e-ISSN 1984-7246
Apropriações de Gramsci para a
educação das pessoas com deficiências: por que a escola inclusiva não é a
escola unitária
Liliam
Guimarães de Barcelos*
Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC)
Florianópolis, SC - Brasil
lattes.cnpq.br/6589044159843358
Venícios
Cassiano Linden**
Universidade Federal do Tocantins
(UFT)
Palmas, TO - Brasil
lattes.cnpq.br/7976847092398577
https://orcid.org/0009-0007-4095-5142
Apropriações de Gramsci para a
educação das pessoas com deficiências: por que a escola inclusiva não é a
escola unitária
Resumo
O presente texto tem por objetivo expor as
contradições em torno da defesa de que a escola inclusiva se equipara à Escola
Unitária proposta por Gramsci (2001). A exposição parte da análise do livro Gramsci e a Educação Especial (Melo;
Rafante; Gomes, 2019), no qual se registra uma série de argumentos que
equiparam a Educação Especial na perspectiva inclusiva com a Escola Unitária.
Para a análise, além do livro supracitado, partimos do posto no Caderno 12
sobre a Escola Unitária (Gramsci, 2001). Diante da argumentação dos autores
sobre a Educação Especial na perspectiva inclusiva e a Escola Unitária em
Gramsci (2001), concluímos que os autores tomam as contribuições de Gramsci por
um viés pós-estruturalista, desconsiderando a base teórico-metodológica
marxista-leninista, a análise da luta de classes e o papel da educação na luta
por um outro modelo de sociedade. Por fim, concluímos que a associação entre a
concepção de Escola Unitária e a escola inclusiva é um equívoco, dado que esta
não é suficiente para garantir estruturalmente a emancipação dos estudantes da
educação especial.
Palavras-chave: política
educacional; educação especial; educação inclusiva; Antonio Gramsci; escola
unitária.
Gramsci’s appropriations for the education of people with disabilities:
why the inclusive school is not the unitary school
Abstract
This text aims to expose the
contradictions surrounding the defense that the inclusive school is equivalent
to the Unitary School proposed by Gramsci (2001). The exhibition is based on
the analysis of the book Gramsci and Special Education (Melo; Rafante; Gomes,
2019), in which a series of arguments are recorded that equate Special
Education from an inclusive perspective with the Unitary School. For the
analysis, in addition to the aforementioned book, we started from the post in
Notebook 12 on the Unitary School (Gramsci, 2001). Given the authors' arguments
about Special Education from an inclusive perspective and the Unitary School in
Gramsci (2001), we conclude that the authors take Gramsci's contributions from
a post-structuralist bias, disregarding the Marxist-Leninist
theoretical-methodological basis, the analysis of the class struggle and the
role of education in the fight for another model of society. Finally, we
conclude that the association between the concept of Unitary School and the
inclusive school is a mistake, given that the latter is not sufficient to
structurally guarantee human emancipation of students from special education.
Keywords: educational politics; special education; inclusive
education; Antonio Gramsci; unitary school.
__________________________
Contribuições de
autoria
* conceituação, curadoria de dados, análise formal,
investigação, metodologia, administração do projeto, supervisão, validação, visualização,
escrita – rascunho original e escrita - análise e edição.
** conceituação, curadoria de dados, análise formal,
investigação, metodologia, administração do projeto, supervisão, validação, visualização,
escrita – rascunho original e escrita - análise e edição.
1 Introdução
Este texto tem
como objetivo expor as contradições em torno da defesa de que a escola
inclusiva[1] se
equipara à Escola Unitária proposta por Gramsci (2001). Esse posto, assim como
outros[2], foi
apresentado no livro Gramsci e a Educação Especial,
escrito por Douglas Christian Ferrari de Melo, Heulalia Charalo Rafante e
Jarbas Mauricio Gomes, publicado pela editora Brasil Multicultural, em
2019.
Nossa exposição
parte da análise desenvolvida sobre o referido livro, iniciada no projeto de
extensão ‘Apropriações da obra de Antonio Gramsci para pensar a política de
Educação Especial no Brasil: levantamento de questões’ no ano de 2020, a partir
do Grupo de Estudos sobre Educação Especial (GEEP) da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Nessa proposta de projeto de extensão, foi realizada
leitura coletiva do livro, sendo os capítulos distribuídos entre os participantes
do projeto para apresentação inicial e posterior debate em grupo.
Após a finalização
do projeto de extensão, compreendendo a relevância da exposição dessa temática,
passamos por uma segunda análise, a qual é aqui apresentada. Para tanto,
realizamos a releitura sistemática de todos os capítulos do livro, posterior
escrita de sínteses em torno de cada capítulo e debate por meio de encontros
semanais on-line. Após os apontamentos sobre cada capítulo do livro,
decidiu-se enfatizar a relação posta pelos autores do livro entre a Educação
Especial na perspectiva inclusiva e a Escola Unitária proposta por Gramsci, por
termos identificado nisso contradições da elaboração dos autores.
Ao longo do livro,
Melo, Rafante e Gomes (2019, p. 71) defendem a ideia de que, assim como a
Escola Unitária pressupõe o fim da separação entre dois tipos de escola, a
Educação Especial na perspectiva da inclusão consolidaria o fim da separação
“[...] entre escola especial e escola comum [...]”.
Se se quer
superar a escola dual, elitista e excludente, portanto, devemos, partindo da
proposta gramsciana, evitar a separação entre tipos de escola, no caso da
educação das pessoas com deficiência, entre escola especial e escola comum,
criando-se, ao contrário, um tipo único de escola [...] (Melo, Rafante e Gomes,
2019, p. 71).
Contudo,
considerando que a forma de organização da escola comum burguesa não busca a
emancipação, mas a alienação da classe trabalhadora para a perpetuação do modo
de produção capitalista, compreendemos que a inclusão dos estudantes público da
Educação Especial nesse modelo de escola pressupõe sua participação nos mesmos
processos educacionais alienantes que os demais estudantes, e não a emancipação
defendida por Gramsci.
