retomando "Hey, hey, neném, de amor eu não morro / Vocês consagraram o estilo cachorro”, de “Estilo Cachorro”, do Racionais (Estilo [...], 2002). Tem-se, ainda, sampleagens de coisas que não formas estéticas, como, por exemplo, a fala robótica de um antivírus. A sampleagem está encrustada de tal forma na dicção de Maka que o próprio movimento de retomada de referências que venho fazendo se torna difícil e talvez até mesmo impossível de se dar de modo completo.

Apesar disso,  seu movimento de sampleagem ainda nos deixa pistas de leitura, tanto nos seus momentos de maior transparência quanto nos de maior opacidade. A frequência de personagens solitários, perdidos e instáveis envoltos em narrativas próximas do delírio, por exemplo, seguem para além de “Amores Perros”. A Pele que Habito, por exemplo, lida com uma personagem que se vê em uma pele que literalmente não é a sua, que é mantida em confinamento e vigiada por câmeras. Synecdoche, New York, por sua vez, tem como protagonista um diretor de teatro doente que passa a trabalhar sem parar em uma peça sobre sua vida, passando os personagens da peça a confundirem-se com os da vida real em uma espécie de pesadelo sem fim. Já Mal dos Trópicos, filme tailandês de 2004, é um filme dividido em dois: na primeira metade, acompanhamos um casal homoerótico em seu cotidiano; na segunda, um jogo de caça entre homem e animal mítico na qual sabemos que a identidade do primeiro poderá ser perdida. São filmes que lidam com relações interpessoais, mais ou menos amorosas, mais ou menos tensivas e, por vezes, violentas, dependendo do caso. Relações que dão, então, vazão a narrativas que desconstroem a si mesmas no mesmo movimento de sua construção. São histórias impossíveis, pesadelos, repetições intermináveis de imagens conhecidas e, ao mesmo tempo, fundamentalmente estranhas.

No que tange às referências musicais, por sua vez, parece haver uma busca por sonoridades oníricas e melancólicas e, por vezes, inusitadas, mas também por sons conhecidos da Tropicália e do Clube da Esquina, por exemplo. São citados, também, artistas como Björk, Nujabes e Thievery Corporation, que, apesar da aparente distância, são todos marcados pelo trabalho com o sample e com a mistura de ritmos. Até mesmo aparição de Black Alien e Speed está em sintonia com essa tendência, sendo eles artistas do rap nacional com batidas inventivas e samples inusitados, além de terem uma obra (ao menos juntos, já que Black Alien voltou recentemente ao radar com seu álbum Abaixo de Zero: Hello Hell (2019)) esquecida por muitos e ausente em plataformas como o Spotify.

Parece-me algo bastante claro, também, ao observar o conjunto de recortes selecionado, que, apesar da ausência de uma politização direta do tipo presente nos raps do Racionais, parece existir um movimento que busca pensar o Brasil em Makalister; movimento esse que é crescente e que se torna estrutural em Mal dos Trópikos. As referências a Eduardo Galeano, a sampleagem de Glauber Rocha, a tomada do título de Mal dos Trópicos (Apichatpong Weerasethakul, 2004) grafado com “k” — talvez com inspiração na "Eztetyka da Fome” —, a página de um dicionário inglês-português com a palavra “tropical” circulada, a milícia, tudo aponta para uma tentativa de observar os problemas da periferia do sistema capitalista, de modo geral, e o Brasil, mais especificamente.

 

“Quando Observo a Cruz de Folga (Na maratona de queijos e vinhos)”

Retornarei ao ponto recém mencionado, mas, antes, parto para a análise do segundo rap, “Quando Observo a Cruz de Folga (Na maratona de queijos e vinhos)” (Quando [...], 2018), faixa que abre Mal dos Trópikos. Sampleando “Eye Pattern Blindness”, do álbum de 2012 da banda de rock psicodélico Pond, intitulado Beard, Wives, Denim, temos, mais uma vez, uma sonoridade atmosférica e onírica na música-fonte. Makalister focaliza, porém, a levada de bateria pouco usual que abre a faixa e sublinha sua inventividade ao recortá-la para criar um ritmo ainda mais “quebrado”, com diversos toques de caixa no lugar de toques consistentes nos tempos 2 e 4, e que seguirá por todo o rap. Vejamos o início da letra que acompanha a batida:

