e-ISSN 1984-7246  

Internacionais de Trabalhadores, Gramsci e a relação trabalho-educação: reflexões para a política educacional[i]

 

 

 

Carmen Sylvia Vidigal Moraes[ii]

Universidade de São Paulo (USP)

 São Paulo, SP - Brasil

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Felipe Alencar[iii]

Universidade de São Paulo (USP)

 São Paulo, SP - Brasil

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Márcia Aparecida Jacomini[iv]

Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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Internacionais de Trabalhadores, Gramsci e a relação trabalho-educação: reflexões para a política educacional

 

Resumo

Defrontando-se com as contrarreformas neoliberais contemporâneas que aprofundam as desigualdades sociais e educacionais, este artigo tem como objetivo revisitar concepções e propostas de educação e sua relação com o trabalho, presentes historicamente nos movimentos de trabalhadores, e analisar em que medida podem contribuir, hoje, para as ações de resistência e organização de políticas educacionais das classes subalternas nas lutas por hegemonia. A discussão é realizada por meio de um estudo teórico-bibliográfico, que visa à divulgação de ideias do campo socialista para a educação. Indicamos que as propostas para uma educação emancipatória possuem longa trajetória histórica, e que os espaços de participação ativa dos movimentos do século XIX, em particular das Internacionais de Trabalhadores e na Comuna de Paris, foram meios de circulação de ideias pedagógicas para a educação integral da classe trabalhadora. São retomadas as formulações de Karl Marx, Paul Robin, Antonio Gramsci, Anatoli Lounatcharski e Nadezhda Krupskaya sobre o trabalho como princípio educativo. Destacamos as contribuições de Gramsci considerando a atualidade de seu pensamento para o debate educacional contemporâneo, no que diz respeito ao vínculo da escola com o processo de disputa de hegemonia e apreensão da realidade. Desse modo, situamos os desafios para a defesa intransigente da educação pública, laica, democrática e de qualidade socialmente referenciada numa formação humana, integral e científica, que dê aos filhos das classes subalternas a possibilidade de serem dirigentes e construírem o seu próprio futuro.

 

Palavras-chave: educação contemporânea; movimentos socialistas internacionais de trabalhadores; Antonio Gramsci; relação trabalho-educação.

 

 

The International Workingmen's Association, Gramsci and the labour-education relationship: reflections for contemporary educational policy

 

 

Abstract

Facing contemporary neoliberal counter-reforms that deepen social and educational inequalities, the article aims to revisit conceptions and proposals for education and its relationship with labour, historically present in workers' movements, and to analyse to which measure they can contribute today to actions of resistance and the organisation of educational policies of the subaltern classes in the struggles for hegemony. The discussion is carried out through theoretical-bibliographical research, which aims to disseminate ideas from the socialist approach to education. We point out that the proposals for an emancipatory education have a long historical trajectory, that the spaces of active participation of the 19th-century movements, in particular the International Workingmen's Association and the Paris Commune, were the means of circulation of pedagogical ideas for the integral education of the working class. We take up the formulations of Karl Marx, Paul Robin, Antonio Gramsci, Anatoli Lounatcharski and Nadezhda Krupskaya on labour as an educational principle. We emphasise Gramsci's contributions considering the relevance of his thinking to the contemporary educational debate, concerning the link between the school and the process of disputing hegemony and apprehending reality. In this sense, we set out the challenges for the intransigent defence of public, secular, democratic and socially-referenced quality education in human, integral and scientific formation, which provides the children of the subaltern classes the possibility of being leaders and building their own future.

 

Keywords: contemporary education; socialist movements international workingmen's association; Antonio Gramsci; the labour-education relationship.

Introdução

A educação, institucionalizada em escolas e universidades, tem sido campo de disputa das classes essenciais da sociedade moderna e de respectivas frações de classe, tanto no que se refere à sua forma organizacional quanto às concepções e aos conteúdos de ensino. A conquista de escolarização pública para crianças e adolescentes configura-se como um dos direitos essenciais na maioria dos países, assim como no Brasil, conforme a Constituição Federal de 1998 (Brasil, 1998) (CF/88) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9394/1996 (Brasil, 1996) (LDB/96). A educação na forma escolarizada constitui requisito fundamental para que os sujeitos possam usufruir de outros direitos (Oliveira, 2001).

A dualidade estrutural da escola na sociedade capitalista expressa a divisão social do trabalho e contribui para reproduzir as desigualdades sociais. As inovações na educação, ao longo da história, são consoantes ao desenvolvimento técnico-científico e cultural de modo que os conteúdos e a forma escolar correspondam aos interesses hegemônicos das classes dominantes. Na disputa permanente por hegemonia, as classes dirigentes, por meio do Estado, visam definir sua própria escolarização em instituições públicas ou privadas, e também a escolarização das classes populares em condição de subalternidade. Historicamente, a direção das políticas de Estado, resultantes desse embate, expressa a correlação de forças entre as classes.

Nessa perspectiva, o direito à educação escolar das classes populares tem sido marcado pela luta em torno de sua ampliação com qualidade e limitado por políticas públicas aquém das necessidades relativas a recursos financeiros e ao estabelecimento de currículos que favoreçam a apropriação de conhecimentos pelos trabalhadores e os capacitem a ocupar na sociedade o papel de dirigentes.

Desde a Conferência Mundial sobre Educação para todos, em Jomtien, no ano de 1990, que aprovou a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, e a aprovação da comercialização internacional da educação por meio do Acordo Geral sobre o Comércio de Serviços/GATS (1995), temos observado crescente interesse de setores da sociedade civil vinculados ao capital na área educacional, seja como forma de mercantilizar a educação, tornando-a um negócio rentável, seja pela participação na definição das políticas públicas para educação, configurando distintas formas de privatização (Adrião, 2017; Ball, 2020).

No atual contexto, houve uma mudança na linguagem da educação (Biesta, 2013) na qual o direito à educação foi transmutado para direito à aprendizagem, em claro estreitamento do papel formativo que a educação escolar deve cumprir na vida das novas gerações de trabalhadores. Essas mudanças se explicitam na definição de um currículo empobrecido, alinhado às demandas do mercado de trabalho e baseado em habilidades e competências que pouco contribuem para a formação integral dos estudantes e para o desenvolvimento do senso crítico. Trata-se, do ponto de vista das classes dirigentes, de educá-los para um conformismo que os mantenha na condição de subalternidade frente à perda de direitos e à ausência de mobilidade social impostas por políticas neoliberais austericidas, em resposta às crises cada vez mais frequentes do sistema capitalista.

Diante desse quadro difícil, o artigo tem como objetivo revisitar algumas concepções e propostas de educação e sua relação com o trabalho, presentes historicamente nos movimentos de trabalhadores, e analisar em que medida podem contribuir, hoje, para as ações de resistência e organização de políticas educacionais das classes subalternas nas lutas por hegemonia. Trata-se, em resumo, de um estudo teórico-bibliográfico, que visa contribuir com a divulgação de ideias do campo socialista para a educação e refletir sobre suas contribuições para pensar a educação contemporânea e disputar a hegemonia de classe nesse campo.

