e-ISSN 1984-7246  

A investigação da pedagogia burguesa: um ensaio sobre as contribuições do arcabouço gramsciano para a pesquisa[i]

 

Thiago Vasquinho Siqueira[ii]

Universidade Federal Fluminense (UFF)

Niterói, RJ – Brasil 

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Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa [iii]

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)

Seropédica, RJ – Brasil

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A investigação da pedagogia burguesa: um ensaio sobre as contribuições do arcabouço gramsciano para a pesquisa

 

Resumo

Este ensaio apresenta uma síntese do referencial teórico-metodológico produzido a partir dos escritos de Gramsci, no qual o conceito de “Estado Integral” é apresentado como ferramenta de investigação para compreender o papel da Educação na consecução do projeto de dominação burguesa. A reflexão apresentada toma como eixo central a possibilidade de utilização de sua obra para a compreensão das estratégias e práticas pedagógicas da burguesia, seu conjunto de organizações e intelectuais, com vistas a formar sistematicamente o “novo homem”, o qual tem seus “nexos psicofísicos” constantemente calibrados às frequentes transformações históricas do processo de produção em massa e às mudanças na reprodução dos processos de dominação diante das contradições e crises do capitalismo. É apresentada a atualização histórica do método de análise marxista realizada por Gramsci, sobretudo, partindo da análise dos avanços possibilitados pela obra de Lênin e de sua leitura ortodoxa dos próprios escritos de Marx. Trazendo seu arcabouço para contextos históricos mais recentes percebemos como a dupla superestrutural – sociedade política e sociedade civil – se expandiu consideravelmente na realidade concreta das lutas sociais. Concluímos este artigo ressaltando que, dentro dos limites deste texto, destacamos um conjunto de referências teóricas que vêm subsidiando um trabalho coletivo de investigação sobre o papel da educação nas estratégias burguesas para dominação.

 

 

Palavras-chave: Gramsci; estado ampliado; pedagogia política; empresariado; educação.

 

 

 

 

The Investigation of Bourgeois Pedagogy: an essay on the contributions of the Gramscian framework to research

 

 

Abstract

This essay presents a synthesis of the theoretical-methodological references produced from Gramsci's writings. His concept of the “Integral State” is presented as an investigation tool for comprehend the role of education in achieving the project of bourgeois domination. The thoughts presented take as its central axis the possibility of using his work to understand the pedagogical strategies and practices of the bourgeoisie, its organizations and intellectuals. They have the intention to systematically form the “new man”, whose "psychophysical nexuses" are constantly calibrated to the frequent historical transformations of the mass production process and also to the changes in the reproduction of the processes of domination in the face of the contradictions and crises of capitalism. It is also presented Gramsci's historical updating of the Marxist method of analysis, comprehending that Lenin’s works and his orthodox reading of Marx´s writings made possible advances in this analysis. Bringing his theorical framework into more recent historical contexts, we see how the superstructural duo - political society and civil society - has expanded considerably in the concrete reality of social struggles. We conclude this article by emphasizing that, within the limits of this text, we have highlighted a set of theoretical references that have been supporting collective research into the role of education in bourgeois strategies for domination.

 

 

Keywords: Gramsci; integral state; political pedagogy; business community; education.

 

 

1 Introdução

Este ensaio apresenta uma síntese do referencial teórico-metodológico produzido a partir dos escritos de Antonio Gramsci (1891-1937), no qual o conceito de “Estado Integral” é apresentado como ferramenta de investigação para compreender o papel da Educação na consecução do projeto de dominação burguesa. A reflexão apresentada neste ensaio toma como eixo central a possibilidade de utilização da obra do intelectual sardo para a compreensão das estratégias e práticas pedagógicas da burguesia, seu conjunto de organizações e intelectuais, com vistas a formar sistematicamente o “novo homem”, o qual tem seus “nexos psicofísicos” constantemente calibrados às frequentes transformações históricas do processo de produção em massa e às mudanças na reprodução dos processos de dominação diante das contradições e crises do capitalismo.

Busca-se neste artigo, sobretudo, apresentar as relações dialéticas de unidade-distinção, nas quais se alicerçam as elaborações teórico-práticas que partem, sobretudo, da relação entre Estado, poder e educação. Para isso é apresentada a atualização histórica do método de análise marxista realizada por Gramsci, sobretudo, partindo da análise dos avanços possibilitados pela obra de Lênin e de sua leitura ortodoxa dos próprios escritos de Marx. Pretende-se discutir como a obra gramsciana permite analisar de que forma a pedagogia política do empresariado na contemporaneidade acaba por sobrepor a própria atuação dos partidos oficiais e da política parlamentar. 

A proposta que organiza este artigo resulta de alguns anos de investigação realizada pelo Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação (LIEPE)[1], cujo trabalho de pesquisa vem demonstrando a atualidade e força deste referencial teórico-metodológico. A necessidade de redigir um texto que sistematize as perspectivas que vêm orientando este estudo coletivo não deve diminuir os esforços de leitura da obra elaborada por Gramsci, em sua versão original[2], mas ampliar a difusão desta referência e colaborar com aqueles que estão principiando suas leituras, assim como expor aquela que tem sido uma elaboração deste laboratório de pesquisa em seu esforço contínuo em desvelar a hegemonia burguesa no Brasil.

 

2 Das leituras economicistas de Marx à filosofia da práxis em Gramsci

Devido à quase inexistência de escritos do próprio Marx sobre o seu método, a apreensão do materialismo histórico-dialético, por vezes, acabou(a) por gerar um conjunto de leituras equivocadas e controvérsias sobre o assunto. Em seu texto “Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política” – que ficou conhecido como “Prefácio de 1859” –, publicado somente em 1903 por Kautsky[3], Marx apresenta um conjunto de reflexões que possuem extrema relevância para o esclarecimento de seu método de análise. Há discussões sobre a origem destes escritos, alguns atribuem este manuscrito denominado “Introdução” aos Grundrisse, outro conjunto de estudos realizado pelo autor (Cardoso, 1990). O que nos interessa aqui é compreender que este breve texto nos deixa como legado um conjunto de contribuições teórico-metodológicas para a compreensão de seu pensamento, sobretudo em sua terceira parte, intitulada “O método da Economia Política”.