 

Do meio da culminação de tudo que é comum, me exijo fora

Camuflo auroras, anulo a culpa, garimpo as horas

Meus exercícios líricos são como hortas

Maculo a auto-arrogância, maturo emoções orgânicas

Sou como a paz utópica nos poros do Planeta Face

Não autorizo o mapa

Não me localizo ao passo que me encontro no versículo escondido no papiro antigo

No qual embrulho o meu presente

Já que tudo é físico e comprável

Choro plasmático escorre pelo rosto pálido

Quando observo a cruz de folga

Longe do ofício das costas

Agulhas estudam o Mal dos Trópikos (Quando [...], 2018)

 

Parece bastante claro que o rap não abre o álbum por acaso. Trata-se quase de um manifesto pessoal. O rapper diz a que veio. A sonoridade é exigente, provocadora, e a linguagem é ao mesmo tempo críptica e incisiva. As referências parecem menos presentes, mas nem por isso o rap soa mais direto. O que é Planeta Face? Por que está grafado com maiúsculas[3], como se fosse o título de algo, se o Google não nos direcionada a nada significativo quando recebe esses termos? O que é um “choro plasmático” (Quando [...], 2018)? Que cruz é essa que está de folga ou que está sendo observada por alguém que está de folga? A “maratona de queijos e vinhos” (Quando [...], 2018) do título — que, mais à frente, o eu do rap dirá que nela desistiu no meio do caminho —, ao menos, descobrimos facilmente o que é com a ajuda da internet: a Marathon du Médoc, na França, na qual os corredores bebem vinho e degustam queijos durante a prova. Mas isso no contexto do rap, o que quer dizer?

Makalister parece ter interiorizado a lógica do sample de tal modo que, mesmo quando não samplea, parece samplear. “Não me localizo ao passo que me encontro no versículo escondido no papiro antigo / No qual embrulho o meu presente / Já que tudo é físico e comprável” (Quando [...], 2018), diz o rap, marcando a posição de uma forma que sabe que é mercadoria, mas que se propõe uma mercadoria difícil, desafiadora, que exige decodificação. A própria frase “não me localizo ao passo que me encontro no versículo escondido no papiro antigo” já coloca em jogo a infinitude de níveis de referências buscadas por esse projeto estético, e a extensão do verso, que não cabe no compasso e o excede, marca essa dificuldade de apreensão. E, com isso, “agulhas estudam o Mal dos Trópikos” (Quando [...], 2018): o próprio álbum é apresentado como uma espécie de vírus que deve ser estudado. São apenas palavras, mas essas palavras impõem-se como um obstáculo.

Temos, assim, uma espécie de movimento duplo operando aqui. De um lado, a materialidade que o gesto de um Racionais assume está ausente. Não há clareza de referências e de vozes. Temos, pelo contrário, a flutuação das formas. Como as falas filosóficas e pseudo-filosóficas de Waking Life, aqui as vozes falam em um universo sem chão, como que em um sonho ou pesadelo. O corpo morreu e a mente segue em um interminável sonho lúcido. De outro lado, todavia, o próprio jogo de significantes é apresentado como um desafio, como se sua lógica fosse outra que não a da mercadoria, ou, ao menos, uma lógica que tensionaria a mercadoria por dentro.

Trata-se, certamente, da ruptura na cadeia dos significantes que Jameson (2000) relaciona à pós-modernidade. O eu dos raps apresenta-se esquizofrenicamente, sem fixidez e como alguém atravessado por milhares de imagens não simplesmente por uma escolha de Makalister, mas porque a lógica mesma de funcionamento social de seu tempo é essa. Lógica cultural, expropriação do inconsciente, capitalização da vida individual: todas essas noções parecem cair como uma luva no contexto dos raps de Maka. É um momento de esgotamento das possibilidades de ação política antes conhecidas e de esfacelamento do horizonte de transformação social. Sobra, assim, à arte, o pastiche, a repetição do existente na forma de um eterno retorno a um passado transformado ele mesmo em imagens. Mas parece, ainda assim, existir um potencial crítico em Makalister.