Na sequência desta introdução, é importante também indicar que as propostas para uma educação emancipatória possuem longa trajetória histórica. Apresentamos algumas das principais discussões sobre educação da classe trabalhadora que circularam nos movimentos do século XIX, em particular na I Internacional de Trabalhadores/AIT[1] e na Comuna de Paris, e sua possível relação com as orientações educacionais desenvolvidas pela Escola do Trabalho, na jovem Revolução Russa de 1917, e com as contribuições de Antonio Gramsci[2], considerando a atualidade de seu pensamento para o debate educacional contemporâneo. Nas considerações finais, mais do que finalizar, indicamos os desafios que estão postos para aquelas e aqueles que, enquanto intelectuais orgânicos das classes trabalhadoras, dedicam-se às questões educacionais e se comprometem com a defesa intransigente da educação pública, laica, democrática e de qualidade socialmente referenciada numa formação humana, integral e científica, que dê aos filhos das classes subalternas a possibilidade de serem dirigentes e construírem o seu próprio futuro.

 

Circulação de ideias pedagógicas sobre trabalho e educação no movimento socialista

A partir do aprendizado do cotidiano da luta operária e incorporando as contribuições de pensadores socialistas anteriores, Marx e Engels elaboraram uma contribuição síntese que, embora não seja detalhada, fornece os princípios básicos da educação socialista (Machado, 1989; Moraes, 2019). Sua obra representa uma ruptura com os modos de pensar anteriores por formular uma nova teoria, com bases científicas e filosóficas, a respeito do desenvolvimento histórico-social e formas de constituição das sociedades, especialmente o modo de produção capitalista, e, com essa perspectiva, promoveram “uma revolução no âmbito da pedagogia” (Machado, 1989, p. 91).

A importância de suas reflexões no campo da educação reside principalmente no fato de se apresentarem integradas à crítica radical das relações sociais capitalistas e à necessidade de sua superação para a construção da nova sociedade e do novo homem. Tais análises apresentam-se de forma coerente em um intervalo de mais de 30 anos e coincidem com os momentos cruciais da investigação desenvolvida pelos autores e da história do movimento operário (Moraes, 2019, p. 90).

A primeira grande crise do capitalismo industrial (1830-1840) foi o período que correspondeu à formação do pensamento de Marx (antes de 1848 e até 1850). Em toda a Europa aquele foi o momento das grandes revoluções burguesas que tiveram seu apogeu em 1848, na França, acontecimentos que estimularam a reflexão marxiana: expansão rápida do capitalismo, formação de um sistema internacional de Estados capitalistas, organização do movimento operário (I Internacional), início da agitação social na Rússia (primeiro país não desenvolvido a manifestar crise) e, marcando o fim das revoluções jacobinas e o começo da era das revoluções proletárias, a eclosão da Comuna de Paris (Machado, 1989).

Além das considerações de Marx sobre as ações da Comuna de Paris no campo do ensino em 1871, Marx e Engels trataram da questão educacional em três programas políticos redigidos no período: para criação do movimento que assumiu o nome de Partido Comunista (Manifesto do Partido Comunista), às vésperas da revolução de 1848; para as Conferências da I Associação Internacional dos Trabalhadores, entre 1866 e 1868; para o Primeiro Partido Operário Unitário, na Alemanha, em 1875 (na Crítica ao Programa de Gotha). Há contribuições ao tema em A ideologia alemã (1845/46), no primeiro volume de O Capital (1867) e (1875), e, também, umas rápidas notas sobre educação profissional no manuscrito anexo a Trabalho assalariado e Capital (1849), intitulado O salário (Moraes, 2019; Nogueira, 1990; Machado, 1989; Palácios, 1978).

Embora haja mudanças nas propostas educacionais de Marx e Engels durante todo período, o que persiste é a ideia da necessidade, para os trabalhadores, da união do ensino com o trabalho. Num contexto em que as crianças eram exploradas como mão de obra na produção fabril em condições insalubres, as exigências referentes à associação entre trabalho e instrução são incorporadas, já em 1848, no Manifesto do Partido Comunista, em que além da defesa da “educação pública para todas as crianças” e a abolição do trabalho infantil nas fábricas, propõe-se “a integração da educação com a produção material” (Marx; Engels, 1998, p. 28).

Contudo, a questão será retomada quase 20 anos depois, nas intervenções de Marx feitas na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), submetidas aos congressos da organização em Genebra (1866) e na Basileia (1869), nos quais o modo como a educação deveria se organizar na prática teve tratamento mais preciso. Para Nogueira (1993, p. 110), o texto de 1866 “representa o mais completo escrito de Marx sobre o assunto e onde a sua concepção educativa se encontra exposta de modo mais explícito”:

 

A sociedade não pode permitir nem aos pais, nem aos patrões o emprego de crianças e adolescentes para o trabalho, a menos que se combine o trabalho produtivo com a educação (Marx, 1965, p. 1468, apud Nogueira, 1993, p. 109).

 

As propostas educacionais formuladas para a organização programática da AIT evidenciam a preocupação de apreender a educação na sua relação com o trabalho naquela conjuntura histórica. Por isso, o caráter de recomendações ou instruções para o movimento operário que buscavam preservar a infância e a juventude de efeitos perversos à sua saúde física e mental, oriundos das condições de trabalho, e viabilizar a elas uma formação geral, técnica e política. Desse modo, as propostas se dirigiam ao futuro e também tinham como alvo a sociedade tal qual ela se apresentava.

Anos mais tarde, em 1875, dirigindo-se ao Partido Social-Democrata Alemão reafirmam sua preocupação com o desenvolvimento físico e mental da criança operária e a regulamentação de suas condições de trabalho, declarando:

 

[...] desde que se garanta uma rigorosa regulamentação do tempo de trabalho segundo as faixas etárias, bem como outras medidas de proteção das crianças, o fato de combinar, desde tenra idade, o trabalho produtivo com a instrução constitui-se num dos mais poderosos meios de transformação da sociedade atual (Marx; Engels, 1972, p. 49).