Como materialidade
de análise para nosso estudo, partimos, portanto, do livro supracitado, além do
Caderno 12 do livro Cadernos do Cárcere, volume 2, de
Antonio Gramsci (Gramsci, 2001). Ao passo que o livro estrutura a
argumentação que relaciona Educação Especial na perspectiva inclusiva à Escola
Unitária, no Caderno 12 se encontram os principais elementos da elaboração de
Gramsci sobre a Escola Unitária. Para o debate, contamos com a contribuição de
estudos pautados no Materialismo Histórico e Dialético e que têm como foco a
análise crítica das políticas educacionais.
Inicialmente, são
apresentados alguns apontamentos sobre a concepção de Escola Unitária
desenvolvida por Gramsci e, em seguida, pontuados aspectos relacionados à ideia
elaborada pelos autores no referido livro, apontando as divergências que
caracterizam sua compreensão, a qual está concebida pela defesa da Educação
Especial na perspectiva inclusiva como materialização da Escola Unitária de
Gramsci.
2 Gramsci e sua proposta de uma Escola Unitária
O pensamento
filosófico do comunista italiano Antonio Gramsci (1891-1937) tem sido fruto de
muitos estudos no Brasil, principalmente a partir do final da década de 1960,
quando as primeiras traduções de seus escritos foram publicadas no país. Suas
formulações têm sido agrupadas a partir de dois momentos da sua vida: os
períodos pré e pós-carcerário. Para desenvolvimento da ideia central deste
trabalho, faz-se importante pontuar algumas questões acerca do contexto da
produção intelectual de Gramsci no período pós-carcerário, em que desenvolve de
forma mais sistemática a concepção de Escola Unitária.
Tendo sido um
militante marxista revolucionário e principal crítico do fascismo italiano,
Gramsci ocupava o cargo de secretário-geral do Partido Comunista da Itália
(PCI) e era deputado no Parlamento italiano quando foi condenado e encarcerado
em 1926 pelo regime fascista italiano, tendo permanecido preso até 1937, ano de
sua morte. Ou seja, no contexto da elaboração dos escritos carcerários, Gramsci
estava preso por ser comunista, ativista marxista e crítico do regime fascista!
Esse fato não pode ser desconsiderado nas leituras sobre seu pensamento
político.
Durante o período
de encarceramento, Gramsci desenvolveu um importante trabalho intelectual,
registrados em 33 cadernos escolares sistematizados, posteriormente, como os Cadernos
do Cárcere[3].
Foi durante esse período que o autor elaborou as grandes inovações teóricas
para o campo marxista, principalmente com sua interpretação sobre o Estado:
“Estado = sociedade civil + sociedade política, isto é, hegemonia revestida de
coerção” (Gramsci, 2007, p. 244). Com essa visão, ele enriquece a concepção
marxista de sociedade civil, compreendida como um campo plural de sujeitos
individuais e coletivos que se organizam na disputa pela hegemonia. Essa
concepção é a base das demais ideias desenvolvidas por Gramsci, dentre as
quais, as relacionadas à educação e à escola.
É possível
identificar o pensamento educacional de Gramsci contido ao longo de toda a sua
obra pré e pós-carcerária e também nas cartas escritas aos seus familiares, nas
quais demonstra preocupação com a educação escolar recebida pelos filhos e
sobrinhos na Itália e na União Soviética. Contudo, é especificamente no Caderno
12 (1932) que se encontram aglutinados os principais apontamentos em torno do
que Gramsci trata como Escola Unitária (Gramsci, 2001).
Gramsci entende a
educação como elemento essencial para a transformação das relações sociais, no
sentido que deve possibilitar que os dirigidos se tornem dirigentes. A tomada
de poder da classe subalterna é preocupação constante nas elaborações do autor,
que considera a educação como condição de luta e preparação para a práxis
revolucionária. Diante disso, os trabalhadores devem ser educados para
governar: dirigirem-se na vida e dirigirem-se coletivamente, no sentido de
exercer a hegemonia.
Ao sistematizar
seu pensamento sobre a educação e a escola, o autor parte do pressuposto que a
escola, como espaço de organização cultural dos trabalhadores, deve promover um
modelo educativo capaz de construir a capacidade de compreensão humana da
realidade e as condições para o subalterno elevar-se intelectual e moralmente.
Gramsci critica a
organização escolar de seu tempo, – especialmente a escola burguesa; a escola
tradicional organizada pela lei Casati (1859); e a reforma educacional do
regime fascista, implementada por Gentile (1922-1923) – dialogando com as
correntes pedagógicas vivenciadas naquele contexto (pedagogia tradicional,
escola nova e experiência socialista).
Conforme o autor,
a escola tradicional, cuja organização e programas estavam enraizados em um
“[...] modo tradicional de vida intelectual e moral [...]” (Gramsci, 2001, p.
45), entrou em crise à medida que esse modo de vida foi colapsado pelo avanço
da sociedade moderna. Contudo, a “[...] velha escola [...]” (Gramsci, 2001, p.
45) contava com determinados aspectos positivos, já que propagava o ensino
“[...] desinteressado [...]” (Gramsci, 2001, p. 46), que buscava o
desenvolvimento interior da personalidade e a formação do caráter por meio do ensino
do conhecimento produzido pela humanidade.
A escola
instituída pela reforma Gentile, por sua vez, era caracterizada pela
fragmentação da formação e pela preocupação em “[...] satisfazer interesses
práticos imediatos [...]” (Gramsci, 2001, p. 49). A nova pedagogia implantada
por essa reforma, de base escolanovista, foi criticada por Gramsci, tendo em
vista a tendência em transformar o processo educacional em um
espontaneísmo.
[...] na
realidade, esta pedagogia é uma forma confusa de filosofia ligada a uma série
de regras empíricas. [...] formou-se uma espécie de igreja, que paralisou os
estudos pedagógicos e deu lugar a curiosas involuções (nas doutrinas de Gentile
e de Lombardo - Radice). A ‘espontaneidade’ é uma destas involuções: quase se
chega a imaginar que o cérebro do menino é um novelo que o professor ajuda a
desenovelar. [...] não se leva em conta que o menino, desde quando começa a
‘ver e a tocar’, talvez poucos dias depois do nascimento, acumula sensações e
imagens, que se multiplicam e se tornam complexas com o aprendizado da
linguagem. A ‘espontaneidade’, se analisada, torna-se cada vez mais
problemática (Gramsci, 2001, p. 62).