É claro que o simples uso de referências em abundância não é algo exatamente contrário à lógica geral das coisas no contexto do capitalismo tardio. Qualquer pessoa minimamente familiarizada com a recepção artística na internet saberá o quanto a busca por easter eggs — “ovos de páscoa”, pequenos segredos escondidos em um filme, série, jogo etc. — não só é abundante e estrutura inúmeras “produções de conteúdo” on line como, com muita frequência, toma o lugar de análises das formas em seu todo, dando-se como uma postura essencialmente reificante. De modo similar, temos as tier lists, listas nas quais se ranqueiam não só, mas também formas estéticas em um movimento que não posso deixar de perceber como uma expressão da inocuidade que a estética tem apresentado no contemporâneo e, de certo modo, uma reação enviesada a isso, na medida em que dá algum sentido a formas de modo conjunto em um tempo no qual a produção estética parece caótica e heterogênea (Jameson, 2000, p. 27).

Parecem de um tipo diferente, porém, as referências de Makalister. Por um lado, se se quer compreendê-las por inteiro, não basta saber que se trata de filmes ou de livros, por exemplo. Há que se assistir aos filmes, ler os livros, pensar com Maka em como se relacionam. Por outro lado, como vimos, por vezes sequer conseguimos dizer ao certo se se trata de uma referência ou simplesmente de algo que se assemelha a uma referência. A busca instigada pela forma é, já por ela mesma, limitada. Ela se nega a se entregar de todo ao olhar cirúrgico, apresenta ao ouvinte uma impossibilidade.

De modo similar, o loop está lá, mas os samples são longos, vozes familiares se desfamiliarizam, o filme tranca, a fala do personagem o trai. E tampouco o flow e as rimas respeitam a circularidade. "Agatha Christie" rima com "páginas tristes", que rima com "Petkovic", que, por sua vez, rima com "(com)pete por ti". “Não me localizo ao passo que me encontro no versículo escondido no papiro antigo”: se há um corpo triste aqui, um “sujeito operando um vazio” (Ab’Saber, 2012, p. 24), ele opera esse vazio com destreza, como quem confronta sujeitos vazios com significantes vazios, na esperança de que ainda se possa produzir um choque. A repetição está tensionada.

E temos, ainda, uma questão em suspenso: o quanto parece haver um movimento de reflexão a respeito dos “trópikos”, da América Latina e, mais especificamente, do Brasil nos raps de Maka. “Aos domingos nos almoços de família / Misoginia, truco, três de paus nessas vadias / Toda a desgraça joga a culpa na Dilma”, diz “Doce Bárbaros, Country Wine” (Doces [...], 2016). “Jovens perdidos vivendo a política e forçando a barra... Não, não! / Fascistas sem fardas falando alto e jorrando baba”, diz “Synedoche Linhas Pífias” (Synedoche [...], 2018). “Eles falaram mesmo que queriam me mudar... O rosto…” (O Rosto, 2019), diz Maria Auxiliadora, vítima de tortura durante a ditadura civil-militar brasileira, no sample de “O Rosto”, da Extravagância e Perfume Mixtape (2019), retirado do documentário Retratos (Anita Leandro, 2014). Em meio a um mar de significantes descolados, em meio às palavras que se sublimaram e perderam o chão, ao simulacro, parece haver uma tentativa de mapeamento. Uma tentativa de ligar os pontos do trauma no sistema-mundo globalizado. E se “essa realidade pós-moderna que nos cerca é de algum modo mais espacial do que qualquer outra”, como afirma Jameson (2000, p. 364, grifo do autor), talvez esteja realmente aí a possibilidade de ação que ainda resta e que está sendo posta em prática. As ruínas “não autorizam o mapa”, mas se buscará mapeá-las assim mesmo.