 

A insistência de Marx e Engels na necessidade da união do trabalho com a instrução, de superar a cisão entre o trabalho intelectual e o trabalho manual, deve ser entendida no interior de sua crítica geral à divisão do trabalho existente na sociedade capitalista. É nesse sentido que Marx encoraja a AIT a incluir em sua plataforma a reivindicação por uma formação politécnica para os trabalhadores. A ata do Congresso de Basiléia, de 1869, nos apresenta a percepção de Marx sobre a discussão dos trabalhadores da AIT a respeito da proposta:

O cidadão Marx diz que todos estão de acordo sobre certos pontos determinados. A discussão ocorreu após ter sido proposto ratificar a resolução do congresso de Genève, que reivindica combinar o ensino intelectual com o trabalho físico, os exercícios de ginástica à formação politécnica. Ninguém tem feito objeção a este projeto. A formação politécnica, que foi sustentada por escritores proletários, deve compensar os inconvenientes resultantes da divisão do trabalho que impedem os aprendizes de assimilar um conhecimento aprofundado de seu ofício. Sobre este ponto, sempre se partiu do que a própria burguesia entende sobre educação politécnica, e foi isto que provocou interpretações errôneas (Marx, 1869 apud Dangeville, 1978).

 

Acerca deste aspecto, no manuscrito anexo a Trabalho Assalariado e Capital (1849), intitulado O Salário, Marx considera:

 

Uma outra reforma muito apreciada pelos burgueses é a educação, particularmente a educação profissional universal. Não pretendemos realçar a absurda contradição segundo a qual a indústria moderna substitui cada vez mais o trabalho complexo pelo trabalho simples para o qual não há necessidade de qualquer formação; também não queremos realçar que ela empurrou cada vez mais crianças a partir dos sete anos para detrás das máquinas, fazendo delas uma fonte de lucros tanto para a classe burguesa como para seus próprios pais proletários. O sistema manufatureiro põe em causa a legislação escolar – como é disso testemunha a Prússia (Marx, 1849 apud Dangeville, 1976; 1978).

 

Em seus escritos sobre A guerra Civil na França (1871), ao analisar as medidas no campo da cultura e do ensino tomadas pela Comuna de Paris, Marx afirma que a maior conquista da Comuna foi “a sua existência efetiva”, em clara referência à “transgressão da divisão que atribui a alguns o trabalho manual e a outros a atividade de pensar” que ela promovia. Como afirma Kristin Ross (2021, p. 83-84), “mais importante do que qualquer lei que os comunardos colocaram em prática, foi o fato em si de que os seus trabalhos cotidianos inverteram as hierarquias e divisões enraizadas – especialmente a divisão manual e trabalho artístico ou intelectual”.

E, continua:

 

O mundo é dividido entre aqueles que podem e aqueles que não podem se dar ao luxo de manipular palavras ou imagens. Quando essa divisão é superada, como foi durante a Comuna, [...] o que de fato importa, mais do que quaisquer imagens transmitidas, leis promulgadas ou instituições fundadas, são as capacidades postas em movimento. Não é preciso começar pelo início – pode-se começar de qualquer lugar (Ross, 2021, p. 84).

 

É relevante recuperar que as origens da concepção de educação integral se devem aos debates da Primeira Internacional, na qual o termo é ratificado para distinguir a educação a que as classes trabalhadoras deveriam almejar daquela que lhes fora destinada pela classe burguesa. A proposta de educação integral, ligada à história do movimento revolucionário do século XIX, colocava-se contrária à existência de dois tipos de instrução – uma “aprimorada”, reservada aos burgueses, e outra, “simplificada”, destinada aos trabalhadores, expressão da dominação de classe – e em defesa de uma educação igualitária que possibilitasse o pleno desenvolvimento de todas as capacidades do indivíduo, integrando o trabalho manual e o intelectual (Bakunin, 2003).

A concepção de educação integral apresentada nos Congressos da Internacional dos Trabalhadores em Lausanne (1867) e em Bruxelas (1868), formulado por Paul Robin, enfatizará a existência de três dimensões, necessariamente integradas: a dimensão física, a dimensão moral e a dimensão intelectual. Os princípios educacionais, vigentes na AIT sob o “Programa de Ensino Integral”, com as nuances próprias da histórica caracterização entre socialistas e anarquistas, foram aprovados consensualmente pelos participantes, inclusive por Marx, Bakunin e Proudhon e pelas tendências que representavam (Luizetto, 1986; Moraes; Accioly e Silva, 2013).

Coube ao educador Paul Robin (1837-1912) o protagonismo na construção dessa proposta de pedagogia libertária, e seu projeto, aprovado na AIT, foi posto em prática, mais tarde, quando dirigiu por 14 anos o orfanato de Prévost, em Cempius (1880-1894). Os aspectos de seu projeto político-pedagógico libertário, baseados na concepção da educação integral e emancipatória, no ensino laico, racional-científico e em sua relação com o trabalho, na coeducação sexual e na autogestão pedagógica, contribuíram para a formação de educadores que pautavam a melhoria das práticas e concepções da pedagogia contemporânea, como Sebastien Faure e Francisco Ferrer (1849-1909) até Célestin Freinet (1896-1966) (Moraes; Accioly e Silva, 2013).

Entre 1880 e 1890, as conquistas sociais do movimento operário são ampliadas, com a consolidação das reivindicações no alargamento do campo da legislação social e consequente melhoria das condições de vida aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, a burguesia aprofunda seu crescimento produtivo, fomenta as bases da II Revolução Industrial e se expande colonialmente. Esse novo contexto também produz mudanças na organização do movimento operário e nas iniciativas da II Internacional, fundada em 1889 (Carone, 1993). Nos congressos internacionais, realizados entre os anos de 1889 e 1914[3], predominam as discussões a respeito da tomada do poder e da utilização de métodos que a viabilizem, ao passo que os temas relativos à educação são tratados de modo lateral.

De todo modo, a AIT é um meio de circulação de ideias pedagógicas que debateu propostas educacionais, em distintos momentos. Conforme Carone (1993, p. 50), “a questão da criança operária, das suas condições de trabalho e da respectiva legislação protetora” é analisada em sua Comissão de Educação e Desenvolvimento Físico no Congresso de 1896, na diversidade de posições entre socialistas e anarquistas, antes da definitiva expulsão dos últimos em 1896. O combate à influência do clericalismo nas escolas “ditada pelo desejo de abafar, no espírito da juventude proletária, o germe do pensamento de emancipação” e o trabalho em favor da educação laica, são priorizados no congresso de 1904 (Congrès Socialiste International, 1904, p. 180-181, apud Carone, 1993, p. 74); e, no congresso de 1910, a ênfase é atribuída ao papel educativo das cooperativas pela autonomia de trabalhadores, de forma a arregimentar a disciplina operária e dispensar intermediários (Carone, 1993, p. 106), e manifesta-se solidariedade a Francisco Ferrer y Guardia, educador espanhol, fundador da Escola Moderna de Barcelona que, em 1909, fora executado sob pena de morte (Carone, 1993, p. 110).

Diante da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) a pressão imperialista manifestou interesses inescrupulosos da classe dominante contra a humanidade e o movimento de trabalhadores teve o marco histórico da Revolução Russa em 1917, expressando que o socialismo, de uma utopia, poderia se tornar uma experiência historicamente realizável, e, em 1919, é fundada a III Internacional Comunista, tendo Lenin como seu principal dirigente. O tema da educação foi tratado a partir do Segundo Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1920 (Diniz; Bauer; Delcorso, 2019).