Com base na
análise histórica sobre acontecimentos concretos, o autor critica a tendência
da multiplicação de especializações, que acabam por fragmentar o ensino
humanista e o técnico.
Pode-se
observar, em geral, que na civilização moderna todas as atividades práticas se
tornaram tão complexas, e as ciências se mesclaram de tal modo à vida, que cada
atividade prática tende a criar uma escola para os próprios dirigentes e
especialistas e, conseqüentemente, tende a criar um grupo de intelectuais
especialistas de nível mais elevado, que ensinem nestas escolas. Assim, ao lado
do tipo de escola que poderíamos chamar de ‘humanista’ (e que é o tipo
tradicional mais antigo), destinado a desenvolver em cada indivíduo humano a
cultura geral ainda indiferenciada, o poder fundamental de pensar e de saber
orientar-se na vida, foi-se criando paulatinamente todo um sistema de escolas
particulares de diferentes níveis, para inteiros ramos profissionais ou para
profissões já especializadas e indicadas mediante uma precisa especificação
(Gramsci, 2001, p. 32-33).
Essa divisão da
escola em clássica – ou
“[...] humanista [...]” (Gramsci, 2001, p. 32) – e técnica tem origem com o desenvolvimento
industrial, a partir da necessidade do “[...] novo tipo de intelectual urbano
[...]” (Gramsci, 2001, p. 33). Enquanto a escola clássica destinava-se às
classes dominantes e aos intelectuais, a escola profissional era destinada às
“[...] classes instrumentais [...]” (Gramsci, 2001, p. 33). Gramsci critica a
tendência de proliferação desse último tipo de escola, pois nele o saber
científico é difundido de maneira interessada e “[...] o destino do aluno e sua
futura atividade são predeterminados [...]” (Gramsci, 2001, p. 33).
Propõe, a partir
disso, uma forma de “[...] destruir essa trama [...]” (Gramsci, 2001, p. 49)
que delega a cada grupo social um tipo próprio de escola na qual são
perpetuadas determinadas funções: “[...] tradicional, dirigente ou instrumental
[...]” (Gramsci, 2001, p. 49). Assim, propõe a criação de uma
[...] escola única inicial de cultura geral,
humanista, formativa, que equilibre de modo justo o desenvolvimento da
capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual (Gramsci, 2001, p.
33-34, grifo nosso).
A escola única –
ou unitária – é, portanto, uma resposta de Gramsci a um problema real que
permeava o sistema educacional italiano. É uma proposta de transformação da
esola, tendo como previsibilidade a superação do dualismo entre governantes e
governados, na medida em que deve equilibrar a formação para o trabalho
intelectual e o manual e promover a organização cultural da classe
trabalhadora, a fim de que a classe se torne dirigente.
A concepção geral
da Escola Unitária é acompanhada por um programa escolar específico. O
currículo deve possibilitar, inicialmente, a elevação dos estudantes “[...] a
um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e prática e
a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa” (Gramsci, 2001, p. 36)
para, então, inseri-los na atividade social.
Na escola
elementar, a qual corresponde ao ensino fundamental, o objetivo deve ser “[...]
disciplinar e, portanto, também a nivelar, a obter uma certa espécie de
‘conformismo’ que pode ser chamado de ‘dinâmico’[...]” (Gramsci, 2001, p. 39).
Nessa fase deve ser proporcionado o ensino das noções “[...] instrumentais
[...]” (Gramsci, 2001, p. 37), ou seja, ler, escrever, fazer contas, geografia,
história, e, sobretudo, o ensino sobre “[...] as primeiras noções do Estado e
da sociedade [...]” (Gramsci, 2001, p. 37), no sentido de forjar uma nova
concepção do mundo contrária às “[...] concepções determinadas pelos
diversos ambientes sociais tradicionais, ou seja, contra as concepções que
poderíamos chamar de folclóricas” (Gramsci, 2001, p. 37).
O liceu – ensino médio – deve ser a “[...] fase criadora [...]” (Gramsci, 2001,
p. 38), capaz de desenvolver o “[...] elemento da responsabilidade autônoma nos
indivíduos [...]” (Gramsci, 2001, p. 38). Nessa fase, “[...] sobre a base já
atingida de ‘coletivização’ do tipo social, tende-se a expandir a
personalidade, tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e
social sólida e homogênea” (Gramsci, 2001, p. 39). Para tanto, Gramsci indica a
aplicação de um método de investigação e de conhecimento que favoreça o esforço
autônomo e espontâneo do estudante, com base na Filosofia da Práxis (Gramsci,
1999). As atividades escolares deveriam ser desenvolvidas em “[...] seminários,
nas bibliotecas, nos laboratórios experimentais [...]” (Gramsci, 2001, p. 45),
tendo em vista que nessa fase “[...] serão recolhidas as indicações orgânicas
para a orientação profissional.” (Gramsci, 2001, p. 40). O professor deve
assumir a função “[...] de guia amigável, como ocorre ou deveria ocorrer na
universidade” (Gramsci, 2001, p. 40).
Gramsci defende
que a Escola Unitária deva ser integral e pública estatal, de forma que as
camadas subalternas possam acessá-la. Para sua concretização, deve haver amplo
investimento do Estado na “[...] ampliação da organização prática da escola,
isto é, dos prédios, do material científico, do corpo docente, etc.” (Gramsci,
2001, p. 36). Além disso, de forma paralela à Escola Unitária, deve ser criada
toda “uma rede de creches e outras instituições nas quais, mesmo antes da idade
escolar, as crianças se habituem a uma certa disciplina coletiva e adquiram noções
e aptidões pré-escolares” (Gramsci, 2001, p. 38).