 

O contexto social

Lecio Morais e Alfredo Saad-Filho (2018), a respeito dos primeiros anos de existência do Partido dos Trabalhadores, destacam seu caráter de partido independente “controlado e constituído por trabalhadores e intelectuais fortemente alinhados com eles” (Morais & Saad-Filho, 2018, p. 48, tradução minha), sua capacidade de acomodar diferentes tendências, grupos e organizações dentro de si, diferentemente dos antigos partidos comunistas, e, por fim, seu lugar enquanto centro de uma constelação de movimentos sociais, incluindo a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Os autores sustentam que o crescimento do partido teria se dado por conta da existência da demanda política por uma democracia radical que ele viria a incorporar e do seu lugar como defensor dos interesses corporativos dos trabalhadores. Com a transição democrática e a chegada do neoliberalismo no Brasil, porém, esse lugar teria se esfacelado, fazendo com que o partido precisasse se submeter ao jogo eleitoreiro, com seus financiamentos privados de campanha e suas coalizões com grupos conflitantes, que, por fim, teriam afastado o partido de posições mais radicais (Morais; Saad-Filho, 2018, p. 50-53).

Morais e Saad-Filho (2018, p. 84) também apontam para o papel da grande mídia nas transformações do partido. Feliz com os caminhos tomados por FHC, ela pedia pela garantia da continuidade de suas políticas econômicas, o que teria aberto espaço para que tanto o ministro da Economia quanto o presidente do Banco Central fizessem o mesmo. O resultado, amplamente conhecido, foi a “Carta ao Povo Brasileiro”, que se tratava, na verdade, de uma carta ao mercado, garantindo a continuidade das políticas neoliberais.

Percebe-se, assim, também uma transição do foco na desigualdade para o foco na pobreza, elemento central daquilo que Dardot e Laval (2016, p. 233) caracterizam como uma “mudança de significado da política social”, que seria, por seu turno, característica central dos efeitos do neoliberalismo em governos de esquerda. Acerca disso, Paulo Arantes (2019), em sua fala na mesa de encerramento da Semana de Economia 2019[4], organizada pelo Instituto de Economia da Unicamp, apresenta uma espécie de genealogia das Transferências Monetárias Condicionadas. Esse tipo de programa, no qual se encaixa o Bolsa Família, não só teria se originado no norte global, mas também sido desenvolvido por meio de estudos que tinham, de início, objetivos de estratégia militar.

A partir de uma encomenda do secretário de defesa norte-americano Robert McNamara para a RAND Corporation (think tank fundado em 1948) por volta de 1966, teria se originado a teoria do “free rider”: alguns países teriam pego carona no orçamento militar americano, e eles deveriam ser enquadrados e levados a serem “menos preguiçosos”. Dois anos depois, agora como presidente do Banco Mundial, McNamara teria desenvolvido um novo sistema de targeting — como aponta Arantes (2019), o termo já é significativo, podendo ser traduzido por “alvejamento” —, agora a fim de fazer com que os pobres deixem de ser “free riders” a partir de estímulos positivos e negativos, além da incitação ao “investimento em si mesmo”. McNamara, já tendo trabalhado com a análise econômica dos bombardeamentos estratégicos dos EUA na aeronáutica, agora estaria no centro da criação de uma nova forma de política de alvos focalizados — que virariam sucesso internacional entendidas como ideia original de um governo de esquerda no sul global: o Governo Lula.

Com Makalister, temos não uma dicção que nasce antes do período lulista, como a do Racionais, que analiso em outro trabalho, mas depois. Ela já se desenvolve no interior de um momento de maior abstração histórica. E suas formas estéticas parecem responder a esse contexto. Levando o princípio da sampleagem para dentro das letras e radicalizando-o, ele expressa um mundo do eterno retorno do mesmo, da repetição eterna de formas do passado. Mas ele utiliza essa referenciação exagerada, como vimos, de forma crítica. Constrói imagens negativas, sem saída, mas imagens desafiadoras, que pedem de quem ouve uma postura ativa, capaz de unir as peças para formar novamente o quadro que se estilhaçou em pedaços.

A relação da forma dos raps de Makalister com o contexto lulista se dá, portanto, justamente por meio do fortalecimento daquela lógica neoliberal que comento no início deste trabalho. Ao avançar a implementação do neoliberalismo no Brasil, o lulismo aprofunda a lógica reprodutiva que Jameson encontrou na arte pós-moderna e que eu encontro no rap de maneira um tanto diversa.