Para Marx, o método usual da economia política identifica o concreto com o real, o que não teria senso, uma vez que o concreto só ganha sentido ao serem descobertas suas próprias determinações. Ou seja, qualquer fato social só existe porque possui razão de existir, a cadeia de relações que origina o fato corresponde a uma relação de causalidade não exprimida de forma direta. Portanto, um objeto de análise é algo determinado, que só é possível ser entendido concretamente quando se apreende suas determinações. Para Marx, “o concreto é concreto porque é síntese de muitas determinações, isto é, unidade do diverso” (Marx, 2008, p. 258).

Vivendo um período histórico de desenvolvimento do modo capitalista de produção distinto, Gramsci acabou por abrir portas para uma leitura do marxismo que não foi possível ser apresentada pelo próprio Marx. Sua ortodoxia dialética na compreensão da relação de unidade-distinção do par conceitual marxiano de estrutura-superestrutura (Gramsci, 1999, p. 238-240) possibilitou a formulação de uma leitura historicamente atualizada do marxismo. Tal concepção permitiu avançar para além das leituras reformistas e economicistas do método em Marx, realizadas pelos próprios socialistas no período vivido pelo filósofo italiano. Referenciando-se no “Prefácio de 1859”, Gramsci aponta que:

 

A proposição contida na introdução à Crítica da economia política, segundo a qual os homens tomam consciência dos conflitos de estrutura no terreno das ideologias, deve ser considerada como uma afirmação de valor gnosiológico e não puramente psicológico e moral. Disto decorre que o princípio teórico-prático da hegemonia possui também um alcance gnosiológico; e, portanto, é nesse campo que se deve buscar a contribuição teórica máxima de Ilitch [Lênin] à filosofia da práxis. Ilitch teria feito progredir efetivamente a filosofia como filosofia na medida em que fez progredir a doutrina e a prática política. A realização de um aparelho hegemônico, enquanto cria um novo terreno ideológico, determina uma reforma das consciências e dos métodos de conhecimento, e um fato de conhecimento, um fato filosófico. Em linguagem crociana: quando se consegue introduzir uma nova moral conforme a uma nova concepção do mundo, termina-se por introduzir também esta concepção, isto é, determina-se uma completa reforma filosófica (Gramsci, 1999, p. 320).

 

Como se pode observar, Gramsci parte, sobretudo, das obras de Marx e dos estudos de Lênin, tendo como ponto central a política como base da totalidade da vida social. Portanto, é na teoria política desenvolvida por Gramsci que residem suas principais construções para o avanço histórico do marxismo e da filosofia política (Coutinho, 2007, p. 2). Apesar dos vínculos com a obra de Lênin, é patente a originalidade do teórico italiano na leitura, entendimento e síntese de um conjunto de categorias radicadas na obra de Marx (Portelli, 1977, p. 15), as quais possibilitam uma melhor identificação da teoria marxista no desenvolvimento histórico do modo de produção capitalista. Ocupando-se das transformações ocorridas no capitalismo mundial na virada do século XIX para o XX, sobretudo no estabelecimento das formas imperialistas de dominação (Mendonça, 2018), o pensamento gramsciano foi formulado através da análise das correlações de forças históricas concretas existentes em seu período de vida, de forma a buscar a superação da dominação burguesa.

3 A unidade dialética do par estrutura-superestrutura no pensamento gramsciano

Partindo de conceitos que não puderam ser desenvolvidos de forma mais concreta no período vivido por Marx, como o de Imperialismo em Lênin, Gramsci percebe a complexificação das concepções de mundo criadas pela classe dominante na fase monopolista do modo de produção capitalista. Buscando suprir lacunas oriundas das contradições de seu próprio desenvolvimento histórico, estas concepções se direcionaram a uma maior elaboração das superestruturas que asseguram a reprodução da ordem social capitalista (Mendonça, 2018), conferindo-lhes maior musculatura e, consequentemente, restringindo o movimento contrário realizado pela classe trabalhadora.

Utilizando a estrutura sempre como ponto de partida de seu edifício teórico, Gramsci elaborou uma de suas principais noções, a de “Bloco Histórico”[4], sendo este exatamente a expressão concreta da relação de unidade-distinção do par estrutura-superestrutura, distinção realizada de forma “puramente didática” (Gramsci, 1999, p. 238).  A acepção gramsciana da categoria seria a própria definição da ortodoxia marxista em seu pensamento, “taxando de economicista ou idealista quem se detivesse por muito tempo em um ou outro momento do bloco histórico” (Portelli, 1977, p. 15).

Em Gramsci, o vínculo orgânico do par dialético se efetiva na realidade concreta através da função dos “intelectuais” que operam no conjunto das superestruturas, do qual estes agentes são precisamente os “funcionários” (Gramsci, 2011, p. 207). A noção gramsciana de intelectual rompe com as tradições interpretativas desta categoria como de um sujeito detentor do conhecimento erudito, o especialista, o técnico. Qualquer relação humana de reprodução da própria existência parte de um conjunto de conhecimentos histórico e socialmente elaborados que permitem um sujeito operar um processo produtivo determinado, sendo possível dizer que todos os seres humanos são intelectuais, ainda que nem todos exerçam esta função na sociedade (Gramsci, 2001, p. 18).

A relação entre os intelectuais e a produção é mediada por uma dupla dimensão superestrutural, a sociedade civil e a sociedade política – ou Estado em sentido estrito –, sendo “especialmente na sociedade civil que operam” estes sujeitos (Gramsci, 2011, p. 267). Os intelectuais são elemento estratégico das classes e frações na história da luta de classes, devendo ser compreendidos a partir de suas funções de organização e de seus vínculos voltados à manutenção ou superação da hegemonia. Nas atividades que estes realizam “no conjunto geral das relações sociais” que se encontra o seu critério de distinção (Gramsci, 2001, p. 18), decorrendo daí a categoria de “intelectual orgânico”.