A Escola Unitária
é, portanto, um plano de Gramsci para uma profunda reforma educacional que visa
favorecer a construção de um projeto hegemônico das camadas subalternas e
promover a organização da cultura, educando os grupos subalternos para
elevá-los a um nível superior de civilidade.
3 A escola inclusiva é a Escola Unitária? Desnudando a
tese...
Conforme pontuamos
anteriormente, a defesa de que a escola inclusiva – ou escola comum/regular, operacionalizada na
perspectiva inclusiva – corresponde
à Escola Unitária de Gramsci foi apresentada no livro Gramsci e a Educação
Especial, elaborado por Melo, Rafante e Gomes (2019). Ao longo do livro, os
autores apresentam algumas formulações desenvolvidas por Gramsci, ao passo que
tratam da educação das pessoas com deficiência no Brasil, em que se posicionam
em “[...] defesa de uma educação das pessoas com deficiência na rede regular de
ensino em detrimento de uma educação integradora ou segregadora” (Melo; Rafante;
Gomes, 2019, p. 22).
Contudo, apesar do
esforço para sistematizar os conceitos gramscianos, a defesa pela perspectiva
inclusiva é desenvolvida de forma acrítica, desconsiderando a materialidade na
qual se opera a educação pública no Brasil. Apropriando-se da crítica
desenvolvida por Gramsci à dualidade no ensino, os autores refutam a separação
que ocorre “[...] entre a escola especial[4] e a
escola regular ou comum” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 20). Defendem
que
Se se quer
superar a escola dual, elitista e excludente, portanto, devemos, partindo da
proposta gramsciana, evitar a separação entre tipos de escola, no caso da
educação das pessoas com deficiência, entre escola especial e escola comum,
criando-se, ao contrário, um tipo único de escola [...] (Melo; Rafante; Gomes,
2019, p. 71).
Ao longo do livro
fica evidente a defesa da Educação Especial na perspectiva inclusiva, o que
indica que o tipo único de escola, defendido pelos autores, é a escola comum ou
regular “[...] inclusiva [...]” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 108).
A carência de
desenvolvimento de uma análise crítica sobre a educação no Brasil, permeada
pelas disputas no âmbito do Estado Integral, leva os autores a transpor, de
forma mecânica, o conceito gramsciano de Escola Unitária para a realidade
educacional brasileira no século XXI, fazendo uma equivocada associação entre a
Educação Especial na perspectiva inclusiva e a Escola Única ou Escola Unitária.
Na lógica dos autores, assim como a Escola Unitária pressupõe o fim da separação
entre dois tipos de escolas, a inclusão escolar consolidaria o fim da “[...]
separação entre escola regular e a escola especial.” (Melo; Rafante; Gomes,
2019, 2001, p. 109).
Conforme
apresentado, a proposta de escola unitária desenvolvida por Gramsci tem como
pressuposto o fim do dualismo na formação de diferentes quadros – dirigentes e dirigidos – e a promoção da educação para os grupos
subalternos, visando a sua emancipação. A questão é: a escola regular
brasileira tem possibilitado essa emancipação?
A resposta é dada
pelos próprios autores, quando reconhecem que, o que há em comum entre a escola
italiana, analisada por Gramsci, e a realidade nacional brasileira é a “[...]
dualidade dos sistemas escolares e a tendência em substituir a escola humanista
pela formação profissional” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 137). Apesar disso,
seguem defendendo a inclusão dos estudantes com deficiência nesse mesmo modelo
de escola, pontuando que
Assim como
Gramsci levantou a concepção de escola unitária como uma bandeira de luta
política, a defesa de uma educação que permita a pessoa com deficiência
vivenciar a experiência da inserção social por meio da educação recebida da
rede regular de ensino é a proposição de uma nova concepção de mundo [...]
(Melo; Rafante; Gomes, 2019, 2001, p. 21).
A proposição de
uma nova concepção de mundo, a que se referem os autores, é pautada, portanto,
na Educação Especial na perspectiva inclusiva, a qual “[...] tem por princípio
básico o acolhimento de todos os alunos nas escolas regulares, independente de
suas condições físicas, mentais, econômicas e culturais” (Melo; Rafante; Gomes,
2019, p. 108).
Com Gramsci,
compreendemos a política como “[...] forças sociais em luta [...]” (Gramsci,
2007, p. 31). Seus textos representativos evidenciam vozes discordantes, em
disputa e, por isso, a análise desses documentos deve levar em conta as
contradições internas às suas formulações (Shiroma; Campos; Garcia, 2005).
Partindo dessa
premissa, identificamos que o discurso da inclusão – pauta dos movimentos que lutam, historicamente,
pelo fim da segregação das pessoas com deficiências – tem sido difundido por
organismos internacionais e incorporado às políticas públicas brasileiras desde
a década de 1990, num contexto de avanço do neoliberalismo em nível mundial e
da exacerbação das desigualdades decorrentes da crescente exploração da força
de trabalho. A escola, nessa conjuntura, é reconvertida a mecanismo de
assistência para o alívio da pobreza e para a contenção da insatisfação da
massa de trabalhadores, cada vez mais pauperizados, a partir da promoção de
aquisição dos conhecimentos mínimos para sua inserção no mundo do trabalho
(Martins, 2007; Vaz, 2017). Nessa dinâmica,
[...] as
políticas públicas para a educação são formuladas mediante uma apropriação
liberal do conceito inclusão e corroboram para a defesa da manutenção do status
quo e consequente naturalização das desigualdades sociais (Garcia; Michels,
2021, p. 4).
No Brasil, a
perspectiva inclusiva para a Educação Especial foi consolidada com a publicação
da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação
Inclusiva (PNEEPEI), em 2008, apresentada pelos seus formuladores como um
novo “[...] paradigma [...]” (Brasil, 2008, p. 1) para a Educação Especial
brasileira por propor a matrícula dos estudantes da Educação Especial na classe
comum de escolas regulares e no Atendimento Educacional Especializado (AEE).