Poderia-se argumentar que Maka está simplesmente reproduzindo a lógica da internet, aquela dos diversos hiperlinks que remetem a outro lugar. É provável que ele esteja de fato fazendo isso, mas as coisas não são excludentes. Como aponta Jonathan Crary em livro recente (2023), existe uma relação íntima entre a era digital e o capitalismo tardio. A lógica da internet é também uma lógica da colonização do olhar, da solidão e do desmanche de forças comunitárias antes existentes.

Ao transformar a internet em forma, assim, Makalister formaliza, de certa forma, a própria lógica do capitalismo tardio. O sujeito se perde em um conjunto aparentemente interminável de links, distanciado de uma referência fixa, do mundo material - o que é similar ao que ocorre em nossa época histórica: o dinheiro se autonomiza, torna-se ainda mais abstrato, e a materialidade do trabalho vai sumindo.

 

“Cartas Que Deixo para o Vento”

Se as leituras feitas até aqui se sustentam, uma consequência a ser tirada seria que alguma mudança deveria ocorrer na dicção de Makalister com as transformações sociais posteriores ao golpe que tira Dilma do poder e que resultam em Bolsonaro. O neoliberalismo social (Davidson, 2016), assim, perde lugar para o populismo de direita, que tem agenda “politicamente autoritária, socialmente conservadora e economicamente neoliberal” (Rodrigues; Silva, 2021, p. 87). Ainda seguindo Rodrigues e Silva (2021), o discurso de Bolsonaro envolveu contraposição à esquerda, identificada como corrupta e imoral, punitivismo, hostilidade a minorias, neoliberalismo, meritocracia e aproximação do setor evangélico, que lhe rendeu apoio nos setores sociais com menor renda. No poder, o presidente deu vazão ao desmonte de políticas sociais e às privatizações, além de se desfazer do aumento real do salário-mínimo, excluir aproximadamente um milhão de famílias do Bolsa Família e flexibilizar os direitos trabalhistas.

É claro que algumas coisas devem seguir no gesto estético de Makalister, já que ele se formou no período anterior, mas presume-se que uma forma inerentemente (ainda que indiretamente) política como a de Maka não passaria intacta por um acontecimento tão radical. Para checar se isso acontece, analisarei, como última parte deste trabalho, o rap “Cartas Que Deixo para o Vento”, que abre Barka, de 2020.

A batida é de autoria de Makalister. Nota-se que existe ao menos um sample, um vocal que não pôde ser identificado, mas que soa bastante etéreo e parece ter sido manipulado, com alto reverb. O reverb, enquanto efeito, adiciona uma sensação de profundidade a um instrumento, dando a impressão de que se está tocando em um espaço real. Ao mesmo tempo, existe a possibilidade de um efeito inverso, em que fica claro que se aplicou um o reverb artificialmente e percebe-se que não se trata de um som acústico não manipulado, que é o que ocorre aqui. A linha de bateria, por sua vez, parece ser tocada em um instrumento real, então provavelmente também seja um sample. Há, ainda, uma participação do trompetista Bruno da Silva. Existe uma mistura, assim, de sons “orgânicos” originais e sampleados e de sons claramente artificiais. Quanto aos sons “orgânicos”, ainda, a bateria é um instrumento comum a diversos gêneros musicais, mas nesse caso ela soa mais como soaria uma linha do boom bap do que as tendências contemporâneas em geral, influenciadas pelo trap. Já o trompete nos remete a gêneros como o jazz e a música clássica, ainda que eles não se limitem a estes.

Quanto à letra, reproduzo-a integralmente:

Desmato o centeio

O caminho se clareia e se mostra sob as luzes da centelha

O rosto na ribalta com resíduos de épocas passadas

Teias de aranhas, poeiras, estandartes jogados às traças

Memórias

Lugares que passei sem querer visitar

Por onde meus instintos decidiram guiar

Gosto quando desapego como cartas que deixo para o vento

Garrafas, quadros, retratos no meu quarto

Meus textos se personificam e bailam

Me chamam pra levantar e sair

Mas estou a dormir

Cansado de ver, ouvir, resistir ao tempo

 