Através de vínculos organizativos e conectivos com determinada fração, intelectuais pertencentes a outras frações e/ou classe podem atuar como “prepostos” do grupo dominante, exercendo as “funções subalternas da hegemonia e do governo político” (Gramsci, 2011, p. 208). Os intelectuais são, portanto, o “cimento” da unidade dialética de um bloco histórico, responsáveis por determinada concepção de mundo ser sedimentada como consenso para o conjunto da sociedade, mesmo que tal concepção se apresente como contraditória para a classe ou frações a qual pertencem. Neste sentido, os intelectuais orgânicos da classe trabalhadora também são elemento central na estratégia de luta por uma outra hegemonia que não a dominante em um certo período histórico.

 

4 A ampliação do conceito de Estado

A tradição liberal elaborou uma crença, ainda muito difundida, de que o Estado teria sido criado como forma de conciliar a dificuldade de convivência entre os seres humanos. Neste entendimento, a humanidade naturalmente possuiria um instinto individual competitivo que dificulta a convivência social. Esta formulação se assenta na ideia de que o Estado surgiria de um pacto, um “Contrato Social”, firmado para superar a “condição animal” típica dos seres humanos. Nesta tradição, alicerçada no jusnaturalismo (direito natural), as vontades humanas individuais seriam mediadas, “civilizadas”, por uma esfera apartada da sociedade civil que faria com que os interesses naturais (individuais) fossem regulados. O Estado seria uma espécie de comandante da vida social, o qual, mesmo criado pelos próprios seres humanos, pairaria sobre a sociedade como independente desta. Tal esfera teria uma posição de “sujeito”, agindo independentemente da sociedade (Mendonça, 2003), sendo “um acordo entre os homens contra a própria natureza humana” (Fontes, 2010, p. 124). A barbárie humana seria a condição natural a ser contida para a vida plena em sociedade. Sociedade seria, por si, algo não natural. A ideia de sociedade civil e sua contraposição, o Estado, seriam a própria condição racional da vida humana. O Estado, concretizado como Governo, seria “criatura” e “criador” da vida social.

Não obstante se afastar da leitura liberal, Gramsci também rejeita a concepção instrumental de Estado, como proposto por alguns marxistas no século XX, denominados pelo autor como economicistas. Na leitura destes, o Estado seria um “objeto”, um “fantoche” (Mendonça, 2018, p. 8) de uma classe ou fração para reproduzir as formas de dominação. De forma a superar as contradições tanto da concepção de Estado-Governo (sujeito), como de Estado-Objeto, o filósofo sardo elabora uma concepção original sobre o Estado, possibilitada pelas próprias análises marxistas do desenvolvimento do capitalismo. Deste entendimento deriva uma das principais categorias do pensador italiano para o avanço da teoria marxista, a de “Estado Integral” ou, como utilizado por alguns estudiosos, “Estado Ampliado” (Buci-Glucksmann, 1980). Neste sentido, o filósofo amplia a compreensão de Estado para além do aparato político-burocrático, sendo este uma condensação das forças existentes na sociedade civil (Gramsci, 2011, p. 269).

Diferentemente de Marx, Gramsci pôde presenciar uma fase de desenvolvimento do modo de produção capitalista em que a expressão de suas contradições trouxe novos elementos para sua reprodução. Apesar dos apontamentos de Marx sobre a tendência à concentração de capital, foi Lênin que, praticamente 50 anos depois, apresentou de forma sistemática esta tendência, elaborando uma análise concreta desta concentração e o seu fruto, o imperialismo[5]. Sua expansão e as modalidades de tratamento de suas contradições internas determinaram o estabelecimento de uma nova configuração do próprio capitalismo, as quais Lênin aponta duas situações principais em curso, de um lado o crescimento e expansão dos monopólios, de outro as guerras imperialistas pelo controle de territórios (Fontes, 2010, p. 105). Os efeitos principais que dão alicerce a este processo histórico são: em primeira ordem a (i) ampliação do universo de massas de trabalhadores apropriadas pelo modo de produção capitalista (socialização do trabalho) e (ii) apropriação privada do conjunto da “riqueza” social; e em segunda ordem, como consequência dos primeiros processos, (i) ampliação da socialização da política, mas (ii) aumento da concentração de poder.

Desde o século XIX cresceram e se ramificaram inúmeras formas associativas na sociedade capitalista (Fontes, 2017) que, dispostas no âmbito da sociedade civil sob diferentes nomenclaturas – Think Tanks, organizações empresariais, organismos ditos não governamentais, associações, institutos e outras – contribuem para o entrincheiramento realizado pela classe dominante, disseminando consensos e mantendo íntima relação com a política institucional. Neste sentido, o pensamento gramsciano aponta para uma complexificação da sociedade civil na fase monopolista do capitalismo, no qual “trincheiras”, “fortalezas” e “casamatas”[6] – para utilizar termos do autor – são criadas pelas frações dominantes, contribuindo para refrear as lutas da classe trabalhadora. Ou seja, as dimensões superestruturais teriam relevância superior nesta fase do capitalismo, criando e mantendo centros de formulação, multiplicação e sedimentação de concepções de mundo dominantes (Gramsci, 2007, p. 24).

A sociedade civil é a esfera da realização das vontades, da estruturação do consenso sobre determinada concepção histórica de mundo. Incide no conjunto de organismos denominados privados ou aparelhos privados de hegemonia (APHs), espaços de adesão voluntária, de organização das vontades coletivas. O avanço do capitalismo para sua fase monopolista só foi possível pela multiplicação destes APHs, com a organização das concepções de mundo e seus recíprocos interesses coletivos (Mendonça, 2018). Atuando como intelectuais coletivos estes aparelhos buscam a adesão e o consentimento das massas aos projetos hegemônicos – ou a imposição de outro projeto, uma nova hegemonia. Como organizações privadas, os APHs pertencem à esfera da sociedade civil, mas participam ativamente da direção política, possuindo, portanto, incidência concreta no Estado estrito (Gramsci, 2007, p. 119). A sociedade civil em Gramsci é entendida como “hegemonia política e cultural de um grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado” (Gramsci, 2011, p. 268).