Já no período pré-revolucionário da Rússia, a vanguarda de educadores não era indiferente com o movimento de “escolas novas”. Em 1915, Nadezhda Krupskaya (1869-1939), formuladora e construtora da pedagogia soviética revolucionária, analisa mudanças pedagógicas na Inglaterra, em alguns países europeus e nos Estados Unidos, com muitas menções a John Dewey, destacando características de uma educação progressista que constituiria base da educação pós-revolução na Rússia, na qual a transformação da escola de ensino em escola do trabalho seria uma inevitabilidade (Krupskaya, 2017a).

Em meio à ruína causada pela Primeira Guerra Mundial e pela Guerra Civil, ao lado da construção econômica foi iniciada a construção da escola soviética com a mobilização da campanha pelo fim do analfabetismo. Paralelamente a essa, a plataforma educacional bolchevique considerava que “a nova concepção pedagógica exigia revisão estrutural dos conteúdos atinentes à relação entre trabalho e educação” que possibilitasse relações orgânicas entre a escola e a nova vida social, de modo a vincular “educação geral, de cunho humanístico e trabalho socialmente útil” (Bittar; Ferreira Jr., 2021, p. 73).

Ocupando Krupskaya e Anatoli Lounatcharski (1875-1933) funções diretivas no sistema educacional soviético, no que diz respeito ao método, recorre-se a Dewey e às experiências educacionais que adotaram o ativismo pedagógico (Bittar; Ferreira Jr., 2021). Quanto à organização dos fundamentos da educação do trabalho, como se constata na Declaração sobre os Princípios fundamentais da Escola Única do Trabalho de 1918 (Krupskaya, 2017b, p. 288-289), expõem-se posicionamentos próprios “contra a educação técnica especial para as idades mais avançadas” e “energicamente contra qualquer estreitamento específico do círculo da educação do trabalho nos níveis mais elementares da escola única, ou seja, pelo menos até a idade dos 14 anos” (Krupskaya, 2017b, p. 289-290). E, assim, com base nessa crítica, na Declaração afirma-se que o objetivo da escola do trabalho é a “educação politécnica”: “que dá às crianças, na prática, o conhecimento dos métodos de todas as mais importantes formas de trabalho, em parte na oficina escolar ou na fazenda escolar, em parte nas fábricas, usinas e semelhantes” (Krupskaya, 2017b, p. 290).

Dando prosseguimento à forma de organização dos conhecimentos da escola do trabalho, a Carta metodológica sobre o ensino por complexos (Krupskaya, 2017c) de 1924, elaborada pela Seção científico-pedagógica do Conselho Científico Estatal soviético, dirigida por Krupskaya, anuncia suas propostas. O referido sistema de complexos buscava dar lugar à organização disciplinar de conhecimentos, demonstrando a pesquisa por inovação pedagógica implementada nas escolas da União Soviética[4].

O intercâmbio proporcionado nos encontros da Internacional Comunista, ou a Terceira Internacional (1919-1943), também foram meios de circulação de ideias pedagógicas e, obviamente, de debates polêmicos. No contexto em que as proposições mencionadas eram feitas, Antonio Gramsci (1891-1937) teve convívio com intelectuais soviéticos em função de sua participação como representante do Partido Comunista da Itália nas conferências da Internacional Comunista realizadas em Moscou, em 1922.

Conforme alerta-nos Manacorda (2019), é difícil determinar, no período pré-carcerário, até que ponto a influência do exemplo soviético faz-se presente em Gramsci ao cunhar sua proposta educativa, dado que havia se desenvolvido grande polêmica a respeito da escola do trabalho, ao passo que também se percebem referências quase diretas à referida política educacional[5]. Contudo, nos Cadernos do cárcere, ao explicitar sua ideia de escola unitária, Gramsci mostra ter acompanhado o debate educacional soviético, assim como conhece o legado de Marx e das Internacionais. A concepção de escola unitária, elaborada em contraposição à reforma educacional implementada pelo governo fascista italiano, consiste em esforço analítico que contribui decisivamente até os dias atuais para o campo de pesquisa Trabalho-Educação, para a formulação de políticas de educação integral opostas à escola dualista, criticada por educadores democráticos ao contribuir para a reprodução das desigualdades sociais (Moraes, 2015; Jacomini, 2022).

 

Contribuições de Gramsci ao debate da educação contemporânea

As reflexões de Gramsci sobre a educação no contexto da Itália do início do século XX contêm um conjunto de análises sobre escolarização e formação humana numa perspectiva crítica à sociedade capitalista e atenta às necessidades de uma nova sociedade. Retomar o pensamento gramsciano neste momento de reformas educacionais que comprometem a realização do direito constitucional à educação das classes populares, pode contribuir tanto para a compreensão do significado das reformas no contexto de crise e reprodução do capital, quanto para a construção de instrumentos teóricos, conceituais, para a disputa de hegemonia no campo educacional. As noções de ideologia, hegemonia e bloco histórico, desenvolvidas nos Cadernos do cárcere, são fundamentais para a elaboração gramsciana relativa à educação das classes subalternas e do princípio educativo no sentido estrito (Broccoli, 1977).

Como observa Eagleton (1997, p.106-107), é com Gramsci que se efetua “a transição crucial de ideologia como sistema de ideias para ideologia como prática social, vivida, habitual, que deve presumivelmente abranger as dimensões inconscientes, inarticuladas da experiência social, além do funcionamento de instituições formais”. Diferentemente do marxismo “estruturalista” para o qual o estabelecimento da hegemonia só pode se realizar “por meio da transformação no terreno ideológico, historicamente posterior à transformação econômica possibilitada pelo acesso ao ‘político’, fundamento da hegemonia” (Cardoso, 1978, p. 74-75) –, com a relação dialética entre coerção e direção (consenso), a hegemonia passa a incluir a possibilidade de uma reforma intelectual e moral antes da tomada do poder do Estado (sociedade política) pelos grupos dominados, aspecto relevante para a transformação social (Moraes, 2015; 2023).

Nessa direção, cabe enfatizar que as instituições privadas de hegemonia diferem da noção althusseriana de Aparelhos Ideológicos de Estado na medida em que estes apenas reproduzem as relações sociais existentes e sua forma de atuação só se modifica após a conquista direta do aparelho estatal repressivo. A esse respeito, é importante esclarecer, com a ajuda de Lefebvre (1973), que a extensa elaboração de Marx sobre a gênese e a história do capitalismo “pressupõe apenas a análise crítica da produção e reprodução dos meios de produção” (Lefebvre, 1973, p. 47). É no Capítulo Inédito de O Capital (Marx, 1984), que Marx desenvolve o conceito de reprodução das relações sociais: produção de relações sociais no seio da reprodução, isto é, não há reprodução sem produção de novas relações (Moraes, 2015; 2023).