Emergente como o susto no pássaro no beiral da janela

Exausto

Sem saber como fugir

Confesso que às vezes me sinto

Como um peixe que habita a mais profunda fenda no oceano

Crepúsculo que é plano pra naufrágios

Voluptuoso e solitário

Derrubo coisas quando acordo procurando meus calçados

Encharcado de suor de sonho louco

Acho que vejo o miasma pelo cômodo

Estão podres as daninhas e o mofo

Pútrido

Se faz adubo pra que nasça novos rumos

Pisei descalço e vi que o chão estava úmido

As vezes sinto que é meu último dia nessa guerrilha

E acendo um cigarro de camomila

Vou pra orla na debria só pra ver minha subida refletida no espelho d'água (Cartas [...], 2020)

 

Certamente algo mudou, mas o quê? Em primeiro lugar, existe uma transformação forte em termos de referenciação. Não temos mais a colagem de referências que tínhamos antes. Ao mesmo tempo, existe certa continuidade com relação a “Quando Observo a Cruz de Folga” (Quando [...], 2018) no sentido de que a linguagem parece vaga, críptica, obscura. Ao que parece, observamos a transformação de uma tendência à colagem complexa de objetos pré-existentes a uma tendência à construção de imagens originais, mas elas mesmas complexas e intrincadas.

Vejamos o que está de fato acontecendo na narrativa do rap. O eu da forma nos diz que desmata o centeio e seu caminho se clareia, mas logo fala em um rosto que surge na ribalta, ou seja, na parte do palco em que ficam os refletores. Temos, assim, um salto no tempo e no espaço. A ligação entre as duas cenas parece ser a luz da centelha, em primeiro lugar, e a dos refletores, em segundo, mas os refletores não são citados diretamente. O rosto, por sua vez, remete a lembranças desse eu. Daí passamos para o seu quarto, onde ele dorme enquanto seus textos “se personificam e bailam”. Está exausto, quer fugir e não consegue. Tem um “sonho louco” e acorda suado. No quarto, um miasma, ou seja, uma podridão de matéria em decomposição. Por fim, ele sente que vai morrer e vai até a orla, onde sobe aos céus.

Trata-se, em síntese, de outro tipo de colagem. Um fluxo de pensamento. A letra aproxima-se de elementos simbolistas e, talvez, mesmo surrealistas. Existe uma tendência à noite, ao escuro, ao sonho/pesadelo, ao delírio e à morte. A coisa é de difícil entendimento, mas fica claro o sentimento de falta de saídas e a negatividade geral da situação. Ao mesmo tempo, novamente temos um elemento ao menos parcialmente biográfico ou auto-referente: o eu do rap é um artista, provavelmente um músico.

O esquema de rimas, por sua vez, é bastante sutil, sendo poucas as rimas soantes. “Centeio” rima com “centelha”, “passadas” com “traças”, “pássaro” com “exausto”, “naufrágios” com “solitário”, “louco” com “cômodo” e “mofo”, “pútrido” com “úmido” e “guerrilha” com “camomila”. Os versos também não têm uma constância, sendo alguns muito curtos, e outros, muito longos.

A respeito da referenciação em Maka, ainda, é como se a prática fosse adentrando cada vez mais no íntimo dos versos. De início, ela precisa ser literal, produzindo-se uma colagem de menções a outras obras. Mais tarde, ela ainda se constitui enquanto colagem de menções, mas agora o próprio referente pode não existir, pois o que importa é referenciar algo, o que quer que seja. Por fim, mesmo as menções a coisas vagas somem, e o que sobra é a construção de cenas nebulosas e enigmáticas. O procedimento da colagem vai ficando cada vez mais sutil, até quase sumir em si mesmo, uma vez que se tornou de fato a regra de funcionamento última da linguagem do rapper. Trata-se de um processo bastante sofisticado.

É curioso, pois o resultado acaba sendo, ao menos em certo sentido, uma obra que parece mais tradicional. Fica mais clara a inovação de uma forma que se constitui a partir de uma colagem literal de referências, assim como fica também mais claro que se está sendo inventivo com rimas como Agatha Christie/páginas tristes/Petkovic/compete por ti. Simultaneamente, porém, com uma audição suficientemente cuidadosa, nota-se a continuidade entre uma coisa e outra, bem como o aprofundamento e a sofisticação de uma lógica.