Para Gramsci as superestruturas de um bloco histórico são compostas por duas dimensões fundamentais que também mantêm uma relação de unidade-distinção: a sociedade civil e a sociedade política. A primeira compõe a maior parte da superestrutura de um bloco histórico determinado, definida como direção intelectual e moral de um sistema social (Portelli, 1977, p. 19). Já a segunda agrupa os aparelhos de Estado propriamente ditos, sendo identificada como o momento da força, da coerção, um “prolongamento da sociedade civil” nos diversos graus de formação de um sistema hegemônico, neste caso desempenhando um papel secundário de reprodução da direção econômica e ideológica de uma classe sobre as outras (Portelli, 1977, p. 30). O Estado, “no significado integral”, seria “ditadura + hegemonia” (Gramsci, 2007, p. 257), ou seja, um elemento do par atuando na coerção e o outro no consenso. A hegemonia seria a capacidade operatória de uma classe em reproduzir seu conjunto político-filosófico para outras classes e frações de forma consensual.

Assim, o conceito comum e unilateral de Estado como aparelho representativo ou de governo leva a graves erros de análise histórica, ao cindir sociedade civil e sociedade política se elabora uma visão monolítica e equivocada do Estado, esvaziando o conceito de hegemonia (Gramsci, 2007, p. 254-5). A identificação da correlação de forças existentes entre as classes e as acepções de seus intelectuais coletivos se configuram como elemento central para definir a natureza de um processo histórico. O Estado ao tornar “homogêneo” o grupo dominante o faz criando um conformismo social útil aos interesses deste grupo dirigente (Gramsci, 2007, p. 240). Neste sentido, a inserção dos intelectuais orgânicos deste grupo na dimensão restrita do Estado ampliado, possibilita que os projetos das classes ou frações por eles representadas seja implementado como interesse da coletividade. Conceber o Estado a partir da leitura gramsciana é compreendê-lo em duplo processo, o da existência de formas dominantes na produção que se constituem e disseminam por organizações dispostas na sociedade civil, e o da presença dos representantes destas organizações da sociedade civil no Estado estrito, buscando a afirmação de sua hegemonia (Mendonça, 2018).

No entanto, de forma a evitar esquemas simplificadores da acepção gramsciana de Estado, cabe ressaltar que sociedade civil é inseparável de Estado estrito, possuindo a dupla superestrutura contemplada pelo conceito de Estado Integral uma relação orgânica, uma totalidade dialética. A separação destas dimensões incorre num perigoso esquema simplificado/simplificador do pensamento do filósofo, no qual Estado seria o âmbito da pura coerção e sociedade civil o da pura hegemonia (Mendonça, 2018). A separação do par só ocorre como questão metodológica, para fins didáticos, sendo a metáfora do Centauro maquiavélico utilizada por Gramsci a clara expressão desta relação orgânica de unidade-distinção, “ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade” (Gramsci, 2007, p. 33).

Portanto, as transformações ocorridas no modo de produção capitalista exigiram uma reinterpretação do conceito de Estado partindo de questões que não eram passíveis de análise no período vivido por Marx, como a universalização do trabalho de massa inserido nos moldes de organização capitalista do trabalho (industrialização, fordismo e taylorismo) e a socialização da política. É imprescindível compreender que à expansão do capitalismo como modo de produção hegemônico, correspondeu a ampliação do Estado, o que também precisa ser apreendido em seu duplo sentido. Ao mesmo tempo que se expandiu o acesso de camadas maiores ao processo político, expressando a democratização como conquista das classes trabalhadoras, ocorreu a disseminação de trincheiras na sociedade civil, a dispersão de núcleos de defesa do capitalismo enquanto modo de produção (Fontes, 2017). Estes núcleos possuem íntima relação com o Estado em uma diversidade de dimensões, fazendo com que, mesmo com as transformações políticas, o conjunto de interesses dominantes seja expresso como interesse geral.

 

5 A via pedagógica como estratégia de obtenção do consenso

Como apresentado, desde o século XIX vimos crescer e se ramificar um conjunto de formas associativas na sociedade capitalista (Fontes, 2017), que, em busca de reproduzir os interesses de determinadas classes e frações, organizam a opinião pública, tendo no Estado estrito o esteio para seus projetos hegemônicos (Gramsci, 2007, p. 265).

 

O que se chama de "opinião pública" está estreitamente ligado à hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a "sociedade civil" e a "sociedade política", entre o consenso e a força. O Estado, quando quer iniciar uma ação pouco popular, cria preventivamente a opinião pública adequada, ou seja, organiza e centraliza certos elementos da sociedade civil. [...]

A opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia ser discordante: por isto, existe luta pelo monopólio dos órgãos da opinião pública – jornais, partidos, Parlamento –, de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica (Gramsci, 2007, p. 265).

 

A hegemonia, em termos gramscianos, se caracteriza por uma série de processos ligados ao exercício do poder em sociedades divididas em classes. A manutenção da hegemonia é também uma relação pedagógica, nas quais a classe ou frações dominantes subordinam os grupos sociais através da persuasão, ou da educação, organizando um suposto consenso social em torno de sua concepção dominante de mundo (Martins; Neves, 2010). Sendo os intelectuais os meios, a via pedagógica é uma das formas principais de soldagem da unidade dialética estrutura-superestrutura. Para o filósofo, a escola é talvez a forma mais sistemática, mas não exclusiva de elaboração do consenso. A mediação pedagógica é também realizada em diversos outros níveis – jurídico, político, ideológico, moral, ético –, muitas vezes fazendo com que a força pareça apoiada pelo consenso da maioria, ou seja, equilibrando de diversas formas a combinação entre força e consenso, sendo, portanto, exercício “normal” da hegemonia (Gramsci, 2007, p. 95).

Compreendendo o exercício da hegemonia necessariamente como uma relação pedagógica (Gramsci, 1999, p. 399), Gramsci amplia o entendimento de educação para o processo geral de formação humana. O filósofo aponta para a importância do processo educativo em diversos níveis da vida dos indivíduos, desde o desenvolvimento sensorial contido no aprendizado inicial das crianças, à escolarização desenvolvida com base nas organizações oficiais de educação da sociedade burguesa (a escola, a universidade etc.), às publicações elaboradas pela imprensa em geral (jornais, revistas etc.), ao papel educativo das organizações ditas privadas (os APHs e Partidos).