A leitura filológica das elaborações de Gramsci indica que ele não chegou a conhecer esses escritos de Marx. No entanto, a nosso ver, tal como em Marx, sujeitos, processos e formas fazem parte das análises de Gramsci. Como salienta Bianchi (2008, p. 138), em sua acepção original, o conceito de Bloco Histórico surge como ferramenta teórica para a interpretação crítica “das relações históricas, da unificação dos processos de reprodução social das relações políticas e reprodução político–ideológica das relações sociais” na sociedade capitalista contemporânea.

As instituições privadas de hegemonia desenvolvem-se como partes constitutivas da sociedade civil. E um dos pontos centrais do marxismo de Gramsci consiste em não separar de modo hipostasiado nenhum aspecto do real (economia, sociedade, Estado, cultura). A concepção gramsciana de Estado integral inclui o aparelho hegemônico (Gramsci, 2019b, C. 10, § 12). Como Gramsci afirma diversas vezes, “sociedade civil e Estado se identificam na realidade dos fatos” (Gramsci, 2019a, p. 47, C. 13, §18, p. 1590), ou “sociedade civil ‘também é ‘Estado’, aliás é o próprio Estado” (Gramsci, 2014, p. 2302, Q. 26, § 6).

A referência ao pensamento althusseriano remete a uma concepção marxista “muito influente na sociologia acadêmica” que “inseriu as classes na ‘história’ como suportes de variações estruturais das relações de produção”, aprisionando a ação humana em estruturas que a definem aprioristicamente (Secco, 2006, p. 63). O método “resolutamente historicista” (Lowy, 2017), que informa os estudos gramscianos sobre hegemonia, abre um fértil campo de reflexão “sobre o fazer-se das classes sociais nas suas lutas e antagonismos” (Secco, 2006, p. 63).

Para Marx, como para Gramsci, não há classes sem luta de classes, sem lutas políticas. Uma classe não existe senão virtualmente (é uma “classe em si” e não “para si”), até entrar na arena política, no nível superior da práxis, com uma práxis revolucionária. O que nos remete, do ponto de vista analítico, a que a apreensão dos conflitos permite chegar à unidade e, reciprocamente, a apreensão da unidade deve levar à elucidação da essência do conflito. Em síntese, a constelação de classes e de frações de classes, isto é, a estrutura da sociedade, muda historicamente e com a conjuntura (Moraes, 2005; 2013).

A partir das determinações mais gerais da teoria das classes sociais e do Estado, o marxista italiano analisa novas situações históricas, geradoras de novas determinações conceituais. Os seus estudos sobre os grupos e as classes subalternas, e as condições da subalternidade, e sua abertura para a dimensão “existencial do senso comum” (Baratta, 2011, p. 180) incorpora a dinâmica subjetiva dos agentes históricos como um dado objetivo da realidade (Secco, 2006, p. 66). A “questão política dos intelectuais” está relacionada, em Gramsci, ao problema crucial “do aprofundamento do nexo teoria-prática no interior dos mais recentes desenvolvimentos do marxismo” (Voza, 2017, p. 427). Como argumenta Frosini, sobre a relação estrutura e superestrutura, em referência explícita às apropriações/interpretações de Althusser sobre a questão:

 

se a chave da unificação das classes sociais é a função intelectual – que é ao mesmo tempo econômica, política e cultural, a ideia mesma de uma interpretação sobre a ‘determinação’ da política pela economia (como esferas reciprocamente externas, em que uma seria ‘determinante em última instância’) perde seu significado. A atuação (orgânica) do intelectual não anula a noção de determinação, mas a desloca para uma dimensão política e organizacional que suprime a exterioridade entre os diferentes níveis (e suprime também a ideia de ‘última instância’) (Frosini, 2015, p. 31).

 

Nessa perspectiva, a análise das relações de poder nos Cadernos possibilita também distinguir a teoria da hegemonia das teorias da dominação simbólica de inspiração weberiana, como das pesquisas de Pierre Bourdieu e J. Claude Passeron (1971)[6]. A concepção de hegemonia e, em decorrência, a de ideologia, pensadas por Gramsci, impedem que se reduza a relação pedagógica unicamente a um trabalho de violência simbólica, e a escola a “simples aparelho de sujeição à ideologia dominante” ou de reprodução social. Em concordância com Frandji (2015, p. 46-47), entendemos que a relação pedagógica apreendida por Gramsci não se trata de “um simples processo de interiorização ou inculcação”, mas visa também assegurar o consenso, a mobilização dos sujeitos ou grupo de sujeitos para a intervenção social. 

Contrastando com a visão gramsciana, a ideologia – um dos conceitos-chave das teorias da reprodução cultural – assume conotação extremamente restritiva: a de “legitimar as relações dos homens entre eles” (Tanguy, 1986, p. 108). A dialética “economia-política-cultura” que caracteriza a noção de hegemonia gramsciana é aqui substituída por uma hegemonia restrita ao momento cultura/ideologia. A luta pela hegemonia ocorre apenas no plano dos discursos, das “ideologias” (Rebuccini, 2015, p. 88). Podemos ainda afirmar, nessa direção, que tal análise “passa ao largo de um problema central: o do conteúdo do saber e do seu lugar na divisão do trabalho, confundindo todo e qualquer saber com ideologia” (Lefebvre, 1973, p. 62).

De acordo com Lefebvre (1973, p. 63), Bourdieu e Passeron, em Les Héritiers (1964) e mesmo na Reproduction (1970), ao examinarem o recrutamento do pessoal dirigente na sociedade burguesa, “não vão além, senão incompletamente, da reprodução dos meios de produção, meios de que os agentes da produção fazem parte”. Nesse sentido, as contribuições gramscianas nos permitem avançar na análise da escola e de seu papel nas sociedades capitalistas numa dialética que não se limita à função de reprodução.

Para Gramsci, a crise da escola e da formação de intelectuais “é em grande parte um aspecto e uma complexificação da crise orgânica mais ampla e geral” (Gramsci, 2000, C. 12, § 1 p. 33) que caracteriza o contexto histórico da Itália dos anos 1920-1930, no qual os fascistas chegaram ao poder[7].

A reforma educativa de 1923, realizada pelo filósofo Giovanni Gentile, expressou a “ambição totalitária” do “Estado ético”. Para o Ministro da Educação daquele período, o ensino público não deveria assumir “a forma da transmissão de um saber positivo, material e enciclopédico”, mas ser “um momento de profunda unidade espiritual” (Landji, 2015, p. 48-49). No campo do ensino elementar, Lombardo-Radice, o diretor geral da instrução primária e popular, seguindo as orientações do educador Pestalozzi, introduz “a pedagogia da descoberta, o ensino mútuo, o apelo à espontaneidade da infância, baseado no desenho, no canto, no folclore e nos trabalhos manuais, contra o culto do livro e do ensino religioso” (Landji, 2015, p. 49).