Mas não é curioso que a estética de Makalister se torne mais rebuscada justamente no momento em que o neoliberalismo brasileiro se torna mais brutal? Em uma primeira leitura, é claro, uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas, como vimos, existe certa continuidade entre o contexto lulista e essa estética. A relação não é direta, mas ela existe. O que explicaria, então, esse rebuscamento?

Por um lado, deve ter simplesmente a ver com a acumulação de um bom artista. Com o avanço da indústria cultural, fica cada vez mais comum que artistas iniciem seu percurso estético razoavelmente sofisticados e terminem simplesmente ruins, mas a progressão, digamos, natural das coisas, é justamente essa do paulatino refinamento, ainda que com possíveis desvios de rota, mudanças radicais de um momento a outro etc. Talvez, Makalister possa seguir essa rota justamente por estar à margem da indústria cultural, produzindo arte independentemente, de modo alternativo.

Por outro lado, talvez a coisa também possa ser parcialmente explicada justamente pelo aprofundamento do neoliberalismo. Enquanto ainda existem elementos que não fecham, alguma resistência, alguma novidade, é comum que a tendência seja uma estridência maior. Conforme as coisas se tornam o padrão, o contexto já assentado, com poucas saídas possíveis, é de se esperar que as formas tratem essa realidade como algo dado.

Ainda há outra leitura possível, contudo. A leitura que dirá que o que está ocorrendo é a radicalização de um padrão por parte de um artista que gesta sua dicção em um contexto e é obrigado a enfrentar outro. Nesse sentido, teríamos justamente uma resposta ao bolsonarismo, resposta que se dá pela complexificação do jogo, pela criação de uma obra que pede uma audição ainda mais detida, e uma resposta ainda mais ativa por parte do público.

Claro que essa resposta é pouco direta. Não é, para citar um exemplo, como a forte politização de um artista como Roger Waters diante do neoliberalismo trumpista. Até existem versos mais diretamente políticos, especialmente em “Na Prensa Francesa”, do mesmo disco (“Charlatanismo / Religiões aos montes por aí / Figuras santas, bichos em extinção no carimbo / Sequestram economias / Desserviço pela vida / Governantes, protetores e mídias malignas”), mas isso não constitui a regra e também se fala em termos bastante gerais: quem sequestra economias? De que governantes e de que mídia se trata? Depende-se da interpretação do ouvinte, não há clareza. A resposta de Makalister ao bolsonarismo, assim, se dá menos pela crítica direta e mais pela radicalização da dicção que ele gestou no interior do lulismo.

É possível mapear, assim, as transformações do Brasil neoliberal de Lula a Bolsonaro no interior dos raps de Makalister. A relação é intrincada, cheia de voltas, mas pode ser apontada. E ela está intimamente relacionada à forma como Makalister se apropria da tradição da sampleagem no rap e também ao modo como ele utiliza suas referências fílmicas.

Observando as coisas mais de longe, podemos dizer que Maka reproduz, em certo sentido, a lógica pós-moderna. Esvaziamento do sujeito e esvaziamento das possibilidades de luta política. Em outros sentidos, contudo, ele ainda é bastante político. Sua dicção faz a crítica dessa lógica pós-moderna, poderia-se dizer.

 

Referências

 

AB’SABER, Tales. A música do tempo infinito. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

 

AMORES perros. Intérprete: Makalister. Compositor: Makalister. In: A TERÇA parte da noite. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Makalister, 2016. 1 CD, faixa 4.

 

ARANTES, Paulo. SE19: a razão neoliberal no Brasil periférico. [S. l.], 2019. 1 vídeo (103 min.). Publicado pelo canal: Instituto de Economia da Unicamp. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QDOXNylO0BU. Acesso em: 13 dez. 2023.

 

CARTAS que deixo para o vento. Intérprete: Makalister. Compositor: Makalister. In: BARKA. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Almanaque de Outono, Polvo Roxo, 2020. 1 CD, faixa 1.

 

CRARY, Jonathan. Terra arrasada: além da era digital, rumo a um mundo pós-capitalista. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu Editora, 2023.

 

CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016.

 

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2016.

 

DAVIDSON, Neil. Crisis neoliberalism and regimes of permanent exception. Critical Sociology, Glasgow, v. 43, n. 4-5, p. 01-20, ago. 2016.