 

[...] a “escola” (isto é, a atividade educativa direta) é somente uma fração da vida do aluno, o qual entra em contato tanto com a sociedade humana quanto com a societas rerum, formando-se critérios a partir destas fontes “extra-escolares” muito mais importantes do que habitualmente se crê (Gramsci, 2001, p. 62-63).

 

Como mediação realizada em diversas dimensões das relações sociais, a educação é um processo político, multiplamente determinado por fatores materiais e correlações de forças históricas, que busca a socialização dos sujeitos às condições históricas concretas. Sendo o capitalismo o modo hegemônico de produção da vida social, em última instância a via pedagógica reproduz sua estrutura de classes característica, mas pode também contribuir para sua superação de acordo com as correlações de forças criadas e determinações da mediação realizada. Por isso, toda educação possui um sentido histórico, “toda geração educa a nova geração, isto é, forma-a; e a educação é uma luta contra os instintos ligados às funções biológicas elementares, uma luta contra a natureza, a fim de dominá-la e de criar o homem ‘atual’ à sua época” (Gramsci, 2001, p. 62).

 Em seu movimento histórico, o modo capitalista de produção alçou níveis mais complexos de desenvolvimento das forças produtivas e de organização social do trabalho, requerendo um aumento da especialização de funções e de capacidade técnica da classe trabalhadora. A necessidade de formar sistematicamente esse “novo homem” para o processo de produção em massa forneceu centralidade à escola, de forma que esta possibilite o suprimento das necessidades de especialização (mesmo que mínima) demandadas pelo mercado.

Assim como para diversas outras dimensões que realizam a mediação educativa, Gramsci enxerga também na escola o papel de manutenção da estratificação social e, portanto, a cisão entre formas institucionais de educar as classes dirigentes e subalternas. Para os extratos mais altos da sociedade capitalista são conservadas possibilidades educativas mais próximas do que o autor designou como escola “desinteressada” e “formativa”. Ou seja, que busca formar os sujeitos nos mais amplos universos epistemológicos, conferindo-lhes capacidade de formular as mais complexas concepções de mundo a seus interesses e semelhanças, possibilitando, portanto, difundi-las para o conjunto da sociedade. Já para as camadas subalternas, Gramsci percebe a disponibilidade exclusiva de uma escola totalmente “interessada” em forjar as mais estreitas especialidades profissionais demandas pelo mercado. Enquanto para as primeiras são permitidas as capacidades de direção, para as últimas, a incapacidade de formulação de uma concepção própria de mundo lhes permite unicamente aderir às complexas concepções hegemônicas, inserindo-se necessariamente no mundo da produção material.

 

A tendência, hoje, é a de abolir qualquer tipo de escola "desinteressada" (não imediatamente interessada) e "formativa", ou conservar delas tão-somente um reduzido exemplar destinado a uma pequena elite de senhores e de mulheres que não devem pensar em se preparar para um futuro profissional, bem como a de difundir cada vez mais as escolas profissionais especializadas, nas quais o destino do aluno e sua futura atividade são predeterminados (Gramsci, 1982, p. 118).

 

A mediação pedagógica acaba por estabelecer vínculos entre a economia e a educação, cimentando ambas em um único projeto. No modo de produção capitalista esta relação se constitui em uma teoria do desenvolvimento que, por consequência, se insere nas teorias da educação[7], sedimentando uma visão de mundo, que, oriunda das formas contraditórias de harmonizar os antagonismos de classe, típicos da ideologia burguesa, se afasta dos interesses da classe trabalhadora. Assim, a educação mantém a divisão entre as classes sociais através da formação de um trabalho mais complexificado, necessário como dirigente do próprio processo de reprodução estrutural, e de um trabalho mais simplificado, contudo, dependente de certo conjunto de competências inseridas pelo próprio processo de complexificação da organização social do trabalho (Frigotto, 2010).

Nesse sentido, a educação busca a produção das necessidades técnicas para as formas de trabalho determinadas pelo processo histórico de desenvolvimento. Mesmo parecendo carregadas de boas intenções morais e éticas, expressam as contradições existentes entre as classes sociais e do Estado como promotor da mesma (Shiroma et. al., 2011, p. 8). Assim, o ato de educar é um ato político, de extrair da natureza humana a necessidade adequadora do ser para um contexto histórico de organização da produção social, ato intelectual determinado. As diversas dimensões de mediação educativa surgem no sentido de garantir a adesão das massas a um nível determinado de conformação social. A filosofia de um determinado grupo que se quer dirigente precisa penetrar como interesse universal nas massas, garantindo assim que o exercício da hegemonia deste grupo social se efetive em relação aos outros. Tal necessidade ocorre em diversos níveis políticos, “já que, até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na ‘linguagem’, está contida uma determinada concepção do mundo” (Gramsci, 1999, p. 93).

Como dimensão oficial do exercício da coerção, a sociedade política estabelece a lógica do direito como supostamente oriunda de um interesse geral previamente consensuado, ou seja, o Estado restrito realiza o exercício da coerção sobre aqueles que não consentem (Mendonça, 2018). O direito – em sentido jurídico – como elemento pertencente à dimensão da coerção, garante a punição dos “desvios sociais” da concepção de mundo hegemônica. O papel coercitivo do Estado desenvolve uma relação dialética com seu papel educador ao estabelecer um juízo ético-moral através de suas sanções, pois ao tratar a lei como “verdade universal” também realiza um papel pedagógico (Gramsci, 2007, p. 28). As funções ligadas ao exercício da coerção se unem às da integração, ou seja, conforme a análise gramsciana, força e consenso se somam através da ideologia e são efetivadas por meio da educação, da cultura, dos meios de comunicação e das formulações do pensamento (Iamamoto, 2007, p. 120).