Como materialização da proposta, evidenciamos o duplo repasse de recursos do
FUNDEB referente aos estudantes matriculados na educação básica que também
estivessem matriculados no AEE. A sala de recursos multifuncionais foi
especificada como o lócus prioritário do AEE, podendo ser implementada em
escolas de ensino regular ou “[...] em centro de Atendimento Educacional
Especializado da rede pública ou de instituições
comunitárias, confessionais ou filantrópicas sem fins lucrativos”
(Brasil, 2009, p. 2, grifo nosso), o que evidencia as disputas históricas pelos
recursos da educação para as instituições privado-filantrópicas.
A perspectiva
inclusiva para a Educação Especial, portanto, foi consolidada no país tendo o
AEE como o modelo único de serviço da Educação Especial, com o objetivo de
“[...] complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e
desenvolvimento de sua aprendizagem” (Brasil, 2009, p. 1, grifo nosso).
A ênfase nos
recursos de acessibilidade e estratégias como forma de eliminação das barreiras
para a participação ‘plena’ dos estudantes da Educação Especial consiste em uma
estratégia ideológica e política do capital para a conformação sobre as
demandas imediatas do cotidiano desse público (Garcia, 2017). Consideramos que,
ao contrário das premissas presentes na documentação representativa da
política, o AEE dificilmente garantirá uma participação social plena para os
estudantes da Educação Especial, uma vez que não atua na solução de seu
problema base: a desigualdade social produzida pelo modo de produção
capitalista.
Ademais,
observamos que, por mais que a PNEEPEI tenha favorecido o acesso à escola para
os grupos de estudantes que tradicionalmente estiveram ‘excluídos’, essa
política repercutiu diretamente nas formas de empresariamento da educação, não
só pela ampliação da relação público-privado, diante da não universalização do
AEE, como também pela venda de equipamentos para as salas de recursos
multifuncionais, pela ampliação da oferta de formação docente na iniciativa privada
e pelas novas formas de contratação de docentes (Garcia, 2017).
Cabe destacar,
principalmente, que a perspectiva inclusiva para a Educação Especial tem sido
operacionalizada, nas últimas décadas, em um contexto de amplas reformas no
campo da educação, as quais buscam adequar a escola conforme os preceitos do
capital em sua fase flexível. A inserção dos estudantes da Educação Especial na
escola regular, nesse contexto, leva à sua participação nos processos
educacionais instituídos para a formação do trabalhador para o trabalho simples
e para a aquisição de habilidades e competências socioemocionais, visando um
conformismo diante da intensificação da exploração do trabalho.
Essa percepção
sobre as políticas de inclusão como parte de um conjunto de iniciativas da
burguesia para a conservação da ordem social não faz parte das análises de
Melo, Rafante e Gomes (2019). Por mais que recorram aos escritos de Gramsci
para pensar a educação das pessoas com deficiência, os autores apresentam uma
análise que pressupõe uma assepsia da base marxista das elaborações de Gramsci.
A maneira pela qual os autores operam o método analítico, prescindindo da
realidade material objetiva na qual a escola pública brasileira está inserida,
conduz a uma análise desprovida da crítica e à defesa da Educação Especial na
perspectiva inclusiva, em contraponto à segregação escolar.
A inclusão escolar
é apresentada pelos autores como “[...] uma nova concepção de mundo” (Melo,
Rafante e Gomes, 2019, p. 21), um princípio avançado, associada aos avanços da
razão e ao bom senso:
Quando se
pensa a educação pelos fundamentos teóricos gramscianos, dissolve-se a
dicotomia e a dualidade dos sistemas escolares. Inclusive e especialmente
daquele que segrega os estudantes em regulares e especiais. Do ponto de vista
gramsciano, todos são especiais e a educação escolar deve ser capaz de promover
o desenvolvimento pleno da pessoa humana. Devemos, no entanto, estar alertas e
vigilantes, como o guarda-noturno, porque, mesmo diante de princípios avançados, podemos viver retrocessos, muitos deles
oriundos de concepções de mundo conservadoras que tendem a retroceder os avanços da razão, abandonando o bom senso em direção ao senso comum e a
um empirismo grosseiro (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 155, grifo nosso).
A assimilação da
educação inclusiva pelos princípios liberais é reiteradamente apresentada no
livro. A inclusão é apresentada como uma corrente contra-hegemônica que se
contrapõe às correntes consideradas, pelos autores, como hegemônicas no campo
da Educação Especial, relacionadas às instituições privado-filantrópicas, em
que o atendimento educacional às pessoas com deficiência foi constituído
historicamente. A perspectiva inclusiva é posta como sinônimo de educação
emancipatória:
Pensar a
Educação Especial à luz de Gramsci significa olhar para a educação escolar da
pessoa com deficiência a partir de uma perspectiva inclusiva e emancipatória.
Assumir tal perspectiva, por outro lado, remete à necessidade de se contrapor
às correntes hegemônicas e que nortearam as práticas educativas direcionadas às
pessoas com deficiência (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 157).
A defesa pela
inclusão escolar, abstraída dos determinantes políticos e econômicos que
permeiam as políticas educacionais, faz parecer que a participação dos
estudantes com deficiência nos processos da escola regular será suficiente para
garantir as condições para sua elevação intelectual e moral, para sua
emancipação. É como se na escola regular brasileira estivessem contidos todos
os elementos da unidade entre teoria e prática, capazes de conduzir “[...] o
jovem até os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio
tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem
dirige” (Gramsci, 2001, p. 49).
A abstração
empreendida pelos autores fica ainda mais evidente quando passam a analisar a
Lei n. 13.146/2015, que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com
Deficiência (LBI). Afirmam que
Do ponto de
vista dos fundamentos filosóficos, pode-se conceber que o Estatuto da Pessoa
com Deficiência [LBI] possui uma vigorosidade que tende a permitir a
consolidação de um trabalho educativo emancipatório que tenha como marca a
formação integral do ser humano, equilibrando as necessidades imediatas da
produção material da existência com o ideal de formação cultural e intelectual
(Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 152).
Essa lógica é
construída a partir da interpretação dos autores do artigo 27 da LBI, o qual
discorre o seguinte:
A educação
constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de
forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e
habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e
necessidades de aprendizagem (Brasil, 2015, grifo nosso).