Gramsci se opõe fortemente a essas orientações e acompanha as discussões pedagógicas que ocorriam no movimento fascista italiano em torno da “escola unitária de base” (Debrun, 2001, p. 260). As correntes favoráveis à escola unitária foram vencidas, prevalecendo nas reformas Gentili a tendência, assinalada por Gramsci (2000, p. 33, C. 12, § 1), de “difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura atividade são predeterminados”. Nas palavras de Broccoli (1979, p. 174), o marxista italiano lutou contra o “estreito nexo estabelecido pela escola gentiliana entre educação e economia”. 

O projeto gramsciano de “escola unitária” para a “formação humanista (entendido este termo, ‘humanismo’, em sentido amplo e não apenas em sentido tradicional)” (Gramsci, 2000, p. 36, C. 12, § 1), aparece como uma das soluções à crise diagnosticada e, nele, são analisadas inúmeras questões e formulados elementos centrais da crítica baseada em uma abordagem relacional das desigualdades escolares que, como vimos, será desenvolvida mais tarde, nos anos 1960, pela história e sociologia da educação (Landji, 2015, p. 49).

É preciso, inicialmente, reconhecer à escola unitária um significado que vai além daquele da oferta de iguais oportunidades educativas, como resposta a exigências de tipo democrático, mas não supera o modelo de escola seletiva, legitimada pelo princípio meritocrático da igualdade de chances. A leitura integrada dos Cadernos permite verificar, na análise da escola e da relação educativa, uma “íntima unidade e profunda coerência de significados” (Broccoli, 1979, p. 174-175). Essa leitura possibilita definir, como um dos primeiros objetivos da escola unitária, a realização – em termos gramscianos – das condições do “mesmo clima cultural” (Gramsci, 2019b, p. 399, C. 10, II, § 44), indispensável à criação de um novo bloco histórico, de uma nova hegemonia.

Em seu diagnóstico sobre a crise educacional na Itália dos anos 1920, Gramsci rejeita tanto a defesa nostálgica da escola tradicional italiana, “oligárquica pelo seu modo de ensino”, quanto as orientações “positivistas” e “idealistas” (Gramsci, 2000, p. 49, C. 12, § 2) para a edificação de uma educação ajustada à moderna sociedade industrial em gestação. O problema central para Gramsci é “a manutenção de um sistema escolar socialmente diferenciado”, que se torna cada vez mais fragmentado (‘particularizado’, como define no Caderno 12, § 1), na lógica da divisão social do trabalho que contribui a cristalizar e a reproduzir (Landji, 2015, p. 49). Para se destruir essa “trama”, segundo Gramsci, deve-se “não multiplicar e hierarquizar os tipos de escola profissional, mas criar um tipo de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige” (Gramsci, 2000, p. 49, C. 12, § 2).

Diferentes passagens dos Cadernos detalham o programa da escola unitária. A maior parte de suas reflexões dirige-se à concepção dialética do trabalho intelectual. O princípio educativo de base, definido por Gramsci, é o do “trabalho”, a “atividade teórico-prática” (Gramsci, 2000, p. 43, C. 12, §2). É esse princípio que lhe possibilita repensar a “cultura humanista” e a organização escolar fragmentada e hierarquizada que a ameaça e, ao mesmo tempo, reproduz a lógica capitalista da divisão entre trabalho industrial, técnico e manual, e intelectual. Trata-se de superar a mutilação do homem, a separação entre homo sapiens e homo faber (Gramsci, 2000, C. 12, § 3). Contra essa “formação de massa”, que prepara “especialistas” e não “dirigentes”, ele propõe:

 

a escola única de cultura geral, humanista, formativa, que equilibre [...] o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola única, através de repetidas experiências de orientação profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao trabalho produtivo (Gramsci, 2000, p. 33-4, C. 12, § 1).

 

O advento da escola unitária significa

 

o início de novas relações entre o trabalho intelectual e o trabalho industrial não apenas na escola, mas em toda a vida social. O princípio unitário, por isso, irá se refletir em todos os organismos de cultura, transformando-os e emprestando-lhes um novo conteúdo (Gramsci, 2000, p. 40, C. 12, § 1).

 

Entendemos que, na perspectiva marxista de Gramsci, o trabalho enquanto princípio educativo incorpora as duas dimensões do trabalho, conceito abstrato e experiência concreta. Nesse registro, apontado por Marx nos Grundrisse (1987), o trabalho não visa unicamente à produção de coisas, mas à produção de relações sociais; ele exerce sua ação no plano subjetivo, singular: “o trabalho aparece como pleno desenvolvimento da atividade (pessoal)”, como desenvolvimento da individualidade ou como “produção de si”; e no plano coletivo, na “produção da política” (Moraes, 2015). O trabalho, como atividade humana, pode então ser definido de maneira extensiva como a “produção da sociedade”, ou a “produção social da vida” ou simplesmente como “produção do viver”[8]. Gramsci imprime sua própria particularidade a essa visão ao enfatizar as mediações entre estrutura e superestrutura, “ampliando o estudo do trabalho na esfera superestrutural como componente essencial do processo educativo” (Semeraro, 2015, p. 239). Nessa perspectiva, a educação é vista como trabalho, trabalho de produção do humano, da realidade social.

Em outros termos, “a relação homem-ambiente tende a tornar-se reciprocamente ativa por meio da mediação de um elemento historicizante e socializante, o trabalho” (Broccoli, 1979, p. 176). É com esse significado, enquanto atividade “teórico-prática” que o trabalho, segundo Gramsci, deve informar a construção dos conteúdos curriculares e as finalidades da escola unitária (Gramsci, 2000, C. 12, § 2).

A outra reflexão fundamental sobre os conteúdos do ensino, na criação do “mesmo clima cultural”, consiste na relação desses saberes com o “folclore”, designação que, para Gramsci, inclui o “pensamento mágico”, as “superstições”, “a barbárie individualista” e todas as outras “formas de sedimentações tradicionais das concepções de mundo” (Gramsci, 2000, p. 42, C. 12, § 2).

As notas dos Cadernos são frontalmente críticas tanto às proposições de Lombardo Radice de “ensinar o folclore às crianças” como “elementos pitorescos”, quanto às de Gentile, para quem “a religião e a mitologia” eram “boas para o povo”. Para Gramsci, tais concepções expressam a convicção na existência de dois mundos separados e contrapostos, o do menino-povo e do adulto/racional (ou o do senso comum e o da filosofia), impedindo o nascimento de uma nova cultura nas grandes massas populares (Broccoli, 1979, p. 168). O folclore, ao contrário, deve ser “tomado a sério”, e se é um obstáculo contra o qual a escola deve lutar, constitui também um recurso mediador da aprendizagem (Gramsci, 2000, C. 12, § 2). Toda atividade é intelectual, toda linguagem contém “elementos de uma concepção de mundo”, de uma filosofia (Gramsci, 2000, C. 12, § 1) e estas teses “não podem ser unicamente abstratas”. Gramsci percebe a heterogeneidade dos elementos constitutivos do folclore, principalmente quando ele se transforma em senso comum, o que o leva a analisar permanentemente as possibilidades do reencontro dinâmico entre os saberes escolar e popular (Fandji, 2015, p. 56).