Portanto, este status conferido pelo Estado nada mais é do que a legitimação transitória de uma determinada concepção de mundo. Transitória no sentido de que pode ser substituída por outra verdade, outra hegemonia, como também sofre deslocamentos ocasionais sem que necessariamente ocorram alterações em níveis estruturais. Estes deslocamentos ocasionais são típicos em mudanças de frações burguesas no poder após uma crise de hegemonia. Logo, a dimensão pedagógica serve de meio para elaborar e sedimentar o consenso, fornecendo legitimidade à determinada concepção de mundo, enquanto o outro elemento do par de unidade-distinção do Estado ampliado age para punir o pensar e o agir que se desenvolvem fora de sua ação positiva de conformação social. “A classe burguesa põe-se a si mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a a seu nível cultural e econômico; toda a função do Estado é transformada: o Estado torna-se ‘educador’ etc.” (Gramsci, 2011, p. 279).

Portanto, a ética de um Estado conforme a acepção liberal, como mediador da natureza humana, sujeito que paira sobre o conjunto da sociedade, é incompatível com o pensamento de Gramsci. Essa leitura confunde Estado com a sociedade civil (conforme formulada no pensamento gramsciano), e, mesmo assim, imaginar a sociedade civil como espaço de candura, não fundado na disputa – conforme as leituras mais recentes que a contrapõem ao Estado –, é um grave equívoco analítico da realidade concreta. 

 

[...] todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. A escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes (Gramsci, 2007, p. 284). 

 

6 O arcabouço gramsciano e as organizações do empresariado na contemporaneidade

Apesar de apresentada como a dimensão superestrutural do consenso, a sociedade civil em Gramsci nada tem de espaço de candura, uma vez que é atravessada por conflitos de classe que, em disputa, formulam e embatem seus projetos, muitas vezes distintos e contraditórios. Diferentemente de algumas mais recentes leituras liberais que apresentam a sociedade civil como espaço de relativa união e harmonia, contrapondo-a ao âmbito do mercado e do Estado, em Gramsci esta é espaço do consenso, mas também das disputas entre classes e suas frações.

Na medida em que um APH congrega interesses de um conjunto significativamente abrangente de frações de classe, ou mesmo de toda uma classe, como síntese de diversas outros APHs e, portanto, atuando no nível da grande política, este APH pode ser compreendido como um partido na concepção de Gramsci, mesmo que não seja no sentido oficial dos partidos eleitorais. Algumas organizações associativas podem e devem ser analisadas como partidos, uma vez que organizam as vontades e possibilidades de representação ao tomarem para si o papel de “nervo articulador”, “quartel-general” de segmentos ou de um conjunto de frações de classe (Fontes, 2017). Ao funcionarem como uma espécie de “estado-maior” na condução de um projeto efetivamente hegemônico (Mendonça, 2018), que atua por cima do próprio Estado estrito, fornecendo comando para uma diversidade de ações deste, estes APHs podem ser considerados partidos conforme o filósofo.

 

[...] numa determinada sociedade, ninguém é desorganizado e sem partido, desde que se entendam organização e partido num sentido amplo, e não formal. Nesta multiplicidade de sociedades particulares, de caráter duplo – natural e contratual ou voluntário –, uma ou mais prevalecem relativamente ou absolutamente, constituindo o aparelho hegemônico de um grupo social sobre o resto da população (ou sociedade civil), base do Estado compreendido estritamente como aparelho governamental-coercivo (Gramsci, 2007, p. 253).

 

Conforme aponta Fontes (2017), o nível de concentração de capital nos períodos mais recentes favorece para que o monopólio burguês submeta os partidos oficiais aos seus interesses, tanto pelo financiamento direto, como por ameaças de bloqueios de repasses nacionais e internacionais ao Estado estrito, impossibilitando o atual nível de gestão deste pelos representantes destes partidos quando em cargos da administração. Com isso o aspecto democrático conferido pelos processos eleitorais segue como fundamental para o processo de dominação, uma vez que, mesmo com as formas de subsunção dos partidos oficiais às organizações civis da burguesia, as decisões deste pleito ainda se apresentam como sendo escolhas da população. Com poucas exceções, os programas destas organizações representativas do empresariado parecem atravessar as gestões de representantes de quase todos os partidos oficiais, homogeneizando as pautas políticas.

Alguns destes processos decorrem, na atualidade, dessa ampliação coligada de entidades civis burguesas, elevando à enorme potência e generalizando a utilização de estratégias pedagógicas como formas profundamente exitosas de obtenção do convencimento e do consenso. Cabe destacar, que tais processos não significam um enfraquecimento do Estado, como por vezes analisado. Ao contrário, a expansão da sociedade civil empresarial e a captura do Estado restrito derivada desta são processos de enrijecimento, pois fazem com que pequenas frações dispostas na sociedade civil atuem como verdadeiros comandantes do Estado restrito.

A limitação imposta pela concentração de capitais aos programas partidários faz com que os partidos oficiais apareçam como irrelevantes, pois, ao limitar as direções políticas de um partido a um programa pré-determinado, fazem com que, contraditoriamente, a ideia de democracia conferida pela universalização do sufrágio seja esvaziada, apesar de não terem como objetivo extinguir a estrutura representativa (Fontes, 2017). Estas organizações, portanto, controlam os limites da atuação política, reduzindo qualquer possibilidade concreta de setores populares elaborarem e disputarem pautas de cunho progressista. Desta forma, fazem a “grande política”, a da conservação, ao delinearem os limites de atuação do Estado estrito e esvaziarem o conteúdo de qualquer pauta que esteja fora do programa hegemônico, permitindo que somente a “pequena política” seja realizada e, ainda sim, de forma controlada. Para Gramsci (2007, p. 21), “é grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política”.

É interessante observar que a maioria destas organizações de representação do empresariado se apresenta como “apartidária”, entretanto definem as pautas organizadas pelos partidos eleitorais. Captando as formas concretas das organizações da sociedade civil atuarem, Gramsci observa como estas se utilizam de uma suposta função “apolítica”, técnica, quando na verdade compõem o conjunto de forças dirigentes, por vezes superiores aos partidos oficiais.