A respeito dos
termos destacados no excerto acima, Shiroma e Santos (2014) apontam que, diante
da crise capitalista do início deste século, um intenso processo de propaganda
passou a ser implementado visando forjar um “[...] senso comum sobre a
necessidade de reformas do Estado e educacionais para superação das crises”
(Shiroma; Santos, 2014, p. 22). Nessa dinâmica, alguns termos – ou slogans –, “[...] dotados de certa ‘aura positiva’ [...]”
(Shiroma; Santos, 2014, p. 27), passaram a ser propagados nas reformas
educacionais a fim de construir o consentimento ativo na população.
Sendo a educação
um campo de disputas, compreendemos, tal como Shiroma e Santos (2014) que
A reflexão
crítica sobre a função social da escola, pautada na historicidade das atuais
políticas educacionais e nas contradições que os slogans tentam ocultar,
confere-nos a importante tarefa de produzir elementos que promovam a
contra-hegemonia. (Shiroma; Santos, 2014, p. 22).
Analisando a LBI é
possível verificar que, no trecho acima destacado, são apresentados três
princípios de matiz neoliberal que têm sido perpetuados nas políticas
educacionais brasileiras como forma de assegurar a reprodução do modelo social
vigente: 1) sistema educacional
inclusivo; 2) aprendizado ao
longo da vida; 3) e a ideia de equidade.
Cabe destacar que,
em 2020, os três slogans foram incorporados à política nacional de
Educação Especial por meio do Decreto nº 10.502/2020, que instituiu a Política
Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo
da Vida. Dentre as principais alterações para a modalidade, o Decreto
previa como serviços da Educação Especial as escolas e classes especiais e bilíngues,
o que possibilitaria o atendimento educacional dos estudantes da Educação
Especial em espaços que não os da sala de aula comum das escolas
regulares.
Em dezembro de
2020, a partir de uma ação direta de inconstitucionalidade movida pelo Partido
Socialista Brasileiro (PSB), o Decreto nº 10.502/2020 foi suspenso pelo
ministro Dias Toffoli do Supremo Tribunal Federal (STF), o qual o considerou
inconstitucional. Apesar disso, o conteúdo da proposta segue sendo defendido e
disputado por grupos ultraconservadores que buscam não só a produção de um
consenso funcional à manutenção da hegemonia burguesa, mas também a captação
dos recursos do fundo público para as instituições de Educação Especial
mantidas por entidades privadas (Barcelos; Garcia; Lorenzini, 2023).
Diante disso,
apresentamos a análise acerca dos principais conceitos que cercam a proposta e
que são enaltecidos por Melo, Rafante e Gomes (2019) em sua análise sobre a
LBI. Ressaltamos que nossa análise ocorre no âmbito do GEEP/UFSC e foi apresentada
por Barcelos, Garcia e Lorenzeni (2023) em estudo sobre a Política Nacional de
Educação Especial (PNEE) proposta no governo de Jair Bolsonaro.
A respeito do sistema educacional inclusivo, as
autoras pontuam que o slogan tem sido apropriado por muitos “[...] como
um espaço educativo em que a diferença e a diversidade são acolhidas [...]”
(Barcelos; Garcia; Lorenzini, 2023, p. 221). Tal concepção foi definida pelo
Banco Mundial como o “[...] conjunto de recursos da comunidade que articula
organizações públicas e privadas para a oferta da educação” (Barcelos; Garcia;
Lorenzini, 2023, p. 221).
Na lógica
do Banco, a educação não acontece somente no espaço escolar, pois pode ocorrer
também em momentos formais ou informais, planejados ou não. Nessa dinâmica, a
Educação Especial poderia ser promovida em diferentes locais de atendimento,
mediante a oferta de diferentes tipos de educações, estejam elas no formato
escolar ou não (Barcelos; Garcia; Lorenzini, 2023, p. 221).
Vemos que a lógica
por trás do discurso que pauta esse slogam está relacionada à ampliação
dos espaços de atendimento educacional aos estudantes da Educação Especial. A
educação, nesse sentido, não condiz necessariamente com a promoção do acesso ao
saber produzido pela humanidade e, portanto, não necessita ocorrer
exclusivamente no espaço escolar. Consideramos que essa perspectiva abre espaço
para o aprofundamento da lógica privatista na educação especial, legitimando a
busca, empreendida pelos grupos ligados ao setor privado-filantrópico, pela instituição
de uma política que possibilite a oferta do atendimento educacional aos
estudantes da Educação Especial em espaços segregados.
O slogan aprendizado ao longo da vida, por sua
vez, tem sido propagado pela UNESCO desde meados da década de 1960 no curso
do projeto educacional do capital, visando promover um consenso sobre a
necessidade dos sujeitos estarem “[...] o máximo possível em contínuo processo
formativo flexível, para atender às exigências mutáveis do mercado.” (Barcelos;
Garcia; Lorenzini, 2023, p. 221). Aprender ao longo da vida, no sentido
proposto nos documentos nacionais e internacionais, relaciona-se à ampliação
dos tempos e espaços da educação para atender às necessidades de formação de um
trabalhador flexível para atuar em um mercado de trabalho em constante
transformação. Rodrigues evidencia que
A educação
ao longo da vida é, pois, chamada a responder e a conformar esse ‘novo’ sujeito
que tenderá a deixar de ter a escola pública e regular como referência para sua
formação, focando-se no desenvolvimento de competências que o tornem um sujeito
empreendedor, nos termos da UNESCO, ou um sujeito empresarial, nos termos da
União Européia (Rodrigues, 2014, p. 233).
Constatamos, com
base em Rodrigues (2014), que a noção de educação ao longo da vida está
associada à conformação para um projeto educacional de formação de “[...] um
sujeito despolitizado, atomizado, sem qualquer capacidade organizativa e sem
condições de pensar-se como sujeito coletivo, apenas ‘homens massa’, na célebre
expressão gramsciana” (Rodrigues, 2014, p. 236). Ou seja, em sua essência,
a ideia de educação ao longo da vida se opõe diretamente à noção de
emancipação, defendida por Gramsci.