 

DOCES Bárbaros, Country Wine. Intérprete: Makalister. Compositor: Makalister. In: LAURA Muller Mixtape. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Makalister, 2016. 1 CD, faixa 10.

 

ESTILO cachorro. Intérprete: Racionais MC’s. Compositor: Racionais MC’s. In: NADA como um dia após o outro dia, vol. 1 & 2. Intérprete: Racionais MC’s. [S. l.]: Cosa Nostra, 2002. 2 CDs, faixa 6.

 

EXERCÍCIO de elogios a mulheres que amei. Intérprete: Makalister. Compositor: Makalister. In: A TERÇA parte da noite. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Makalister, 2016. 1 CD, faixa 1.

 

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2002.

 

HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

 

JAMESON, Fredric. A cultura do dinheiro: ensaios sobre a globalização. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.

 

JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio. São Paulo: Ática, 2000.

 

MORAIS, Lecio; SAAD-FILHO, Alfredo. Brazil: neoliberalism versus democracy. Londres: Pluto Press, 2018.

 

O ROSTO. Intérpretes: Makalister, DJ Tuna13. Compositores: Makalister, DJ Tuna13. In: EXTRAVAGÂNCIA e perfume mixtape. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Almanaque de Outono, Polvo Roxo, 2019. 1 CD, faixa 3.

 

O TEMPO nos parece mais pesado que o físico, pt. 2. Intérprete: Makalister. Compositor: Makalister. In: LAURA Muller Mixtape. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Makalister, 2016. 1 CD, faixa 13.

 

QUANDO observo a cruz de folga (na maratona de queijos e vinhos). Intérprete: Makalister. Compositor: Makalister. In: MAL dos trópikos, construindo a ponte da prata roubada. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Polvo Roxo, 2018. 1 CD, faixa 1.

 

RODRIGUES, Theófilo Codeço Machado; SILVA, Mayra Goulart. O Populismo de direita no Brasil: neoliberalismo e autoritarismo no governo Bolsonaro. Mediações, Londrina, v. 26, n. 1, p. 86-107, jan./abr. 2021.

 

ROSE, Tricia. Barulho de preto: rap e cultura negra nos Estados Unidos contemporâneos. São Paulo: Perspectiva, 2021.

 

SYNEDOCHE linhas pífias. Intérpretes: Makalister, Matéria Prima. Compositores: Makalister, Matéria Prima. In: MAL dos trópikos, construindo a ponte da prata roubada. Intérprete: Makalister. [S. l.]: Polvo Roxo, 2018. 1 CD, faixa 3.

 

WILLIAMS, Justin. Rhymin' and stealin': musical borrowing in hip-hop. Michigan: University of Michigan Press, 2013.

 



[1] Colaboração entre vários artistas (geralmente, um DJ e alguns MCs) na criação de uma faixa coletiva. A prática se popularizou no Brasil justamente com “Poetas no Topo”, que já teve diversas edições e inspirou projetos como o “Poetisas no Topo” e o “Favela Vive”.

[2] O termo “hyperlink cinema” é geralmente atribuído a Alissa Quart, que o utilizou para descrever o filme Happy Endings (2005), de Don Roos, na revista Film Comment (hoje, o texto encontra-se disponível no site The Internet Archive). Desde então, tem se popularizado seu uso para descrever filmes com narrativas diversas que se entrecruzam, como, por exemplo, Short Cuts (1993), Magnolia (1999), Code Unknown (2000) e até mesmo Cidade de Deus (2002).

[3] Tomo como referência a transcrição presente na descrição do vídeo da faixa no canal do músico no YouTube, sendo o mesmo feito com relação aos outros dois raps analisados. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GsyXWx41a5g. Acesso em: 11 dez. 2023.

[4] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QDOXNylO0BU. Acesso em: 13 dez. 2023.



[i] Artigo recebido em 07/02/2024

  Artigo aprovado em 01/10/2024

 

O presente artigo foi escrito a partir do Trabalho de Conclusão de Curso “Mundo-sample: a transição neoliberal do Brasil na forma do rap nacional”, de autoria do autor do presente artigo, Sr. Vinícius de Oliveira Prusch, apresentado em 2021 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para obtençaõ de título de graduado em Letras 0 Português e inglês.