 

Será necessária a ação política (em sentido estrito) para que se possa falar de "partido político"? Pode-se observar que no mundo moderno, em muitos países, os partidos orgânicos e fundamentais, por necessidade de luta ou por alguma outra razão, dividiram-se em frações, cada uma das quais assume o nome de partido e, inclusive, de partido independente. Por isso, muitas vezes o Estado-Maior intelectual do partido orgânico não pertence a nenhuma dessas frações, mas opera como se fosse uma força dirigente em si mesma, superior aos partidos e às vezes reconhecida como tal pelo público. Esta função pode ser estudada com maior precisão se se parte do ponto de vista de que um jornal (ou um grupo de jornais), uma revista (ou um grupo de revistas) são também "partidos", "frações de partido" ou "funções de determinados partidos", [...] e também a função da chamada "imprensa de informação", supostamente "apolítica", e até a função da imprensa esportiva e da imprensa técnica (Gramsci, 2007, p. 349-50).

 

Na medida em que ocorreu a expansão, interligação e forte presença destas organizações no conjunto da vida social, o pensamento liberal passou a propagandear intensamente a importância de uma suposta “nova sociedade civil”. A promoção do voluntariado, de ações sociais e ambientais, de união do conjunto da sociedade em prol de algumas pautas, passou a ser utilizada como estratégia hegemônica de elaborar novos consensos, aprofundando ainda mais a presença, a irradiação e a relevância destas organizações ditas “não governamentais”, “sem fins lucrativos” e “apolíticas”. Esta estratégia sedimentou no pensamento social a ideia de uma sociedade civil harmoniosa, destituída de tensões e conflitos, o que, de certa forma, apaga a estratificação de classes e frações existente na realidade concreta e aprofunda a adesão das camadas populares a estas mesmas organizações e às empresas por elas representadas, acentuando, portanto, o consenso em torno das pautas hegemônicas.

De acordo com Fontes (2017, p. 4), com Gramsci é possível compreender que as estratégias destas organizações empresariais relacionam sociedade civil e Estado, ao menos, em duas direções. Primeiramente, possibilitam a aproximação entre os “partidos-entidades” (os APHs) e os partidos oficiais, beneficiando a inserção de representantes destes APHs no Estado restrito por diversas formas – além da própria eleição, em órgãos diretos da aparelhagem administrativa, em conselhos e comissões paralelas, dentre outras –, portanto permitindo que estas venham a ser o próprio Estado. Em segundo lugar, fazem com que os recursos financeiros presentes no Estado restrito sejam orientados para o desenvolvimento de políticas alinhadas às práticas realizadas por estas organizações na sociedade civil, aprofundando suas estratégias e chancelando-as ao torná-las políticas de caráter público. Neste último caso o Estado torna-se educador de pautas e estratégias dos projetos de hegemonia destas organizações.

Nestes pontos que reside a importância do arcabouço teórico-prático elaborado por Gramsci, pois possibilita entender as correlações de forças que se expressam na sociedade civil e como estas se reproduzem no Estado estrito. Perceber as estratégias para educar o consenso, permite enxergar que não há possibilidade de apoliticismo ou apartidarismo nas ações realizadas por estes APHs empresariais, uma vez que intencionalmente comandam a política na própria sociedade civil e, ao limitarem e definirem os programas dos partidos oficiais, também dirigem as ações do Estado. Com essa arquitetura estratégica acabam por apagar as evidências do controle empresarial, impossibilitando o desenvolvimento de políticas de cunho universalizante, reproduzindo, portanto, a hegemonia das frações de classe que atuam como o verdadeiro Estado-Maior da sociedade.

 

7 Considerações finais

A análise dos APHs e seus principais intelectuais, à luz do conceito ampliado de Estado em Gramsci, possibilita entender as correlações de forças entre as classes sociais existentes em um determinado período histórico, orientando as construções ideológicas, as concepções de mundo, a opinião pública e, consequentemente, diversas outras ações concretas do Estado estrito. Utilizar o arcabouço gramsciano – sobretudo suas concepções de Estado Integral e hegemonia – como componente teórico-metodológico na análise das estratégias pedagógicas desenvolvidas pelos APHs empresariais nos possibilita compreender o grau e a profundidade da implementação de seus projetos de hegemonia coligados. Além disso, os resultados destas análises nos permitem o delineamento, enquanto educadores, de outras estratégias pedagógicas que busquem a explicitação da essência concreta destas formas hegemônicas de atuação com horizontes à construção de uma outra hegemonia.

Em Gramsci percebemos como na passagem entre os séculos XIX e XX as forças produtivas e as relações de produção desenvolveram-se de tal modo que, a esta expansão estrutural, corresponderam também a multiplicação e ramificação de superestruturas capazes de dar conta desta remodelagem do modo de produção capitalista. A universalização do trabalho de massa e a socialização da política, sobretudo com o advento do sufrágio universal, foram talvez alguns dos principais processos que corresponderam às necessidades de ampliação do âmbito superestrutural. Formulando seu pensamento a partir da análise da realidade concreta, o filósofo italiano observou como nessa transição as dimensões organizativas privadas se estabeleceram como centrais na luta de classes, passando a impactar diretamente a política, para além da estrutura parlamentar.

Surgidos no âmbito da sociedade civil, estes APHs passaram a exercer influência direta sobre o Estado estrito através da pressão que passaram a imprimir sobre os partidos políticos oficiais e/ou ocupando espaços em conselhos e órgãos da administração existentes no aparelho de Estado. Ao perceber como estas entidades, denominadas privadas, se capilarizavam na sociedade civil e penetravam o Estado, imprimindo neste questões que se ancoravam diretamente no âmbito das relações de produção, Gramsci enxerga que as teorias existentes sobre o Estado – mesmo as que partiam de Marx – não davam conta do nível de complexidade atingido na fase de monopolização do capitalismo, propondo, portanto, uma leitura original, o Estado em sentido ampliado.

Analisando a realidade concreta como um verdadeiro filósofo materialista de sua época e, dialeticamente, como um militante e intelectual orgânico da classe trabalhadora, Gramsci se propôs a delinear novas estratégias de luta na fase superior do capitalismo. Para além da clássica formulação de uma “guerra de movimento”, na qual a luta das classes dominadas seria direcionada por um ataque direto ao centro de condensação de poder do capitalismo, o Estado, Gramsci percebe a necessidade de uma longa “guerra de posição” para a criação de uma hegemonia interna, no seio da classe trabalhadora, possibilitando a passagem desta, conforme a clássica formulação marxista, de “classe em si” para “classe para si”. Contudo, para o alcance dessa hegemonia intraclasse o pensador aponta que a organização dos dominados deve ser capaz de elaborar seus próprios intelectuais e centros formuladores e disseminadores de outras concepções de mundo que possibilitem a realização desta passagem.