A nosso ver, essa
lógica, quando associada à Educação Especial, guarda uma intencionalidade ainda
mais específica diante das disputas históricas pelo repasse dos recursos do
fundo público para as instituições privado-filantrópicas de Educação Especial,
tendo em vista que pode possibilitar o repasse das verbas da educação
referentes à matrícula de todas as pessoas que frequentam essas instituições e
não somente as que estejam em idade escolar (Barcelos; Garcia; Lorenzini,
2023).
O conceito de equidade, embora não esteja
apresentado de forma explícita no texto da LBI, fica evidenciado no trecho:
“[...] de forma a alcançar o máximo
desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas,
sensoriais, intelectuais e sociais, segundo
suas características, interesses e necessidades de aprendizagem”
(Brasil, 2015, grifo nosso). Essa ideia, que toma como foco a diversidade
humana para justificar que as necessidades de aprendizagem são diferentes, tem
justificado mecanismos de diferenciação curricular, de aprendizagens, de
competências e de lócus de atendimento e serviços. Nessa lógica, diversifica-se
a oferta educacional ao mesmo tempo em que se responsabiliza o sujeito pelo seu
próprio aprendizado. Para Garcia e Michels,
Na relação
educação e inclusão, a estratégia da equidade contempla um nível de igualdade
de oportunidades, mas como os sujeitos humanos vão lidar com tais oportunidades
em regime de desigualdade social e educacional, numa conjuntura de ampliação
das formas de exploração e de expropriações é uma questão do campo da
responsabilidade individual, bem ao estilo do pensamento liberal (Garcia;
Michels, 2021, p. 9).
Constatamos,
portanto, que os slogans incorporados à LBI buscam produzir um consenso
funcional à perpetuação da ideologia hegemônica, criando mecanismos para
assegurar a formação para o trabalho simples e para a privatização da educação,
ao mesmo tempo em que induz a população a crer que o problema da educação das
pessoas com deficiência está sendo resolvido pelo Estado.
Essa crença parece
ter sido incorporada por Melo, Rafante e Gomes (2019). Em sua análise sobre a
LBI, os autores valorizam os princípios pontuados como “[...] um avanço na
enunciação dos direitos da pessoa com deficiência” (Melo; Rafante; Gomes, 2019,
p. 152). Afirmam que, diferente da política nacional de organização do ensino
médio, os princípios gerais da LBI tendem a organizar a escola para “[...]
criar as condições materiais que atendam às necessidades dos educandos” (Melo;
Rafante; Gomes, 2019, p. 154).
Os slogans
‘sistema educacional inclusivo’ e ‘aprendizado ao longo da vida’ são
enaltecidos pelos autores como conceitos que significam a oferta de um “[...]
sistema escolar extenso, capaz de oferecer diferentes tipos de formação,
inclusive de aprofundamento dos estudos via verticalização da formação” (Melo;
Rafante; Gomes, 2019, p. 152). Consideram que a concepção apresentada no trecho
“[...] alcançar o máximo o desenvolvimento possível de seus talentos e
habilidades físicas sensoriais intelectuais e sociais, segundo suas
características interesses e necessidades de aprendizagem [...] (Melo;
Rafante; Gomes, 2019, p. 152)” – que identificamos como relacionado ao
princípio da equidade – “[...] busca o aprofundamento e a dilatação da
intelectualidade individual.” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 152). Sem
considerar as múltiplas determinações contidas na formulação de políticas
públicas pelo Estado burguês, avaliam que a LBI “[...] parece atender os
princípios fundamentais de uma educação emancipatória.” (Melo; Rafante; Gomes,
2019, p. 155).
Gramsci (1999, p.
128) atenta que a “Identidade de termos não significa identidade de conceitos”.
Ou seja, expressões semelhantes podem ter sentidos opostos a depender do
projeto societário em disputa. Diante disso, algumas questões surgem a partir
das colocações dos autores: o que estão entendendo como necessidades dos estudantes
com deficiências? Que condições materiais atenderiam essas necessidades para
que os estudantes com deficiências alcancem o aprofundamento e dilatação de sua
intelectualidade? De que forma as determinações contidas na LBI garantem essas
condições materiais? É possível uma educação emancipatória na escola pública
brasileira projetada pelo Estado burguês? A inclusão escolar dos estudantes com
deficiência na escola pública projetada pelo capital é suficiente para garantir
a emancipação desses estudantes?
A proposta contida
na LBI é permeada por slogans e concepções neoliberais, escolanovistas e
tecnicistas, refutados pelo próprio Gramsci em sua análise sobre a escola. No
entanto, descuidos metodológicos levam os autores a cair na armadilha anunciada
por eles próprios quando abordam que, sem considerar os aspectos metodológicos
do trabalho de Gramsci, “[...] corre-se o risco de buscar soluções prontas para
transportá-las para o nosso presente, caindo em anacronismos e perdendo o
elemento mais dinâmico de seu pensamento, a atualização do marxismo ao tempo
presente” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 144-145). Parece ter sido esse o
caminho trilhado pelos autores no livro.
4 Algumas considerações
Gramsci foi o
teórico da Filosofia da Práxis e toda a sua elaboração está alicerçada na
dinâmica da vida materialmente dada, no contexto pré e pós-carcerário, visando
a formação política para a prática revolucionária, para o processo de
organização das classes subalternas e a transformação de uma vontade coletiva para
a sociedade regulada. Qualquer proposta que se anuncie baseada em seu
pensamento teórico deve partir da crítica à organização social burguesa,
considerando o fim do modelo de sociedade baseado na divisão de classes.
O livro Gramsci
e a Educação Especial foi recebido com entusiasmo, tendo em vista a
possibilidade da ampliação do debate sobre os pressupostos gramscianos para
esse campo da educação. No entanto, durante a leitura, concluímos que os
autores não privilegiaram a pesquisa histórica que evidencia a escola
pública brasileira como campo de disputas e possibilidade de formação da classe
trabalhadora para a luta por um outro modelo de sociedade.