Nesse ponto, convém voltar à analogia sobre a instauração da relação hegemônica entre os intelectuais e as massas e o modo como se expressa na relação educativa, entre professor e aluno. Em plena consonância com as Teses sobre Feuerbach e o Prefácio de 1859, a ideologia como concepção do mundo representa, em Gramsci, a tentativa tangível da classe hegemônica de produzir o consenso (“direção”) necessário à manutenção/reprodução de sua posição de preeminência (“domínio”) na sociedade. O conceito de ideologia é fundamental porque permite “uma consideração unitária” das formas de conhecimento/saberes “em todas as declinações possíveis (do folclore à religião, ao senso comum, à ciência e à filosofia)”. Gramsci nos propõe, através de sua visão de ideologia, “uma reflexão gnoseológica surgida no horizonte da política e vice-versa, uma proposta política que tem suas raízes na reflexão gnoseológica: ideologia e hegemonia tornam-se nesse sentido os dois conceitos por meio dos quais se realiza a unidade teoria e prática” (Gaboardi, 2017, p. 76-77).

Na luta hegemônica, o trabalhoso processo de “autoconsciência crítica” é descrito por Gramsci como “vinculado a uma dialética intelectuais-massa”. O grupo dos intelectuais se desenvolve quantitativa e qualitativamente, mas o salto qualitativo que lhe possibilita atingir uma “nova amplitude e complexidade” está “ligado a um movimento análogo da massa dos simples, que se eleva até os níveis superiores de cultura e amplia simultaneamente seu círculo de influência […] para o estrato dos intelectuais especializados” (Gramsci, 2019b, p. 104-5, C. 11, § 12). No Caderno 3, nota 48, abordando a mesma temática no plano da política, Gramsci reivindica “a fecundidade e justeza” da linha diretiva do “movimento de Turim”, dos Conselhos de Fábrica, que – para ele – consiste na “unidade da ‘espontaneidade’ e da ‘direção consciente’”, unidade da ação política real das classes subalternas (Baratta, 2011, p. 180).

São esses os pressupostos que informam a análise gramsciana da educação escolar. Em termos marxistas, o ambiente educativo deve ser educado. Da mesma maneira, a relação pedagógica é, para Gramsci, uma “relação criativa e recíproca” (Gramsci, 2000, C. 12, § 2), no sentido de que a escola deve propiciar ao aluno “a condição de investigar os termos de sua própria historicidade”, para que ele “possa indagar sobre si mesmo e elaborar criticamente sua própria personalidade, modificar-se e modificar as relações históricas, e, portanto, modificar o ambiente no qual é educado e também o mestre que é seu intérprete genuíno” (Broccoli, 1979, p. 162).

 

À guisa de conclusões

Diante do contexto de redemocratização da sociedade brasileira ainda no constante e acelerado desmonte de direitos, de disputas para ampliação da participação popular, de nefasta simbiose entre o público e o privado, quando agentes empresariais avançam ideologicamente sobre a escola pública e, utilizando discursos de modernização, assumem a condução de reformas educacionais (Todos pela Educação, Fundação Lemann, Ayrton Senna, Itaú- Unibanco etc.) promovendo “avassaladora mercantilização da educação sob dominância financeira e a drástica precarização do trabalho” (Leher, 2023, p. 233) que desafios nos colocam as proposições das Internacionais de Trabalhadores e aquelas elaboradas por Antonio Gramsci? Quais suas contribuições para as lutas populares, a juventude trabalhadora e os setores educacionais democráticos na resistência à atual reforma do ensino médio e para a construção da escola unitária de currículo integrado?[9]

Contrariamente à proposta da escola unitária, tanto na Itália de Gramsci como no Brasil de hoje, a política educacional amplia as desigualdades sociais e aprofunda a distinção entre escolas que são destinadas a formar os quadros intelectuais e políticos do país e as que, dirigidas às classes subalternas, devem prepará-las tão somente para as chamadas “profissões do novo século”. Atreladas supostamente aos interesses e sonhos da juventude, mas, na realidade, alinhadas às demandas do mercado e vinculadas aos ditames do capital, as reformas educacionais do atual período realizam profundas reformulações no conteúdo da educação com imposições e sérias implicações para a gestão escolar, as metodologias de ensino e os currículos orientados segundo a pedagogia das competências.

O Novo Ensino Médio (NEM), como a Reforma ficou conhecida, representa grande retrocesso em relação à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (Brasil, 1996), que estabelece a educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) como direito de todos, cuja finalidade é a formação ampla e comum, respaldada no conhecimento humanista e científico. O princípio público de uma educação geral, comum a todos, como forma de democratização, foi rompido pelos organismos multilaterais e governos neoliberais por meio de uma mudança estratégica nos objetivos da educação pública, que passa a focar o direito à aprendizagem, deslocando o conceito do direito à educação, direito extensivo a um conjunto de outros direitos que compõem a qualidade educacional.

Esse fenômeno, que atinge todos os níveis, etapas e modalidades de ensino, se expressa de forma mais contundente e perversa no ensino médio, última etapa da Educação básica. A atual reforma do ensino médio produziu um fosso ainda maior entre as escolas privadas, destinadas às elites e aos setores da alta classe média brasileira, e as escolas públicas, que formam os filhos das classes trabalhadoras, promovendo um verdadeiro apartheid educacional.

De acordo com o art. 36 da Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017), o currículo do ensino médio será composto pela BNCC e por itinerários formativos que deverão “ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos Sistemas de Ensino”. Nessas circunstâncias, enquanto nas escolas privadas a diversificação curricular ou, na designação mais correta, a fragmentação curricular não afetará a formação geral básica, na medida em que os itinerários darão continuidade aos conteúdos das disciplinas da Base Nacional Comum Curricular/BNCC, cujas aulas foram reduzidas, outra é a realidade das escolas públicas.

Nas diversas redes estaduais, a ausência de políticas públicas que garantam condições estruturais para o ensino de qualidade aprofundará a fragmentação e o aligeiramento da formação dos estudantes, cerceando o acesso ao conhecimento científico – das ciências da natureza e das humanidades – indispensável à apreensão do mundo e à construção da identidade individual e social. Ao mesmo tempo, as imposições legais provocam a desescolarização do ensino técnico profissional via itinerário formativo, que assume o formato de formação continuada, de organização modular e/ou de EAD, promovendo e aprofundando a privatização do ensino (Moraes, 2023).