Trazendo o arcabouço criado em seu pensamento para contextos históricos mais recentes, percebemos como não somente a dupla superestrutural – sociedade política e sociedade civil – se manteve na realidade concreta das lutas sociais, como se expandiu consideravelmente. Alguns anos depois de seu falecimento (1937), no período após a Segunda Guerra Mundial, vimos a expansão de uma grande trama de formas organizativas, educativas e pedagógicas de representação do alto empresariado, oriundas de diferentes países – dominantes ou não – explicitamente objetivando a formação de quadros intelectuais políticos e técnicos para a implementação de políticas públicas. A expansão destas organizações trouxe um novo cenário de estratégias de dominação, uma vez que passaram a se inserir nos Estados da periferia capitalista global através de seus intelectuais que, então, passavam a realizar formas de atuação estreitamente alinhadas com a dinâmica utilizada pelo grande capital em contexto internacional.

Assim, compreender o papel educador do Estado na perspectiva gramsciana é percebê-lo como esfera de condensação da hegemonia de determinadas classes ou frações: “a supremacia de um grupo social se manifesta de dois modos, como ‘domínio’ e como ‘direção intelectual e moral’” (Gramsci, 2002, p. 62). A apreensão das estratégias pedagógicas de ação das classes dominantes para estabelecer o consenso e, consequentemente, alcançar o Estado, possibilita entender como estas atuam para a manutenção de sua hegemonia. 

Apreender as formas de conhecimento, a filosofia, a ciência e a educação como portadoras de uma verdade cristalizada se trata de um equívoco. Para o filósofo, tais elementos são determinantes-determinados de uma condição histórica de lutas travadas pela dominação/libertação dos seres humanos pelos/dos seres humanos. Não há, neste sentido, um conteúdo ético emanado do Estado, mas sim os diversos interesses das classes hegemônicas na conformação dos grupos subalternos. Neste sentido, compreendemos que a atualidade e força do referencial teórico gramsciano permanece com enorme vigor atualmente. As referências produzidas há um século, em uma fase de mundialização do capitalismo, continuam válidas para a compreensão das disputas travadas no interior da luta de classe e, mais especificamente, nas atuais reconfigurações na formação e conformação do trabalhador.

Concluímos este artigo ressaltando que, dentro dos limites deste texto, destacamos um conjunto de referências teóricas que vêm subsidiando um trabalho coletivo de investigação sobre o papel da educação nas estratégias burguesas para dominação. Esta investigação não parte a sós, mas ao contrário se filia a um conjunto extenso de grupos e coletivos de pesquisa[8] que, a partir deste referencial teórico, vêm reforçando a atualidade do pensamento gramsciano para a compreensão da luta de classes e suas determinações.

 

Referências

 

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SHIROMA, E. O.; MORAES, M. C. M. de; EVANGELISTA, O. Política educacional. Rio de Janeiro: Lamparina, 2011.

 

 

 



[1] O LIEPE é um grupo interinstitucional de pesquisa fundado em 2017, credenciado no CNPq e sediado no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

[2] Por isso os autores optaram por apresentar a paginação de todas as citações diretas de Gramsci apresentadas no artigo, mesmo as que não são literais. Desta forma, busca-se contribuir com as dificuldades oriundas da leitura de sua obra inacabada, além de convidar possíveis leitores que estão iniciando seus estudos sobre o autor a conhecer a riqueza dialética de suas categorias, a qual é inviável para este artigo apresentar em sua integralidade.

[3] Cf. Nota 182 de “Contribuição à Crítica da Economia Política” (Marx, 2008, p. 237).

[4] O próprio Gramsci atribui o conceito de “bloco histórico” a Georges Sorel, pensador francês socialista. Contudo, trata-se de um conceito original de Gramsci, definindo-o como “unidade na diversidade de infraestrutura e superestrutura” (Coutinho, 2011, p. 358).

[5] O livro de Lênin, “O Imperialismo, fase superior do capitalismo”, foi publicado pela primeira vez em 1917, mesmo ano da tomada do poder pelos revolucionários russos.

[6] Para mais informações sobre os conceitos ver: CICCARELLI, R. Trincheiras, fortalezas e casamatas. LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale (orgs.). Dicionário Gramsciano (1926-1937). Tradução: Ana Maria Chiarini, Diego Silveira Coelho Ferreira, Leandro de Oliveira Galastri e Silvia De Bernardinis. Revisão Técnica: Marco Aurélio Nogueira. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2017. p. 785-786.

[7] Frigotto (2010, p. 26) esclarece que: “Quanto ao primeiro sentido – teoria do desenvolvimento – concebe a educação como produtora de capacidade de trabalho, potenciadora de trabalho e, por extensão, potenciadora da renda, um capital (social e individual), um fator do desenvolvimento econômico e social. Quanto ao segundo sentido, ligado ao primeiro – teoria da educação – a ação pedagógica, a prática educativa escolar reduzem-se a uma questão técnica, a uma tecnologia educacional cuja função precípua é ajustar requisitos educacionais a pré-requisitos de uma ocupação no mercado de trabalho de uma dada sociedade”.

[8] Podemos citar o Coletivo de Estudos em Marxismo e Educação – COLEMARX (UFRJ); Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho – GEPETO (UFSC); Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e o Marxismo – NIEP-MARX (UFF); Grupo de Pesquisa sobre Trabalho, Educação e Política Educacional (UFJF); Núcleo de Pesquisa Estado e Poder (UFF), dentre outros.



[i] Artigo recebido em: 31/10/23

 Artigo aprovado em: 17/06/24

[ii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; escrita – rascunho original; escrita – análise e edição.

[iii] Contribuições do autor: conceituação; curadoria de dados; análise formal; investigação; escrita – análise e edição.