Os elementos
apresentados pelos autores, ao longo do livro, refletem a luta pela inserção
das pessoas com deficiência no modelo de escola tradicional burguesa que forma
a classe trabalhadora para o trabalho simples e para a conformação das relações
sociais vigentes. A análise por eles empreendida permanece, todo o tempo,
pautada no par dialético inclusão versus exclusão.
A Escola Unitária
de Gramsci pressupõe o fim da dualidade entre a escola que forma a elite e a
escola voltada à classe trabalhadora; pressupõe a integração entre o trabalho
intelectual e o manual, a cultura humanista e a técnico-científica, em que a
atividade é desenvolvida como mediação entre trabalho teórico e prático. É uma
escola desinteressada, capaz de formar a nova geração de intelectuais visando o
processo revolucionário.
A perspectiva
inclusiva para a Educação Especial, por sua vez, vem sendo posta no Brasil como
um mecanismo de conformação sobre as relações sociais vigentes. Nesse sentido,
concluímos que a associação entre a concepção de Escola Unitária e a educação
inclusiva é um equívoco, tendo em vista que a inclusão escolar das pessoas com
deficiências na escola pública projetada pelo capital não será suficiente para
garantir sua emancipação.
Percebemos que o
posicionamento dos autores em relação à educação das pessoas com deficiência
parece estar relacionado aos movimentos que fazem a defesa da perspectiva
inclusiva, denominados por Garcia (2017) como forças da inovação. Esse
movimento, que faz a defesa da inclusão escolar dos estudantes da Educação
Especial, tem atuado em contraposição às forças da tradição, vinculadas ao setor
privado assistencial e historicamente dominante.
Contudo, embora se
manifestem a partir de perspectivas diferentes, ambas as forças guardam um
projeto social e educacional conservador, tendo em vista que nenhuma dessas
forças “[...] propõe uma formação humana abrangente com vistas à formulação de
uma leitura crítica consistente da realidade social e que permita vislumbrar um
horizonte para além da desigualdade constitutiva da formação social
capitalista” (Garcia, 2017, p. 40).
Constatamos,
portanto, que o debate sobre a educação das pessoas com deficiência
desenvolvido pelos autores, toma as contribuições de Gramsci por um viés
pós-estruturalista, desconsiderando a sua base teórico-metodológica
marxista-leninista, sua análise sobre as lutas de classes desenvolvidas no
âmbito do Estado Integral e o papel que atribui à educação na luta por um outro
modelo de sociedade.
Consideramos que
pensar a educação das pessoas com deficiência, a partir de Gramsci, significa
pensar para além da inclusão: significa desenvolver a luta pela educação
escolar pública, gratuita e de qualidade socialmente referendada, que considere
as condições materiais de trabalho e estudo e vise processos de escolarização
que garantam a real apropriação do saber científico para todos os estudantes,
de modo a possibilitar sua real emancipação.
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[1] Utilizamos o termo escola
inclusiva para referir o que os autores do livro tratam como escola comum ou
regular, operacionalizada na perspectiva inclusiva.
[2] Outros postos e pressupostos são apresentados pelos autores na análise
da relação entre Educação Especial na perspectiva inclusiva e as elaborações de
Gramsci: (1) a suposição de que Gramsci era uma pessoa com deficiência (Melo;
Rafante; Gomes, 2019, p.26); (2) a suposição de que essa deficiência
influenciou não só o pensamento educacional de Gramsci como também sua
concepção de mundo (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 24); (3) o posto de que
Gramsci enfatiza o papel da família; (4) a pressuposição de que a Educação
Especial na perspectiva inclusiva não seja expressão do modelo educativo
característico da sociedade burguesa; (5) a ênfase na autoeducação (Melo;
Rafante; Gomes, 2019, p. 43), “[...] tornando-os educadores de si mesmos [...]”
(Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 63), “[...] integrando as dimensões do fazer e
do saber [...] por meio do protagonismo dos estudantes” (p. 65), “[...] por si
próprio [...]” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 71); (6) o posto de que “[...] a
produção do homem pode ser considerada um aprendizado [...]” (Melo; Rafante;
Gomes, 2019, p. 95); (7) o posto do “[...] risco de buscar soluções prontas e
transportá-las para o nosso presente [...]” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p.
144); (8) o posto de que a concepção de Escola Unitária “[...] não significa
uma doutrinação política voltada à instalação do comunismo.” (Melo; Rafante;
Gomes, 2019, p. 90); (9) o posto de que a escola nova está relacionada às
propostas pedagógicas para as crianças com deficiências desenvolvidas em
instituições especializadas, desconsiderando que essa concepção de educação
permeou e ainda é evidenciada nas práticas desenvolvidas nas escolas comuns
(Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 133); (10) a pressuposição de que Gramsci
prescinde do partido, ao afirmarem que “[...] a capacidade de organização dos
subalternos é resultado de uma formação escolar [...]” (Melo; Rafante; Gomes,
2019, p. 86); (11) o pressuposto de que Gramsci pensou a Escola Unitária para a
“[...] inserção dos jovens na atividade social e não na [atividade]
produtiva [...]” (Melo; Rafante; Gomes, 2019, p. 87); (12) a utilização de
passagens ipsis litteris do Caderno 12, sem a devida citação nas páginas
36 e 63. Diante disso, apontamos a necessidade de análises em torno desses
elementos emergentes da elaboração dos autores do livro estudado.
[3] A primeira
edição dos cadernos foi organizada por Palmiro Togliatti e Felice Platone e
publicada na Itália entre 1948 e 1951, em seis volumes temáticos. No presente
trabalho é tomada como base de estudos a coletânea organizada em seis volumes,
traduzida por Carlos Nelson Coutinho e publicada pela editora Civilização
Brasileira a partir de 1999.
[4] As escolas especiais são espaços onde
tradicionalmente foi realizado o atendimento educacional das pessoas com
deficiência no Brasil. Essas instituições são mantidas, até hoje, tanto pelo
poder público como por instituições privado-filantrópicas, geridas, em grande
parte, através de recursos públicos.