Concordamos com Freitas (2023) quando observa que a categoria de “estudante protagonista” está associada à categoria trabalhador empreendedor, e que a liberdade de escolha do estudante se articula à liberdade de escolha do trabalhador. Segundo o autor, tudo se passa

 

como se fosse um truque de prestidigitação, em que independentemente das escolhas de cartas, o resultado é sempre aquele predefinido pelo mágico. O que se verifica, portanto, não sinaliza para o protagonismo juvenil, e sim o protagonismo do capital na condução da política educacional do país (Freitas, 2023, p. 167).

 

Desse modo, ao refletirmos sobre os debates e embates de movimentos socialistas em torno da educação das classes trabalhadoras, verificamos as enormes dificuldades enfrentadas historicamente e os obstáculos quase intransponíveis nas disputas de hegemonia, hoje, para libertar a educação da determinação e do condicionamento dos ditames do capital. Tarefa que, evidentemente, só se realizará com a superação do capitalismo e da sociedade de classes. Não obstante, a história ensina que nesses avanços e recuos, cuja sensação é de um perpétuo passado, as contradições se afloram de forma cada vez mais intensa e a dialética transformação/conservação coloca possibilidades para que o presente se desfaça da dualidade escolar e tome a concepção de escola unitária gramsciana como um elo com o futuro. Nessa direção, a luta coletiva deve fazer avançar os passos já dados na organização do ensino médio integrado ao técnico nos Institutos Federais, o que pressupõe a urgente revogação do Novo Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular.

No “debate social”, hoje, o pensamento de Gramsci torna-se, mais do que nunca, referência indispensável para analisar o capitalismo atual na sua hegemonia política, cultural e econômica e nas suas crises orgânicas, e para pensar dialeticamente a forma que a luta hegemônica das classes subalternas e seus movimentos contestatórios podem tomar nas diferentes realidades sociais. E, sobretudo, para pensar as relações pedagógicas, as relações “culturais” e escolares no âmbito das “formas capitalistas híbridas que se manifestam de modo recorrente na história do nosso país” (Bianchi, 2015, p. 110) e nos processos de modernização e conservação/atualização dessas formas dirigidas pelo “alto”.

 

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[1] Os escritos e pronunciamentos de Marx nas Conferências da Primeira Internacional são encontrados em Instruções para os delegados do Conselho Geral Provisório a propósito de diversas questões (extrato), reproduzido por Dangeville, R. (1976, 1978), e em La Première Internationale (FREYMOND, J. (org.). La premiere internationale. Genève: Droz, 1962. 2 v.).

[2] As citações de escritos de Gramsci (2000; 2014; 2019a; 2019b) neste trabalho se referem aos Cadernos do cárcere em versão traduzida para o português e a versão em italiano da edição crítica dos Quaderni del carcere do Istituto Gramsci indicando-se o Quaderno (Q)/Caderno (C) e o parágrafo (§) em que a citação pode ser localizada.

[3] São realizadas as seguintes reuniões: I Congresso Internacional Operário Socialista (tendência marxista), Paris 14-21.07.1889; II Congresso Internacional Operário Socialista, Bruxelas, 16-23.08.1891; III Congresso Internacional Operário Socialista, Zurique, 06-12.08.1893; IV Congresso Internacional Socialista dos Trabalhadores e das Câmaras Sindicais Operárias, Londres, 26.07-02.08.1896; V Congresso Socialista Internacional, Paris, 23-27.09.1900; VI Congresso Socialista Internacional, Amsterdã, 14-20.08.1904; VII Congresso Socialista Internacional, Stuttgart, 16-24.08.1907; VIII Congresso Internacional, Copenhague, 28.08-03-bhgtfh09.1910; IX Congresso Internacional Extraordinário, Bâle, 24-25.11.1912; X Congresso Socialista Internacional, 23-28.08.1914 (não se realiza, impedido pela guerra) (Carone, 1993, p. 33-34).

[4] Cabe assinalar que no enfrentamento para a edificação do sistema estatal de educação russo, em bases socialistas, o Comissariado Nacional anunciou em 1918, na primeira sessão de professores internacionalista, a criação das Escolas Experimentais – demonstrativas, entre elas, as Escolas Comunas que funcionaram como internato entre 1918 e 1937, quando foram definitivamente fechadas durante o regime stalinista. Entre essas escolas, encontrava-se a Lepeshinskiy, conduzida por Moisey Pistrak que desenvolveu relevante trabalho relativo à elaboração de programas de ensino que eram transformados em política pública educacional por todo o território russo (Freitas, 2009; Abreu, 2017).

[5] Como afirma Bianchi (2017), o período no qual Gramsci viveu em Viena e Moscou, até agora pouco conhecido, tem recebido novas luzes com as pesquisas em torno da edição nacional em andamento na Itália, as quais alimentaram a biografia político-intelectual do sardo. Sabe-se um pouco mais hoje sobre sua proximidade com o grupo de intelectuais que se organizavam em torno de Anatoli Lounatcharski, de suas atividades como representante do PCI no Comitê Executivo da Internacional Comunista na segunda metade de 1922. 

[6] BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. La reproduction. Paris: Ed. De Minuit, 1971.

[7] A respeito da história da educação na Itália, ver Broccoli (1979) e Frandji (2015).

[8] Marx já explicara, em uma curta passagem de O Capital (tomo III), que a estruturação tripartite das classes (trabalho, terra e capital) correspondentes à lógica fundamental do modo de produção é complexificada pela manutenção das relações mais antigas na formação social concreta e pela divisão sempre mais desenvolvida do trabalho. Em a Ideologia Alemã, a possibilidade da unidade da classe face à tendência da divisão é apontada por Marx e Engels: “Os indivíduos singulares formam uma classe somente na medida em que têm de promover uma luta contra uma outra classe; de resto, eles mesmos se posicionam uns contra os outros, como inimigos, na concorrência” (2007, p. 63).

[9] Alguns indicadores são importantes para a caracterização do cenário educacional, em particular do ensino médio no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/ IBGE, entre 2003 e 2020, o Brasil registrou sua maior população com idade entre 15 e 29 anos em números absolutos, cerca de 50 milhões de pessoas, o equivalente a ¼ da população nacional. No que se refere à escolaridade, temos hoje 8 milhões de estudantes matriculados, 83% nas redes públicas estaduais; 6% dos jovens com idade entre 15 e 17 anos estão fora dessa etapa de ensino médio (2 milhões no ensino fundamental e 1 milhão sem qualquer vínculo escolar). Nesse mesmo período, o percentual de jovens desempregados é recorde: 41,88% na faixa de 14 a 17 anos, e 26,8% entre 18 e 24 anos, em 2021.



[i] Artigo recebido em: 31/10/23

 Artigo aprovado em: 29/05/24

[ii] Contribuições da autora: conceituação; metodologia; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.

[iii] Contribuições do autor: conceituação; metodologia; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.

[iv] Contribuições da autora: conceituação; metodologia; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.